COMPETÊNCIA ABSOLUTA
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
RELAÇÃO JURÍDICA ADMINISTRATIVA
ABUSO DO DIREITO
Sumário

1- O fator atributivo de competência aos tribunais administrativos radica na verificação de uma relação jurídica administrativa - artigo 212.º, n.º 3, do Constituição da República Portuguesa e artigo 1.º do ETAF.
2 - Na al. i) do artigo 4.º. do ETAF, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2/10, é atribuída competência aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal para a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime.
3 – Porém, é à luz do conceito de relação administrativa, que a alínea i, do artigo 4.º, n.º 1, do ETAF deve ser lida e interpretada, posto que, essencial para que a competência seja deferida aos tribunais administrativos é que o litígio se insira no âmbito de uma relação dessa natureza.
4 – Não está no âmbito desse conceito de relação administrativa a providência cautelar intentada Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana contra os apelantes pedindo a restituição da posse do fogo de que é proprietário, que os apelantes ocuparam, mediante arrombamento da fechadura.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
1 O requerente/ora recorrido intentou procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra os requeridos/ora recorrentes pedindo:
a) a restituição da posse do fogo que se mostra identificado nos autos pelos requeridos;
b) a entrega do imóvel ao requerente livre e devoluto de pessoas e bens;
c) o decretamento da inversão do contencioso.
2 Fundamentou, em síntese, a sua pretensão, alegando que é proprietário da fração autónoma identificada pela letra Z, correspondente ao 4º andar esquerdo (também identificado no local pela letra A) do prédio constituído em propriedade horizontal sito no nº …. da Rua ..., em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº ..., da freguesia de Santa Maria dos Olivais, e inscrito na matriz predial urbana da Freguesia de Marvila, concelho e distrito de Lisboa sob o artigo …, com o valor patrimonial tributário de € 39.293,02 (docs. nº 1, 2 e 3).
3 Que atribui essa fração a famílias carenciadas no regime de arrendamento apoiado.
4 Que a fração estava devoluta, depois de ter sido sujeita a obras, tendo os requeridos ocupado a fração, mediante arrombamento da fechadura.
5 Após produção de prova, a providência foi decretada sem audição dos requeridos.
6 Os requeridos, inconformados com a decisão do tribunal de primeira instância, apelaram. Concluíram da seguinte forma a sua motivação de recurso.
CONCLUSÕES DOS APELANTES
1) Antecedendo a sentença recorrida a recorrente alega que com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º promulgado pelo PR em 2 de Agosto de 2016 que entrou em vigor imediatamente fica salvaguardada a obrigatoriedade de o senhorio de habitação social aceitar a proposta de regularização em prestações que lhe for endereçada e, em última instância, só pode levar por diante o despejo desde que previamente esteja assegurada a atribuição de outra habitação ou acordada a competente indemnização, estando assim plenamente salvaguardado o efeito útil do presente pedido de arguição de dupla nulidade.
2) Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 102.º a incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa.
3) Nos termos do disposto no artigo 65.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa  todos têm direito para si e para sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
4) Tal disposição tem como sujeito passivo o Estado e naturalmente que inserindo-se o IHRU na tutela da Secretaria de Estado da Habitação e incumbindo-lhe competências quer para gerir um parque habitacional perfeitamente delimitado tem o mesmo poderes de coordenação das demais entidades gestoras designadamente das câmaras municipais. Logo, a notificação do  Conselho Diretivo do IHRU no que respeita à omissão culposa da regularização da situação não só era oportuna como perfeitamente legal ao abrigo da CRP e do Estatuto do IHRU.
5) No que respeita à suspensão da execução do despejo é flagrante a existência de base legal pois que ainda que o IHRU insista em ignorar tal disposição a verdade é que se encontra em vigor desde 1 de Setembro de 2016 um novo diploma que para além de banir o NRAU da aplicação ao arrendamento social baniu ainda o recurso aos despejos administrativos, atribuiu o exclusivo dos despejos aos Tribunais Administrativos deixando assim o Tribunal de Comarca de pode aceitar ou prosseguir e muito menos ordenar a efetivação de um despejo de uma casa notoriamente abrangida pelo parque habitacional de cariz social.
6) Efetivamente, ao abrigo da Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro que entrou em vigor em 1 de Setembro de 2016 resulta do artigo 28.º n.º 6 que os agregados alvos de despejo com efetiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais.
7) Trata-se uma disposição naturalmente imperativa e que se destina imediatamente ao IHRU enquanto entidade gestora do parque habitacional no qual se inclui a habitação em causa.
8) O IHRU não alegou nem fez prova do contrário que tal obrigação que deve preceder qualquer despejo não foi cumprida pelo IHRU e a causa desse incumprimento, para que a disposição possa fazer sentido, é a de que, no mínimo a presente execução deveria de ser suspenso até porque foi esse o pedido formulado pela executada e ora Recorrente.
10) Aliás, nos termos do nº 1 do mesmo artigo cabe ao IHRU levar a cabo os procedimentos subsequentes caso não haja uma entrega voluntária e nunca o Recorrente manifestou qualquer vontade de entregar as chaves antes solicitou que lhe fosse fixada uma renda dentro dos parâmetros legalmente previstos o que o IHRU se a fazer.
11) As decisões judiciais sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição.
12) A falta de fundamentação gera a nulidade do despacho ou da sentença. Tratando-se da decisão sobre a matéria de facto, pode determinar-se em recurso a baixa do processo a fim de que o tribunal da 1ª instância a fundamente.
13) Por outro lado, a douta sentença não faz uma análise crítica, nem completa nem mínima, da versão apresentada pelo A, limitando-se a reproduzir um conjunto de considerações que são válidas para “N” ações, mas que não consubstanciam minimamente o cumprimento do imposto.
14) Prescreve, então e no que ora nos interessa, o artigo 334.º do C.C., primeira fonte do instituto do Abuso de Direito, que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
15) Quer-se, pois, tutelar ou permitir uma válvula de escape perante um determinado modo de exercício de direito ou direitos, que, apresentando-se formal e aparentemente admissível, redunda em manifesta contrariedade à ordem jurídica.
16) Há abuso de direito quando um determinado direito – em si mesmo válido -, é exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante na comunidade social (Ac. RL, de 16 de Maio 1996, processo nº 0012472, sumário em dgsi.pt).
17) Efetivamente, promover o despejo de um agregado familiar que reside numa habitação social sem qualquer proteção da habitação afigura-se contra o direito e levado a cabo por uma entidade gestora do património de habitação social ainda mais grave se apresenta.
7 O apelado respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção da decisão.
8 Tendo sido suscitada pelos apelantes a nulidade da sentença por falta de fundamentação, o tribunal de primeira instância veio a pronunciar-se aditando à decisão proferida a motivação quanto à matéria de facto que era omissa.
9 As partes foram notificadas dessa alteração e nada disseram.
OBJETO DO RECURSO
10 O objeto do recurso é delimitado pelo requerimento recursivo, podendo ser restringido, expressa ou tacitamente pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC). O tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC).
11 “Os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Segundo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância” – cf. Recursos em Processo Civil, Abrantes Geraldes , Almedina, 6ª ed. pp. 140 e 141.
12 A jurisprudência tem entendido da mesma forma, que o tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas, ainda sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária – entre outros Ac. STJ de 17.12.2014, processo 971/12).
13 No presente caso, os apelantes invocam nas suas alegações, além do mais, o seu direito ao arrendamento e a ilegalidade do despejo. Pese embora não concretizem qualquer pedido quanto a esta invocação, apenas se limitando a discorrer sobre a questão, deixa-se desde já anotado que ainda que se pudesse configurar essa invocação como questão a decidir, sempre estaríamos no âmbito de uma questão nova que nunca foi suscitada junto do tribunal de primeira instância ou por este decidida, nem é de conhecimento oficioso, pelo que, como vimos, não cabe conhecer no âmbito do presente recurso. Ademais, uma tal questão nova deveria ser suscitada junto do tribunal que decretou a providência em conformidade com o artigo 372.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
14 À luz do exposto, o objeto deste recurso consubstancia-se em analisar e decidir o seguinte:
- Nulidade da decisão do tribunal de primeira instância – artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil;
- Incompetência material dos tribunais civis;
- Abuso de direito.
15 Os fundamentos fáctico-processuais a considerar para a decisão do presente recurso são as descritas no relatório desta decisão, a que acrescem os seguintes factos, que o tribunal decidiu julgar provados.
FUNDAMENTOS DE FACTO
FACTOS JULGADOS PROVADOS PELO TRIBUNAL A QUO
1) O IHRU. I.P., ora requerente, é um instituto público de regime especial e gestão participada, integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e património próprio, tendo a sua lei orgânica aprovada pelo Decreto-Lei n° 175/20212, de 2 de agosto., na vertente da habitação, compete-lhe dar de arrendamento imóveis, destinados a habitação social, a famílias carenciadas (cf. n° 2 do artigo 3° do Decreto-Lei n° 175/2012).
2) O requerente é proprietário da fração autónoma identificada pela letra Z, correspondente ao 4° andar esquerdo (também identificado no local pela letra A) do prédio constituído em propriedade horizontal sito no n° …. da Rua ..., em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n° ..., da freguesia de Santa Maria dos Olivais, e inscrito na matriz predial urbana da Freguesia de Marvila, concelho e distrito de Lisboa sob o artigo …, com o valor patrimonial tributário de € 39.293,02 (docs. n° 1, 2 e 3).
3) O fogo é utilizado pelo requerente para atribuição a famílias carenciadas no regime de arrendamento apoiado.
4) Tendo sido entregue ao requerente em 30 de junho de 2021, pela então arrendatária, por virtude de cessação do respetivo contrato de arrendamento (cf. doc. n° 4), o fogo foi então objeto de profundas obras de reabilitação.
5) Concluídas as obras no final de 2022, o fogo iria em breve ser em atribuído a nova família carenciada no identificado regime de arrendamento apoiado.
6) Em 19.05.2023, por denúncia anónima, o Requerente tomou conhecimento de que o fogo tinha sido ocupado.
7) Solicitada a intervenção da PSP de Lisboa, foi por esta confirmado que no local se encontravam a residir os Requeridos R e L.
8) À data da ocupação, o fogo encontrava-se devidamente encerrado, devoluto e com as chaves na posse do requerente.
9) A ocupação só pode ter sido efetuada, aproveitando o facto de o fogo estar devoluto, mediante arrobamento da porta pelo Requeridos e posterior mudança da respetiva fechadura.
10) A ocupação impede, contra a contra a vontade do Requerente, o acesso ao fogo e nova atribuição a uma família, já referenciada e em situação de necessidade habitacional urgente.
11) A procura de habitação social para arrendamento é elevada, e tem sido desde sempre bastante superior ao número de frações que o Requerente vai tendo para o efeito disponíveis.
CONHECIMENTO DO OBJETO DO RECURSO
Enquadramento legal
Artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
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Artigo 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa
Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Artigo 64.º do Código de Processo Civil
São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Artigo 40.º da Lei Orgânica do Sistema Judiciário
1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada.
Artigo 1.º, n.º 1, Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais ou ETAF (ênfase aditada)
1 - Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.
 Artigo 4.º, , n.º 1 e 2 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais ou ETAF (ênfase aditada)
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
(…)
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
(…)
2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.
Artigo 1.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 175/2012, na versão atualizada dada pelo Decreto-Lei n.º 74/2022
1 - O Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, I. P., abreviadamente designado por IHRU, I. P., é um instituto público de regime especial e gestão participada, nos termos da lei, integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e património próprio.
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Artigo 377.º do Código de Processo Civil
No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.
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Artigo 527º, nº 1 do Código de Processo Civil
A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.
1. Nulidade a que alude o artigo 615º, nº1, alínea b), do Código de Processo Civil
16 O vício de nulidade a que alude o artigo 615º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, verifica-se quando a sentença (ou uma decisão – artigo 613.º, n.º 3, do Código de Processo Civil) não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão ou, segundo alguns autores, quando os fundamentos sejam gravemente deficientes e insuficientes de tal forma que se deva considerar a fundamentação inexistente. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença. Isto é, ocorre quando na decisão é desrespeitada uma norma que impõe um determinado  um sentido de atuação processual, do que se distingue do error in judicando, em que o juiz não integra de forma juridicamente correta os factos no direito. Não aplica o direito da forma certa.
17 O vício pode respeitar à decisão de facto ou à decisão de direito.
18 Este vício decorre de uma violação do dever geral de fundamentar as decisões que incidem sobre pedidos controvertidos – artigo 154.º, do Código de Processo Civil.
19 Neste caso, os apelantes discorreram de forma genérica e meramente conceptual sobre o entendimento que adotam quanto ao que deva entender-se por falta de fundamentação das decisões, mas nunca esclareceram em que medida entendem verificar-se o vício de nulidade por falta de fundamentação na sentença de que decorrem.
20 Analisando a decisão, também não divisamos que esta se mostre viciada por falta de fundamentação, sendo certo que ainda que se entendesse que os apelantes suscitaram tal vício pela falta de motivação da matéria de facto, a verdade é que o tribunal de primeira instância veio a acrescentar a motivação da sua decisão de facto em momento subsequente, nada tendo as partes oposto.
21 Não se verifica, pois, a nulidade apontada.
2. Incompetência absoluta dos tribunais judiciais
22 Os apelantes invocam a incompetência dos tribunais judiciais para o conhecimento desta ação, entendendo que os tribunais administrativos são os competentes.
23 A infração das regras de competência fundadas na matéria determina a incompetência absoluta do tribunal e constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que determina a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, nos termos dos artigos 96.º, 97.º, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), e 577.º, alínea a), do Código de Processo Civil, razão pela qual, pese embora se trate de questão nova, será conhecida.
a. Competência - tribunais judiciais e tribunais administrativos
24 É incontestado pela jurisprudência que a competência do Tribunal se afere pela natureza da relação jurídica tal como o autor a configura na petição inicial – veja-se neste sentido e a título de exemplo, o Ac. STA 03802/20.8T8GMR.G1.S1, 2/12/2021.
25 São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional - artigos 64.º do Código de Processo Civil e 40.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto). Trata-se do critério de competência residual dos tribunais judiciais ou por exclusão de partes – a par dos critérios de atribuição positiva (causas que a lei reconhece serem da sua competência).
26 O funcionamento desta regra residual  determina o prévio reconhecimento de que a questão não está cometida por lei ao conhecimento por outro tribunal, neste caso, o administrativo.
27 O fator atributivo de competência aos tribunais administrativos radica na verificação de uma relação jurídica administrativa - artigo 212.º, n.º 3, do Constituição da República Portuguesa e artigo 1.º do ETAF.
28 Em anotação ao artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa Anotada, Gomes Canotilho e Vital Moreira referem, a propósito do artigo 212º, n.º 3 da Constituição, 3ª edição revista, 1993, pág. 815, que na norma “estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (n.º3, in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.
Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.”
29 A relação jurídico-administrativa pode ser uma relação entre entidades administrativas e sujeitos de direito privado, a Administração Pública, qualquer pessoa coletiva de direito público ou mesmo particular investido de poder público e, por outro, qualquer pessoa coletiva de direito público ou particular - Ac. do Tribunal de Conflitos de 19/10/2017, Processo 039/16.
30 A competência dos tribunais administrativos é regulada pelo artigo 4.º do ETAF, que concretiza os respetivos pressupostos no contexto da relação jurídica administrativa – cf. Acórdãos TRL nos processos 7325/20.7YIPRT.L1-7, 27/4/2021 e 111178/21.3YIPRT.L1-2, 25-05-2023 (ambos em www.dgsi.pt).
31 Na al. i) do artigo 4.º. do ETAF, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2/10, é atribuída competência aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal para a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à “remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime” (os apelantes invocaram a al. f) mas certamente por lapso, já que esta respeita a questões de responsabilidade civil, matéria que nada tem que ver com estes autos).
32 Pese embora a letra da mencionada al. i) o pareça numa primeira leitura sugerir, esta norma não belisca os fundamentos constitucionais de atribuição de competência dos tribunais administrativos.
33 Na realidade, atento o disposto na Constituição da República Portuguesa e no artigo 1.º, do ETAF, a atribuição de competência da al. i) do artigo 4.º deverá continuar a ser entendida no contexto da relação jurídico-administrativa – o que é, aliás, reiterado no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 214-5/2015, de 16/10, na sua nota 9, quando declara: “No que respeita ao ETAF, clarificam-se, desde logo, os termos da relação que se estabelece entre o artigo 1.º e o artigo 4.º, no que respeita à determinação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, e, por outro lado, dá-se mais um passo no sentido, encetado pelo atual ETAF, de fazer corresponder o âmbito da jurisdição aos litígios de natureza administrativa e fiscal que por ela devem ser abrangidos. Neste sentido, estende-se o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal às ações de condenação à remoção de situações constituídas pela Administração em via de facto, sem título que as legitime (…).”
34 “Será, pois, à luz do conceito de relação administrativa, que as alíneas do artigo 4.º, n.º 1, do ETAF (mesmo a al. i), devem ser lidas e interpretadas, posto que, essencial para que a competência seja deferida aos tribunais administrativos é que o litígio se insira no âmbito de uma relação dessa natureza, o mesmo é dizer numa relação onde a administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público” (ênfase aditada) – cf. Ac TRL, 111178/21.3YIPRT.L1-2.
b. Caso concreto
35 O aqui apelado é um instituto público de regime especial e gestão participada nos termos da lei, integrado na administração indireta do Estado.
36 Neste procedimento cautelar que deduziu contra os apelantes alegou o seguinte:
- que é dono e legítimo proprietário do imóvel identificado;
- que o imóvel foi ocupado sem autorização e com arrombamento pelos ora apelantes; e
– que inexiste qualquer título que legitime aquela ocupação.
37 E pediu a restituição provisória da posse do imóvel.
38 Considerando a forma como foi configurado o litígio, estamos perante uma causa que se funda apenas na violação do direito de propriedade do requerente/apelado por parte dos requeridos/apelantes; que não radica em qualquer relação jurídico-administrativa estabelecida entre as partes; e à qual é absolutamente  irrelevante que o requerente seja um organismo do Estado.
39 O litígio que separa as partes é por isso de natureza privada, para cujo conhecimento está excluída a competência dos tribunais administrativos.
40 Improcede, pois, a exceção de incompetência suscitada.
3. Abuso de Direito
41 É ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito – artigo 334.º, do Código Civil.
42 Funcionando como válvula de segurança do sistema, aplica-se a situações concretas em que “é clamorosa, sensível e evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjetivo e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou dos direitos de certo tipo” – cf. citação vertida no Ac. STJ, de 1/7/2004, 04B4671, Salvador da Costa.
43 O abuso do direito é uma exceção perentória de direito material, e de conhecimento oficioso, podendo ser conhecido no tribunal de recurso ainda que o tribunal recorrido se não tenha pronunciado sobre ele. Pretendendo fazê-lo valer, cabia aos apelantes o ónus da alegação e prova dos respetivos factos integrantes – artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.
44 Os apelantes alegaram que o abuso de direito decorre do despejo da casa de habitação social, porquanto são uma família carenciada, para cujas necessidades devem precisamente as habitações sociais suprir. E “que promover o despejo de um agregado familiar que reside numa habitação social sem qualquer proteção da habitação afigura-se contra o direito e levado a cabo por uma entidade gestora do património de habitação social ainda mais grave se apresenta”.
45 Notamos que o cenário invocado pelos apelantes para acionarem o abuso de direito, como pretendem, não encontra eco na matéria de facto provada, mostrando-se que não lograram demonstrar os factos constitutivos do abuso de direito que alegam verificar-se.
46 De resto, de acordo com o que ficou demonstrado, também não se divisa nos factos provados que o requerente/apelado tenha tido qualquer outro comportamento que permita concluir que agiu com abuso de direito, numa qualquer das suas manifestações. Foram os apelantes que ocuparam sem qualquer autorização o imóvel, tendo-se o apelado limitado a pedir a sua restituição, num exercício legal e legítimo face ao direito e aos valores dominantes impostos pela ordem jurídica.
47 Não se mostrando demonstrado o abuso de direito deve também este fundamento de recurso improceder.
4. Custas
48 Nos termos do artigo 527.º, do Código Civil, os apelantes deverão suportar as custas.
49 Na verdade, face à total procedência da presente apelação, é inegável que decaíram, devendo por isso suportar as custas do presente recurso (na modalidade de custas de parte), sem prejuízo do apoio judiciário.

DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o presente recurso, confirmando a decisão impugnada.
Custas pelos apelantes – cf. artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
O presente acórdão mostra-se assinado e certificado eletronicamente.

Lisboa, 9 de abril de 2024
Rute Lopes
José Capacete
Ana Cristina Maximiano