RECURSO SUBORDINADO
AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
CONVOLAÇÃO
FACTOS NOVOS
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
TRANSMISSÃO DE ESTABELECIMENTO
CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
Sumário

1 – Interposto recurso subordinado pela parte que não é de considerar vencida, nada obsta a que se proceda à convolação do meio processual, ao abrigo do art.º 193.º, n.º 3 do CPC, apreciando-se a pretensão deduzida como ampliação do âmbito do recurso, desde que se mostrem verificados todos os pressupostos previstos pelo art.º 636.º do CPC.
2 - Apesar do disposto pelo art.º 72.º, n.º 1 do CPT, não tendo o mecanismo aí previsto sido utilizado em 1.ª instância, não pode o Tribunal da Relação aditar factos não alegados pelas partes.
3 - A ampliação da matéria de facto (artigo 662º, n.º 2, al. c), in fine, do Código de Processo Civil) tem por limite a factualidade tempestivamente alegada pelas partes, não constituindo um mecanismo sucedâneo do artigo 5º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil.
3 - Ainda que formalmente seja celebrado um daqueles contratos que tipicamente vêm sendo reconduzidos à figura da transmissão do estabelecimento continua a ser indispensável à produção dos efeitos da transmissão previstos pelo art.º 37.º da LCT, que se verifique a transferência de uma “unidade económica” que mantenha a sua identidade, entendida como conjunto organizado de meios capazes de prosseguir por si, isto é, autonomamente, uma atividade económica.
4 - À qualificação jurídica de uma relação como de trabalho aplica-se a lei vigente na data da sua constituição, se não se demonstrar que daí em diante houve alterações significativas dos seus elementos.
5 – Não reveste as características de um contrato de trabalho o vínculo estabelecido entre um médico e uma sociedade de prestação de cuidados de saúde, para o exercício da atividade de diretor clínico, formalizada através de um contrato denominado de prestação de serviços celebrado entre aquela sociedade e uma sociedade detida pelo médico, sendo paga 12 meses contra a emissão de faturas por esta sociedade e sendo a atividade desempenhada com total autonomia técnica, com total autonomia na organização dos tempos de prestação da atividade e sem vinculação hierárquica ou disciplinar.
(sumário da autoria da Relatora)

Texto Integral

Acordam os juízes da 4.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório
AA, intentou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra Y, S.A., pretendendo que o seu despedimento seja declarado ilícito devendo a Ré ser condenada:
«1) A pagar ao Autor, nos termos do artigo 391º do CT, indemnização por antiguidade a fixar em 30 dias de retribuição base no valor de €4.570,81 por cada ano de antiguidade ou fracção desde a admissão em 01/08/1982, computada em €187.403,21 à data da apresentação da presente petição;
2) Ao pagamento das retribuições que o A. deixou de auferir desde 30 dias antes da propositura da presente acção até ao trânsito em julgado da decisão que julgue ilícito o despedimento (artigo 390º do CT), nos termos indicados no artigo 60º, alínea 2) da presente p.i e que à data de 08/09/2022 ascendem ao montante de €3.098,00;
3) Ao pagamento dos créditos vencidos e não pagos, a título de retribuição variável, no total de €350.843,35, sem prejuízo deste valor poder ser acertado caso seja comprovada nos autos a facturação anual do Serviço de Hemodiálise do Hospital X1/Hospital X2 de 2002 a 2022;
4) E dos juros vencidos e vincendos à taxa legal de 4% ao ano sobre o remanescente da retribuição variável do ano de 2002, de €2.689,75, e, a partir de 2003, sobre a retribuição variável anual de €17.407,68, devida a cada ano, desde o vencimento até integral pagamento, sendo no total no valor de €130.837,06.
5) E dos juros vencidos e vincendos à taxa legal desde a data de vencimento de cada verba até integral pagamento.»
Alegou, em síntese, que em 01/08/1982 foi admitido ao serviço da Z. S.A., auferindo uma retribuição base mensal fixa e uma remuneração variável, esta última até 2002; que nessa data era diretor clínico da unidade de hemodiálise do Hospital X, quando a ré [então denominada W, S.A.], adquiriu a exploração desse serviço ao Hospital X, tendo o autor continuado a exercer as funções de diretor clínico daquela unidade, agora sob a autoridade e direção da ré, que passou a pagar-lhe a retribuição, recebendo o autor uma parte da anterior empregadora, que depois a cobrava à ré; que na sequência dessa transmissão de estabelecimento se transmitiu o seu contrato de trabalho, apesar da posterior celebração de um denominado contrato de prestação de serviços através de uma sociedade unipessoal constituída para o efeito a pedido da então empregadora Z. S.A. e da ora ré, mantendo-se todas as características de um contrato de trabalho com a ré, que em 30/11/2021 lhe comunicou a rescisão unilateral dos seus serviços, com efeitos a 31/12/2021, o que consubstancia um despedimento ilícito.
Frustrada a conciliação em audiência de parte, a ré contestou pugnando pela improcedência da ação para o que alegou, em síntese, que o autor era funcionário do Hospital X, qualidade que ainda mantém atualmente, e que inexistiu qualquer transmissão do estabelecimento, uma vez que a unidade de hemodiálise sita no Hospital X2 sempre foi e continua a ser uma unidade de saúde da Hospital X; que a existir um contrato de trabalho, o mesmo teria caducado em virtude aposentação/reforma do exército português e por ter atingido a idade de 70 anos; que o autor exercia as suas funções com total autonomia e liberdade, inexistindo qualquer contrato de trabalho entre si e a ré.
Foi proferido despacho saneador, fixado o objeto do litígio e dispensada a enunciação dos temas de prova.
Procedeu-se a julgamento, na sequência do qual foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo a ré de todos os pedidos.
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Inconformado o autor interpôs recurso, com impugnação da matéria de facto, formulando as seguintes conclusões:
«A. O A., ora Apelante, após quase 40 anos de trabalho na Unidade de Hemodiálise do Hospital X (actualmente Hospital X2), da qual era o Director Clínico e médico residente, os últimos 20 dos quais ao serviço da R., ora Apelada (depois de esta adquirir a exploração da Unidade e de lhe ter sido suprimida a retribuição variável que auferia), foi despedido sem apelo nem agravo pela Apelada em 31/12/2021.
B. A douta sentença recorrida (pág. 21, Iº parágrafo) reconheceu existir uma transmissão de estabelecimento, consubstanciada na cessão de exploração da Unidade de Hemodiálise do Hospital X à ora Apelada, em Setembro de 2002, na acepção própria do então vigente artigo 37º da LCT (actual artigo 285º do Código do Trabalho).
C. Negando, contudo, os efeitos próprios desse instituto jus-laboral, designadamente não considerando ter ocorrido a transmissão do contrato de trabalho celebrado entre o Hospital X e o ora Apelante em 1982, com toda a antiguidade e condições.
D. E considerando, por outro lado - afastada que estava no seu entender a transmissão do contrato de trabalho para a Apelada - não existir subordinação jurídica na relação entre o ora Apelante e aquela, logo não existindo um vínculo laboral e não julgando ilícito o despedimento ocorrido.
E. A douta decisão proferida incorreu em erro de julgamento de facto e de Direito, ignorando factos manifestamente comprovados nos autos, por prova documental e testemunhal, que implicavam necessariamente uma decisão diversa.
F. Impugnando-se os factos dados como provados na douta sentença sob os pontos 17 e 22 (quantos aos doentes da Unidade serem doentes da Hospital X), 23 a 26, 29, 31, 34, 37 e 39, além de existirem factos relevantes para a boa decisão da causa que não foram considerados como deveriam, desconsiderando também os factos instrumentais que resultaram da instrução da causa e os que são complemento ou concretização dos que as partes alegaram e resultaram da instrução da causa, conforme determina o n.º 2 do art.º 5.º do Código de Processo Civil.
G. E impugnando-se a factualidade dada como não provada na douta sentença, correspondente aos artigos da Petição Inicial: 17º (quanto ao facto de a Hospital X cobrar a tal quantia à Ré), 28º (horário), 30º [quanto ao facto de o Autor ter como subordinados funcionários da ré] e 49º [quanto ao facto de o autor não prestar outro trabalho que não o de Director Clínico do Serviço de Hemodiálise para a R., além dos turnos inerentes, não prestando qualquer trabalho para o referido hospital], os quais devem transitar para os factos provados.
H. Na verdade, a douta sentença ignorou, salvo o devido respeito, precisamente regras da experiência (artigo 607º n.º 4 e 5 do CPC) que implicavam desde logo diversa resposta à matéria de facto, não captando a forma de funcionamento do contrato de cessão de exploração celebrado entre o Hospital X e a ora Apelada, nem integrando correctamente o ora Apelante no quadro das suas relações.
I. O Mmo. Juiz a quo não se apercebeu que a única actividade subordinada que o ora Apelante exercia para o Hospital X era a de ser o Director Clínico e médico residente da sua Unidade de Hemodiálise, actividade que continuou a exercer nos mesmos exactos termos e do mesmo modo após a cessão de exploração em 2002, desde então para a ora Apelada - cfr. depoimento do Enf. BB - [00:03:25, supra] - e até ser pela mesma despedido em 31/12/2021.
J. Sendo a eventual confusão gerada nas demais actividades ocasionalmente exercidas no Hospital X (consultas, internamentos na urgência ou UCIP - Unidade de Cuidados Intensivos Polivalentes) ao abrigo da sua actividade clínica particular, enquanto prestador de serviços no Hospital X e não ao seu serviço, através da sociedade “AA Unipessoal, Lda.” (actual “AA Serviços Médicos, Lda.”).
K. O que resultava desde logo do Contrato de Prestação de Serviços celebrado entre a Hospital X (então Z. S.A.) e as sociedades unipessoais dos seus médicos, junto a fls. 317 e ss dos autos e ignorado pela douta sentença (reduzindo a escrito os termos e valores aplicáveis na prestação de serviço ao abrigo da possibilidade constante da cláusula 3ª do contrato de trabalho celebrado em 1982 entre o Apelante e a Hospital X junto a fls. 11, relativo às «condições de utilização a título particular, da capacidade excedentária dos Hospital X» pelo ora Apelante) - devendo o artigo 49º da Petição Inicial passar para os factos provados.
L. Pelo que só formalmente continuou a existir o contrato de trabalho entre o Apelante e o Hospital X, após a cedência da Unidade de Hemodiálise à ora Apelada, sendo a retribuição residual que aquele continuou a pagar ao Apelante por sua vez reembolsada ao Hospital pela ora Apelada, nos termos do contrato celebrado entre ambas, sendo, portanto, a Apelada quem, na verdade suportava a totalidade da retribuição do ora Apelante, naquela parte residual através do Hospital.
M. A testemunha Dr. DD [cfr. 00:27:42, supra] confirmou que a retribuição média mensal fixa normal de um Director Clínico de uma Unidade de Hemodiálise da Apelada é de €5.000,00, valor aproximado ao que o Apelante auferia entre os €1.472,81 mensais só aparentemente pagos pela Hospital X depois descontados na facturação da Unidade que esta entregava à Apelada, e os €3.098,00 por esta pagos directamente ao Apelante - cfr. pontos 8 e 11 dos factos provados.
N. Ou seja, naquela parte residual da retribuição do Apelante, a Apelada era também sua empregadora como que por “interposta pessoa”, a Hospital X para quem o Apelante não exercia quaisquer funções, sendo unicamente o Director Clínico e médico residente na Unidade de Hemodiálise explorada pela Apelada.
O. A douta sentença ignorou que nos termos do contrato dito de “prestação de serviços” celebrado entre a Hospital X e a ora Apelada em Setembro de 2002 (fls. 56 e ss) todas as despesas com o pessoal afecto à Unidade de Hemodiálise cedida à Apelada são a cargo desta, até mesmo no caso de o Hospital X ser judicialmente condenado a pagar quaisquer créditos laborais.
P. Isso mesmo sendo comprovado também no depoimento da antiga Enfermeira-Chefe da Unidade, EE, [cfr. 00:12:41, supra] que continuando formalmente com contrato de trabalho com a Hospital X após a cessão da exploração à Apelada, passou a trabalhar exclusivamente para esta, apesar da retribuição lhe ser paga pela Hospital X que evidentemente deduzia depois o custo na facturação da Unidade a entregar à Apelada, razão porque ouvia dizer pelos corredores da Apelada ser a Enfermeira-Chefe mais cara da K (Grupo onde se integra a Apelada).
Q. Por seu turno, a douta sentença não considerou que a Apelada não deu qualquer opção ao Apelante, senão pagar-lhe a retribuição através da sociedade médica que o Apelante tinha constituído um ano antes (2001), tal como os demais médicos do quadro da Unidade de Hemodiálise do Hospital X constituíram cada um a sua sociedade, no âmbito da prestação de serviços na tal actividade clínica particular, mais tarde regulada pelo contrato junto a fls. 317 e ss, celebrado na mesma data com todas essas sociedades unipessoais (aliás todas praticamente com a mesma firma, salvo o nome distintivo do médico respectivo, e com o mesmo contabilista “era a promiscuidade total” - cfr. Dr. DD [00:05:59, supra].
R. Conforme o legal representante da Apelada, FF, confessou ao Mmo. Juiz a quo nas suas declarações de parte «foi naquela altura decidida foi que as pessoas que trabalhavam naquela altura já na Unidade de Hemodiálise do Hospital X prestariam, se assim quisessem, serviços à Y, S.A.... à W, S.A.» [cfr. 00:09:38, supra], ou seja, passariam de trabalhadores do Hospital X a prestadores de serviços para a Apelada!
S. E que «se não quisessem, não prestariam serviços para a W, S.A.» e que «a Hospital X teria de resolver o problema, não era um assunto da W, S.A. era um assunto da Hospital X»- [cfr. 00:39:35, supra], mais confessando o Administrador da Apelada que «se o Dr. AA não aceitasse ser o Director Clínico teria de sair» [cfr. 00:40:12, supra].
T. Ora, isto é a perfeita subversão do instituto jus-laboral da transmissão de estabelecimento, então previsto no art.º 37º da LCT, pelo qual os contratos de trabalho afectos à Unidade cedida se transmitem ope legis, com a respectiva antiguidade e demais condições, não sendo um problema da transmitente Hospital X de que a cessionária, ora Apelada, se pudesse alhear e muito menos impor aos trabalhadores que passassem a exercer funções ao abrigo de contratos de prestação de serviço.
U. Como indubitavelmente foi feito com o ora Apelante, que obviamente não teve qualquer opção senão assinar o contrato de prestação de serviços (junto a fls. 21v) com a ora Apelada através da sociedade unipessoal que recentemente tinha constituído para prestar serviços à Hospital X na sua actividade clínica particular, sob pena de pura e simplesmente deixar de ser o Director Clínico da Unidade e seu médico residente.
V. Isso mesmo é claramente explicado pelo médico da Unidade de Hemodiálise, Dr. DD, a quem foi igualmente imposto passar a prestar serviços à Apelada através da sua sociedade unipessoal, e que indica com toda a espontaneidade no seu depoimento não terem sido tidos nem achados em todo este processo - cfr. [00:20:31, supra].
W. Contudo, a actividade exercida pelo Apelante para a Apelada, de Director Clínico e médico residente da sua Unidade de Hemodiálise é intuitu personae, só susceptível de ser prestada por pessoa singular, médico, como o Apelante, e não por sociedade, o que é meramente instrumental.
X. Aliás, tendo o Mmo. Juiz a quo questionado [00:14:07] o legal representante da ora Apelada, FF, nas suas declarações de parte, se o Apelante teria a liberdade de indicar outro imaginário médico que a “AA Unipessoal, Lda. ” tivesse para Director Clínico da Unidade de Hemodiálise da Apelada, afirmou o Administrador da Apelada, sem qualquer credibilidade, que tal poderia ser possível mediante autorização da Hospital X enquanto titular da convenção com a ARS, contradizendo os contratos celebrados e os depoimentos das demais testemunhas, que confirmaram que obviamente a Hospital X só indica à ARS o Director Clínico e a Enfermeira Chefe que a Apelada Y, S.A. lhe indique - cfr. ponto 15 dos factos provados e Dr. DD [00:38:42] e Enf. GG [00:27:38].
Y. Na verdade, trabalhando o Apelante durante 20 anos para uma entidade (Hospital X), ao abrigo de contrato de trabalho, como Director Clínico (cfr. ponto 4 dos factos provados) e Médico Residente da Unidade de Hemodiálise do Hospital, sendo esta unidade transmitida a outra entidade (a ora Apelada) e continuando a exercer para esta as mesmas exactas funções nos 20 anos seguintes (pontos 6 e 7 dos factos provados), e do mesmo modo, enquanto seu Director Clínico e Médico Residente, o vínculo contratual não poderia perder a sua natureza laboral, sendo, aliás, inválidos quaisquer contratos de prestação de serviços assinados pelo trabalhador com a Apelada.
Z. Também resulta dos depoimentos e das regras da experiência comum que obviamente a Apelada reembolsava o Hospital X da retribuição residual que este continuou a pagar ao ora Apelante, tal como a retribuição que o Hospital pagava à antiga Enfermeira Chefe da Unidade EE, após a cessão de exploração: só ao arrepio das mesmas seria verosímil que a Hospital X pagasse o custo de um Director Clínico e de uma Enfermeira Chefe que não trabalhavam para si, devendo o artigo 17º da Petição Inicial passar aos factos provados.
AA. Aliás, a própria douta sentença acaba por admitir que «os serviços prestados pela ré eram remunerados através de uma percentagem do preço em vigor por cada tratamento efectuado (cláusula 5.1.)» (pág. 19 da douta sentença).
BB. Não compreendendo, porém, pelas mesmas regras de experiência, que no valor retido pelo Hospital da facturação da Unidade de Hemodiálise que cobra pela convenção à ARS e entrega depois à ora Apelada encontra-se evidentemente o preço da cessão de exploração, que inclui o espaço, os doentes, equipamento e todos os seus elementos (até os consumos da água e luz eram a cargo da Apelada - cláusula 8ª alínea h) do contrato junto a fls. 56 e ss), devendo ser suprimido o ponto 23 dos factos provados - cfr. também depoimento do Sr. Dr. DD [00:23:06, supra].
CC. E sendo manifesto que o interesse da cessão de exploração da Unidade de Hemodiálise é precisamente transmitir os seus doentes, só formalmente da Hospital X mas na realidade da Apelada, como muito bem explicaram as testemunhas, designadamente os médicos, Dr. DD [cfr. 00:22:11, supra] e Dr. HH [00:09:49], e o Enfermeiro II [00:22:28], estes últimos confirmando que os dados clínicos dos doentes da Unidade são exclusivamente tratados na plataforma da Y, S.A./K, sem acesso pela Hospital X - devendo ser alterados os pontos 17 e 22 dos factos provados, indicando serem os doentes da ora Apelada.
DD. Mas a transmissão de estabelecimento, correspondente à cessão de exploração da Unidade de Hemodiálise do Hospital X à Apelada, é absolutamente inegável, estando patente desde logo nos próprios contratos celebrados entre ambas juntos a fls. 56 e ss e fls. 68 e ss, sendo unanimemente confirmada pelos factos atestados por todas as testemunhas.
EE. Mas ainda mesmo na hipótese meramente académica de não ser considerada a transmissão de estabelecimento e consequente transmissão do contrato de trabalho do ora Apelante, com o que fica prejudicada a necessidade de saber se a actividade de Director Clínico e médico residente da Unidade prestada pessoalmente pelo Apelante para a Apelada era ou não exercida com subordinação jurídica (art.º 1052º do Código Civil e art.º 11º do actual Código do Trabalho), resulta manifesto na prova produzida e não considerada pela douta sentença a existência de todas as características reveladoras da existência dessa subordinação jurídica e, portanto, de um contrato de trabalho.
FF. Não podia a douta sentença considerar ao mesmo tempo provada a existência dos turnos praticados pelo Apelante na Unidade de Hemodiálise - pontos 27 e 33 dos factos provados - e considerar não provada a existência de um horário de trabalho (artigo 28º da Petição Inicial), o que é incompatível (cfr. fls. fls. 26 e 26v, 93v, 94 e 94v dos autos).
GG. A responsabilidade do Director Clínico são 24 horas por dia, todos os dias da semana - cfr. depoimento Dr. DD [00:08:18, supra] - tendo o Apelante de estar sempre contactável e disponível, além de fazer turnos de acordo com o mapa que era afixado na Unidade e que tinha de coordenar e organizar enquanto responsável do serviço (era o “Chefe”!), estando na Unidade praticamente diariamente, mesmo quando não tinha turnos, onde tinha o seu gabinete, a bata e equipamento médico - cfr. depoimentos Enf. II [00:04:37,00:08:21,00:09:26 e ss]; JJ [00:10:42 e ss]; Enf GG [00:03:19]; Dr. HH [00:07:44 e 00:08:47], etc...
HH. O Apelante tinha um período anual de férias de 22 dias úteis, sendo quem coordenava a organização do mapa de turnos e de férias dos médicos da Unidade, de quem exigia que preenchessem o mapa de férias, que era afixado no negatoscópio existente no gabinete médico da Unidade - cfr. Dr. HH [00:08:18 e 00:07:44 e ss]; JJ [00:12:31]; etc... sendo o período de férias do Apelante pago pela Apelada - cfr. ponto 24 dos factos provados.
II. O Apelante tinha formação profissional obrigatória - cfr. Dr. DD [00:36:24]; Enf. GG [00:09:54]; etc...
JJ. O email do Apelante era atribuído pela Apelada - ... e-mail (iniciais de K, grupo que integra a Apelada) - cfr. emails de fls. 27 e 28v, in fine.
KK. A Enfermeira Chefe da Apelada, GG, funcionária e gestora da Unidade de Hemodiálise da Apelada no Hospital X (cfr. fls. 24) e a Secretária Administrativa da Unidade, igualmente funcionária da Apelada, JJ, controlavam o email do Apelante, que imprimiam e advertiam-no para os módulos de formação pendentes que tinha de executar - cfr. Enf. GG [00:10:15,00:11:23 e ss].
LL. Funcionárias da Apelada que o Apelante indubitavelmente coordenava também e a quem dava indicações, tal como fazia com o pessoal médico - cfr. JJ [00:12:24]; Dr. HH [00:08:25,00:08:55,00:10:30 e 00:13:23]; Enf. II [00:08:40 e 00:10:25];
MM. Tendo sido ordenado pela Apelada ao Apelante, aquando da pandemia de Covid-19, que apetrechasse a Unidade de Hemodiálise do Hospital X para receber todos os doentes de hemodiálise infectados das Clínicas da região de Lisboa e Vale do Tejo - cfr. Dr. HH [00:13:07].
NN. O Apelante tinha exclusividade com a Apelada no que toca à prestação de serviços a unidades de hemodiálise, só o podendo fazer a unidades pertencentes à Apelada Y, S.A. - cláusula 8ª do Contrato dito “de Prestação de Serviços” que a Apelada apresentou ao Apelante para assinar em 2021, actualizando o anterior, de 2002, através da sua sociedade de serviços médicos, e junto sob o doc. n.º 4 da Contestação (fls. 81).
OO. Estão, pois, provados nos autos elementos mais do que suficientes para que a douta sentença considerasse verificada também a existência de subordinação jurídica no trabalho exercido pelo Apelante para a Apelada, o que nem isso era necessário, considerada a transmissão do contrato de trabalho do Apelante com a transmissão do estabelecimento correspondente à Unidade de Hemodiálise a que estava afecto.
PP. Por outro lado, está comprovado o despedimento do Apelante pela Apelada e a sua substituição por nova Directora Clínica da Unidade - pontos 14 e 15 dos factos provados - tendo de ser levada necessariamente à factualidade dada como provada a facturação da Unidade de Hemodiálise desde a aquisição da mesma pela ora Apelada à Hospital X que o Apelante tinha direito à retribuição variável corresponde a 1,3% - ponto 4 dos factos provados e fls. 17v a 18v.
QQ. A qual foi informada pelo Hospital X em resposta à notificação do Tribunal a quo para o efeito, no Ofício junto aos autos em 27/01/2023 (ref" Citius 34879847), a fazer constar nos factos provados.
RR. A que se seguiu o requerimento do ora Apelante de 12/02/2023, apurando-se o valor total de retribuição variável em falta suprimida ao Apelante de €550.363,48, a que acrescem os juros à taxa legal até à data da entrada da p.i. (19/09/2022) de €190.700,73, valor que se requereu fosse considerado a esse título (retribuição variável e juros), em substituição do estimado na Petição Inicial (alíneas 3) e 4) do pedido final), ainda sem os dados depois obtidos.
SS. Igualmente sendo comprovado pela testemunha Dr. DD ter essa importante parcela da retribuição do Apelante lhe sido suprimida pela Apelada, que a deixou de receber a partir da cessão da Unidade pelo Hospital X - cif. Dr. DD [00:40:39 e ss, supra]
TT. O Apelante não se reformou “por velhice” do Exército, mas nos termos indicados pela Caixa Geral de Aposentações nos autos, confirmando ter o Apelante passado à situação de reforma do Exército em 14/02/2005, «com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 159º do Decreto-Lei n.º 236/99, de 25 de Junho» (Estatuto dos Militares das Forças Armadas), e nem sequer a seu pedido (tinha pouco mais de 50 anos de idade).
UU. Além disso, continuando o Apelante a trabalhar para a Apelada, mesmo que essa reforma fosse relevante (não é) não geraria por si a caducidade do contrato, mas a mera conversão em contrato de trabalho a termo, não se deixando de estar perante um despedimento ilícito fora dos seus trâmites.
VV. Mas já vários Acórdãos se têm pronunciado sobre a não aplicação do regime do artigo 348º do Código do Trabalho (conversão do contrato em contrato a termo) no caso de reforma antecipada e também nos casos de reforma antecipada no âmbito do vínculo público que o trabalhador cumulativamente desempenhasse:
O trabalhador aposentado antecipadamente, por ter atingido determinada idade e anos de serviço - 55 anos de idade e 36 anos de serviço — não constitui fundamento de caducidade do contrato de trabalho - Ac. da Rel. do Porto, (Proc. 8866/16.6T8VNG.P1), de 26/10/2017 (in www.dgsi.pt).
A reforma por velhice, no regime da Segurança Social, assenta em dois requisitos essenciais: a idade completa para a vida activa do trabalhador e o tempo de carreira contributiva - Ac. da Rel. de Porto (Proc. 1094/10.6TTPRT.P2) de 14/07/2020 (in www.dgsi.pt)
I - Não podem estender-se os efeitos que o artigo 348. º, n.º 1 do Código do Trabalho faz operar para a hipótese nele expressamente mencionada da “reforma por velhice”, à verificação da aposentação antecipada que determinou o desligamento do serviço no vínculo público que o trabalhador cumulativamente desempenhava.
II - Não é possível estender a outros contratos de trabalho de natureza privada os efeitos a que tende a aposentação voluntária antecipada, os quais se restringem ao vínculo de natureza pública no âmbito do qual a mesma foi concedida pela Caixa Geral de Aposentações.
III - A aposentação antecipada da autora por parte da Caixa Geral de Aposentações, requerida no âmbito de um vínculo laborai de natureza pública, que mantinha em acumulação com as funções docentes exercidas em execução do contrato de trabalho a tempo indeterminado estabelecido com a ré, não produz ope legis a conversão deste último em contrato a termo - Ac. da Rel. de Porto (Proc. 1228/12.6TTPRT.P1) de 13/10/2014 (in www.dgsi.pt)
WW. Tão pouco, atingindo o trabalhador 70 anos de idade após a ocorrência do despedimento, se opera a caducidade do contrato de trabalho ou sequer a sua conversão em contrato de trabalho a termo: Ac. do S.T.J. (Proc. 1391/13.9TTCBR.C1.S1) de 14-01-2016 (in www.dgsi.pt).
XX. Pelas várias decisões judiciais juntas pela ora Apelada aos autos referentes a acções de impugnação de despedimento instauradas contra si por ex-colaboradores dispensados unilateralmente pela Apelada das suas Clínicas, inclusivamente de uma Directora Clínica, verifica-se haver muita gente zangada com a Apelada e convencida do vínculo laboral com a mesma estabelecido.
YY. Quiçá abusando a Apelada do recurso à figura do contrato de prestação de serviços, para ocultar a natureza subordinada do vínculo sob a capa de “recibos verdes” ou por via de facturação a sociedades médicas constituídas para o efeito, afinal com o habitual único médico que presta pessoalmente os serviços à Apelada.
ZZ. Mas - como o próprio legal representante da Apelada, FF, ouvido nos autos frisou - o caso do Apelante é sem dúvida especial, “em razão do passado”, pois o mesmo já exercia essas funções de Director Clínico e médico residente da Unidade de Hemodiálise do Hospital X adquirida pela Apelada, ao abrigo de contrato de trabalho celebrado já 20 anos antes.
AAA. Não podendo esse facto ser ignorado quando continuou a exercer as mesmas funções de Director Clínico e de Médico Residente na Unidade e do mesmo modo nos 20 anos seguintes, desta feita para a Apelada (o único Director Clínico da Apelada que também era médico residente, fazendo os respectivos turnos, como explicou aquele Administrador atrás citado - [cfr. 00:18:52]).
BBB. A douta sentença ao não considerar a existência de um contrato de trabalho e declarar ilícito o despedimento do ora Apelante, bem como a supressão ilícita da sua retribuição variável, ignorando factos que indubitavelmente resultam da prova produzida no processo violou, salvo o devido respeito, os artigos 5º n.º 2 e 607º n.ºs 4 e 5 do CPC, o artigo 37º da LCT (actual artigo 285º do Código do Trabalho), os artigos 1052º e 1054º do Código Civil e os artigos 11º e 12º (ou Jurisprudência que lhe deu origem), 129º n.º 1 alínea d), 258º, 261º, 338º (e artigo 53º da Constituição da República Portuguesa), 381º alínea c), 389º, 390º e 391º, todos do Código do Trabalho.»
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A ré apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso, com as seguintes conclusões:
«A. Vem o Recorrente recorrer da sentença, que julgou a acção improcedente por não provada.
B. Sendo a sua alegação desprovida de fundamento, de acordo com toda a documentação junta aos autos, bem como a prova produzida.
C. Realça-se que o Recorrente, como alegou, na sua petição inicial, nomeadamente nos arts. 1º e 15º, celebrou e manteve um contrato de trabalho com a Hospital X durante a sua vida profissional.
D. Aliás, como resulta, igualmente, do ofício do Instituto da Segurança Social, IP, junto aos autos, que refere que o Recorrente é trabalhador por conta de outrem na entidade Hospital X2, cfr. ofício junto aos autos em 11/1/2023.
E. O próprio Autor, em 21/7/2020, assinou uma declaração, em papel timbrado da Hospital X na qual, especificamente, declara que é a Hospital X2, sita na Av. …, em Lisboa, que explora a unidade de hemodiálise - cfr. doc. 1 junto com a contestação.
F. Mais, e de acordo com o art.º 61º da resposta à contestação, o Recorrente afirma que, há 40 anos, é trabalhador da Hospital X
G. Por um lado, o Recorrente defende a tese que houve transmissão de estabelecimento entre a Hospital X e a ora Recorrida Y, S.A. e consequentemente, transmissão do seu contrato de trabalho.
H. Mas, por outro lado, afirma que sempre teve um contrato de trabalho com a Hospital X mantendo-se esse contrato durante o período em que exerceu a função de Director Clínico, através de um contrato de prestação de serviços celebrado com a sua sociedade, com a ora Recorrida.
I. Sendo que a Hospital X sempre continuou a pagar-lhe o seu vencimento mensal, com as consequentes contribuições para a Segurança Social.
J. Tendo havido uma transmissão do seu contrato de trabalho para a Recorrida, com que motivo a Hospital X manteve o contrato de trabalho na sua esfera jurídica com o consequente pagamento do seu vencimento?
K. Obviamente que o Recorrente não consegue explicar e demonstrar o motivo pelo qual não reclamou junto da Hospital X sua entidade patronal, o valor da sua retribuição variável, que lhe foi retirada por esta entidade, e que nesta acção pretende vir reclamar perante a ora Recorrida Y, S.A., ficcionando para o efeito uma eventual transmissão do seu vínculo laborai.
L. Sendo certo que, e como várias testemunhas arroladas pelo Recorrente explicaram, ao longo dos anos, as condições contratuais estabelecidas, entre a Hospital X e o Autor, foram sendo alteradas, nomeadamente com a supressão de várias componentes retributivas.
M. Mais, ao longo de todos estes anos de prestação de serviço para com a Ré, e sendo o Recorrente uma pessoa letrada, o mesmo celebrou um contrato de prestação de serviços com a Ré em nome da sua sociedade unipessoal, recebia uma avença, recebia um valor pelos turnos efectivamente realizados como médico residente, e nunca recebeu subsídio de férias, nem de Natal, nunca questionou a falta destes pagamentos, nem dos outros créditos salariais que agora reclama, sendo certo, que se deslocava à Clínica da Ré, apenas quando tinha disponibilidade, nunca informando a Ré de qualquer horário, nem justificou as suas ausências.
N. Era o responsável médico da Clínica da Ré, conjuntamente com uma equipa médica.
O. Nunca teve qualquer dependência hierárquica de ninguém, apenas era responsável pelo resultado no tratamento de doentes.
P. Aliás, não se pode deixar de dizer que a teoria do Recorrente consubstancia-se numa construção aberrante, dado que, e mesmo a admitir-se a existência de um contrato de trabalho com a Recorrida, esse contrato nunca teria as mesmas condições contratuais que constavam do contrato que o Recorrente celebrou com a Hospital X
Q. Uma vez que esse contrato não foi transmitido, dado que esse contrato manteve- se sempre na esfera jurídica da Hospital X uma vez que manteve sempre o pagamento da retribuição do Recorrente e as consequentes contribuições para a Segurança Social, o que determina que o Recorrente manteve sempre o mesmo vínculo contratual com aquela entidade Hospital X.
R. Pelo que, e contrariamente ao que o Recorrente pretende demonstrar com o seu recurso, andou bem o Tribunal a quo ao considerar que o contrato de trabalho celebrado entre o Autor e a então Z. S.A., agora, Hospital X não se transmitiu à Recorrida,
S. E, por outro lado, e tendo em conta a matéria de facto dada como provada, a actividade desempenhada pelo Autor não pode ser qualificada como consubstanciando um contrato de trabalho, pela inexistência de subordinação jurídica e/ou dependência económica.»
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A ré interpôs recurso subordinado com vista revogação da decisão na parte em que entendeu ter ocorrido transmissão do estabelecimento, formulando as seguintes conclusões:
«1. Vem a Recorrente recorrer da sentença, ora em crise, que concluiu pela existência da transmissão parcial da exploração do estabelecimento para a esfera jurídica da Recorrente, nomeadamente da unidade de hemodiálise existente no Hospital X.
2. Sem prejuízo do Tribunal a quo ter julgado, e bem, que o contrato de trabalho celebrado entre Autor e a então Z. S.A., agora Hospital X não foi transmitido para a Recorrente e que a actividade prestada pelo Autor à ora Recorrente se enquadra numa prestação de serviço, e não num contrato de trabalho, ainda assim considera-se que o Tribunal a quo ao concluir pela transmissão do estabelecimento, ainda, que parcial, fez uma interpretação errada do disposto no art.º 37º da LCT, lei aplicável ao caso dos autos.
3. Por um lado, e à luz do disposto no artigo 37.º da LCT, e tendo em conta a matéria de facto provada, o Tribunal a quo conclui pela inexistência de transmissão da cessão da exploração do estabelecimento (ainda que parcial).
4. No entanto, e conjugando o disposto no art.º 37º da LCT com as directivas comunitárias nº 77/187/CEE, de 14/2/77; 98/50/CE, de 29/6/98 e 2001/237/CE, de 12/3/2001, o Tribunal a quo entendeu que, como se transcreve, “(...) face ao conceito amplo de transmissão parcial da cessação da exploração de estabelecimento que a jurisprudência e a doutrina consideram ínsito no artigo 37º, n.ºs 1 e 4, da LCT, sobretudo numa interpretação conforme às directivas comunitárias à luz das quais o mesmo deve ser interpretado (nº 77/187/CEE, de 14/2/77; 98/50/CE, de 29/6/98 e 2001/237/CE, de 12/3/2001), ter-se-á que concluir efectivamente, cremos, pela existência da alegada transmissão parcial da exploração do estabelecimento.
5. Salvo o devido respeito que é muito, não se pode aceitar esta interpretação, porquanto, só é possível falar em transmissão de estabelecimento quando esteja em causa uma entidade económica autónoma e adequadamente estruturada (dotada de uma organização própria), o primeiro passo será sempre o de saber se estão reunidos e organizados certos elementos que constituem e identificam o potencial quid passível de transferência.
6. Por outro, numa perspectiva dinâmica, para aferir se houve ou não transmissão.
7. Se o critério crucial para indagar se houve transmissão é a preservação da identidade da entidade económica, tudo estará em apurar da passagem daquele conjunto de elementos constitutivos da empresa e que determinam a identidade da mesma.
8. Ora, no caso em apreço, a Recorrida não explora uma entidade económica autónoma.
9. Dado que, e conforme consta, e bem, da sentença, ora em crise, a Hospital X é a titular da Unidade, bem como da Convenção com a ARS, sendo esta entidade que trata de todo o processo de renovação/actualização da Convenção para a prestação de cuidados de saúde na área da diálise com a ARS-LVT, nomeadamente fichas técnicas e demais documentação.
10. Ou seja, a Recorrida não explora a Unidade de Hemodiálise, e muito menos de forma autónoma, estando interligada e dependente da actuação da Hospital X limitando-se, como resulta do contrato de prestação e serviços, a prestar tratamentos de hemodiálise aos doentes da Hospital X.
11. Além disso, a prestação de serviços desempenhada pela Recorrente foi autorizada pela ARS-LVT, como subcontratação para a prestação de cuidados de saúde aos doentes abrangidos pela dita convenção, cfr. resulta dos documentos 2 e 3 juntos com a contestação.
12. Mantendo a Hospital X a posição contratual na convenção e, como tal é a entidade responsável perante a ARS-LVT por todas as obrigações e responsabilidades assumidas na dita convenção, (doc. 2 e 3)
13. Além disso, a Hospital X é a entidade que factura os tratamentos de Hemodiálise aos parceiros, sendo que os doentes que são tratados neste Serviço de Hemodiálise são doentes Hospital X bem como as instalações são da Hospital X.»
O autor não apresentou contra-alegações.
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Neste tribunal os autos foram ao Ministério Público que emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso do autor, quer de facto, quer de direito.
Nenhuma das partes se pronunciou sobre o aludido parecer.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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Delimitação do objeto do recurso
Resulta das disposições conjugadas dos arts. 639.º, nº 1, 635.º e 608.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil (doravante CPC), aplicáveis por força do disposto pelo art.º 1.º, n.º 1 e 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho (doravante CPT), que as conclusões delimitam objetivamente o âmbito do recurso, no sentido de que o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as questões suscitadas pelas partes (delimitação positiva) e, com exceção das questões do conhecimento oficioso, apenas sobre essas questões (delimitação negativa).
Com vista à delimitação objetiva do recurso, importa ainda, no caso dos autos tratar uma questão prévia.
A ré, notificada do requerimento de interposição do recurso e alegações apresentados pelo autor, apresentou as suas contra-alegações e simultaneamente apresentou requerimento de interposição do que qualificou como recurso subordinado.
Alegou que, sem prejuízo do Tribunal a quo ter julgado, e bem, que o contrato de trabalho celebrado entre Autor e a então Z. S.A., agora Hospital X não foi transmitido para a Recorrente e que a atividade prestada pelo Autor à ora Recorrente se enquadra numa prestação de serviço, e não num contrato de trabalho, ainda assim, e como se irá demonstrar, considera-se que o Tribunal a quo ao concluir pela transmissão do estabelecimento, ainda, que parcial, fez uma interpretação errada do disposto no art.º 37º da LCT conjugado com as diretivas comunitárias nº 77/187/CEE, de 14/2/77; 98/50/CE, de 29/6/98 e 2001/237/CE, de 12/3/2001.
Do nosso ponto de vista a ré errou na qualificação jurídica do meio processual que utilizou.
Na verdade, tendo a ação sido julgada totalmente improcedente e a ré absolvida de todos os pedidos, a mesma não é parte vencida para os efeitos dos arts. 631.º e 633.º do CPC, não tendo, pois, legitimidade para interpor recurso subordinado.
Contudo, ainda que sem impacto na decisão final recorrida, que não deixou de ser de absolvição da ré, esta decaiu quanto a um dos fundamentos da defesa que apresentou – a inexistência de transmissão do estabelecimento – e que é suscetível de inviabilizar a pretensão do autor, caso o recurso por este interposto venha a ter acolhimento, o que se subsume afinal ao disposto pelo art.º 636.º do CPC, configurando, afinal uma pretensão de ampliação do objeto do recurso.
Nem por isso, o tribunal deixará de levar em conta a pretensão deduzida pela ré, procedendo à convolação do meio processual, ao abrigo do art.º 193.º, n.º 3 do CPC, apreciando-o como ampliação do âmbito do recurso, já que se mostram verificados todos os demais pressupostos previstos pelo art.º 636.º do CPC1.
Assim, as questões a decidir nos presentes autos são:
1 - impugnação da matéria de facto;
2 – transmissão do estabelecimento/unidade económica;
3 – transmissão do contrato de trabalho;
4 – natureza do vínculo estabelecido com a recorrida;
5 – caso se conclua pela qualificação do vínculo como contrato de trabalho, determinar as consequências da sua cessação e
6 - e a existência de créditos salariais relativos a retribuição variável.
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Fundamentação de facto
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
«1. O autor, Médico, com a especialidade de nefrologia, foi admitido por Contrato de Trabalho de 05/08/1982, vigente a partir de 01/08/1982, cuja cópia faz fls. 11 a 13 dos autos, na sociedade então designada Z. S.A. (NIF ...), depois designada Hospital X1 e, actualmente, Hospital X2 [artigo 1.º da PETIÇÃO INICIAL - assente por acordo das partes].
2. Nos termos da cláusula 6.ª do referido contrato, o autor auferia uma retribuição base mensal fixa e «...uma remuneração variável equivalente a 0,63% das receitas totais do serviço» a rever «no momento da entrada em funcionamento do 3º turno já previsto» [artigo 2.º da PETIÇÃO INICIAL].
3. Nos termos da referida cláusula 6.ª do mencionado contrato, eram-lhe ainda «...atribuídos os esquemas e suplementos, gratificações, subsídios, prémios de antiguidade e regalias sociais de que beneficiem os restantes trabalhadores do Z. S.A.» [artigo 3.º da PETIÇÃO INICIAL],
4. A remuneração variável foi revista em 1999, com o aumento da percentagem aplicável para 1,3% sobre a faturação do serviço no ano anterior, quando o autor assumiu a Direcção Clínica do Serviço de Nefrologia (hemodiálise), tendo a mesma sido paga ao autor, pelo menos, nos seguintes anos [artigos 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º e 10.º da PETIÇÃO INICIAL]:
4.1. - em abril de 1998, com referência à faturação do ano de 1997, foi pago ao autor o valor de 2.392.690$00 [contravalor de €11.934,69];
4.2. - em abril de 1999, com referência à faturação do ano de 1998, foi pago ao autor o valor de 3.116.594$00 [contravalor de €15.545,51];
4.3. - em março de 2000, com referência à faturação do ano de 1999, foi pago ao autor o valor de 3.169.079$00 [contravalor de €15.807,30];
4.4. - em março de 2000, com referência à faturação do ano de 1999, foi pago ao autor o valor de 3.169.079$00 [contravalor de €15.807,30];
4.5. - em 2001, com referência à faturação do ano de 2000, foi pago ao autor o valor de 3.452.072$00 [contravalor de €17.218,86];
4.6. - em 2002, com referência à faturação desse ano de 2002, foi pago ao autor o valor de €13.448,76;
5. Em 16-09-2002 foi outorgado pela ré [então denominada W, S.A.], como PRIMEIRA OUTORGANTE e a [então denominada] sociedade AA Unipessoal, Lda. [atualmente denominada AA Serviços Médicos, Lda. ] representada pelo seu gerente, o aqui autor AA, como SEGUNDA OUTORGANTE, o acordo escrito denominado “Contrato de Prestação de Serviços" cuja cópia faz fls. 21 v. a 23 dos autos, e cujo teor aqui e dá por reproduzido para todos os efeitos [artigo 15.º da PETIÇÃO INICIAL].
6. De acordo com a cláusula Segunda do referido “Contrato de Prestação de Serviços”, «O SEGUNDO OUTORGANTE é MÉDICO NEFROLOGISTA, obrigando-se a envidar os seus melhores esforços e aplicar os seus conhecimentos profissionais, sem prejuízo da sua autonomia técnica, na prestação de serviços de DIRECTOR CLINICO» [artigo 16.º da PETIÇÃO INICIAL],
7. De acordo com a cláusula Quarta do referido Contrato de Prestação de Serviços, «Pela prestação de serviços objecto do presente contrato, a PRIMEIRA OUTORGANTE pagará ao SEGUNDO OUTORGANTE, a título de avença, a quantia de Euros 3.242,19 mensais. A prestação de serviços como “Médico Residente” pelo SEGUNDO OUTORGANTE, implica o pagamento pela PRIMEIRA OUTORGANTE da quantia de Euros 124,70 por turno de serviço efetivamente prestado, independentemente destes serem prestados em dias úteis, feriados ou fins-de-semana» [artigo 17.º da PETIÇÃO INICIAL],
8. A avença supra mencionada em 7, que desde junho de 2018 ascendia ao valor mensal de €3.098,00, era paga pela ré contra a emissão de faturas pela sociedade então denominada AA Unipessoal, Lda., atualmente denominada AA Serviços Médicos, Lda., da qual o autor é gerente [artigos 18.º, 22.º e 29.º da PETIÇÃO INICIAL],
9. Em 19-09-2002 foi outorgado pela ré [então denominada W, S.A.], como PRIMEIRA OUTORGANTE e a [então denominada] Z. S.A. [depois denominada Hospital X1, atualmente denominada Hospital X2], o acordo escrito denominado “Contrato de Prestação de Serviços” cuja cópia faz fls. 56v. a 67v. e cujo teor aqui e dá por reproduzido para todos os efeitos [artigos 15,º da PETIÇÃO INICIAL e 13.º da CONTESTAÇÃO],
10. O contrato de trabalho do autor com o Hospital X nunca cessou [artigo 23.º da PETIÇÃO INICIAL],
11. Desde novembro de 2002 o autor continua a receber da Z. S.A. [depois denominada Hospital X1, atualmente denominada Hospital X2], a retribuição base mensal de €1.472,81 [artigos 13.º e 18,º da PETIÇÃO INICIAL],
12. A actividade de Diretor Clínico desempenhada pelo autor era realizada na Unidade de Hemodiálise do Hospital X (primeiro, na Av. … e mais recentemente no novo Hospital X2) [artigo 26.º da PETIÇÃO INICIAL].
13. Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados eram, inicialmente, os mesmos que era utilizados pela Hospital X tendo sido posteriormente substituídos por outros pertença da K (do mesmo grupo da ré) [artigo 27.º da PETIÇÃO INICIAL].
14. Em 30-11-2021 a ré remeteu à AA Unipessoal, Lda., a carta cuja cópia faz fls. 23v. dos autos, com o seguinte teor [artigo 31º da PETIÇÃO INICIAL - assente por acordo das partes]:
«Caro Dr. AA
Serve a presente para nos termos e para os efeitos do disposto na cláusula 16.º do Contrato de Prestação de Serviços celebrado em 01 de Abril de 2021, pôr termo ao referido contrato, com efeitos a 31 de Dezembro de 2021 (...)».
15. Em 01-02-2022 a ré substituiu o autor na Direcção Clínica pela Dra. KK [artigo 33.º da PETIÇÃO INICIAL - assente por acordo das partes],
16. A Hospital X é a detentora da convenção para a prestação de cuidados de saúde na área da diálise, celebrada com a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I.P (ARS-LVT). [artigo 8.º da CONTESTAÇÃO],
17. Os doentes que realizam tratamentos de hemodiálise nesta unidade, são doentes da Hospital X [artigo 10.º da CONTESTAÇÃO],
18. É a Hospital X que trata de todo o processo de renovação/actualização da Convenção para a prestação de cuidados de saúde na área da diálise com a ARS-LVT, nomeadamente fichas técnicas e demais documentação [artigo 11.º da CONTESTAÇÃO],
19. É a Hospital X que fatura à ARS-LVT os tratamentos realizados nesta unidade, no âmbito da Convenção [artigo 12.º da CONTESTAÇÃO],
20. Em 16-01-2021 foi outorgado entre a ré e a [então denominada] Hospital X1 [atualmente denominada Hospital X2], o acordo escrito denominado “Contrato de Prestação de Serviços” cuja cópia faz fls. 68 a 70v. e cujo teor aqui e dá por reproduzido para todos os efeitos [artigo 14.º da CONTESTAÇÃO],
21. Mantendo-se a Hospital X como entidade responsável perante a ARS-LVT por todas as obrigações e responsabilidades assumidas na dita convenção [artigo 16.º da CONTESTAÇÃO],
22. Os doentes, o licenciamento e a convenção da unidade de diálise estão na titularidade da Hospital X [artigo 80.º da CONTESTAÇÃO].
23. A ré nunca pagou à Hospital X qualquer valor a título de aluguer do espaço/instalações [artigo 81.º da CONTESTAÇÃO].
24. A avença supra referida em 7 e 8 era paga 12 meses por ano, quer o autor estivesse ou não presente, em virtude de o mesmo ser o responsável técnico pela unidade de saúde [artigo 92.º da CONTESTAÇÃO],
25. O autor nunca esteve sujeito a qualquer registo de assiduidade [artigo 137.º da CONTESTAÇÃO],
26. O autor nunca foi sujeito a nenhum controlo de horário por parte da ré [artigo 138.º da CONTESTAÇÃO],
27. O autor, para além de exercer a actividade de Director Clínico, assumia também, por regra às quartas-feiras à tarde e uma sexta-feira à tarde por mês, a actividade de médico residente, acompanhando os tratamentos de hemodiálise realizados pelos enfermeiros [artigos 139.º, 140.º e 141.º, 152.º da CONTESTAÇÃO],
28. A organização do acompanhamento dos tratamentos era feita pelos próprios médicos, incluindo o autor, quer quanto aos dias que compareciam, quer quanto a trocas que realizavam entre si, sem nunca tal facto ser comunicado ou pedida autorização à ré [artigo 142.º da CONTESTAÇÃO],
29. Eram os médicos, entre si, incluindo o autor, que se coordenavam, no sentido de assegurar os tratamentos de hemodiálise, gerindo, trocando, sem qualquer ingerência da ré [artigo 143.º da CONTESTAÇÃO].
30. Quando a ré passou a prestar serviços na unidade de diálise da Hospital X o autor, o Dr. DD, o Dr. LL e o Dr. MM, asseguravam entre eles o acompanhamento médico dos turnos dos doentes [artigo 144.º da CONTESTAÇÃO],
31. Sendo que, todos eles prestavam, simultaneamente, serviço médico noutras unidades da Hospital X e noutras entidades terceiras [artigo 145.º da CONTESTAÇÃO],
32. Nem o autor, nem os outros médicos, estão presentes, fisicamente, durante todo o turno de tratamento; comparecem, permanecem algum tempo e ausentam-se quando o entendem, ficando, no entanto, contactáveis telefonicamente para alguma questão/ocorrência que surja [artigos 148.º e 149.º da CONTESTAÇÃO],
33. Por regra, o autor comparecia às quartas-feiras à tarde e uma sexta-feira à tarde por mês, permanecia na unidade de saúde o tempo que considerava necessário e ausentava-se quando assim o entendia [artigos 151.º, 153.º, 154.º e 155.º da CONTESTAÇÃO].
34. Quando se ausentava, por regra, ia exercer as funções para a Hospital X que se situava no mesmo edifício [artigo 154.º da CONTESTAÇÃO],
35. A ré nunca soube o tempo efectivo do autor na unidade, nem nunca o autor lhe comunicou ou pediu autorização para ausentar-se [artigo 155.º da CONTESTAÇÃO],
36. O autor nunca justificou qualquer ausência/falta, nem nunca colocou à aprovação da ré períodos de férias [artigo 161.º da CONTESTAÇÃO],
37. Na unidade de hemodiálise da Hospital X é elaborado anualmente o mapa de férias das auxiliares e pessoal administrativo, dos enfermeiros do quadro, não constando do mapa as férias de nenhum médico, incluindo do autor [artigo 162.º da CONTESTAÇÃO],
38. Eram os médicos que se organizavam entre si, de forma a que fosse assegurado o acompanhamento do tratamento dos doentes [artigo 163.º da CONTESTAÇÃO].
39. Ao longo destes anos, o autor manteve sempre uma ligação à Hospital X tendo feito parte do serviço de cuidados intensivos e dando consultas, que ainda hoje dá [artigo 224.º da CONTESTAÇÃO].
40. O autor está reformado do exército português desde 14-02-2005, com fundamento em ter completado cinco anos na situação de reserva [artigo 26.º da CONTESTAÇÃO].»
E foi considerado não provado, o seguinte:
«Artigo 17.º da PETIÇÃO INICIAL [quanto ao facto de a Hospital X cobrar tal quantia à ré].
Artigo 28.º da PETIÇÃO INICIAL.
Artigo 30.º da PETIÇÃO INICIAL [quanto ao facto de o autor ter como subordinados funcionários da ré].
Artigo 49.º da PETIÇÃO INICIAL [quanto ao facto de o autor não prestar outro trabalho que não o de Director Clínico do Serviço de Hemodiálise para a R., além dos turnos inerentes, não prestando qualquer trabalho para o referido hospital].
Artigo 25.º da CONTESTAÇÃO [quanto à idade do autor].»
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Apreciação
1 – Impugnação da matéria de facto
Começamos, segundo a ordem imposta pela precedência lógica (cfr. art.º 608.º, n.º 1 CPC), pelas questões atinentes à matéria de facto.
Das conclusões F. e G. apresentadas pelo autor/recorrente resulta que o mesmo pretende impugnar os factos dados como provados sob os pontos 17 e 22 (quantos aos doentes da Unidade serem doentes da Hospital X), 23 a 26, 29, 31, 34, 37 e 39, os quais, considera que devem ser considerados não provados, bem como que pretende impugnar a decisão relativa aos factos não provados correspondentes aos artigos 17º (quanto ao facto de a Hospital X cobrar a tal quantia à Ré), 28º (horário), 30º [quanto ao facto de o Autor ter como subordinados funcionários da ré] e 49º [quanto ao facto de o autor não prestar outro trabalho que não o de Diretor Clínico do Serviço de Hemodiálise para a R., além dos turnos inerentes, não prestando qualquer trabalho para o referido hospital].
Resulta também, numa outra vertente, que o autor/recorrente considera que deveriam ter sido considerados como provados factos instrumentais que resultaram da instrução da causa e os que são complemento ou concretização dos que as partes alegaram e resultaram da instrução da causa, nos termos do n.º 2 do art.º 5.º do CPC.
Começaremos pela análise desta última pretensão do recorrente.
Se bem compreendemos as alegações do recorrente estão em causa factos relativos a turnos e sua organização, a existência de formação profissional obrigatória cuja frequência era exigida ao ora apelante, a existência de email do Apelante com o domínio da apelada, o acesso a esse email do apelante pelas funcionárias da apelada, a existência de gabinete do apelante na Unidade de Hemodiálise da apelada e de instrumentos de trabalho da apelada, a existência de mapas de férias e mapas de turnos afixados relativamente aos médicos e a ordem da apelada ao apelante para que a Unidade de Hemodiálise do Hospital X centralizasse todos os doentes Covid-19 das demais Clínicas da ora apelada.
Começaremos pela análise desta última pretensão do recorrente.
Nos termos do disposto pelo art.º 607.º, n.º 4 CPC na fundamentação da sentença o juiz declara quais os factos que julga provados e quais o que julga não provados, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e devendo fazê-lo de modo a que se perceba facilmente a realidade que considerou provada.
Na concretização dessa tarefa o juiz deve considerar os factos que foram alegados no processo por cada uma das partes, e que sejam relevantes para a decisão, de acordo com todas as soluções plausíveis de direito, ou seja, os factos nucleares, quer tenham sido alegados na petição inicial, na contestação ou em qualquer outro articulado da causa (cfr. art.º 5.º, n.º 1 do CPC), bem como os factos que sejam complemento ou concretização daqueles que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar (cfr. art.º 5.º, n.º 2, al. b) do CPC).
O juiz deve ainda considerar os factos instrumentais que resultem da instrução da causa (art.º 5.º, n.º 2, al. a) do CPC).
São factos complementares os factos constitutivos do direito, mas que não são definidores do mesmo e são factos instrumentais aqueles que permitem a afirmação, por indução, de outros factos de cuja prova depende o reconhecimento do direito ou da exceção, aqueles que possam servir para a formação da convicção sobre os demais factos2.
Sobre aqueles, o tribunal deve emitir pronuncia expressa nos termos do mencionado art.º 607.º, sobre estes não é necessária a formulação de um juízo probatório específico, estando o seu relevo limitado à motivação da decisão sobre os restantes factos3.
Ora, considerando que o que se discute nos autos é a transmissão do contrato de trabalho para a recorrida por via da alegada transmissão da unidade económica de diálise e a qualificação do vínculo estabelecido entre o recorrente e a recorrida a partir da invocada transmissão da unidade económica como contrato de trabalho, as matérias que o recorrente pretende ver incluídas como provadas assumem, como de resto o próprio recorrente considera, a natureza de factos instrumentais.
Assim, não sendo tais factos suscetíveis de um juízo probatório específico e sem prejuízo de, se necessário, virem a ser ponderados na fundamentação da decisão da impugnação da matéria de facto, não pode proceder a pretensão do recorrente de os ver incluídos na decisão da matéria de facto.
Ainda que tais factos, que não foram alegados pelas partes nos articulados ou em qualquer outro momento prévio à interposição do recurso, fossem considerados como factos complementares ou concretizadores dos factos essenciais alegados nos articulados, a pretensão do recorrente sempre seria julgada improcedente.
Na verdade, apesar do disposto pelo art.º 72.º, n.º 1 do CPT, não tendo o mecanismo aí previsto sido utilizado em 1.ª instância, não pode o Tribunal da Relação aditar factos não alegados pelas partes.
Neste sentido, defendendo a posição que cremos maioritária, da jurisprudência, se pronunciaram, entre outros o Ac. RL de 27/05/2020 e o Ac. RG de 05/03/20204, podendo ler-se neste último que «É de referir que o exercício dos poderes-deveres contidos no art.º 72.º, n.º 1 do CPT, está circunscrito à 1.ª instância, sendo que à Relação apenas é consentida a reapreciação dos meios de prova que conduziram à prova ou não prova dos factos sobre os quais incida o recurso da matéria de facto ou ordenar a ampliação da matéria de facto quando repute serem essenciais factos para a decisão que não mereceram da 1.ª instância qualquer pronúncia, mas que tenham sido alegados.
Os poderes do Tribunal da Relação estão, neste âmbito, concreta e claramente delimitados pelo n.º 1 do art.º 662.º do CPC., tal como acima já referimos, ou seja a decisão sobre a matéria de facto só deve ser alterada se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, o que significa que a decisão a alterar há-de respeitar a factos adquiridos – no sentido de provados/não provados ou alegados – e não a outros que sejam percecionados no decurso da audição dos registos da prova.
Em suma, não tendo o tribunal da 1.ª instância feito uso do poder-dever previsto no art.º 72.º do CPT, no que respeita a este novo facto que a recorrente pretendia ver aditado, até ao momento do encerramento da discussão em 1.ª instância, também o Tribunal da Relação, em sede de recurso da sentença final, não pode pronunciar-se sobre o mesmo, como se tal facto tivesse sido alegado pelas partes.»5
Pelo mesmo motivo, fica vedado ao Tribunal da Relação determinar que à 1.ª instância a ampliação da matéria de facto quanto a tais factos nos termos do art.º 662.º, n.º 2, al. c) do CPC.
Esta a posição que vem sendo considerada pelo Supremo Tribunal de Justiça6, ao afirmar que «o Tribunal da Relação não pode ordenar à 1.ª instância a ampliação da matéria de facto com factos que não tenham sido alegados pelas partes nos articulados».
Acresce que à mesma conclusão se chegaria à luz do art.º 5.º, n.º 2, al. b) do CPC invocado pelo recorrente.
Com efeito, como já afirmámos no Ac. RL 08/11/20237, igualmente subscrito pela aqui 2.º Adjunto “(…) a ampliação da matéria de facto em sede de recurso tem sempre como limite a factualidade alegada no momento e meio processuais próprios, atento o disposto pelo art.º 662.º, n.º2, al. c), in fine CPC e não se confunde com disposto pelo art.º 5.º, n.º 2, al. b) CPC.
No mesmo sentido, merecendo a nossa concordância, pode ler-se no Ac. da RL de 11/01/20248 que “(…) para que tal facto pudesse ser introduzido nos autos, com tal natureza complementar – e ressalvada qualquer circunstância superveniente, que não se verifica -, teria de o ter sido até ao encerramento da discussão em 1.ª instância, e o mesmo deveria ter sido anunciado às partes, com vista a sobre ele poderem exercer o respetivo contraditório. Não tendo tal introdução tido lugar e não tendo sido viabilizado efetivo contraditório – não se afigurando suficiente para tal efeito, a mera presença das partes em audiência de julgamento, uma vez que não ocorreu algum anúncio de que o facto poderia vir a ser utilizado – até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento em 1.ª instância, precludida ficou a possibilidade da sua consideração nestes autos, não podendo, por isso, tal factualidade ser objeto de inclusão nesta instância de recurso.
No caso, a apelante não desencadeou, oportunamente, tal ampliação fáctica, nem o mesmo foi utilizado oficiosamente pelo tribunal, pelo que está precludida, neste momento e nesta sede, a ampliação da matéria de facto com tal fundamento, o que corresponderia ao conhecimento de uma questão nova, não se destinando os recursos a criar decisões novas, mas, antes, a reapreciar questões já decididas.
Note-se que, a ampliação da matéria de facto (artigo 662º, n.º 2, al. c), in fine, do Código de Processo Civil) tem por limite a factualidade tempestivamente alegada pelas partes, não constituindo um mecanismo sucedâneo do artigo 5º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil).”
Em consequência, não poderá considerar-se como passível de inclusão no acervo factual, a matéria inovadoramente invocada pelo recorrente, improcedendo a pretensão do recorrente.
Vejamos, agora, a parte restante da impugnação da matéria de facto deduzida pelo recorrente.
Nos termos do disposto pelo art.º 662.º, n.º 1 CPC «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»
A Relação tem efectivamente poderes de reapreciação da decisão da matéria de facto decidida pela 1ª instância, impondo-se-lhe, não apenas a (re)análise dos meios de prova produzidos em 1ª instância, no que respeita à prova sujeita à livre apreciação do julgado, desde que o recorrente cumpra os ónus definidos pelo art.º 640.º CPC, mas também, e antes de mais, a consideração da matéria de facto que se encontre plenamente provada por acordo das partes nos articulados, por documentos ou por confissão reduzida a escrito nos termos do art.º 607º, nº 4 CPC, desde que relevantes para a decisão a proferir atentas todas as soluções jurídicas possíveis.
Tal atuação da Relação relativamente à matéria de facto que se encontre plenamente provada, pode ser da iniciativa do tribunal, em obediência à aplicação das regras de direito probatório material (cfr. arts. 354.º e 358.º, 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, todos do Código Civil e 574.º, nºs 2 e 3 e 587º, n.º 1 CPC) e pode ser suscitada pelo recorrente, o qual pode impugnar a decisão da matéria de facto quando os elementos fornecidos pelo processo possam determinar uma decisão diversa insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas9.
Estado em causa meios de prova subtraídos à livre apreciação do julgador, a impugnação da matéria de facto com esse fundamento não está sujeita aos ónus a que se refere o art.º 640.º CPC,
Na situação em apreço, estão em causa meios de prova submetidos à livre apreciação do julgador (documentos sem força probatória plena, prova testemunhal), pelo que aí sim, a impugnação da matéria de facto está sujeita aos ónus a que se refere o art.º 640.º CPC, importando, antes de mais, analisar se o recorrente deu cumprimento àqueles comandos.
Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que considerada erradamente julgados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exatidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respetiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
A respeito do disposto no referido art.º 640º do Código de Processo Civil, refere António Santos Abrantes Geraldes:
“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) O recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.
E, mais adiante , afirma «A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se se algumas das seguintes situações: a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (…); b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados; c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados, d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação» concluindo que a observância dos requisitos acima elencados enquanto decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Do mesmo modo, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa afirmam que “cumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objecto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões (art.º 635º)”, mais afirmando que “relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, o recorrente tem o ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder apresentar a respectiva transcrição”.
E, do mesmo modo, vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça de 29/10/2015 que do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil resulta “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…) e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…)”.
Analisadas as alegações do recorrente e as respetivas conclusões verifica-se que o mesmo deu cumprimento ao disposto pelo n.º 1, al. a) do art.º 640.º do CPC. Tendo indicado nas conclusões os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados. São eles os pontos considerados provados sob os n.ºs 17, 22, 23 a 26, 29, 31, 34, 37 e 39 e os pontos considerados não provados respeitantes aos arts. 17º, 28.º, 30.º e 49.º da petição inicial, (forma pela qual foram identificados na decisão recorrida).
Já quanto o ónus previsto pela alínea b) da mesma disposição legal não se pode considerar cumprido relativamente a todos aqueles pontos que o recorrente considera erradamente julgados, pois, como resulta do supra exposto tal só se verifica se o recorrente especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
Ora, o recorrente, com exceção do que respeita aos factos provados 17, 22, 23, 25 e 26 e ao factos não provado referente a matéria do art.º 49.º da petição inicial, não indica quais os concretos meios de prova que determinam decisão diversa quanto a cada um dos factos que impugna, limitando-se a transcrever depoimentos e a analisar documentos sem fazer referência a cada um dos factos a que respeitam, não permitindo ao tribunal estabelecer a imprescindível relação entre os meios de prova que o recorrente entende que determinam decisão diferente da tomada e os concretos pontos de factos relativamente aos quais tais meios de prova relevam.
Nestes termos, rejeita-se a impugnação da matéria de facto relativa aos factos provados sob os pontos 24, 29, 31, 34, 37 e 39 e quantos aos factos não provados alegados nos arts. 17.º, 28.º e 30.º da petição inicial.
A impugnação da matéria de facto restringe-se, pois, aos factos provados n.º 17, 22, 23, 25 e 26 e aos factos não provados do art.º 49.º da petição inicial.
Na medida em que respeitam ao mesmo facto, analisaremos em conjunto a impugnação relativa aos pontos 17 e 22, aos quais foi dada a seguinte redação:
«17. Os doentes que realizam tratamentos de hemodiálise nesta unidade, são doentes da Hospital X [artigo 10.º da CONTESTAÇÃO]»
«22. Os doentes, o licenciamento e a convenção da unidade de diálise estão na titularidade da Hospital X [artigo 80.º da CONTESTAÇÃO]»
Por sua vez na fundamentação da decisão relativa a estes dois pontos foi exarado o seguinte:
«A resposta aos artigos 10.º, 11.º e 12.º da CONTESTAÇÃO fundou-se nos depoimentos de DD e NN, em conjugação com o teor do documento de fls. 56 a 67v. e do ofício da ARSLVT de fls. 338 e ss..»
«A resposta aos artigos 80.º, 81.º e 92.º da CONTESTAÇÃO fundou-se nos depoimentos de DD, OO, JJ, PP, e NN, em conjugação com o teor do ofício da ARSLVT de fls. 338 e ss..»
O recorrente pretende que seja considerada não provada toda a matéria do ponto 17 e a parte do ponto 20 em que se afirma que os doentes estão na titularidade da Hospital X.
Para tanto invoca os depoimentos das testemunhas QQ, DD, RR, médicos e BB, enfermeiro, transcrevendo as passagens que considera pertinentes.
Ouvidos os depoimentos em causa, e analisada a restante prova produzida não vislumbramos motivo para alterar a decisão da 1.ª instância.
Na verdade, o que resulta dos depoimentos das testemunhas supra identificadas é apenas que a recorrida detinha o controlo dos processos clínicos dos doentes que efetuavam os tratamentos, não que os doentes na acessão de “clientes” a relevante e que cremos está subjacente à decisão do tribunal “a quo”, são da recorrida. Isso mesmo resulta da análise dos documentos a que o tribunal se referiu na fundamentação, nomeadamente do contrato de prestação de serviços celebrado entre a recorrida e a Hospital X (fls. 56 a 67 verso) e o ofício da ARS de fls. 388 e segs. dos quais resulta que o cliente da Hospital X era o Estado através da ARS com a qual era a Hospital X que mantinha a convenção como provado no ponto 22, sendo os doentes que realizavam os tratamentos os doentes abrangidos pela convenção. No mesmo sentido vai o facto provado em 19, do qual resulta que os tratamentos eram faturados pela Hospital X às entidades convencionadas e diretamente aos utentes quando não abrangidos pela convenção. Ou seja, os tratamentos não eram pagos pelos clientes (Estado ou particulares) diretamente à Hospital X e não à recorrida. Diferente poderia ser se os tratamentos fossem pagos à recorrida.
A circunstância de recorrida receber da Hospital X um valor correspondente a uma percentagem dos tratamentos realizados, não obsta aquela conclusão, pois, o valor dos tratamentos realizados serviria apenas como critério de determinação do preço a pagar pela Hospital X à recorrida em cumprimento do contrato entre ambas celebrado. De resto, nada nos autos autoriza sequer a conclusão de que seria a recorrida a determinar o preço dos tratamentos.
Improcede, pois, a impugnação relativa aos pontos 17 e 22 dos factos provados.
Ao ponto 23 dos factos provados foi dada a seguinte redação:
«A ré nunca pagou à Hospital X qualquer valor a título de aluguer do espaço/instalações [artigo 81.º da CONTESTAÇÃO].»
E a decisão foi fundamentada nos seguintes termos:
«A resposta aos artigos 80.º, 81.º e 92.º da CONTESTAÇÃO fundou-se nos depoimentos de DD, OO, JJ, PP, e NN, em conjugação com o teor do ofício da ARSLVT de fls. 338 e ss..»
O recorrente pretende que a matéria em causa, seja considerada não provada.
Para tanto invoca os depoimentos da testemunha DD, médico e o depoimento da testemunha EE, enfermeira, em conjugação com o contrato celebrado entre a Hospital X e recorrida (doc. de fls. 56 a 67 verso).
Ora, na identificação das passagens dos depoimentos destas testemunhas enquanto meios de prova que fundamentam a impugnação, o recorrente limita-se a afirmar que se trata dos depoimentos “atrás citados”, o que, por inviabilizar o apreciação pelo tribunal, não bastando para cumprir o ónus previsto pelo art.º 640.º, n.º 1, al. b) do CPC, como já referido a propósito de rejeição de parte da impugnação, determina que, quanto ao ponto 23, a pretensão do recorrente seja apreciada apenas com fundamento na prova documental indicada.
O documento em causa é o contrato de prestação de serviços celebrado entre a Hospital X e a recorrida.
Da análise do mesmo, nomeadamente da cláusula 5.ª, nada resulta quanto ao pagamento de qualquer valor a título de aluguer do espaço/instalações da Hospital X em que os serviços eram prestados, mas apenas que a Hospital X pagava à recorrida uma remuneração calculada em função dos tratamentos realizados, retendo, a partir de determinado número de doentes, uma percentagem por cada doente. O que tal quantia que era retida se destinava efetivamente a pagar, não resulta nem discriminado no contrato, nem de qualquer outro meio de prova produzido nos autos, nada havendo, pois, que permita sequer sustentar qualquer ilação do tribunal com base nas regras da experiência que contrarie a decisão do tribunal “a quo”.
Improcede, pois, também nesta parte a impugnação.
Nos pontos 25 e 26 da matéria de facto provada, que o recorrente impugna e que analisaremos em conjunto, foi consignado o seguinte
«25. O autor nunca esteve sujeito a qualquer registo de assiduidade [artigo 137.º da CONTESTAÇÃO],
26. O autor nunca foi sujeito a nenhum controlo de horário por parte da ré [artigo 138.º da CONTESTAÇÃO]»
A decisão foi fundamentada nos seguintes termos:
«A resposta aos artigos 137.º e 138.º da CONTESTAÇÃO fundou-se nos depoimentos de DD, OO, JJ e PP.»
Imediatamente antes de se referir aos pontos 25 e 26 da matéria de facto provada o recorrente refere que há alguns factos atestados pelas testemunhas ouvidas - de ambas as partes - que não deixam dúvidas quanto ao modo de exercício subordinado da atividade do apelante ao serviço da apelada, enquanto seu Diretor Clínico e Médico Residente, transcrevendo os depoimentos das testemunhas DD, SS, TT, enfermeira chefe, UU, alegando, crê-se que com fundamento naqueles depoimentos, que era ele próprio o responsável do serviço que tinha de garantir o seu funcionamento, designadamente dos turnos médicos.
Alega também que, considerando-se provada a existência de turnos aplicáveis ao apelante, é contraditório negar a existência de um horário.
E por fim, invoca os documentos de fls. 21 (recibo referente ao mês de Dezembro de 2021, com 13 turnos), 26 (indicação de turnos realizados), 93 verso e 94 verso (onde o recorrente considera que se exemplifica o controlo dos turnos executados pelo ora Apelante).
O que está em causa nos dois pontos da matéria de facto em causa é essencialmente o mesmo, designadamente a existência de controlo pela recorrida de controlo de assiduidade e pontualidade do recorrente.
Ora, nem dos depoimentos das testemunhas, que ouvimos, nem dos documentos a que o recorrente alude, nem de qualquer outro meio de prova constante dos autos resulta que o recorrente estivesse sujeito a tal controlo, nem o facto de o trabalho estar organizado por turnos, evidencia a existência de tal controlo.
De resto, a existência de tal controlo é manifestamente incompatível com o mais que ficou provado, designadamente:
- que a organização do acompanhamento dos tratamentos era feita pelos próprios médicos, incluindo o autor quer quanto aos dias que compareciam, quer quanto a trocas que realizavam entre si, sem nunca tal facto ser comunicado ou pedida autorização à ré;
- que eram os médicos, entre si, incluindo o autor, que se coordenavam, no sentido de assegurar os tratamentos de hemodiálise, gerindo, trocando, sem qualquer ingerência da ré, que nem o autor, nem os outros médicos, estão presentes, fisicamente, durante todo o turno de tratamento; comparecem, permanecem algum tempo e ausentam-se quando o entendem;
- que por regra, o autor comparecia às quartas-feiras à tarde e uma sexta-feira à tarde por mês, permanecia na unidade de saúde o tempo que considerava necessário e ausentava-se quando assim o entendia, nunca tendo a ré sabido o tempo efetivo do autor na unidade;
- que o autor nunca lhe comunicou ou pediu autorização para se ausentar e que o autor nunca justificou qualquer ausência/falta.
Sendo assim, não merece censura a decisão do tribunal “a quo”, improcedendo a impugnação.
Finalmente o recorrente pretende que seja dada como provada a matéria que alegou no art.º 49.º da petição inicial, nomeadamente que o autor não prestava outro trabalho que não o de Diretor Clínico do Serviço de Hemodiálise para a recorrida, além dos turnos inerentes, não prestando qualquer trabalho para o referido hospital.
A decisão do tribunal “a quo” de considerar tal matéria como não provada mostra-se fundamentada nos seguintes termos:
«Relativamente à matéria do artigo 49.º da PETIÇÃO INICIAL (parte final), dos depoimentos de diversas testemunhas resultou que o autor exercia diversas outras atividades no Hospital X para além da unidade de hemodiálise (na qual, aliás, apenas estaria fisicamente em permanência nos dias dos seus turnos e não, como regra, nos demais).»
No referido art.º 49.º da petição inicial o recorrente havia alegado com vista a convencer da natureza laboral do seu vínculo com a recorrida que a Hospital X lhe continuou a pagar como trabalhador por conta de outrem, apesar de não lhe prestar qualquer trabalho, não exercendo outra atividade que não a de Diretor Clínico do serviço de hemodiálise para a recorrida.
Não concordamos com o recorrente.
Antes de mais, importa salientar que a resposta negativa ao art.º 49.º da petição inicial, na parte em que refere que o autor não prestava qualquer outro trabalho para a Hospital X não encerra, nem pressupõe a qualificação de qualquer vínculo entre o recorrente e a Hospital X nem significa que se possa ou deva, sem mais, considerar provado o contrário, ou seja, que o recorrente prestava trabalho, como trabalhador dependente à Hospital X.
Por outro lado, o contrato de prestação de serviços a que o recorrente se refere nas suas alegações, como demonstrativo de que toda a sua relação com a Hospital X após a invocada “transmissão” decorria no âmbito da sua atividade particular, e consequentemente de que não prestava qualquer outro trabalho, apenas foi celebrado em 1 de Março de 2005, cerca de três anos após a invocada “transmissão”. Tal contrato não foi celebrado com o recorrente, mas com a sociedade unipessoal que o mesmo detinha, tendo por objeto a prestação pela Hospital X à referida sociedade de serviços de administrativos, de faturação e cobrança de atos médicos praticados no Hospital X1 e não a prestação de serviços pelo recorrente à Hospital X desconhecendo-se, pois, qual o efetivo enquadramento da atividade do recorrente nesta parte, ou sequer se esgotava toda a atividade profissional que exercia direta no âmbito da Hospital X.
Ficou também provado que o contrato de trabalho do recorrente com o Hospital X nunca cessou e que desde novembro de 2002 o autor continua a receber da Hospital X a retribuição base mensal de €1.472,81 e, ao contrário do pretendido pelo recorrente, não se demonstrou que a Hospital X cobrasse esta quantia à recorrida.
Provou-se ainda que o recorrente prestava, simultaneamente com a sua atividade na recorrida, serviço médico noutras unidades da Hospital X e noutras entidades terceiras, que no exercício da sua atividade na recorrida, o recorrente não estava presente, fisicamente, durante todo o turno de tratamento, permanecendo algum tempo e ausentando-se quando o entendia, e que por regra, quando se ausentava ia exercer as funções para a Hospital X que se situava no mesmo edifício. Provou-se também que ao longo destes anos, o autor manteve sempre uma ligação à Hospital X tendo feito parte do serviço de cuidados intensivos e dando consultas, que ainda hoje dá.
Isso mesmo foi confirmado pelo depoimento da testemunha DD, do qual resulta que para além da atividade que exerciam na ré, e além da medicina privada que exerciam nas instalações da Hospital X os médicos, incluindo o autor, viam doente da especialidade na Hospital X e viam doentes de outras especialidades na Hospital X.
Por fim, ainda relativamente à matéria do art.º 49.º da petição inicial, o tribunal “a quo” não considerou provado que o recorrente não prestava outro trabalho que não o de Diretor Clínico do Serviço de Hemodiálise para a recorrida e não se vislumbra qualquer motivo para alterar esta decisão, já que ficou provado que na ré, além de Diretor Clínico o recorrente assumia também, por regras, às quartas-feiras à tarde e uma sexta-feira à tarde por mês, a atividade de medico residente, acompanhando os tratamentos de hemodiálise realizados pelo enfermeiros.
Nesta medida, a decisão relativa à matéria de facto alegada no art.º 49.º da petição inicial, não só se justifica como se impunha sob pena de contradição com a matéria de facto provada.
Improcede, assim, na íntegra a impugnação da matéria de facto.
*
Importa, contudo, proceder a uma alteração da matéria de facto, ao abrigo do disposto pelo art.º 662.º, nº 1 do Código de Processo Civil, atento ainda o disposto pelo art.º 607.º, n.º 4 do mesmo Código, impondo-se aditar um facto que, sendo relevante, se encontra provado por acordo das partes, sustentado em documento não impugnado.
Na verdade, na contestação (art.º 24.º) a ré alegou que “(…) o Autor bem sabe que, e assinou, pelo menos duas vezes, contrato de prestação de serviços com a Ré, através da sociedade AA Unipessoal, Lda., hoje AA Serviços Médicos, Lda.. (doc. 12 junto com a petição e doc.4)”.
Os documentos nos quais a ré suportou a alegação são dois contratos intitulados de “prestação de serviço”.
A assinatura e teor do primeiro consta do ponto 5. dos factos provados, não tendo ido feita qualquer menção ao segundo.
Trata-se de um contrato igualmente denominado de “prestação de serviços, desta feita outorgado entre a ré e a sociedade AA Unipessoal, Lda., assinado pelo autor na qualidade de gerente.
O autor não impugnou o alegado, quanto à assinatura dos documentos que suportam a alegação, nem quanto ao teor dos mesmos (tendo, de resto, o primeiro sido junto com a petição inicial), pelo que está demonstrado por acordo das partes (art.º 574.º, n.º 2 Código de Processo Civil e 376.º do Código Civil), não apenas a celebração do primeiro contrato, mas também a do segundo.
Determina-se, pois, o aditamento à matéria de facto provada do seguinte facto:
21-A. Com data de 28/07/2021 e efeitos a partir de 01/04/2021, a ré e a sociedade AA Unipessoal, Lda. , representada pelo autor na qualidade de gerente assinaram documento que intitularam de “contrato de prestação de serviços”, com o teor do doc. 4 da contestação cujo teor se dá como reproduzidos, pelo qual esta assumiu perante aquela a prestação de serviços de Direção Clínica a executar por profissional afeto à primeira.
*
2 - transmissão do estabelecimento/unidade económica
O tribunal “a quo” considerou ter ocorrido a transmissão do estabelecimento, designadamente da unidade de hemodiálise, da Hospital X para a recorrida, por via do contrato entre ambas celebrado, em Setembro de 2002 e que denominaram de prestação de serviços. Apesar disso, não considerou que, por efeito de tal transmissão, se tenha verificado também a transmissão do contrato de trabalho que, à data, vinculava o recorrente à Hospital X para a recorrida.
A qualificação do vínculo existente entre o recorrente e a recorrida como contrato de trabalho, constitui antecedente lógico e imprescindível da pretensão do recorrente de ver reconhecido que foi ilicitamente despedido pela recorrida.
O recorrente considerou que, sendo trabalhador dependente da Hospital X por efeito da transmissão do estabelecimento e continuando a exercer a mesma atividade, daí em diante para a recorrida, se manteve a natureza do vínculo, pelo que, ainda que se trate de questão apenas suscitada na ampliação do objeto do recurso, afigura-se-nos relevante começar por decidir se, como pretende a recorrida, a transmissão do estabelecimento não se verificou, já que na procedência desta posição, a tese do recorrente quanto à manutenção da natureza do contrato como contrato de trabalho improcede.
Vejamos, pois!
Tal como afirmado na sentença recorrida, considerando a data em que foi celebrado e em que produziu efeitos o contrato celebrado entre a Hospital X e a recorrida, e considerando ainda que nenhuma alteração relevante se surpreende na matéria de facto provada quanto ao modo de execução de tal contrato, a questão terá de ser apreciada à luz do regime constante do Decreto-Lei n.º 49408, de 24/11 de 1969 (doravante LCT), o vigente à data do produção de feitos daquele contrato, e consequentemente da eventual transmissão do estabelecimento e do contrato de trabalho, ou seja, 16/09/2002. É o que resulta, de resto, do art.º 8.º, n.º 1 da Lei n.º 99/203 de 27/08 que aprovou o Código do Trabalho de 2003 e do art.º 7.º, n.º 1 da Lei 7/2009 de 12/02 que aprovou o Código do Trabalho de 2009.
Sob a epígrafe “transmissão do estabelecimento”, dispunha o artigo 37.º, n.º 1 da LCT, que «A posição que dos contratos de trabalho decorre para a entidade patronal transmite-se ao adquirente, por qualquer título, do estabelecimento onde os trabalhadores exerçam a sua actividade, salvo se, antes da transmissão, o contrato de trabalho houver deixado de vigorar nos termos legais, ou se tiver havido acordo entre o transmitente e o adquirente, no sentido de os trabalhadores continuarem ao serviço daquele noutro estabelecimento sem prejuízo do disposto no artigo 24.º».
O no n.º 4 o mesmo preceito estatuía que «O disposto no presente artigo é aplicável, com as necessárias adaptações, a quaisquer actos ou factos que envolvam a transmissão da exploração do estabelecimento».
Não fornecendo a lei qualquer definição do que deva, em concreto, considerar-se subsumível à noção de transmissão do estabelecimento ou de transmissão da exploração do estabelecimento, subjacente ao art.º 37.º da LCT, importa considerar, tal como o considerou, e bem, a sentença recorrida, que se consolidou, entre nós, a ideia de que que, para efeitos da citada disposição legal, aquela expressão tem um sentido amplo, abrangendo a transmissão de "partes" do estabelecimento.
É o que decorre da regulamentação comunitária, concretamente a Diretiva nº 77/187/CEE do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1977 - que veio a ser alterada pela Diretiva 98/50/CE, de 29 de Junho, e, posteriormente, revogada pela Diretiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de Março de 2001.
Na verdade, ainda que aquela Diretiva não tenha chegado a ser transposta para o direito nacional, pacificou-se o entendimento segundo o qual, mesmo no âmbito das relações entre particulares, a interpretação do direito interno se deve fazer à luz de diretivas não transpostas (efeito horizontal), desde que elas contenham disposições incondicionais e precisas, como acontece no caso em referência10.
Releva ainda que do preâmbulo da Diretiva 2001/23/CE do Conselho, supra identificada, resulta que o conceito jurídico de transferência consagrado no seu artigo 1º não "alterou o âmbito de aplicação da Diretiva 77/187/CEE, tal como era interpretado pelo Tribunal de Justiça".
Nessa medida, interessa ter presente que na alínea b) do mencionado art.º 1.º se esclarece que há transferência (para outra entidade patronal) de uma empresa, estabelecimento ou parte de empresa ou estabelecimento quando o objeto da transmissão seja "qualquer entidade económica que mantenha a sua identidade, entendida esta como um conjunto de meios organizados, com o objectivo de prosseguir uma actividade económica, seja ela essencial ou acessória".
Assim, para os efeitos do citado art.º 37.º, não interessa qualquer transmissão parcial do estabelecimento, mas apenas aquela que tenha por objeto uma entidade económica organizada de modo estável, ou seja, deve haver um conjunto de elementos que permitam a prossecução, de modo estável, de todas ou de parte das actividades da empresa cedente.
Nas palavras de Júlio Gomes11 «o que importa ter em conta é que — desde logo à luz da aplicação da directiva — o art.º 37.º da LCT deve aplicar-se, não só quando se transmite um estabelecimento, mas também nas hipóteses em que se opera a transmissão de uma parte de estabelecimento, devendo entender-se, por tal, qualquer unidade mínima de produção capaz de operar com alguma autonomia».
E a propósito do que deve considerar-se uma parte de empresa ou estabelecimento para que constitua uma entidade económica escreve o mesmo autor12«(…) parece que existirá uma entidade económica quando a parte da empresa ou estabelecimento represente um conjunto de meios organizados, com suficiente autonomia para poder funcionar independentemente no mercado.»
Assim, mais do que o concreto negócio celebrado entre o transmitente e o transmissário, o que importa é o concreto objeto da transmissão.
Nas palavras de Monteiro Fernandes13, «(…) a caracterização do próprio conceito jurídico de transmissão depende menos do modo porque se processa o “trânsito jurídico” entre transmitente e adquirente - ou seja, dos perfis próprios do mecanismo translativo - do que da determinação do seu objecto, isto é, daquilo que se transmite».
Por conseguinte, ainda que formalmente seja celebrado um daqueles contratos que tipicamente vêm sendo reconduzidos à figura da transmissão do estabelecimento continua a ser indispensável à produção dos efeitos da transmissão no âmbito das relações laborais, previstos pelo art.º 37.º da LCT, que se verifique a transferência de uma “unidade económica” que mantenha a sua identidade, entendida como conjunto organizado de meios capazes de prosseguir por si, isto é, de foram autossuficiente, uma atividade económica.
É, por isso, imprescindível que dita entidade económica continue a ser a mesma, apesar das alterações quanto ao seu titular, sendo de relevar para tanto se a transmissão engloba os seus bens imóveis ou equipamentos, mas também bens incorpóreos, tais como a transmissão do know-how, a manutenção da maioria ou do essencial do pessoal, a sucessão da atividade sem interrupção ou a duração da eventual interrupção, a manutenção da clientela e o grau de semelhança entre a atividade desenvolvida antes e após a transferência, indícios cuja importância pode variar em função do sector de atividade, do tipo de empresa ou estabelecimento, da sua forma de organização e dos métodos de gestão, mas que devem ser apreciados globalmente, não sendo, em princípio, decisivo qualquer um deles, por si só14.
No caso dos autos, o tribunal “a quo” concluiu ter existido uma transmissão parcial da exploração do estabelecimento (impropriamente ali designada como transmissão da cessão da exploração do estabelecimento).
Adiantamos, desde já, que não subscrevemos tal entendimento.
Está em causa saber se por efeito do contrato que as partes denominaram de prestação de serviços, celebrado pela Hospital X e pela recorrida, a “unidade” de hemodiálise da Hospital X se transmitiu para a recorrida de tal forma que esta adquiriu a posição de empregadora do recorrente, que ali desempenhava a sua atividade como diretor clínico, além das demais funções médicas que exercia na Hospital X.
Ficou provado que em 19/09/2002 foi outorgado pela ré e pela Hospital X acordo escrito denominado “Contrato de Prestação de Serviços”, com o teor do documento de fls. 56v. a 67v., que nos dispensamos nesta sede de reproduzir integralmente, pelo qual a recorrida se obrigou, pelo período de 10 anos a contar de 16/09/2002, mediante remuneração, a prestar serviços na unidade de hemodiálise, que integra a estrutura hospitalar da Hospital X relativos a todos os tratamentos de hemodiálise daquela unidade, a tratamentos de hemodiálise no Hospital X e sempre que solicitado a utentes internados ou em urgência, a apoio administrativo necessário para o funcionamento da Unidade de Hemodiálise e serviços de manutenção e substituição dos equipamentos, fornecimento, instalação, manutenção e substituição dos equipamentos da unidade de hemodiálise e todos os demais atos e serviços, nos termos do contrato, práticas internacionais e regulamentos, que sejam necessários ao correto funcionamento da unidade.
Consta do considerando A do contrato que a dita unidade de hemodiálise é autonomizada relativamente aos restantes serviços, mas trata-se de afirmação que carece de ser devidamente interpretada. Na verdade, a autonomia que ali se refere é apenas das instalações onde se situa a unidade, como se percebe pela referência à planta anexa, constante do mesmo considerando, não podendo, pois, extrair-se daí qualquer contributo determinante com vista à caracterização da unidade de hemodiálise como uma unidade económica.
Com relevo assinalável importa considerar que, atenta a natureza da atividade em causa, assume particular importância a titularidade das instalações.
Não se ignora que, por via de regra, a transmissão da exploração não envolve a transmissão da titularidade das instalações. Mas, no caso concreto, atenta a natureza da atividade, o que releva é saber qual a relevância da titularidade das instalações enquanto indício definidor da unidade económica.
Na verdade, está em causa uma atividade que, por se desenvolver no domínio da prestação de cuidados de saúde é extremamente regulada. Veja-se o que resulta dos art.º 48.º e segs. do DL 505/99, quanto a meio físico, instalações e normas de construção. Veja-se ainda o que resulta do art.º 33.º da Portaria 347/2013 de 28/11 que regulamenta o DL 279/2009 de 06/10, quanto a normas genéricas de construção, segurança e privacidade, exigindo especificidades como os acabamentos utilizados e sistemas de purificação de água próprios, que, permanentemente, assegurem a sua qualidade nos termos exigidos no Manual de Boas Práticas de Diálise Crónica, entre outras.
O cumprimento de tais requisitos em matéria de instalações, é condição de concessão e manutenção da licença de funcionamento, nos termos dos citados diplomas e o não cumprimento dos parâmetros de controlo de qualidade faz incorrer o titular da licença em responsabilidade contraordenacional nos termos do art.º 54.º do DL 505/99 de 22/11, o mesmo acontecendo nos termos do disposto pelo art.º 16.º do DL 279/2009, em conjugação com a Portaria 347/2013 de 28/11.
Ora, apesar de a Hospital X ter entregue à recorrida as instalações afetas à unidade de hemodiálise com o processo de licenciamento devidamente instruído, nos termos da legislação em vigor, em bom estado de conservação e operacionalidade (cláusula 8.1., alíneas c) e e) do contrato), não deixou de ser a titular de tal licença e como tal de ser a responsável pelo cumprimento dos requisitos da sua manutenção e pelos requisitos de funcionamento da unidade.
Salientou-se na sentença que a recorrida se obrigou a efetuar, sob a sua responsabilidade e à sua custa, na Unidade de Hemodiálise, as adaptações operacionais e tecnológicas e a aquisição dos equipamentos (cláusula 2.3.), mas ignorou-se que era da responsabilidade da Hospital X a realização das alterações estruturais que viessem a ser impostas no âmbito do processo de licenciamento (cláusula 8.1, alínea d) do contrato).
Significa isto do nosso ponto de vista que, apesar do contrato celebrado a recorrida não podia, nem pode, exercer a atividade de prestação de tratamentos de hemodiálise de forma autónoma e independente da Hospital X já que está em causa uma atividade sujeita a licenciamento obrigatório, nos termos do art.º 10.º do DL 505/99 de 22/11 e do art.º 2.º do DL 279/2009 de 06/10 que revogou aquele, e que a titularidade da licença da unidade de hemodiálise em causa, não foi objeto do contrato entre ambas celebrado.
Acresce, também com particular relevância do nosso ponto de vista, que a Hospital X é a detentora da convenção para a prestação de cuidados de saúde na área da diálise, celebrada com a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I.P (ARS-LVT). É a Hospital X que trata de todo o processo de renovação/actualização da Convenção para a prestação de cuidados de saúde na área da diálise com a ARS-LVT, nomeadamente fichas técnicas e demais documentação, o que reforça a ausência de autossuficiência da atividade prestada pela recorrida.
Tal matéria revela também que não houve uma efetiva transferência da clientela, pois o cliente da Hospital X era o Estado através da ARS (com a qual era a Hospital X que mantinha a convenção), sendo os doentes que realizavam os tratamentos, os abrangidos pela convenção.
Por outro lado, pelos serviços prestados a recorrida recebia da Hospital X uma remuneração calculada em função dos tratamentos realizados, retendo a Hospital X a partir de determinado número de doentes, uma percentagem por cada doente, do que resulta que a recorrida não recebia a totalidade do preço dos tratamentos, mas apenas uma parte.
De facto, resulta do contrato (cláusula 6.1.), que os tratamentos eram faturados diretamente pela Hospital X às entidades com as quais foram celebradas as respetivas convenções e diretamente aos utentes quando estes não estejam abrangidos por qualquer convenção.
No que respeita aos equipamentos resulta do contrato que os mesmos foram fornecidos pela recorrida que assumiu a obrigação de fornecer, instalar, manter e substituir, por sua conta, todo o equipamento da unidade de hemodiálise, tendo a Hospital X a opção de compra do mesmo no final do contrato, assim como assumiu a obrigação de proceder à manutenção, reparação e substituição de todos os equipamentos relacionados com os tratamentos.
Finalmente, apesar de o contrato conter uma cláusula relativa ao pessoal (cláusula 11ª), nada refere quanto à manutenção do pessoal até então afeto à unidade de hemodiálise, prevendo, ao invés a responsabilidade da recorrida pela contratação, pagamentos e demais encargos do pessoal necessário à execução dos serviços e afasta a existência de vínculo laboral entre a Hospital X e o pessoal utilizado pela ré.
Acresce que, nada de concreto se apurou quanto à situação dos trabalhadores que prestavam a sua atividade na unidade de hemodiálise, antes e depois da produção de efeitos do contrato celebrado entre a Hospital X e a recorrida, que permita concluir pela manutenção da maioria ou do essencial do pessoal da Hospital X ao serviço da recorrida.
Apenas se provou que o autor, exercendo, além do mais, as funções de diretor clínico de nefrologia (hemodiálise) desde 1999, continuou a exercer aquelas funções após a celebração do contrato de prestação de serviços entre a Hospital X e a recorrida. Contudo, ainda que a função do diretor clínico seja essencial, porque obrigatória, ao funcionamento da unidade de hemodiálise, e que o autor levasse consigo o know how adquirido nos três anos anteriores como diretor clínico, por si só, para o efeito aqui em causa, não basta.
Com efeito, ainda que se possa entrever dos depoimentos das testemunhas, que outros médicos e enfermeiros que prestavam a sua atividade na unidade de hemodiálise para a Hospital X terão continuado a prestá-la após a produção de efeitos do referido contrato, nada se apurou (e nada foi alegado) quanto ao número de trabalhadores ou às respetivas funções antes e depois, que permita afirmar que se manteve a maioria ou o essencial dos trabalhadores.
De acordo com a matéria de facto provada sabe-se apenas que o autor, o Dr. DD, o Dr. LL e o Dr. MM, asseguravam entre eles o acompanhamento médico dos turnos dos doentes, sendo que, todos eles prestavam, simultaneamente, serviço médico noutras unidades da Hospital X e noutras entidades terceiras, mas isso reporta-se ao momento em que a recorrida passou a prestar serviços na unidade de diálise da Hospital X e não ao momento anterior.
Em suma, apesar do contrato de prestação de serviços celebrado entre a Hospital X e a recorrida relativo aos tratamentos de hemodiálise, o que se verifica é que a prestação de serviços de tratamentos de hemodiálise contratada pela Hospital X à recorrida, não pode, no caso concreto, ser caraterizada como uma unidade económica para os efeitos previstos pelo art.º 37.º da LCT.
De facto, uma vez que, não tendo ocorrido, por qualquer forma, a transmissão das instalações, a transmissão da licença de abertura e funcionamento, a transmissão dos equipamentos, a transmissão da clientela, mantendo-se a Hospital X como titular da convenção com a ARS, e a manutenção da maioria ou do essencial do pessoal e consequentemente, a prestação de serviços de tratamento de hemodiálise contratada não representa um conjunto de meios organizados, com suficiente autonomia, nem pode funcionar independentemente no mercado.
Conclui-se, pois, pela inexistência da transmissão do estabelecimento invocada pelo recorrente e, em consequência, pela procedência da pretensão da recorrida.
Nesta medida, não se verificando as condições de aplicabilidade do art.º 37.º da LCT, fica prejudicada a apreciação da questão relativa à transmissão do contrato de trabalho que vinculava o autor à Hospital X para a recorrida (3.ª questão enunciada na delimitação do objeto do recurso).
Importa, contudo que o tribunal se pronuncie sobre a natureza do vínculo estabelecido com a recorrida, na medida em que o recorrente alegou que apesar do contrato que celebrou com a recorrida, formalmente denominado de prestação de serviços, se mantiveram todas as características de um contrato de trabalho com aquela (4.ª questão enunciada na delimitação do objeto do recurso).
*
4 - natureza do vínculo estabelecido com a recorrida
Ficou provado que em 16/09/2002 foi outorgado pela recorrida (então denominada W, S.A.), e a (então denominada) sociedade AA Unipessoal, Lda. (atualmente denominada AA Serviços Médicos, Lda.) representada pelo seu gerente, o recorrente, o acordo escrito denominado “Contrato de Prestação de Serviços".
De acordo com a cláusula Segunda do referido “Contrato de Prestação de Serviços”, «O SEGUNDO OUTORGANTE é MÉDICO NEFROLOGISTA, obrigando-se a envidar os seus melhores esforços e aplicar os seus conhecimentos profissionais, sem prejuízo da sua autonomia técnica, na prestação de serviços de DIRECTOR CLÍNICO».
De acordo com a cláusula Quarta do referido Contrato de Prestação de Serviços, «Pela prestação de serviços objecto do presente contrato, a PRIMEIRA OUTORGANTE pagará ao SEGUNDO OUTORGANTE, a título de avença, a quantia de Euros 3.242,19 mensais. A prestação de serviços como “Médico Residente” pelo SEGUNDO OUTORGANTE, implica o pagamento pela PRIMEIRA OUTORGANTE da quantia de Euros 124,70 por turno de serviço efetivamente prestado, independentemente destes serem prestados em dias úteis, feriados ou fins-de-semana».
A avença supramencionada, que desde junho de 2018 ascendia ao valor mensal de €3.098,00, era paga pela ré contra a emissão de faturas pela sociedade então denominada AA Unipessoal, Lda., atualmente denominada AA Serviços Médicos, Lda., da qual o autor é gerente.
Tal contrato, substituído por outro, igualmente denominado de prestação de serviços, com efeitos a partir de 01/04/2021, foi sendo executado sem alterações que resultem da matéria de facto provada, tendo até que, em 30/11/2021, a ré por carta remetida à sociedade AA Unipessoal, Lda., comunicou a respetiva cessação com efeitos a 31 de Dezembro de 2021 (...).
Na data em que foi celebrado o primeiro contrato (16/09/2002) e em que se iniciou o vínculo entre o recorrente e a recorrida, vigorava a LCT, a aplicável, atento o disposto pelo art.º 8.º, n.º 1 da Lei 99/2003 de 27/08 que aprovou o Código de Trabalho (doravante CT de 2003) e pelo art.º 7.º, n.º 1 da Lei n.º 7/2009 de 12/02 que aprovou o Código de Trabalho de 2009 (doravante CT de 2009).
Tendo o relacionamento existente entre as partes perdurado até 31/12/2021, ou seja por período em que estiveram em vigor, no que respeita à qualificação jurídica da relação contratual, presunções de contrato de trabalho (cfr. art.º 12.º do CT de 2003 e do CT de 2009, nas suas diferentes versões), com configurações diversas, cuja aplicação tem pressupostos e consequências diferentes, incluindo quanto ao ónus da prova, importa, esclarecer se alguma delas é aplicável.
Ora, apesar de algumas hesitações e dúvidas que foram enunciadas por ilustres doutrinadores, relativamente à questão da aplicação no tempo das presunções do art.º 12º dos Códigos do Trabalho15, o Supremo Tribunal de Justiça, tem vindo a ser perentório e unânime na afirmação de que à qualificação jurídica de uma relação como de trabalho se aplica a lei vigente na data da sua constituição, se não se demonstrar que daí em diante houve alterações significativas dos seus elementos16.
Por isso, como foi considerado na sentença recorrida, se conclui pela inaplicabilidade de qualquer das presunções com vista à qualificação da relação estabelecida entre o recorrente e a recorrida, reiterando-se que da matéria de facto que se considerou provada não resulta que tenha ocorrido qualquer modificação relevante posterior à constituição do vínculo.
Assim, dir-se-á que nos termos do art.º 1152º do Código Civil e do art.º 1º da LCT, contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade (intelectual ou manual) a outra ou outras pessoas, sob a autoridade e direção destas.
A relação jurídica laboral caracteriza-se essencialmente, pela existência de subordinação jurídica, a qual se reconduz à possibilidade de determinação da atividade do trabalhador, mediante ordens, diretivas e instruções e ao dever de obediência deste no que concerne à execução e disciplina da prestação de trabalho fixadas pelo empregador, titular do poder diretivo e disciplinador dessa prestação.
Tal posição de sujeição que se assume como individualizadora da relação jurídico-laboral, mostra-se ausente no contrato de prestação de serviços, a que alude o art.º 1154º do Código Civil, como “aquele pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição”.
O que distingue verdadeiramente o contrato de trabalho é o estado de sujeição do trabalhador relativamente ao empregador, consubstanciado na possibilidade de aquele, a cada momento, poder ver ser concretizada por este a sua prestação em determinado sentido17.
Trata-se da possibilidade de o credor do trabalho determinar o modo, o tempo e o lugar da prestação de trabalho que é, portanto, heterodeterminada (pelo empregador), contrapondo-se ao trabalho autodeterminado em que, em princípio, cabe apenas ao próprio trabalhador a definição do modo, tempo e lugar da prestação.
Mas, mesmo no trabalho heterodeterminado o grau de dependência do prestador do trabalho da autoridade e direção do empregador pode ser maior ou menor, sobretudo no que se refere ao modo da prestação, diminuindo, sensivelmente à medida que aumenta a especificidade técnica exigida para o desempenho da atividade. Por isso, o contrato de trabalho não é incompatível com a salvaguarda da autonomia técnica do trabalhador, sendo possível o desempenho de funções de elevada craveira técnica e intelectual em regime de subordinação jurídica.
Exige-se ainda como elemento caracterizador do contrato de trabalho a subordinação económica do trabalhador à entidade patronal. A obrigação de pagar a remuneração enquanto correspetivo da prestação de trabalho, é de resto, a principal obrigação que resulta para o empregador da celebração do contrato de trabalho, e a cujo cumprimento está vinculada independentemente do aproveitamento que faça da disponibilidade do trabalhador, na qual se esgota a prestação a que este se obriga em virtude o contrato de trabalho (obrigação de meios). O valor retributivo será regular e periódico, ainda que seja a remuneração mínima mensal garantida, sendo certo que de acordo com os arts. 83º e 85.º, n.º 3 da LCT não é possível uma retribuição totalmente variável18.
Reconhecendo-se a dificuldade de, em concreto, traçar uma fronteira completamente definida entre os dois tipos de contrato, os tribunais têm optado pelo recurso à verificação, em cada caso, de um conjunto de indícios da existência ou inexistência de subordinação jurídica, particularmente, nas situações, como as dos autos, em que as partes divergem quanto ao sentido das declarações de vontade na celebração do contrato.
Os indícios normalmente apontados no sentido da existência de subordinação são o de o lugar do trabalho pertencer ao empregador ou ser por ele determinado, o horário de trabalho ser o definido pelo empregador, a existência de poder disciplinar, a organização do trabalho depender estritamente da vontade o empregador, serem os instrumentos de trabalho pertencentes ao empregador, a existência de outros trabalhadores subordinados no exercício das mesma atividade, a opção pela modalidade de retribuição certa, o aumento periódico da retribuição, o pagamento de subsídios de férias e de Natal, a exclusividade da atividade laboral por conta do empregador, a sindicalização e a observância do regime fiscal e de segurança social próprios do trabalho por conta de outrem.
Como todos os contratos bilaterais quer o contrato de trabalho, quer o contrato de prestação de serviços pressupõem a convergência das declarações de vontade das partes neles intervenientes e tratando-se de negócios jurídicos não formais, isto é, que não estão sujeitos à forma escrita, aquelas declarações de vontade, não sendo reduzidas a escrito hão-de valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele e se o declaratário conhecer a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida (art.º 236º, nº 1 e 2 do Código Civil).
A qualificação contrato estabelecido entre as partes, dependerá, assim, da valoração das declarações das partes na celebração do dito contrato que denominaram de prestação de serviços e do modo como tal contrato foi executado, ao longo do tempo, em função dos indícios de subordinação jurídica do recorrente à recorrida, os quais deverão ser avaliados não autónoma ou individualmente de forma isolada ou parcelar, mas na sua globalidade e sempre por referência ao caso concreto.
Acresce que, quando o contrato tiver revestido forma solene, como sucede no caso dos autos em que o contrato foi reduzido a escrito, o “nomen júris” que as partes lhe deram não sendo decisivo, não pode ser menosprezado e, muito menos, o teor das respetivas cláusulas. Mas, o que realmente releva, para esse efeito, não é apenas a designação escolhida pelas partes nem os termos em que foi redigido, mas também os termos em que o mesmo foi executado.
Importa finalmente considerar que, na ausência de qualquer presunção aplicável, é ao trabalhador que invoca a existência de um contrato de trabalho que compete o ónus de alegar e provar os elementos que o integram, na medida em que são constitutivos do seu direito, de acordo com o estatuído pelo art.º 342º, nº 1 do Código Civil.
Revertendo estas considerações para o caso dos autos, importa antes de mais referir que a dúvida quanto à qualificação do vínculo, a existir, foi exponenciada pelas partes que celebraram um contrato que denominaram de prestação de serviços, mas no qual, apesar de ser evidente que a vontade foi estabelecer um vínculo entre o recorrente e a recorrida, dadas as inúmeras referências ao segundo outorgante como pessoa singular e médico nefrologista, fizeram constar como outorgantes a recorrida e a sociedade unipessoal da qual este é gerente.
A tal opção não terá sido alheio o tratamento fiscal dado à remuneração recebida pelo recorrente pela atividade contratada, que as partes denominaram de avença, que, tal como ficou provado, era paga pela recorrida contra a emissão de faturas pela dita sociedade, o que se manteve desde 2002 até à cessação do contrato.
De resto, aquela vontade das partes foi reiterada em Julho de 2001 (cerca de 5 meses antes da cessação do contrato), quando foi celebrado novo contrato escrito, que igualmente denominaram de contrato de prestação de serviços, e que igualmente foi outorgado pela sociedade da qual o recorrente é gerente e não pelo recorrente em nome individual, prevendo-se agora a possibilidade de a dita sociedade indicar qualquer profissional para a execução do contrato.
No primeiro contrato ficou a constar que:
- o recorrente é autónomo, técnica, clínica e terapeuticamente, relativamente ao modo como o seu serviço é prestado, não estando, por isso, sujeito a qualquer poder de direção por parte na recorrida (considerando c) do contrato).
E do segundo contrato ficou a constar, além do mais, que:
- A PRIMEIRA e SEGUNDA CONTRAENTES reconhecem que da celebração do presente Contrato não resulta a assunção, pela PRIMEIRA, de qualquer vínculo de natureza jurídico-laboral, devendo os serviços ora acordados ser executados pela SEGUNDA CONTRAENTE com total autonomia e independência, em conformidade com os meios e recursos ao dispor em cada momento (Considerando F.);
- sem sujeição à autoridade e direção da PRIMEIRA CONTRAENTE, a SEGUNDA assume perante a PRIMEIRA, com a necessária autonomia e na medida da sua arte, conhecimentos e perícia, a prestação de serviços de Direção Clínica (cláusula primeira 1.);
- o profissional de saúde afeto pela SEGUNDA CONTRAENTE à execução do presente Contrato executa os serviços acordados com total independência técnica e jurídica, não participando da estrutura organizativa e hierárquica da PRIMEIRA CONTRAENTE (cláusula primeira 5.).
Não foi invocado, muito menos demonstrado que o recorrente não tivesse percebido o exato alcance daquelas cláusulas contratuais, que aceitou, sendo certo que tem formação superior e larga experiência profissional no sector. Também não foi invocado, nem demostrado, que o recorrente tivesse qualquer obstáculo ao tratamento fiscal da quantia que recebia mensalmente da recorrida, imputando-a à faturação das “suas” sociedades, durante cerca de 20 anos.
Por isso, não podem subsistir dúvidas de que a vontade declara e real das partes foi que a atividade do recorrente enquanto diretor clínico da unidade de hemodiálise “explorada” pela recorrida, decorresse sujeita ao regime da prestação de serviços e não ao regime do trabalho subordinado.
De resto, implicando a atividade contratada a salvaguarda absoluta da autonomia técnica do trabalhador, característica das tradicionalmente chamadas “profissões liberais” (...) importa considerar que, como refere Monteiro Fernandes citado no Ac. do STJ de 12/01/202319 «Tendo em consideração a natureza de tais profissões, deve-se presumir que os negócios tendo por objeto atividades próprias delas são contratos de prestação de serviços (...).»
Mas também do ponto de vista da sua execução a relação existente entre o recorrente e a recorrida não se caracterizou como uma relação de trabalho subordinado.
Efetivamente, ficou provado que a remuneração da atividade prestada pelo recorrente era paga 12 meses por ano, quer o autor estivesse ou não presente, em virtude de o mesmo ser o responsável técnico pela unidade de saúde.
O recorrente nunca esteve sujeito a qualquer registo de assiduidade e nunca foi sujeito a nenhum controlo de horário por parte da ré.
O autor, para além de exercer a atividade de diretor clínico, assumia também, por regra às quartas-feiras à tarde e uma sexta-feira à tarde por mês, a atividade de médico residente, acompanhando os tratamentos de hemodiálise realizados pelos enfermeiros, mas a organização do acompanhamento dos tratamentos era feita pelos próprios médicos, incluindo o recorrente, quer quanto aos dias que compareciam, quer quanto a trocas que realizavam entre si, sem nunca tal facto ser comunicado ou pedida autorização à ré.
Também eram os médicos, entre si, incluindo o recorrente, que se coordenavam, no sentido de assegurar os tratamentos de hemodiálise, gerindo, trocando, sem qualquer ingerência da ré. Eram os médicos que se organizavam entre si, de forma a que fosse assegurado o acompanhamento do tratamento dos doentes.
O médicos que acompanhavam os turnos dos doentes prestavam, simultaneamente, serviço médico noutras unidades da Hospital X e noutras entidades terceiras e nem o recorrente, nem os outros médicos, estão presentes, fisicamente, durante todo o turno de tratamento; comparecem, permanecem algum tempo e ausentam-se quando o entendem, ainda que ficassem contactáveis telefonicamente para alguma questão/ocorrência que surgisse.
Por regra, o recorrente comparecia às quartas-feiras à tarde e uma sexta-feira à tarde por mês, permanecia na unidade de saúde o tempo que considerava necessário e ausentava-se quando assim o entendia, e por regra, quando se ausentava, ia exercer as funções para a Hospital X que se situava no mesmo edifício, com a qual manteve em simultâneo um vínculo laboral.
A ré nunca soube o tempo efetivo do autor na unidade, nem nunca o recorrente lhe comunicou ou pediu autorização para se ausentar
O recorrente também autor justificou qualquer ausência/falta, nem nunca colocou à aprovação da ré períodos de férias. Era elaborado anualmente o mapa de férias das auxiliares e pessoal administrativo, dos enfermeiros do quadro, não constando do mapa as férias de nenhum médico, incluindo do recorrente.
Tal forma de executar a atividade contratada é manifestamente incompatível com a existência de subordinação jurídica, evidenciando uma total autonomia na organização dos próprios tempos da atividade a prestar e no relacionamento profissional com a recorrida totalmente incompatível com a heterodisponibilidade que caracteriza o contrato de trabalho.
Por outro lado, nada foi alegado, ou demonstrado quanto à sujeição do recorrente ao poder disciplinar da recorrida, ou qualquer outro facto revelador de que o recorrente estava sujeito à disciplina da recorrida quanto à organização e prestação da atividade, nomeadamente ao cumprimento de quaisquer deveres acessórios desta. Nem sequer resulta da matéria de facto provada que o recorrente estivesse sujeito a qualquer vinculação hierárquica.
Finalmente, atenta a natureza da atividade em causa, afiguram-se inócuas as circunstâncias de o recorrente desempenhar a sua atividade na Unidade de Hemodiálise e de os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados (que nem sequer estão discriminados) serem postos à sua disposição pela ré, já que não se vislumbra que pudesse ser de qualquer outra forma, ou seja, que a atividade prestada pudesse ser desempenhada em local escolhido pelo recorrente ou com instrumentos e equipamentos que lhe pertencessem.
Impõe-se, pois, a conclusão de que não estão reunidos os requisitos para a qualificação da relação entre as partes, como contrato de trabalho.
Em consequência, na medida em que a natureza laboral da relação entre partes constituía antecedente lógico e imprescindível da pretensão do recorrente de ver reconhecida a ilicitude do despedimento e as suas consequências, o recurso terá de ser julgado totalmente improcedente.
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Decisão
Por todo o exposto acorda-se:
- julgar improcedente a impugnação da matéria de facto;
- aditar oficiosamente o facto supra identificado;
- julgar improcedente o recurso interposto pelo autor.
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Custas pelo recorrente – art.º 527.º do Código de Processo Civil.
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Nos termos do art.º 663.º, n.º 7, do CPC, anexa-se o sumário do presente acórdão.
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Notifique.
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Lisboa, 10/04/2024
Maria Luzia Carvalho
Francisca Mendes, com a seguinte declaração de voto: Concordo com a decisão, mas entendo que da conjugação do art.º 72º do CPT com o art.º 662º, nº2 c) do CPC resulta que na jurisdição laboral pode ser ampliada a decisão referente à matéria de facto, com vista ao apuramento de factos relevantes que resultem da produção da prova, mesmo que tais factos não tenham sido articulados. No caso concreto considero que uso de tal faculdade não se justifica.
Sérgio Almeida
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1. António Santos Abrantes Geral, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed. Atualizada, pág. 114 e 116.
2. António Abrantes Geral e outros, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 32.
3. Idem, pág. 744.
4. Ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
5. No mesmo sentido, se pronunciaram, entre outros o Ac. RP de 17/01/2017, o Ac. RE de 26/04/2018, o Ac. RC de 28/04/2017, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
6. Cfr. Ac. do STJ de 18/04/2018, acessível em www.dgsi.pt.
7. Acessível em www.dgsi.pt.
8. Acessível em www.dgsi.pt.
9. António Abrantes Geral e outros, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 823.
10. A este propósito veja-se, além do Ac. do STJ de 26/09/2005, citado na sentença recorrida, o Ac. do STJ de 27/05/2004, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
11. Júlio Gomes - O conflito entre a jurisprudência nacional e a jurisprudência do tribunal de justiça das comunidades europeias em matéria de transmissão do estabelecimento do direito do trabalho: o art.º 37º da LCT e a directiva de 14 de Fevereiro de 1977, 77/187/CEE. Revista de Direito e de Estudos Sociais. ISSN 0870-3965. Vol. 11 (1996), p. 162.
12. Direito do Trabalho, Vol. I, Relações Individuais de Trabalho, pág. 815.
13. «Alguns aspectos do novo regime jurídico laboral da transmissão de empresa ou estabelecimento», Questões Laborais, n.º 53, 2018, págs. 21 e 22
14. Direito do Trabalho, Vol. I, Relações Individuais de Trabalho, pág. 821.
15. Professor João Leal Amado, “Contrato de Trabalho, À Luz do novo Código do Trabalho”, 2009, pág. 77 e Joana Nunes Vicente, Código do Trabalho, A Revisão de 2009, pág. 68 a 73, ambos propendendo no sentido da aplicação da presunção a situações jurídicas anteriores à consagração legal das presunções.
16. São disso exemplo, entre outros, os Acs. STJ de 02/05/2007, de 17/10/2007, de 10/07/2008, de 16/09/2008, de 14/01/2009, de 05/02/2009, de 4/03/2009, de 22/04/2009, de 12/05/2010 e de 22/09/2010, de 16/10/2010, de 07/11/2012, de 05/03/2013, de 02/12/2013, de 15/01/2014, de 15/04/2015 e 04/07/2018, todos acessíveis em www.dgsi,pt., todos acessíveis em www.dgsi.pt, concluindo-se em todos eles que quando o Código do Trabalho regula os efeitos de certos factos, como expressão duma valoração dos factos que lhes deram origem, deve entender-se que só se aplica aos factos novos.
17. A. Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, pág. 535).
18. Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 2002, pág. 549 e Júlio Gomes, Direito do Trabalho, Vol. I, Relações Individuais de Trabalho, págs. 778/779.
19. Acessível em www.dgsi.pt.