CRIME ESTRITAMENTE MILITAR
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
Sumário

I–A natureza de crime “estritamente militar” (art. 1.º/2 do Código de Justiça Militar - CJM - Lei 100/2003-15novembro e art.s 211.º/3, 213.º e 219.º/3 da Constituição da Republica Portuguesa - CRP) não determina que o bem jurídico protegido se restrinja ao imediato, exclusivo e supra-individual interesse militar da defesa nacional e daqueles que a CRP comete às Forças Armadas e como tal qualificados pela lei.

II– No CJM prevêem-se crimes – de que é exemplo, entre outros, o de Abuso de autoridade por outras ofensas, p.p. pelo art. 95.º – em que se protegem igualmente bens jurídicos mediatos de natureza pessoal, uma vez que a incriminação não assenta em exclusivo na proteção do bem jurídico da hierarquia/disciplina das Forças Armadas, mas sim e também no amparo particular a bens jurídicos do militar subordinado (integridade física, honra e liberdade, como direitos de personalidade/direitos fundamentais), os quais são o objeto final da ação constitutiva do abuso do militar superior hierárquico.
III–O militar subordinado, como ofendido, tem legitimidade para se constituir Assistente nos autos em que se discuta a prática de crime de Abuso de autoridade por outras ofensas, p.p. pelo art. 95.ºCJM.
(Sumário da responsabilidade do relator)

Texto Parcial

DECISÃO:


Da contituição de Assistente


AA (a 20novembro2023 – ref. 661006), em simultâneo com formulação de Requerimento de Abertura de Instrução (RAI), requereu a sua constituição como Assistente nos autos, sendo que o fez através de mandatária constituída tal qual procedeu ao pagamento tempestivo da devida taxa de justiça.

Na sequência do despacho deste Tribunal Superior (de 17dezembro2023 – ref. 20835335) foi cumprido o art. 68.º/4CPP, sendo que o Arguido BB (em 9fevereiro2024 – ref. 675917) se pronunciou, em súmula, invocando a ausência de legitimidade do pretendente a Assistente à luz do alegado crime em causa nos autos (crime de abuso de autoridade por outras ofensas – art. 95.º do Código de Justiça Militar - CJM – Lei 100/2003-15novembro), assim como a tempestividade do pedido.

Observado o contraditório legal face a tal questão, o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto (em 15fevereiro2024 – ref. 21160837) veio aos autos pronunciar-se no sentido da legitimidade do pretendente a Assistente. Por seu turno, este (em 26fevereiro2024 – ref. 679013) veio aos autos pronunciar-se, sendo que o fez em idêntico sentido ao Ministério Público, o quanto equivale ao reiterar da sua inicial posição.

Apreciando.

O exercício da ação penal mostra-se confiado a um órgão de Estado – ao Ministério Público, pela forma especificada nos referidos dispositivos do CPP, de acordo com a conceção de que o jus puniendi e o correlativo jus procedendi são de interesse eminentemente público. Ainda assim «para uma autêntica protecção da vítima, mais decisivo ainda que o auxílio “social” em sentido amplo que lhe possa ser prestado é o conferir-lhe voz autónoma, logo ao nível do processo penal, permitindo-lhe uma acção conformadora do sentido da decisão final» (cfr. Figueiredo Dias, Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Processo Penal, CEJ p. 10), o legislador manteve a figura do Assistente.

Na verdade, a consideração de que o crime ofende principalmente interesses da comunidade «não pode fazer olvidar que em grande número de crimes quem primeiro sofre o mal do crime são os particulares e, por isso, a sua participação activa no processo, permite dar-lhes satisfação pela ofensa sofrida convencendo-os da efectivação da justiça no caso, e trazer ao processo a sua colaboração». (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, p. 240) (neste sentido e com a essência destas palavras, rel. Juiz Conselheiro Simas Santos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 12julho2005, processo 05P2535, acessível in www.dgsi.pt/jstj)

A legitimidade – lida como posição de um sujeito perante determinada decisão, que lhe confere a possibilidade de a impugnar por um dos meios previstos na lei - para a constituição como Assistente por parte do ofendido tem lugar paralelo ao nível da legitimidade adotada no art. 113.°/1CP para apresentação de queixa (quadro este que historicamente se mantém desde o art. 11.° do CPP1929 e, posteriormente, pelo art. 4.°/2 Decreto 35.007-13outubro1945) (sobre esta específica questão histórica, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, rel. Juíza Desembargadora Ana Teixeira, 23abril2012, NUIPC 423/09.0TAVCT.G1, acessível in www.dgsi.pt/jtrg).

No que de momento se cuida, enumeram-se no n.º 1 do art. 68.ºCPP as pessoas e as entidadesque, no âmbito do nosso processo penal, têm a faculdade de requerer a sua constituição como Assistentes, na sua al. a) contemplando os ofendidos,o mesmo é dizer, os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de dezasseis anos, não excluindo a lei tal faculdade quando estiver em causa um crime público. (sublinhado nosso)

Salienta Cavaleiro Ferreira (in Curso de Processo Penal, 1995, Vol. I, p. 194] que «para ser considerado ofendido para efeitos de admissão e constituição como assistente, não bastava ter sofrido um prejuízo com o crime, sendo ainda necessário que esse crime atingisse directamente, especialmente, particularmente, aquele que pretendia constituir-se assistente. Assim, não era ofendido para o referido efeito de intervenção como assistente no processo qualquer pessoa que tivesse sido prejudicada com a prática do crime, mas apenas o titular do interesse que constitui o objecto imediato da infracção.
Nem todos os crimes têm, por isso, «ofendido» particular. Só o têm aqueles cujo objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular, pelo que se torna necessário auscultar o interesse que a lei quis proteger com a incriminação».

Seguindo aqui, muito de perto, o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (rel. Juíza Desembargadora Ana Carolina Cardoso, 7fevereiro2024, NUIPC 90/21.2GCSCD.C1, acessível in www.dgsi.pt/jtrc) dir-se-á que, como nos diz Beleza dos Santos (in Partes particularmente ofendidas em processo criminal, RLJ, 57, p. 2, citado no Acórdão de Fixação de Jurisprudência 1/2003, rel. Juiz Conselheiro Simas Santos, 27fevereiro2003, DR Série I-A de 27fevereiro2003) «“Partes particularmente ofendidas” são os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger quando formulou a norma penal. Quando prevê e pune os crimes, o legislador quis defender certos interesses: o interesse da vida no homicídio, o da integridade corporal nas ofensas corporais, o da posse ou propriedade no furto, no dano ou na usurpação de coisa alheia. Praticada a infração, ofenderam-se ou puseram-se em perigo estes interesses que especialmente se tiveram em vista na proteção penal, podendo também prejudicar-se secundariamente, acessoriamente, outros interesses. Os titulares dos interesses que a lei penal tem especialmente por fim proteger quando previu e puniu a infração e que esta ofendeu ou pôs em perigo, são as partes particularmente ofendidas, ou diretamente ofendidas, e que, por isso, se podem constituir acusadores».

Daí que o vocábulo especialmente, usado pela lei, aqui tenha a significância de modo especial, num sentido de particular e não de exclusivo. (rel. Juiz Conselheiro Simas Santos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 12julho2005, processo 05P2535, acessível in www.dgsi.pt/jstj)
«Como refere (Hans-Heinrich) Jescheck (in Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4.ª ed., p. 6), «o direito penal tem por missão proteger bens jurídicos. Em todas as normas jurídico-penais subjazem juízos de valor positivo sobre bens vitais que são indispensáveis para a convivência humana na comunidade e que consequentemente devem ser protegidos, pelo poder coativo do Estado através da pena pública. [...] Todos os preceitos penais podem reconduzir-se à proteção de um ou vários bens jurídicos. O desvalor do resultado radica na lesão ou o colocar em perigo de um objeto da ação (ou do ataque) (v. g., a vida de uma pessoa ou a segurança de quem participa no tráfico), que o preceito penal deseja assegurar, do titular do bem jurídico protegido». O que significa que poderá um só tipo legal proteger «especialmente» mais do que um bem jurídico, questão a dilucidar perante cada tipo e cada ação dele violadora.»

Bem jurídico este que como “expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso” (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, p. 114) será político-criminalmente tutelável quando e onde encontre reflexo “(…) num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social e que, deste modo, se pode afirmar que “preexiste” ao ordenamento jurídico-penal(…)”. (autor e obra cit., p. 120)

Ou seja, como evidencia Pedro Soares de Albergaria (in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, p. 787), «caso o bem jurídico protegido em determinada incriminação transcenda o singular, uma certa pessoa pode ainda ser considerada ofendida:Determinante é que aquele bem supraindividual se possa encabeçar, digamos assim, numa pessoa concreta; ou dito do avesso, necessário é que se demonstre no caso concreto que a mancha de danosidade que a incriminação quer tipicamente esconjurar tenha atingido ou intendesse atingir pessoa concreta”.»

Por isso mesmo, não se pode, restritivamente, decidir quais são os crimes específicos em que o ofendido tem legitimidade para se constituir Assistente e quais aqueles em que não tem essa faculdade, uma vez que tal aferição é sempre casuística, havendo que interpretar o tipo incriminador, de modo a determinar, se há uma pessoa concreta, cujos interesses são protegidos com essa incriminação, não podendo essa constatação ser efetuada, secamente, tendo em conta apenas a natureza do crime em causa. Realmente, só caso a caso se pode verificar se essa constituição é, ou não, possível, pois pode estar em causa para além de um interesse de ordem pública, um interesse suscetível de ser corporizado num físico detentor, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir Assistente, uma vez que os preceitos penais podem reconduzir-se à proteção de um ou vários bens jurídicos. Consequentemente, e em conclusão, operando a aferição da legitimidade à luz do crime em causa, a constituição como Assistente deve ser viabilizada “sempre que esse bem jurídico puder ser encabeçado num portador concreto, ou seja, quando os interesses imediatamente protegidos pela incriminação sejam, simultaneamente, do Estado e de particulares.” (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª ed., p. 212, e citado AFJ 1/2003)
Na situação em apreço estamos perante um alegado crime de Abuso de autoridade por outras ofensas, p.p. pelo art. 95.º do CJM.

Tal norma dispõe nos seguintes termos:
“O militar que:
a) Por meio de palavras, ofender, em presença de militares reunidos, algum subordinado no exercício das suas funções e por causa delas;
b) Por meio de ameaças ou violência impedir algum subordinado ou outra pessoa de apresentar queixa ou reclamação a autoridade militar;
c) Por meio de ameaças ou violência constranger algum subordinado a praticar quaisquer actos a que não for obrigado pelos deveres de serviço ou da disciplina;
é punido com pena de prisão de 1 mês a 2 anos, quando ao facto não corresponder pena mais grave.”

O hodierno conceito de Direito Penal Militar não se reduz a um direito de ânimo, de intenção do agente, subjetivado e próprio de quem apresenta o militar como “funcionário público fardado” e o reduz a “um profissional de combate”. (Eduardo Augusto Alves Vera Cruz Pinto, in Os Tribunais Militares e Estado de Direito Democrático – Tratado Luso Brasileiro de Dignidade Humana, p. 65) Antes traduz o direito da tutela de interesses socialmente relevantes, ligados à função militar no âmbito duma comunidade que optou por ter Forças Armadas, logo, de bens jurídicos militares. “O Direito Penal Militar ergue-se (…) como um sub-ramo do Direito Penal que tem por fim proteger: em primeira linha, bens jurídicos como a independência, a integridade e a defesa nacionais; de modo instrumental, a incolumidade e a funcionalidade das Forças Armadas, acessoriamente, a paz e a humanidade, no âmbito dos crimes contra os direitos das pessoas”. (Rui Pereira, in A Justiça Penal Militar tem Futuro? - Seleção Temática de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, volume I, Jurisdição Militar, coord. Neves Ribeiro e Alexandra Ferreira p. 203)

Começar-se-á, então, por referir que inexiste uma definição linear - um conceito concreto, universal e unívoco - do que deva ser considerado crime militar e de quais são os bens jurídicos penais que pela via dos crimes militares devem ser, e são, efetivamente tutelados, ainda que como diga Figueiredo Dias, “todo o direito penal é um direito penal do bem jurídico”. (in“Direito Penal do Bem Jurídico” como Princípio Jurídico-Constitucional. Da Doutrina Penal, da Jurisprudência Constitucional Portuguesa e das suas Relações, p. 33) Tal, não impede que para a sua definição não se estabeleçam critérios, tais como: a) ratione personae: em que se considera estar perante crime militar quando o autor da conduta típica ostenta determinada qualidade - a condição de militar; b) ratione materiae: em que se considera estar perante crime militar quando a conduta versa sobre violação de dever militar num sentido amplo; c) ratione temporis: em que se considera estar perante crime militar quando os factos ocorrem em determinado período, como, por exemplo, em tempo de guerra; d) ratione loci: em que se considera estar perante crime militar consoante a consideração do lugar da praticada conduta, v.g., local sujeito a administração militar; e) critério processual, quando existente uma justiça especializada para o processo e julgamento de determinado delito; f) ratione legis: em que se considera estar perante crime militar quando a lei assim estabelecer, enumerando casuisticamente as condutas típicas.

Por seu turno, com finalidade de sistematização, sói classificarem-se os delitos militares em propriamente militares (essencialmente militares, exclusivamente militares, estritamente militares ou objetivamente militares) e impropriamente militares (ou militarizados). Naqueles incluem-se os crimes nos quais se ofende exclusivamente um interesse militar, sem que haja qualquer relação com os delitos previstos no Código Penal (por exemplo, a deserção), ou quando há lesão a bens jurídicos comuns e castrenses, mas com evidente preponderância – o que significa per se não exclusão - do interesse militar sobre o comum (v.g., violência contra o superior e violência contra o inferior). Já os crimes impropriamente militares reportam os delitos comuns que, em razão de alguma circunstância, ainda que por si só insuficiente para caracterizar o crime estritamente militar, se encontram submetidos ao CJM, com o fim de atrair a competência da jurisdição militar. Logo, serão delitos comuns inseridos na legislação especial por opção legislativa e normalmente punidos de forma mais gravosa.

Apresentando diferença terminológica, Vitalino Canas, Ana Luísa Pinto e Alexandra Leitão (in Código de Justiça Militar Anotado, 2004, p. 17) classificam os “crimes estritamente militares” em: a) comuns, quando o agente é indeterminado, ou seja, o sujeito ativo do delito pode ser qualquer pessoa (ex. traição); b) específicos, quando os eventuais agentes se encontram circunscritos a uma ou algumas categorias específicas (por exemplo, militares). Subdividem, ainda, os crimes estritamente militares específicos em próprios (quando houver um tipo de ilícito paralelo no CP comum ou em lei esparsa, geralmente com uma pena em abstrato menos gravosa) e impróprios (quando não existir um tipo de ilícito paralelo).

A soberania, a independência nacional, a integridade do território nacional, a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externa, constituem a missão genérica das Forças Armadas, acrescida das missões específicas previstas na Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas. (art. 275.ºCRP) Estas missões carecem de uma organização - as Forças Armadas - que assenta em valores próprios de cariz militares, com tradução em deveres especiais e de manifestação mais profunda, como sejam os específicos deveres de obediência aos superiores hierárquicos, de dedicação exclusiva ao serviço, de sacrifício pela Nação, de reverência, de disciplina, de lealdade, verificando-se, consequentemente, a existência de bens jurídicos específicos da vivência militar. (neste sentido, Pedro Sousa, in O Direito Penal e a Defesa Nacional, p. 28)

Descendo ao concreto, fala-nos a CRP (após a revisão de 1997, onde se determinou a integração da justiça militar no sistema penal comum, procedendo à extinção dos tribunais militares em tempo de paz, cometendo a jurisdição em matéria penal aos tribunais judiciais) (art.s 211.º/3, 213.º e 219.º/3) de “crimes estritamente militares”, o que parece inculcar uma definição com tendência para a restrição do bem jurídico a proteger, com consequente redução do elenco de crimes, não bastando como tal que o facto típico, ilícito e culposo lese interesses militares, em geral, sendo também necessário que se trate de interesses militares qualificados. Por isso mesmo, em concretização, o art. 1.º/2CJM dá-nos a definição legal do conceito de “crime estritamente militar” como “o facto lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificado pela lei.” É dizer, o “crime estritamente militar” tenderá a ser caraterizado pela exclusividade e qualificação do bem militar em causa, o qual se reconhece atendendo às funções atribuídas às Forças Armadas pela CRP. “Já não estamos perante um direito penal “dos militares”, mas sim “da função militar”, pelo que o crime estritamente militar só poderá violar bens jurídicos militares da defesa nacional, deixando de ser a tutela do dever militar.” (Coronel Vítor Manuel Gil Prata, Revista Militar, n.º 2589, outubro2017, in A Justiça Militar – Organização Judiciaria Militar, citado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, NUIPC 73/20.0NJPRT-P1, rel. Juíza Desembargadora Amélia Catarino, 25maio2022, acessível in www.dgsi.pt/jtrp)

Tal quadro parece, então, levar-nos à restrição a que aludem Vitalino Canas, Ana Luísa Pinto e Alexandra Leitão (in obr. cit, p. 17ss.) quando referem que “Se o conceito de crime essencialmente militar ainda permitia abranger crimes cujos bens ou interesses lesados fossem no essencial, mas não integralmente, militares, o conceito de crime estritamente militar implica que os bens ou interesses protegidos pelo tipo sejam só (exclusivamente, integralmente, estritamente) militares.” (sobre a definição de crimes essencialmente militares cfr. os Acórdãos do Tribunal Constitucional, 347/86, processo 56/84, rel. Juiz Conselheiro Cardoso da Costa, 10dezembro1986 – chamando-se a especial atenção para o voto de vencido do Juiz Conselheiro Magalhães Godinho, e 432/99, processo 627/98, rel. Juíza Conselheira Maria Fernanda Palma, 30junho1999, ambos acessíveis in www.tribunalconstitucional.pt) (sobre a evolução legislativa e distinção entre crimes essencialmente militares e crimes estritamente militares, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, NUIPC 4/17.4FAEPS.P1, rel. Juiz Desembargador Raul Esteves, 7dezembro2018, acessível in www.dgsi.pt/jtrp, Souto Moura, Do crime essencialmente militar ao crime estritamente militar, in Justiça Militar: a rutura de 2004, Instituto Universitário Militar, Lisboa, 2017, p. 20, assim como o Parecer do Conselho Consultivo da PGR, n.º convencional PGRP00002224, acessível in www.dgsi.pt/pgrp)

Passará a solução, então, por perceber se sendo as regras do Processo Penal aplicáveis, salvo disposição legal em contrário, ao processo de natureza militar regulado no CJM e em legislação penal avulsa (art. 107.ºCJM), deve - ou não - ser entendido que o CJM também tutela valores e interesses pessoais, e não só os valores ligados à disciplina e hierarquia essenciais ao cumprimento das missões constitucionais.

Tradicionalmente a resposta era de sentido negativo. Assim se pronunciava a 10.ª Secção do DIAP-Lisboa (secção a que estava distribuída a investigação dos crimes estritamente militares e dos crimes comuns praticados no interior de unidades, órgãos ou estabelecimentos militares - Anexo C do Regulamento Interno e Provimento 15/2004-10setembro), comummente se decidia no TIC-Lisboa, bem como se concluiu no Grupo de Estudo Militar (DIAP-Lisboa setembro2009), fundando-se na interpretação enraizada à luz do anterior CJM (Decreto-Lei 141/77-9abril) onde se estatuía a exclusividade da acusação pública (cfr. art. 376.º), assim como com base no atual CJM, com o argumento de o mesmo, apesar de não conter norma paralela ao anterior, parecer também não permitir diferente entendimento quando atendida uma certa conceptualização do bem jurídico a proteger - como o exclusivo supra-individual interesse de militar da defesa nacional e daqueles que a CRP comete às Forças Armadas e como tal qualificados pela lei (art. 1.º/2CJM) -, necessariamente indisponível, visto a radicar na coletividade e não em portadores concretos, a que acrescia a ausência de previsão de regime substantivo relativo ao exercício do direito de queixa tal como contemplado na lei penal comum (art.s 113.º-ss.CP), tudo não obstante a aplicação subsidiária das disposições do CP em tudo o que não seja contrariado pelo CJM (art. 2.º/1CJM), a tudo acrescendo o argumento de natureza pública dos crimes estritamente militares face aos interesses jurídicos aí protegidos (coesão, hierarquia e disciplina nas Forças Armadas), sem que tal prejudicasse a vítima do crime estritamente militar no direito de deduzir pedido de indemnização cível enquanto lesado (art.s 75.º a 77.ºCPP).

Não sufragamos tal entendimento restritivo, desde já se adianta, o que fazemos à luz da interpretação “evolutiva” do “sentido e alcance” do conceito de Assistente, com direto apelo ao firmado no já referido Acórdão de Fixação de Jurisprudência 1/2003, por reporte ao crime de falsificação de documento, viabilidade até então vedada por se tratar de crime de natureza pública em que se entendia como único lesado era o Estado enquanto titular do bem jurídico protegido, assim como a jurisprudência que se lhe seguiu (tal qual a que firmou igual admissibilidade nos crimes de denúncia caluniosa – Acórdão de Fixação de Jurisprudência 8/2006, rel. Juiz Conselheiro Costa Mortágua, 12outubro2006, DR 1.ª Série, de 28novembro2006; ou de desobediência qualificada, decorrente de violação de providência cautelar - Acórdão de Fixação de Jurisprudência 10/2010, rel. Juiz Conselheiro Eduardo Maia Costa, 17novembro2010, DR 1.ª Série, de 16dezembro2010), e na esteira da qual há que concluir (no âmbito do Direito Penal Militar) pela necessidade de interpretar o tipo de crime em ordem a apurar se para além do interesse supra-individual protegido, não é também e de modo particular e imediato protegido um interesse suscetível de ser corporizado num concreto portador. (sobre esta questão, no mesmo sentido que ora sufragamos, já se pronunciou este Tribunal da Relação de Lisboa, nos Acórdãos de 25outubro2008, rel. Juíza Desembargadora Filipa Macedo, processo 7262/2008-5, acessível in www.dgsi.pt/jtrl e de 25fevereiro2009, rel. Juiz Desembargador Rui Gonçalves, NUIPC 2755/06.0PBBRG – não publicado)

Aplicando os conceitos supra elencados em termos de delimitação de bens jurídicos (coletivos, individuais os ditos mistos) à esfera penal militar, e tendo-se como intuitivo compreender que os bens jurídicos coletivos não se manifestam, em nenhuma hipótese, de maneira direta - ou seja, a ofensa a esses bens apenas pode ser admitida como uma agressão indireta, na medida em que o seu objeto imediato é o bem individual mais concreto -, tal força a conclusão de que, a admitir a natureza de bem jurídico coletivo enquanto bem jurídico instrumental, atingido somente de forma reflexa e cuja ofensa somente se viabiliza após a afetação de um bem jurídico individual – não há bem coletivo sem a soma de bens individuais – os bens jurídicos, de natureza individual (vida, liberdade, honra, direitos profissionais, integridade física e psíquica, dentre outros), não coexistem na titularidade do Estado (onde se queda essencialmente a referida esfera da disciplina e hierarquia essenciais ao cumprimento das missões constitucionais) pelo que essa titularidade cabe na pessoa ofendida, sendo esta o sujeito passivo da ação típica.

Seguindo esta linha, da simples leitura do tipo penal do art. 95.ºCJM, crime de natureza estritamente militar (art. 1.º/2CJM), resulta que este sistematicamente se insere no capítulo dos Crimes contra a autoridade e na secção do Abuso de autoridade, estabelecendo-se em todos os crimes aqui tratados sempre uma especial referência à qualidade de subordinado por parte da vítima, o que logo leva a um quadro de pessoalidade e de concretização individualizada dessa pessoa.

A especificidade deste crime encontra-se, deste modo, no facto do agente e a vítima serem militares, de o primeiro ser superior hierárquico do segundo, e de o crime ser cometido no exercício de funções ou por causa delas. Acresce que as condutas reportadas na norma incriminadora (como imputações contidas no CJM que constituem relações de especialidade relativamente a tipos de crime do CP) se dirigem a atuações de ofensas por parte do superior hierárquico para com o subordinado, pela via da palavra e em ambiente de pares (por serem igualmente militares) – o que tem como inerente a suscetibilidade de acréscimo de publicidade e/ou facilitação de divulgação -, impedimento de atuação do subordinado, através de ameaça ou violência, para fins de exercício de concretos e individuais direitos, ou constrangimento do subordinado, através de ameaça ou violência, à prática de atos não funcionalmente contidos, tudo levando a quadros paralelos de criminalidade contra a honra, contra a liberdade pessoal e funcional, onde bens jurídicos inerentes a interesses particulares são direta e simultaneamente protegidos.

Assim, o agravamento de pena em relação do Direito Penal Comum radica-se no quid de o militar em posição hierárquica superior violar os reportados direitos do seu subordinado, o que per se coloca em causa a própria autoridade exercida no âmbito das funções militares, uma vez que a mesma tem que ser realizada com respeito pela Constituição e pela Lei, institutos estes onde se coligem os direitos fundamentais das pessoas e da própria disciplina militar.

Cremos ser linearmente aceite que o militar que abuse da sua autoridade, in casu pela via das ofensas consagradas na norma do art. 95.ºCJM, escangalha os princípios de hierarquia e de autoridade, minando regras essenciais aos propósitos do espirito dinâmico e consciente da missão militar, mais não seja pelo ataque ao laço moral que agrega a instituição militar e a hierarquia que lhe é cerne–onde se inclui o modo ético como a mesma é exercida -.
O militar deve “ser prudente e justo, mas firme”, como resulta expressamente do art. 13.º/2a) do Regulamento da Disciplina Militar (Lei Orgânica 2/2009-22julho). Daí a máxima que nos afirma que perante quadros de atuação como o da referida norma, o militar abusador “deixa de ser para os subordinados o exemplo e a bússola”. E assim o é especificamente, uma vez que o militar tem como uma das suas obrigações estruturais o cumprimento das leis e regulamentos castrenses, com especial enfoque na obediência aos escalões hierárquicos superiores – dever de obediência -, pelo que o militar que exerça autoridade deve fazê-lo no cumprimento estrito das leis e regulamentos e de acordo com a justiça e a prudência – poder de autoridade -.

A disciplina representa um valor. Valor muito especial no âmbito militar. Também representa uma prática. Necessariamente de atuação individual, ainda que com espelho no todo que é o conjunto das Forças Armadas.

Porém, carece de sentido falar em hierarquia/obediência, sem pessoas, razão determinante da afirmação de que ainda que o bem jurídico protegido radique na disciplina – autoridade versus obediência - das Forças Armadas enquanto bem jurídico de cariz militar, certo é que a norma em apreço não tutela somente esses interesses supra-individuais (coletivos), inerentes à instituição militar, mas também interesses pessoais cujo titular seja o subordinado. Daqui imediatamente resulta que a dita circunstância de ser aí protegido um inicial interesse de ordem pública/coletiva - supra-individual da hierarquia/disciplina - inerente à instituição militar não afasta, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também mediatamente protegido um interesse suscetível de ser corporizado num concreto portador – in casu o militar subordinado -, assim se afirmando que este adquire a qualidade de ofendido pelo crime tal como definida no art. 68.º/1a)CP (o CPP é de aplicação subsidiária aos processos de natureza penal militar regulados no CJM e em legislação militar avulsa – art. 107.ºCJM), o que determina a sua legitimidade material para se constituir Assistente, pois os preceitos penais podem reconduzir-se à proteção de um ou vários bens jurídicos.

De facto, a incriminação não assenta em exclusivo na proteção do bem jurídico supra individual da hierarquia/disciplina das Forças Armadas, mas sim e também no amparo particular a bens jurídicos do militar subordinado (integridade física, honra e liberdade), os quais são o objeto final da ação constitutiva do abuso do militar superior hierárquico.

Tanto assim é que o que fratura a disciplina in casu se traduz na circunstância de a atuação abusiva do superior visar a pessoa do militar subordinado, numa daquelas vertentes - integridade física, honra e liberdade -, ato esse que coloca em causa a coesão e disciplina militar pela via do desrespeito daqueles bens jurídicos do militar subordinado. Ora, sendo a disciplina forçosamente relacional e pressupondo o exercício da autoridade, como fenómeno humano, uma relação, não se pode falar de disciplina, como exercício de autoridade/obediência, seja na instituição militar ou noutra, sem atender à pessoa que desobedece ou que é vítima de ato arbitrário do seu superior.

Concluindo, o tipo legal de crime aponta para que o abuso se verifique quando a conduta humana nele enquadrada viola um bem jurídico do militar subordinado, como bem jurídico mediato de natureza pessoal (direito de personalidade/direito fundamental), assim afetando a própria estruturação de retidão hierárquica e disciplinar da cadeia de comando, e não que a incriminação se limite à proteção do bem jurídico imediato.

Não se cuida, no presente, do eventual preenchimento dos elementos típicos do crime, do ponto de vista objetivo e subjetivo. Tal não cabe agora analisar, mas apenas – e se for caso - em fase posterior do processado. Somente urge percecionar se o Requerente está em posição pessoal de à luz do crime apontado, como subordinado, ter sido sujeito de lesões em consequência de imputada atuação do Arguido, tendo por isso, interesse em agir pela via processual e pela via dos expedientes que aí lhe são conferidos com vista à defesa dos seus interesses pessoais.

Ora, a resposta a tal questão é necessariamente a de que tal legitimidade, como interesse pessoal do ofendido em agir, encontra respaldo na pessoa do Requerente.

Com efeito, e salvo melhor entendimento, contemplou também o legislador as refrações que as condutas incriminadas no art. 95.ºCJM são suscetíveis de trazer à esfera individual de cada um que no âmbito castrense assuma a inicial qualidade de militar subordinado, quando visado por outro militar superior, e não só a específica questão de disciplina e hierarquia como conceito coletivo.

Na verdade, não é possível escamotear a gravidade – em termos militares, mas também em termos pessoais – dos comportamentos subsumíveis às atuações reportadas em cada uma das alíneas do art. 95.ºCJM, certamente de maior relevo do que as consequências decorrentes da prática dos crimes base qua tale. Nas hipóteses do art. 95.ºCJM, o ofendido vê a sua situação pessoal questionada de forma específica, desde logo no seio militar e em especial na posição de subordinação.

Não se pode, pois, entender a significância de estritamente militar conferida ao tipo legal em apreço tenha uma significância de vocacionado exclusivamente para a tutela jurídico-penal de interesses militares coletivos, devendo o mesmo ser encarado na dupla dimensão referida em que se abrange a pessoalidade e individualidade do sujeito subordinado visado. O mesmo é dizer, sem prejuízo de, por meio dele, se tutelarem os interesses inerentes à esfera militar, deve entender-se encontrarem-se de igual forma tutelados os direitos ínsitos à consideração e ao respeito devidos a cada um como pessoa, que por ser militar não o deixa de ser. Esta é, aliás, a leitura que melhor se compagina com a interpretação do ordenamento jurídico-penal no seu todo.

Interpretação contrária necessariamente conduziria a violação dos princípios constitucionais do acesso ao direito (art. 20.º/1CRP) e de intervenção processual (art. 32.º/7CRP).

Questão diversa é a da tempestividade do requerimento de admissão à posição de Assistente, no sentido de a mesma se aferir em relação à fase instrutória, vista esta também em termos de viabilidade face ao decurso de prazos e fases processuais.

De facto, dispõe o n.º 3 do art. 68.ºCPP que os Assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, posto que o requeiram ao Juiz : a) até cinco dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento ou, b) nos casos do artigo 284.º (relativo à acusação pelo Assistente) e da alínea b) do artigo 287.º (atinente ao requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Assistente) no prazo estabelecido para a prática dos respetivos atos.

Neste campo a questão tem que ser analisada com o tempero colocado pelo Arguido no seu requerimento de 9fevereiro2024, porquanto aí o mesmo se revela em oposição à admissão da fase instrutória, que tem por intempestiva, no seu entender por ter sido requerida intervenção hierárquica (art. 278.ºCPP), o que acarretaria que já estava decorrido o prazo para requerer a abertura de instrução e, como tal, esgotado o prazo facultado na alínea b) do n.º 3 do art. 68.ºCPP por reporte ao art. 287.º/1CPP.

Forçosa é, então, a apreciação prévia de tal questão, sempre na certeza de que sobre a mesma o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto (também em 15fevereiro2024 – ref. 21160837) emitiu posição, reportando que a alegação do Arguido se fundará em equívoco, que convoca e explica qual, bem como sobre tal o pretendente a Assistente se manifestou (também em 26fevereiro2024 – ref. 679013), sendo que o fez em idêntico sentido final ao Ministério Público, com expressiva fundamentação, o quanto equivale ao reiterar da sua inicial posição.

Apreciando.

É indubitável que o Ministério Público (cfr. despacho de 18outubro2021, sequencial à ref. 17411686 de 21setembro2021, a p. 258ss. dos autos) elaborou despacho que veio a concluir pelo arquivamento do inquérito.

A este despacho reagiu o ofendido formulando (a 20dezembro2021 – ref. 555238 - fls. 277ss. dos autos) requerimento com vista a intervenção hierárquica (art. 278.ºCPP), ali expondo os seus motivos.

Conhecido que foi pelo Ministério Público o teor de tal requerimento, reconhecendo a bondade do conteúdo de questão ao mesmo inerente – qual seja a inexistência de parecer prévio, como imposto pelo art. 23.º/1c) da Lei 101/2003-15novembro (Estatuto dos Juízes Militares e Assessores Militares do Ministério Público) – oficiosamente (cfr. despacho de 28junho2022, sequencial à ref. 17965487 de 26janeiro2022, a p. 295ss. dos autos) firmou a irregularidade daquele despacho de 18outubro2021, o que vale por dizer que o mesmo deixou de produzir efeitos no processado. É dizer, o despacho de 18outubro2021 em que se firmou arquivamento deixou de existir.

E daí que tendo os autos prosseguido, na mesma fase que era a de inquérito, com vista à realização de inquirição de testemunhas e outros atos, uma vez entendido nada mais haver a realizar, obtido o devido parecer prévio (cfr. fls. 406 dos autos), em subsequente despacho o Ministério Público (a 22outubro2023 – ref. 20086183 – fls. 425ss. dos autos) concluiu pelo arquivamento do inquérito.

É, então, à face deste despacho – o único despacho de arquivamento validamente existente nos autos ao presente momento – que uma vez notificado do mesmo, e no prazo de reporte ao art. 287.º/1b)CPP, o pretendente a Assistente formula o seu pedido de reporte ao art. 68.ºCPP.

Como tal, o requerimento em causa é tempestivo.

Decidindo.

Porque em tempo, com legitimidade, tendo mandatário constituído e ter procedido ao pagamento da competente taxa de justiça (art. 519.º CPP), admito AA, com os demais sinais identificativos nos autos, a constituir-se como Assistente.
Notifique.

Da Instrução

AA (então Alferes ...), através de Ilustres Mandatários, junto da PGD-Lisboa, apresentou queixa-crime em relação a BB (então Coronel PILAV, Comandante do CFMTFA, ora Brigadeiro General PILAV), descrevendo factologia que entende integrante de crime de abuso de autoridade por outras ofensas, p.p. pelo art. 95.ºCJM.

Tido por realizado o competente inquérito (na competência material da Procuradoria-Geral Regional de Lisboa junto deste Tribunal da Relação de Lisboa – cfr. despacho de 25setembro2020, ref. 399037229, junto a fls. 33ss. dos autos) veio o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto a concluir por decisão de arquivamento (cfr. despacho de 18outubro2021, sequencial à ref. 17411686 de 21setembro2021, a p. 258ss. dos autos).

Inconformado, veio o queixoso, à luz do art. 278.ºCPP, requerer intervenção hierárquica (a 20dezembro2021 – ref. 555238 - fls. 277ss. dos autos) sendo que o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, reconhecendo a necessidade de sanação de irregularidade e pertinência de realização de atos de inquérito, deu sem efeito o antecedente despacho (cfr. despacho de 28junho2022, sequencial à ref. 17965487 de 26janeiro2022, a p. 295ss. dos autos).

Retomado o processamento de inquérito, findos os atos tidos como necessários ao mesmo, obtido parecer prévio, não vinculativo, junto da Assessoria Militar (cfr. despacho de 23fevereiro2023, ref. 19654513, junto a fls. 402, e fls. 406ss. dos autos) veio o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto a concluir por decisão de arquivamento (cfr. despacho de 22outubro2023, ref. 20086183, a p. 425ss. dos autos).

Inconformado, veio o ora Assistente, formular RAI, o que fez a 20novembro2023 (fls. 431ss. dos autos – ref. 661006).

Neste RAI, após censurar – face a discordância - a atuação do Ministério Público quanto à elaboração de despacho de arquivamento, mormente chamando à colação e tecendo oposição ao teor do parecer da Assessoria Militar e ao valor que ao mesmo foi dado, colocando questões, entre as quais as de mera especulação, adjetivando e sindicando o modo como testemunhas foram inquiridas e prestaram depoimento, entre o qual o limite de veracidade e de teor do mesmo ao nível do quanto lhes foi, e antes devia ser, perguntado, conclui pela necessidade de requerer a abertura de instrução, uma vez que entende que existem indícios da prática do apontado crime de abuso de autoridade por outras ofensas, p.p. pelo art. 95.ºCJM. Termina requerendo a sua tomada de declarações, bem como a inquirição de BB como testemunha (cumprindo aqui desde já firmar que face à assunção da qualidade de Arguido, a qual se conservará durante todo o decurso do processo, daquele contra quem for requerida abertura de instrução num processo penal - art. 57.º/1/2CPP – sempre aqui é de chamar à colação o impedimento reportado no art. 133.º/1a)CPP).

Apreciando.

A instrução configura uma fase processual facultativa (porquanto não constitui uma etapa obrigatória do processo penal) destinada a comprovar judicialmente a decisão de dedução de acusação ou de arquivamento do inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento (art. 286.ºCPP), encontrando-se a mesma dependente da apresentação de RAI, o qual tem que observar determinados requisitos formais (art. 287.ºCPP). Enquanto fase jurisdicional, compreende a prática dos atos necessários que permitam ao Juiz de Instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento (art. 289.ºCPP).

Assim, desde já se pode afirmar que a instrução tem por fim apenas a comprovação judicial da decisão de acusar ou arquivar. E, por isso, não pode servir para outra finalidade que não esta, a que a lei lhe determina. Designadamente, não pode ser utilizada para repetir o que na investigação já se efetuou, para a realizar de novo, ou para ensaiar a defesa antecipando do julgamento. (sobre a evolução conceptual e de finalidade da fase de instrução, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, rel. Juíza Desembargadora Teresa Coimbra, 27abril2020, NUIPC 38/19.4GAAFE.G1, acessível in www.dgsi.pt/jtrg) (sobre a natureza judicial e não investigatória da fase de instrução, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, rel. Juíza Desembargadora Maria do Carmo Ferreira, 14outubro2010, NUIPC 11/09.0PKLSB.L1-9, acessível in www.dgsi.pt/jtrl).

Admitida e cumprida a instrução, ainda que com realização do seu único ato obrigatório (debate instrutório – art. 297.º/1CPP), o Juiz de Instrução despacha no sentido da pronúncia ou da não pronúncia do Arguido pelos factos respetivos, consoante conclua terem sido, ou não, recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao Arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (art. 308.º/1CPP).

Deste modo, o RAI, quando formulado por Assistente relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, ou seja, em relação a despacho de arquivamento, como é aqui o caso, não estando «(…) sujeito a formalidades especiais (…) deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o Juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do Assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do art. 283º.» (art. 287.º/2CPP).

E tal obrigação descritiva por parte do Assistente que formula RAI é perfeitamente compreensível, uma vez que «A acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao Arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o Arguido neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) A indicação das disposições legais aplicáveis; (…)». (art. 283.º/3b)c)CPP)

Consequentemente, a referência legal à não sujeição do requerimento “a formalidades especiais” deve ser entendida como reportada às questões meramente formais, quais sejam, por exemplo, o uso de fórmulas rituais ou a alegação por artigos, posto que, em termos substanciais, o requerimento de abertura de instrução tem de observar as seguintes condições:
- sintetizar as razões da discordância da acusação ou não acusação, por forma a possibilitar a fiscalização judicial da atividade do Ministério Público no inquérito;
- indicar os elementos de prova que não foram devidamente valorados no inquérito, os meios de prova a produzir em sede de instrução, e ainda os factos que, através de uns e de outros, o requerente espera provar; e
- sendo o requerimento apresentado pelo Assistente, resultar no seu articulado uma narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação a aplicação ao Arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o Arguido neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, assim como indicar as disposições legais aplicáveis.

Ou seja, sempre que o RAI é apresentado pelo Assistente terá que conter uma verdadeira acusação, impondo-se-lhe, como se impõe ao Ministério Público, que, sob pena de nulidade, observe os requisitos inscritos no citado art. 283.º/3,b)c)CPP, uma vez que o RAI vale, neste caso, como uma acusação, sendo através dele que se define o thema probandum, enquanto quadro de vinculação temática dentro do qual o Juiz de Instrução investigará autonomamente (art. 288.º/4CPP). E tanto assim é que, como decorre do preceituado nos arts. 303.º/3/4 e 309.º/1CPP, não pode o Juiz de Instrução, sob pena de nulidade, vir a pronunciar o Arguido por factos diferentes daqueles que constam do requerimento de abertura de instrução, na medida em que se traduzam numa alteração substancial do quadro factual ali fixado e em relação ao qual o Arguido estruturou e direcionou a sua defesa. A exigência da descrição minimamente factual dos conteúdos imputados é, atualmente, uma constante unânime na jurisprudência dos vários Tribunais das Relações. (cfr. neste sentido, José António Mouraz Lopes, in Garantia Judiciária no Processo Penal, p. 74)

Está, pois, em causa, por um lado, o direito de defesa constitucionalmente garantido pelo art. 32.º/1CRP, que, para ser exercido de forma eficaz, implica o conhecimento concreto e preciso da factualidade imputada e respetivo enquadramento jurídico, assegurando em pleno o exercício do contraditório; por outro lado, é dada ao Arguido a garantia de que é em relação àqueles factos, e não outros, que tem que defender-se, e que apenas por esses poderá ser condenado.

Como é sabido, o direito a um processo equitativo e, dentro deste, o referido direito de defesa, são pilares fundamentais num processo penal de estrutura acusatória, como é o nosso, conforme se consagra no art. 32.º/5CRP e art. 6.ºCEDH, vigente na ordem interna portuguesa por via do art. 8.ºCRP. Daí que expliquem Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Anotada, 3.ª ed., p. 206) que “A estrutura acusatória do processo penal implica, além do mais, a proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o Juiz de Instrução seja também o órgão de acusação. Daqui resulta que o Juiz de Instrução não pode intrometer-se na delimitação do objeto da acusação no sentido de o alterar ou completar, diretamente ou por convite ao Assistente requerente da abertura da instrução.”.

O Juiz de Instrução está, assim, substancial e formalmente limitado, na pronúncia, aos factos que tenham sido descritos no requerimento de abertura de instrução do Assistente e que este considera que deveriam ser o objeto da acusação por parte do Ministério Público -“«factos» que constituem o «objecto do processo» têm que ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, sequentemente, a serem sujeitos a prova idónea”. (cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, rel. Juíza Desembargadora Ausenda Gonçalves, 21maio2018, NUIPC 1553/16.7T9BRG.G1, acessível in www.dgsi.pt/jtrg)

Se assim não fosse e ao Assistente fosse permitida a apresentação de uma assentada de fatores de discordância, uma glosa ao acerto e posicionamento do Ministério Público no arquivamento, uma crítica às ilações retiradas de determinados meios de prova mas sem que, a final, se concluísse com uma narrativa factual própria de uma acusação, uma estrutura, uma história ordenada, então seria o Juiz de Instrução, na verdade e em subversão do princípio do acusatório, a “construir”, de entre os factos a retirar do processo, aqueles que julgasse convenientes para a construção de um relato com significância criminal (transmutando-se em investigador/acusador) e ao Arguido, quanto ao exercício dos respetivos direitos de defesa, apenas restaria que aguardasse, sem guião ou limites objetivos, a concretização daquilo que, subjetiva e livremente, o Juiz de Instrução decidisse fazer incluir num futuro despacho de pronúncia. (neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, rel. Juiz Desembargador José Quaresma, 19dezembro2023, NUIPC 179/20.5T9STS.P1)

Tendo sido proferido despacho de arquivamento do inquérito, é o requerimento do Assistente para a abertura de instrução que define e delimita o objeto do processo, constituindo substancialmente uma acusação alternativa, de tal modo que a decisão instrutória só pode, em princípio, recair sobre os factos que foram objeto da instrução tal qual se mostram alinhados no requerimento de abertura de instrução. Sobre esta matéria se pronunciou com propriedade o Tribunal Constitucional no Acórdão 358/2004 (rel. Juíza Conselheira Fernanda Palma, 19maio2004, processo 807/2003, acessível in www.tribunalconstitucional.pt), que julgou não ser inconstitucional a norma do art. 283.º/3,b)c)CPP, interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo Assistente os elementos mencionados nessas alíneas: “(…) Esse requerimento consubstancia, materialmente, uma acusação, na medida em que por via dele é pretendida a sujeição do Arguido a julgamento por factos geradores de responsabilidade criminal.
A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.
Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objeto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.
Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao Arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo Assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.
Assim, o Assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.
Será, porém, aceitável a exigência de que tal menção seja feita por remissão para elementos dos autos, ou pelo contrário, será inconstitucional, por violação do direito ao acesso aos tribunais, que seja vedada a possibilidade de tal indicação ser feita por remissão para elementos dos autos.
A resposta é negativa.
Com efeito, a exigência de rigor na delimitação do objeto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.
De resto, a exigência feita agora ao Assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.
Cabe também sublinhar que não é sustentável que o Juiz de Instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.
Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito. (…)”

Também o Supremo Tribunal de Justiça e os Tribunais da Relação têm entendido de forma pacífica que o requerimento de abertura de instrução, não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve constituir uma verdadeira acusação em sentido material, contendo os elementos previstos para a acusação sob pena de nulidade no art. 283.º/3,b)c)CPP, daí resultando a delimitação do objeto do processo e da instrução [entre outros, todos disponíveis in www.dgsi.pt, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: rel. Juiz Conselheiro Oliveira Mendes, 25outubro2006, processo 06P3526; rel. Juiz Conselheiro Arménio Sottomayor, 13janeiro2011, NUIPC 3/09.0YGLSB.S1; TRLisboa: rel. Juíza Desembargadora Carla Francisco, 22fevereiro2023, NUIPC 228/19.0T9OER.L1-5; TRPorto: rel. Juiz Desembargador José Manuel de Araújo Barros, 6julho2011, NUIPC 6790/09.8TDPRT.P1; rel. Juiz Desembargador José Quaresma, 19dezembro2023, NUIPC 179/20.5T9STS.P1; TRCoimbra: rel. Juíza Desembargadora Brízida Martins, 6julho2011, NUIPC 212/10.9 TAFND.C1; rel. Juiz Desembargador Orlando Gonçalves, 15maio2019, NUIPC 1229/17.8PBVIS.C; TRÉvora: rel. Juiz Desembargador Alberto João Borges, 20setembro2011 e 18fevereiro2020, respetivamente NUIPC 704/09.2GDSTB-A.E1 e NUIPC 1710/18.1T9FAR.E1; TRGuimarães: rel. Juiz Desembargador Ricardo Silva, 13março2006 Processo 253705-1; rel. Juiz Desembargador Paulo Fernandes Silva, 18dezembro2012, NUIPC 2449/10.1TAGMR.G1; rel. Juiz Desembargador Fernando Monterroso, 26janeiro2015, NUIPC 138/10.6TATMC.G1; rel. Juiz Desembargador Luís Coimbra, 5novembro2015, NUIPC 165/13.1TAPVL.G1; rel. Juiz Desembargador João Lee Ferreira, 18abril2016, NUIPC 374/14.6GAEPS.G1; rel. Juíza Desembargadora Florbela Sebastião e Silva, 45dezembro2022, NUIPC 211/20.2T9VRL.G1].

Por isso, inobservados os indicados requisitos prescritos na 2.ª parte do art. 287.º/2CPP, à semelhança do que sucede com a acusação, verifica-se nulidade do RAI; já se em causa estiver a omissão das formalidades previstas na 1.ª parte daquele art. 287.º/2CPP, estaremos diante mera irregularidade (art. 118.º/1/2CPP).

Em todo o caso, e não olvidando que a dita nulidade sempre teria que ser arguida, nos termos previstos no art. 120.º/1CPP, debalde oscilações quanto à natureza do vício assim verificado, tem vindo a considerar-se de modo praticamente uniforme que tal inobservância configura causa de rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos da previsão contida no art. 287.º/3 CPP. [cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed, p. 134; Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 9.ª ed, p. 540; Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição atualizada, p. 750; Vinícios Ribeiro in Código de Processo Penal – Notas e Comentários, 2.ª ed, p. 794) (entre outros, todos disponíveis in www.dgsi.pt, os Acórdãos do TRLisboa: rel. Juiz Desembargador Rodrigues Simão, 3outubro2001, processo 0061293; rel. Juíza Desembargadora Margarida Blasco, 30maio2006, processo 1111/2006-5; rel. Juiz Desembargador João Lee Ferreira, 15março2017, NUIPC 488/16.8T9LSB.L1-3; rel. Juíza Desembargadora Carla Francisco, 22fevereiro2023, NUIPC 228/19.0T9OER.L1-5; TRPorto: rel. Juiz Desembargador Augusto de Carvalho, 15dezembro2004, processo 034366; rel. Juiz Desembargador Ângelo Morais, 1março2006, processo 0413472; rel. Juíza Desembargadora Maria dos Prazeres Silva, 15março2023, NUIPC 2757/19.6T9VCD.P1; TRCoimbra: rel. Juiz Desembargador Inácio Monteiro, 9janeiro2017, NUIPC 2588/15.2T9VIS.C1; rel. Juiz Desembargador Vasques Osório, 23abril2018, NUIPC 88/05.8TAACN.C1]

É que, no caso de o RAI do Assistente não contemplar a descrição fáctica suscetível de integrar a tipicidade do crime imputado ao Arguido, será de concluir que falta o objeto à instrução e ao processo, não podendo esta desenrolar-se com a prática de atos de instrução e debate instrutório, tudo atos que, ab initio, se prenunciam inúteis, estando a sua prática vedada pelo princípio da limitação dos atos com previsão no art. 130.ºCPC, aqui aplicável ex vi do art. 4.ºCPP. [entre outros, todos disponíveis in www.dgsi.pt, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: rel. Juiz Conselheiro Silva Flor, 22outubro2003, processo 03P2608; rel. Juiz Conselheiro Arménio Sottomayor, 12março2009 e de 13janeiro2011, respetivamente processo 08P3168; e NUIPC 3/09.0YGLSB.S1] Essa inutilidade decorre desde logo da impossibilidade legal de poder vir a ser proferida uma decisão de pronúncia, por não configurarem os factos do RAI um ilícito penal. Isto porque, para poder proferir-se a final um despacho de pronúncia com base em RAI que não contivesse a narração dos factos consubstanciadores de um crime, teria que ser suprida essa omissão introduzindo-se ou acrescentando-se factos ali não contemplados, assim produzindo ou complementando a descrição factual necessária para emitir a pronúncia; ao fazê-lo, o Juiz de Instrução estaria a sanar a insuficiência e omissão de que o mesmo padecesse, o que sempre se mostraria contrário à acima mencionada estrutura acusatória do nosso processo penal, mas também ao princípio do processo equitativo, consagrado no art. 6.º/1CEDH.

Mas mais: se antes dessas alterações não tínhamos uma alegação factual suficiente para a integração de um tipo de crime, introduzi-las corresponderia, na prática a transformar uma conduta atípica (não punível) numa conduta típica (punível), e, nessa medida, a uma alteração substancial de factos, que, como prescreve o art. 303.º/3CPP com referência ao art. 1.º/f)CPP, nunca poderia ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso.

É neste sentido o Acórdão de uniformização de jurisprudência 1/2015 (rel. Juiz Conselheiro António Rodrigues da Costa, de 20novembro2014, publicado no DR 18/2015, Série I, de 27janeiro2015, acessível in www.dre.pt), que, embora com referência à fase de julgamento, fixou a seguinte jurisprudência: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.”.

Consequentemente, e na mesma senda, foi fixada jurisprudência no sentido de vedar ao Juiz de Instrução efetuar convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução («Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.o , n.o 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.» - Acórdão de uniformização de jurisprudência 7/2015 - rel. Juiz Conselheiro Armindo dos Santos Monteiro, de 12maio2005, publicado no DR 202/2015, Série I-A, de 4novembro2015, acessível in www.dre.pt).

É claro que, se dos atos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos factos descritos nesse requerimento de abertura de instrução ou da sua qualificação jurídica, não está vedada ao Juiz de Instrução a possibilidade de os acolher na pronúncia, garantido que seja o contraditório e os direitos de defesa do Arguido (art. 303.º/1/5CPP). Todavia, importa salientar que tal possibilidade não desonera o Assistente da inicial e delimitadora observância dos requisitos do RAI acima indicados, mormente da narração tão circunstanciada quanto possível dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança, tão pouco significa que possa avançar com uma descrição genérica e minimalista dos factos, esperando depois ver completada e densificada a narração factual que servirá de substrato à pronúncia, no decurso da instrução. Isto porque, por um lado, não cabe ao Juiz de Instrução a investigação e apuramento dos factos integradores dos crimes imputados ao Arguido no requerimento de abertura de instrução do Assistente; esse é o objeto do inquérito que previamente há-de correr termos sob a direção do Ministério Público, nos termos dos arts. 262.º e 267.ºCPP, se necessário, mediante intervenção hierárquica despoletada nos termos do art. 278.ºCPP; por outro lado, a alteração de factos permitida pelos acima indicados preceitos legais terá que resultar dos atos de instrução ou do debate instrutório, tendo estes, por sua vez, por objeto o RAI tal qual se mostra formulado, ou seja, já eivado das tais insuficiências.

Constitui, pois, uma operação de grande delicadeza a inserção pelo Juiz de Instrução em despacho de pronúncia de novos factos que não faziam parte do objeto do processo tal qual resulta do RAI do Assistente, por forma a respeitar as balizas, por um lado, de uma estrutura acusatória do processo, em que o Juiz não deve e não pode tomar o lugar do Ministério Público na investigação, nomeadamente suprindo falhas no apuramento dos factos ocorridos, e, por outro lado, dos direitos e garantias de defesa do Arguido, nomeadamente o direito fundamental a um processo equitativo e, nessa medida, a aspiração a que o Juiz não saia em auxílio do seu acusador.

Não será ainda despiciendo considerar que, a aceitar-se que o Juiz de Instrução criminal construísse ele próprio a narrativa factual da pronúncia em instrução requerida pelo Assistente, não sendo já possível a instrução (a requerimento do Arguido visado), como seria no caso de ter sido deduzida acusação com base nesses mesmos factos, daqui resultaria grave limitação para os direitos de defesa desse Arguido a quem restaria o recurso para impugnar a formulação acusatória.

Resumindo e concluindo: sempre que apresentado pelo Assistente nos termos do art. 287.º/2CPP, o RAI deve conter uma formulação semelhante à acusação, com os requisitos previstos, sob pena de nulidade, no art. 283.º/3,b)c)CPP, sem possibilidade de, em caso de insuficiências, haver convite ao aperfeiçoamento por parte do Juiz de Instrução, ou de serem as mesmas supridas por este em termos tais que representem uma alteração substancial de factos nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 1.º/f), 303.º/3 e 358.ºCPP, assim podendo ser considerada alteração que, uma vez introduzida, converta uma conduta atípica (não punível) numa conduta típica (punível).

Não cumprindo com tais requisitos, esse requerimento deverá ser rejeitado por inadmissibilidade legal nos termos previstos no art. 287.º/3CPP.

Revertendo ao caso dos autos, cabe agora verificar se o RAI formulado nos autos pelo Assistente cumpre os requisitos enunciados no art. 287.º/2CPP e, em particular, as exigências legais expressas no art. 283.º/3,b)c)CPP (por força da remissão operada pelo primeiro dispositivo legal citado).

Liminarmente se diga que entendemos que é notório que não o faz.

É que o Assistente, para além de demonstrar toda a sua insatisfação pelas circunstâncias em que o inquérito terá sido gerido, até em termos de duração, não imputa em lado algum da sua peça processual factos concretos à pessoa determinada do Arguido que conduzam a uma concreta narrativa sequencial de incriminação com as respetivas circunstâncias de tempo, modo e lugar, bem como respetivos elementos material e subjetivo do tipo penal, limitando-se a emitir juízos conclusivos sobre factos que não estão descritos e que não descreve. De facto, no caso em apreço, percorrido o RAI constante dos autos, constata-se, desde logo, que o Assistente em momento algum descreve os factos que pretende imputar ao Arguido de forma sequencial, escorreita, clara e precisa, apresentando, ao invés, um requerimento onde, essencialmente, constam algumas narrativas do que parece pretender-se serem factos, mas que mais não são do que soltas e subjetivas interpretações de factualidades, misturados com as razões de discordância do arquivamento, análise da prova dos autos e opiniões/conclusões jurídicas. E, analisado o RAI, torna-se patente que o Assistente não faz qualquer referência específica, delineada e concreta de factos que sejam passíveis de, uma vez agora indiciados e oportunamente provados, preencherem integralmente os elementos objetivos de qualquer uma das alíneas, ainda que de forma plural, do art. 95.º CJM, quão mais do elemento subjetivo do crime em apreço.

Admitir a fase processual de instrução sem toda esta substanciação factual dos factos, objetivos e internos, integradores da conduta típica e punível, significaria postergar de forma intolerável os direitos de defesa do Arguido, que ficaria sem saber ao certo do que teria que defender-se, por um lado, mas, por outro, também, aceitar que a final nunca poderia ser proferido despacho de pronúncia pelo crime em apreço com base nesses concretos factos por insuficiência dos mesmos para a integração jurídico-penal desse crime.

Ora, como já supra se disse, não nos cabe como Juiz Desembargador, aqui nas vestes de Juiz de Instrução, substituir o Assistente, colocando por nossa iniciativa os factos em falta, que eram essenciais para a imputação do crime em questão, do mesmo modo que se nos mostra vedada a faculdade de convidar o Assistente a aperfeiçoar o seu RAI, nos termos já supra expostos com as correspondentes referências jurisprudenciais.

Concluindo.

Nestas descritas condições e circunstâncias processuais, convocando aqui o acima enunciado a este propósito, o RAI mostra-se tão deficiente quão imprestável enquanto peça processual fundamental na definição do objeto do processo e dos factos integradores do crime de abuso de autoridade por outras ofensas – art. 95.ºCJM -.

Não articulando o Assistente os factos essenciais à aplicação de uma pena por tal ilícito penal, não cumpre o RAI formulado as exigências contidas no art. 283.º/3,b)c)CPP, ex vi art. 287.º/2CPP. O que significa que falta ao RAI a delimitação factual sobre a qual há-de incidir a instrução, uma verdadeira “acusação alternativa”, com o mesmo rigor e precisão que é exigível ao libelo acusatório (público ou particular).

Estamos, pois, perante uma situação de inadmissibilidade legal de instrução, sujeita ao regime do art. 287.º/3CPP, sendo nulo, como é o RAI formulado, o que impossibilita o seu conhecimento.

Decidindo.

O Assistente manifesta eventuais desacordos e opiniões – razões – de discordância com a posição do Ministério Público.

Tudo, porém, em nada se compadece com o quanto o CPP define e exige num RAI em que uma acusação a formular por Assistente é peça cerne.

Em lado algum se vislumbra a dita acusação com as limitações de descrição temporal, espacial e nominativa à mesma inerentes. Esse corpo não consta do RAI.

Face a todo o exposto, ao abrigo do disposto pelo art. 287.º/3CPP, por inobservância das formalidades legais previstas no art. 287.º/2-in fine-CPP decide-se declarar nulo o requerimento de abertura de instrução e, consequentemente, indefere-se a abertura de instrução requerida pelo Assistente AA contra o arguido BB, por inadmissibilidade legal.

Extingue-se, de imediato, a medida de coação aplicada ao arguido BB (paralelismo do art. 214.º/1a)CPP).

Não há lugar a tributação para além da taxa de justiça autoliquidada, sendo que em face do escasso processado a que, nesta sede, deu origem o Assistente AA, se mantém a sua fixação pelo mínimo legal – art. 515.ºCPP“a contrario” e 8.º/1/2RCP.

NOTIFIQUE.


Oportunamente, arquive.

De momento nada mais a ordenar.

D.N.


Lisboa, data eletrónica supra.


•revisto; com datação eletrónica – art. 153.º/1CPC e com aposição de assinatura eletrónica - art. 94.º/2CPP e Portaria 593/2007-14maio