AUDIÊNCIA PRÉVIA
ACÇÃO DE VALOR NÃO SUPERIOR A METADE DA ALÇADA DA RELAÇÃO
SANEADOR-SENTENÇA
CONTRADITÓRIO
NULIDADE PROCESSUAL
Sumário

1. Nas ações de valor não superior a metade da alçada da Relação a marcação de audiência prévia não é obrigatória, marcando-a, ou não, o juiz tendo em conta a natureza e a complexidade da ação.
2. Em todo o caso, pretendendo o juiz conhecer de mérito no despacho saneador, não pode deixar de informar as partes dessa pretensão, dando-lhes a oportunidade de apresentarem, ainda, alguma argumentação de facto ou de direito sobre tal conhecimento, sob pena de violação do princípio do contraditório.
3. A violação do princípio do contraditório, consubstancia uma nulidade processual com influência na decisão da causa, que inquina a sentença recorrida, que conhece de questão de que não podia conhecer sem o prévio exercício do contraditório, ocorrendo excesso de pronúncia.

Texto Integral

Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
Em 8.10.2018, A intentou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra B , pedindo que se declare que o R. desocupe o imóvel arrendado, de propriedade da A., e entregue as chaves do imóvel arrendado à mesma, com muita urgência, e se for preciso com auxílio de agentes de polícia, uma vez que o contrato está extinto desde o falecimento da última arrendatária sobrevivente e mãe do R., e ademais, o R. não efetua o pagamento de rendas de apenas 27,00€ (vinte e sete euros), desde o mês de julho do ano de 2020, estando em incumprimento, além de violar as regras de higiene, de sossego e de boa vizinhança, bem como a A. precisa do imóvel para habitação para instalar as suas únicas parentes e herdeiras, que são a única irmã e a única sobrinha menor.
A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese [1]:
O contrato de arrendamento relativo ao prédio sito na ..., n.º …., Campo de Ourique, …, Lisboa, que havia sido celebrado em 1 de julho de 1970 com o pai do R., na qualidade de arrendatário, caducou no dia 15 de fevereiro de 2017, com o óbito de C…, mãe do R.
A posição de arrendatário não se transmitiu para o R., e, nessa sequência, pediu-lhe para lhe restituir o imóvel, o que este não fez, tendo continuado a nele residir e a pagar as rendas mensais.
Porém, desde julho de 2020 que o R. não paga as rendas, grita com os vizinhos e com a A. sempre que é interpelado acerca da data em que restituirá o imóvel à proprietária, atira garrafas de vidro e outros objetos cortantes para o quintal ao lado, grita blasfémias e ameaças de que o imóvel é seu e acumula lixo, pelo que o imóvel arrendado é foco de muitos ratos, baratas e outros insetos, que prejudicam a vizinhança e o danificam.
A A. precisa do imóvel para alojar a sua única irmã e sobrinha.
Citado, o R. contestou, por exceção, invocando a falta de interesse em agir da A., erro na forma de processo e ineptidão da petição inicial, e terminou pedindo que a ação seja julgada improcedente e se considere procedente qualquer das exceções aduzidas, devendo o réu ser absolvido da instância, com as legais consequências.
A A. apresentou requerimento respondendo às exceções alegadas, pugnando pela sua improcedência.
Em 14.11.2023, foi proferido o seguinte despacho: “Ao abrigo do artigo 547.º do Código de Processo Civil, admito o articulado de resposta às exceções espontaneamente apresentado pela Autora (Referência 37047923, de 20.09.2023). DISPENSA DE AUDIÊNCIA PRÉVIA Uma vez que já foi plenamente exercido o princípio do contraditório e o estado do processo permite a apreciação do pedido deduzido pela Autora, dispenso a realização da audiência prévia e passo a conhecer do mérito da causa, nos termos dos artigos 591º, n.º 1, alínea d), 593º, n.ºs 1 e 2, alínea a) e 595º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil.”, seguido de despacho saneador, no qual se julgaram improcedentes as exceções invocadas, e de sentença, que julgou parcialmente procedente a presente ação e: - Declarou resolvido o contrato de arrendamento tácito celebrado entre a Autora A e o Réu B relativo ao imóvel sito na ..., n.º ….., Campo de Ourique, …, Lisboa. - Condenou o Réu a desocupar e entregar as chaves do imóvel à Autora, no prazo de 1 mês a contar do trânsito em julgado da presente decisão. - Condenou o Réu a pagar à Autora a quantia de €1.080,00 (mil e oitenta euros), a título de rendas em atraso pelos meses de julho de 2020 a novembro de 2023, acrescidas do valor mensal de €27,00 (vinte e sete euros) até à desocupação e entrega das chaves do imóvel.
Não se conformando com o teor da decisão, apelou o R., formulando, a final, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1) O valor da vertente ação de despejo é €810,0, entretanto fixado in fine da douta sentença em €1.620,00;
2) Nestas ações, findos que sejam os articulados, são colocadas à disposição do juiz diversas opções quanto à tramitação subsequente dos autos, em conformidade como disposto nas várias alíneas do art.º 597.º, do Cód. de Proc. Civil;
3) In casu, o tribunal a quo, sem antes consultar as partes (v.g., convocando a audiência prévia, ou, notificando as partes para exercerem o exercício do contraditório) proferiu decisão final de mérito em sede de despacho saneador, simultaneamente, com os despachos de admissão do articulado de resposta às exceções e de dispensa da audiência prévia;
4) Trata-se de uma decisão surpresa, através da qual o tribunal a quo vedou às partes a possibilidade de produzirem alegações finais sobre o mérito da causa, violando – desta forma – o princípio do contraditório, que é um dos pilares do processo civil (art.º 3, n.º 3);
5) O princípio do contraditório, envolve a proibição da prolação de decisões surpresa, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem;
6) Ao decidir de meritis o tribunal a quo pronunciou-se sobre matéria que, sem a prévia audição das partes não podia conhecer, tendo cometido a nulidade de excesso de pronúncia, prevista na 2.ª parte da al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do Cód. de Proc. Civil;
7) Ou seja, mesmo nos casos em que seja aplicável o art.º 597.º do Cód. de Proc. Civil o juiz tem de ouvir as partes sobre a possibilidade de decidir de mérito de imediato;
8) A sentença recorrida infringiu todas as disposições legais enunciadas nestas conclusões.
Termina pedindo que se declare nula a sentença recorrida, por excesso de pronúncia, anulando-se todo o processado subsequente à apresentação da resposta da autora à contestação, devendo-se, do mesmo passo, ordenar ao tribunal a quo que assegure o exercício do contraditório quanto ao conhecimento imediato do mérito da causa, de forma a possibilitar a efetiva audição das partes (no caso de o tribunal ainda tencionar conhecer do mérito da causa no despacho saneador).
Não se mostram juntas contra-alegações.
QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC), as questões a decidir são:
a) nulidade da sentença;
b) decisão surpresa e violação do princípio do contraditório.
Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
1. A Autora é a atual proprietária do imóvel sito na ..., n.º …., Campo de Ourique, …, Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o artigo 4228, da freguesia de Santa Isabel, e inscrito na matriz da freguesia de Campo de Ourique, sob o artigo 1694.
2. O Réu é filho de D... e de C…   .
3. No dia 1 de julho de 1970, foi celebrado contrato de arrendamento para fim habitacional relativo ao imóvel sito na ..., n.º …., Campo de Ourique, …, Lisboa, entre C…, na qualidade de senhorio, e D..., na qualidade de arrendatário.
4. O contrato de arrendamento em questão tinha a duração certa de 6 meses, renovando-se sucessivamente, por igual período e nas mesmas condições, no silêncio das partes, sendo a renda mensal, no valor de 550 escudos, paga no 1.º dia útil anterior ao mês a que dissesse respeito.
5. No dia 3 de março de 1997, faleceu D…, à data casado com C… .
6. No dia 15 de fevereiro de 2017, faleceu C…, sendo o valor da renda mensal, à data, de 27 euros.
7. O Réu residia nesta data no imóvel acima referido e, desde então, continua a nele residir.
8. Por carta datada de 28 de dezembro de 2018, a Autora notificou o Réu para desocupar o imóvel acima mencionado em 30 dias.
9. O Réu pagou as rendas mensais do imóvel acima referido, no valor de 27 euros, entre março de 2017 e junho de 2020, nos moldes em que o vinham fazendo, até fevereiro de 2017, os falecidos arrendatários.
10. A Autora aceitou e recebeu o pagamento de tais rendas e emitiu recibos relativos a tais pagamentos em nome do Réu.
11. O Réu não paga as rendas devidas desde julho de 2020.
12. O Réu, sempre que interpelado pela Autora ou por outros vizinhos sobre quando deixará o imóvel, grita que o imóvel é seu, que “de lá ninguém o tira”, e que “só sairá do imóvel morto”, inclusivamente atirando para dentro do quintal da Autora (que mora ao lado) garrafas de vidro.
13. O Réu acumula lixo no imóvel acima mencionado, pelo que o mesmo é foco de muitos ratos, baratas e outros insetos, que prejudicam a vizinhança, além de provocarem estragos materiais no local.
14. A Autora é solteira e não tem filhos e precisa do imóvel a fim de aí instalar a sua única irmã e sobrinha.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O apelante invoca a nulidade da sentença recorrida, nos termos do disposto no art. 615º, nº 1, al. d) 2ª parte, do CPC, porquanto conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, quando profere decisão final de mérito em sede de despacho saneador, simultaneamente, com os despachos de admissão do articulado de resposta às exceções e de declaração de dispensa da audiência prévia sem antes consultar as partes, preterindo formalidade processual, com influência na decisão da causa, por não se ter realizado audiência prévia com vista a facultar às partes a discussão de facto e de direito quando o tribunal tencionava conhecer, como conheceu, imediatamente do mérito da causa, proferindo decisão surpresa, e violando o princípio do contraditório.       
Apreciemos.
Dispõe o nº 1 do art. 591º do CPC (artigo que regula a “Audiência prévia”), que, concluídas as diligências de gestão inicial do processo previstas no art. 590º “se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes: a) Realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594º; b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa; c) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate; d) Proferir despacho saneador, nos termos do nº 1 do artigo 595º; e) Determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no nº 1 do artigo 6º e no artigo 547º; f) Proferir, após debate, o despacho previsto no nº 1 do artigo 596º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes; g) Programar, após audição dos mandatários, os atos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respetivas datas”.
O objeto e finalidade da audiência prévia é indicado no despacho que a designa (nº 2 do art. 591º do CPC).
Por seu turno, estatui o nº 1 do art. 592º do CPC que “A audiência prévia não se realiza: a) Nas ações não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) a d) do artigo 568º; b) Quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.”.
Por força do disposto do art. 593º do CPC o juiz também pode dispensar a realização da audiência prévia se a ação houver que prosseguir e aquela se destinar, apenas, aos fins indicados nas als. d), e) e f) no nº 1 do referido art. 591º (nº 1), sem prejuízo das partes poderem requerer a realização da mesma (nº 3).
E nas ações de valor não superior a metade da alçada da Relação, o juiz marcará ou não audiência prévia tendo em conta a natureza e a complexidade da ação (art. 597º do CPC).
Da ponderação conjugada destas disposições legais teremos de concluir que, nas ações de valor superior a metade da alçada da Relação, a realização de audiência prévia não é obrigatória, mas é a regra, não se realizando, apenas, nos casos previstos no art. 592º do CPC, ou quando seja dispensada pelo juiz, nas ações que hajam de prosseguir.
Da Exposição de Motivos do PL-CPC consta que “Há um manifesto investimento na audiência prévia, entendida como meio essencial de operar o princípio da cooperação, do contraditório e da oralidade. … A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas ações não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas ações que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma exceção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados. … Numa perspetiva de flexibilidade, prevê-se que o juiz, em certos casos, possa dispensar a realização da audiência prévia. Nessa hipótese, o juiz proferirá despacho saneador, proferirá despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, programando e agendando ainda os atos a realizar na audiência final, …. Notificadas as partes, se algumas delas pretenderem reclamar do que foi decretado pelo juiz (exceção feita ao despacho saneador, cuja impugnação haverá de ser feita por via de recurso, nos termos gerais), o meio próprio é requerer a realização da audiência prévia destinada a tratar dos pontos sob reclamação”.
Não se verificando nenhuma das situações previstas no art. 592º do CPC, e se a ação não houver de prosseguir, nomeadamente por se ir conhecer no despacho saneador do mérito da causa, deve ser convocada audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito (art. 591º, nº 1, al. b) do CPC).
A convocação da audiência prévia para o fim previsto no art. 591º, nº 1, al. b), do CPC, visa assegurar o respeito pelo princípio do contraditório [2], e evitar decisões-surpresa (art. 3º, nº 3, do CPC), pelo que se nos afigura que o juiz só poderá dispensar, nestes casos, a audiência prévia, ao abrigo do disposto nos arts. 6º e 547º, do CPC, se aquele conhecimento assentar em questão suficientemente debatida nos articulados.
Neste sentido parece apontar, também, a referida Exposição de Motivos, da qual consta, no que aos fins da audiência prévia respeita, que a mesma tem como objeto: (i) a tentativa de conciliação das partes; (ii) o exercício de contraditório, sob o primado da oralidade, relativamente às matérias a decidir no despacho saneador que as partes não tenham tido oportunidade de discutir nos articulados; (iii) o debate oral, destinado a suprir eventuais insuficiências ou imprecisões na factualidade alegada e que hajam passado o crivo do despacho pré-saneador; (iv) a prolação de despacho saneador, apreciando exceções dilatórias e conhecendo imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa; (v) a prolação, após debate, de despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova”.
Paulo Ramos de Faria [3] e Ana Luísa Loureiro, em Primeiras Notas ao NCPC, Os Artigos da Reforma, 2014, 2ª ed., pág. 536, sustentam que, mesmo neste caso, a decisão de dispensa de audiência prévia “deve, todavia, ser precedida da consulta das partes (art. 3º, nº 3), assim se garantindo não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, como também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa”.
Lebre de Freitas, em A Ação Declarativa Comum à Luz do CPC de 2013, 3ª ed., pág. 172, vai mais longe, escrevendo, a propósito da al. b) do nº 1 do art. 591º, que “Quando se julgue habilitado a conhecer imediatamente do mérito da causa, mediante resposta, total ou parcial, ao pedido (ou pedidos) nela deduzido(s) (art. 595-1-b), o juiz deve convocar a audiência prévia para esse fim. No CPC de 1961 posterior à revisão de 1995-1996, excetuava-se o caso em que os fundamentos da decisão a proferir tivessem sido já discutidos pelas partes, não havendo insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto a corrigir e revestindo-se a apreciação da causa de manifesta simplicidade. No Novo código esta exceção desaparece: o juiz não pode julgar de mérito no despacho saneador sem primeiro facultar a discussão, em audiência, às partes” (sublinhado nosso), excecionando, porém, 2 situações [4] que, aqui, não relevam.
A presente ação tem valor não superior a metade da alçada da Relação, seguindo a tramitação prevista no art. 597º do CPC, do qual resulta que, como supra referido, o juiz marcará ou não audiência prévia tendo em conta a natureza e a complexidade da ação.
Dispõe o mencionado preceito legal que “Nas ações de valor não superior a metade da alçada da Relação, findos os articulados, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 590.º, o juiz, consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo: a) Assegura o exercício do contraditório quanto a exceções não debatidas nos articulados; b) Convoca audiência prévia; c) Profere despacho saneador, nos termos do no n.º 1 do artigo 595.º; d) Determina, após audição das partes, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º; e) Profere o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º; f) Profere despacho destinado a programar os atos a realizar na audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as respetivas datas; g) Designa logo dia para a audiência final, observando o disposto no artigo 151.º.”.
Nestas ações é ao juiz que compete definir a tramitação processual a seguir, tendo em conta a complexidade da ação, a sua natureza (que podem aconselhar uma tramitação similar à definida para o processo comum), a necessidade de adequação dos atos ao julgamento da causa, sendo as hipóteses previstas no preceito aplicáveis em termos conjugados [5], não sendo a convocação da audiência prévia obrigatória.
Em todo o caso, pretendendo o juiz conhecer de mérito no despacho saneador, não pode deixar de informar as partes dessa pretensão, dando-lhes a oportunidade de apresentarem, ainda, alguma argumentação de facto ou de direito sobre tal conhecimento, sob pena de prolação de decisão surpresa [6].
Dispõe o art. 3º, nº 3, do CPC que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”.
Este preceito corresponde ao nº 3 do art. 3º do CPC61, que foi introduzido pelo DL. 329-A/95 de 12.12, pretendendo-se com tal alteração, de acordo com o respetivo preâmbulo, prescrever a proibição de prolação de decisões surpresa.
Do preceito mencionado resulta que é, sempre, exigível o cumprimento do princípio do contraditório, antes do juiz conhecer das questões de facto ou de direito que se lhe colocam, mesmo que de conhecimento oficioso, só assim não sendo por manifesta desnecessidade, que o juiz deverá explicitar.
A propósito do âmbito da regra do contraditório, escreve Lebre de Freitas, em Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, 1996, pág. 96, que “A esta conceção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contrariedade, com origem na garantia constitucional do “rechtliches Gehör” germânico, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a plena possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo”.
Não tendo informado as partes que pretendia conhecer no despacho saneador do mérito da causa, facultando-lhes, ainda, “a discussão de facto e de direito” que se lhes afigurasse pertinente face a tal pretensão (no fundo, produzirem alegações finais sobre o mérito da causa), o tribunal recorrido violou o princípio do contraditório, proferindo decisão surpresa - neste sentido se pronunciaram, entre outros, os Acs. da RL de 10.3.2021, P. 7763/20.5T8LSB.L1-2 (Nelson Borges Carneiro), e  de 13.7.2023, P. 8882/22.9T8LSB.L1-7 (Ana Rodrigues da Silva), em www.dgsi.pt.
Como se sumariou no Ac. do STJ de 16.12.2021, P. 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1 (Luís Espírito Santo), em www.dgsi.pt, “… VIII – O respeito pelo princípio do contraditório, genericamente consagrado no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, não depende de um juízo subjetivo do juiz quanto à necessidade, segundo o seu entendimento pessoal, de ouvir ou não ouvir as partes, aquilatando se elas ainda têm algo a dizer-lhe que ache relevante para o que há a decidir, mas é, bem pelo contrário, substantivamente assegurado pela imposição do dever processual, que especialmente lhe incumbe, de garantir às partes o direito (que lhes assiste) de dizer aquilo que, no momento processualmente adequado (definido previamente pela lei), ainda entenderem ser, do seu ponto de vista, relevante.”.
A violação do princípio do contraditório, previsto no o art. 3º, nº 3, do CPC, consubstancia uma nulidade processual com influência na decisão da causa (art. 195º, nº 1, do CPC), que inquina a sentença recorrida [7], que conhece de questão de que não podia conhecer sem o prévio exercício do contraditório, ocorrendo excesso de pronúncia.
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Sousa, na ob. cit., pág. 792, sublinham a importância de estabelecer uma separação entre nulidades de processo e nulidades de julgamento, explicando que “…, porém, que nem sempre esta distinção é evidente, como sucede nos casos em que a omissão de determinada formalidade obrigatória (à cabeça, o cumprimento do contraditório) acaba por se traduzir numa nulidade da própria decisão, ajustando-se então a interposição de recurso no âmbito do qual essa nulidade seja suscitada.”
Neste sentido pode ver-se o Ac. do STJ de 13.10.2020, P. 392/14.4.T8CHV-A.G1.S1 (António Magalhães), em www.dgsi.pt, no qual se sumaria que “A violação do princípio do contraditório do art.º 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art.º 195º do CPC, que origina a anulação do acórdão, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, nº 1, e 685º do mesmo diploma”. 
Procede, pois, a apelação, a implicar a anulação da decisão recorrida, devendo os autos prosseguir com exercício do contraditório.
As custas da apelação, na modalidade de custas de parte, ficam a cargo da apelada, por ter ficado vencida – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, anulando-se a sentença recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos com exercício do contraditório, e subsequente prosseguimento pertinente.
Custas pela apelada.
*
Lisboa, 2024.04.09                                   
Cristina Coelho
Ana Mónica Pavão
Paulo Ramos de Faria –  com a declaração de voto que segue:

Aceitando-se que, em vez do saneador-sentença impugnado, a decisão imposta por lei (a proferir na mesma oportunidade) é a convocação da audiência prévia, dever‑se‑á concluir que ocorreu um erro de julgamento sobre uma questão de direito adjetivo, razão pela qual a decisão tomada é impugnável (precisamente por error in judicando em matéria de direito (adjetivo)), sem mais – sendo, pois, desnecessária a formulação de qualquer juízo sobre a afirmada invalidade do saneador-sentença, designadamente, por excesso de pronúncia.
Voto, pois, a decisão, mas não, em parte, a fundamentação.
_______________________________________________________
[1] Conforme relatório da sentença recorrida.
[2] Na aceção de direito a produzir alegações antes de uma decisão final.
[3] Que subscreve o presente acórdão como 2º adjunto.
[4] “Salvo quando os factos relevantes controvertidos só possam ser provados por documento e este não seja apresentado, sem justificação, apesar do convite feito no despacho pré saneador ou em caso de revelia inoperante por força do artigo 568-d, quer o documento necessário à prova dos factos seja apresentado, quer não, pelo autor, no prazo para tanto fixado pelo juiz”.
[5] Como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, no CPC Anotado, Vol. I, págs. 755/756, “…, o juiz poderá deparar-se com as mais variadas situações, ou seja, em que será preciso assegurar o contraditório quanto a exceções não debatidas nos articulados, em que será útil convocar audiência prévia, em que se imporá proferir despacho saneador, em que se justificarão outras medidas de adequação formal, de simplificação ou de agilização processual, em que se mostrará conveniente proferir despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova ou ainda casos em que será aconselhável proferir despacho destinado a programar os atos a praticar em audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as respetivas datas. As hipóteses previstas nas diversas alíneas do art. 597º não são alternativas, isto é, não se excluem reciprocamente, podendo o juiz conjugá-las entre si (…)”.
[6] Neste sentido, parecem pronunciar-se Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no CPC Anotado, Vol. 2, 4ª ed., pág. 673.
[7] Alberto dos Reis, no Comentário ao CPC, Vol. 2º, pág. 507, escrevia que “a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou omissão do ato ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente”. Também Manuel de Andrade, nas Noções Elementares de Processo Civil, pág. 183, escrevia que “se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho), que ordenou, autorizou ou sancionou o respetivo ato ou omissão em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”.