PROVA DOCUMENTAL
DOCUMENTO EM PODER DA PARTE CONTRÁRIA
OBJECTO DO PROCESSO
Sumário

I - Os documentos interessam à “decisão da causa”, para efeitos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 429.º do CPP,  quando se mostrem relevantes para a prova de factos que constituam o objecto do processo, seja por integrarem a causa de pedir, seja por respeitarem a excepções invocadas (art.º 5.º, n.º 1, do CPC).
II - Por isso, o n.º 1 do art.º 429.º do CPC exige que a parte interessada no documento especifique os factos que com o mesmo pretende provar, o que permite ao tribunal aquilatar da pertinência desse pedido, ou seja, verificar se em nome da boa decisão da causa e (da descoberta da verdade) se justifica que a parte contrária seja chamada a colaborar, apresentando documentos que tenha em seu poder.
III - O pedido para a apresentação de documentos em poder da parte contrária deve ser indeferido quando estes elementos de prova sejam irrelevantes ou supérfluos para a prova dos factos que integram o objecto do processo.
IV - O pedido para apresentação de documentos deve ser indeferido se a parte interessada não der cumprimento ao art.º 429.º, n.º 1, in fine, do CPC, indicando os factos que pretende ver provados através desses elementos de prova.

Texto Integral

Acordam os juízes que integram a secção da propriedade intelectual, concorrência, regulação e supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO:
“Mastercard Incorporated”, “Mastercard International” e “Mastercard Europe, SA”, melhor identificadas nos autos, vieram interpor recurso do despacho de 18-08-2023, proferido pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, que indeferiu o pedido para junção aos autos de documentos em poder da autora “Associação Ius Omnibus”.    
No recurso que interpuseram apresentaram as seguintes conclusões:

“23. Através das presentes alegações de recurso, as Recorrentes procuram ainda reverter a decisão do Tribunal a quo de indeferimento do pedido de junção de documentos em posse da Recorrida.
24. No que diz respeito ao Anexo I do AFC (sem partes omissas), na eventualidade – que não se concede – de o Tribunal considerar que o art.º 19.º, n.º 7 da LPE permite o pagamento do valor da remuneração do Financiador ao abrigo do AFC, então os valores orçamentados deverão ser trazidos ao processo, uma vez que, nesse caso, será necessário proceder à avaliação de razoabilidade do valor dessa remuneração, que eventualmente depende, nos termos do AFC, dos valores orçamentados, tendo, por isso, o Tribunal, as pessoas representadas na presente ação, as Recorrentes e os consumidores em geral, interesse legítimo nessa informação, assim como, em geral, no exercício de controlo sobre o AFC, designadamente sobre os seus termos e execução.
25.  Assim, e salvo o devido respeito, não assiste razão ao Tribunal a quo quando afirma que o documento em causa consubstancia “matéria que em nada afeta os direitos das Rés” e que a junção deste documento não se reveste, no momento, de “qualquer interesse para a descoberta da verdade material e, assim, para a boa decisão da causa”.
26.  E ainda quando afirma que, mesmo que o Tribunal decida, posteriormente, pela necessidade de junção deste documento, o respetivo teor “apenas interessará ao Tribunal (…) e não às Rés”.
27. Com efeito, é evidente que as Recorrentes têm todo o interessem em saber o destino que será dado ao seu dinheiro num eventual cenário de condenação, principalmente quando existe o risco de os montantes não reclamados pelos consumidores serem entregues a um Financiador alheio aos fins da presente ação e que nela não é parte, desconhecendo as Recorrentes para que fins irá aquele canalizar os referidos meios.
28. Por outro lado, a aferição pelo Tribunal dos montantes que, nos termos do AFC, deverão ser pagos ao Financiador justifica-se em nome do interesse público, e como forma de escrutinar a eventual existência de conflitos de interesses na prossecução da presente ação por parte da Recorrida, bem como de validar os interesses subjacentes à instauração desta ação – o que, por sua vez, poderá negar à Recorrida a necessária legitimidade para propor a presente ação popular.
29. Com efeito, importa ter presente que o AFC não corresponde a um mero acordo celebrado entre privados, justificando-se a sujeição deste tipo de acordos a um controlo ainda mais estrito e exigente por parte dos Tribunais, sempre que os autores populares tiverem a intenção de incluir a contrapartida do Financiador no pagamento a, eventualmente, ser efetuado ao abrigo do artigo 19.º, n.º 7, da LPE,
30. Para além da necessidade de evitar fraudes e o desvio ilícito (porque excessivo) de fundos que deveriam ser alocados aos fins do artigo 22.º, n.º 5, da LAP, e que deixam de o ser para serem entregues a um Financiador alheio à ação.
31. Note-se que, quando a Recorrida celebrou o AFC, muito simplesmente, estava a dispor de algo que não é seu, estando em causa valores (meramente potenciais) pertencentes às pessoas representadas, e, num segundo momento, a todos quantos beneficiam da alocação de fundos nos termos do artigo 22.º, n.º 5, da LAP, e 19.º, n.º 8, da LPE.
32. Assim, em função da total ausência de incentivos da Recorrida em negociar o melhor valor possível, é antes evidente a sua permeabilidade à aceitação da atribuição de contrapartidas completamente desrazoáveis.
33. Por outro lado, a junção da versão integral do Anexo I do AFC é também indispensável para o despiste da eventual existência de conflitos de interesses na prossecução da presente ação.
34. Tanto é que, se a Recorrida atuasse – verdadeiramente – apenas animada do propósito de prosseguir os interesses dos consumidores e se um acordo permitisse – por hipótese – maximizar o valor da compensação por cada consumidor que, de facto, quisesse reclamar a compensação e/ou encurtar o período de recebimento, não existiriam quaisquer desincentivos em aceitar um acordo desta natureza. Porém, a existência deste AFC inviabilizaria esta solução, na medida em que, evidentemente, o Financiador sempre levantará obstáculos à celebração de qualquer acordo que não contemple a atribuição de quantias avultadas para si próprio – o que, per se, é sintomático da existência de uma situação de conflito de interesses.
35. Deve notar-se, porém, que esta lógica não se aplica apenas em cenário de acordo, podendo esta influência indevida do Financiador traduzir-se na prática de atos e na adoção de estratégias processuais que não sejam aquelas que, a cada momento, seriam mais benéficas ou aconselháveis do ponto de vista dos interesses da classe representada.
36. Pelo que deverá o Despacho Recorrido ser revogado e substituído por outro que defira o pedido de junção do Anexo I do AFC (sem partes omissas), em posse da Recorrida, nos termos do disposto nos artigos 429.º e 417.º do CPC.
37. O mesmo raciocínio é aplicável no que respeita ao(s) documento(s) no(s) qual/quais se encontrem reproduzidos os termos do(s) contrato(s) de mandato forense celebrados com os Mandatários que representam a Recorrida na presente ação, cuja junção ao processo foi igualmente requerida pelas Recorrentes – ou, inexistindo acordo escrito, a notificação da Recorrida para vir aos autos informar quais os termos desse(s) acordo(s).
38. Com efeito, a disponibilização daquele(s) documento(s) releva de sobremaneira para efeitos de apuramento da estrutura da remuneração dos Mandatários da Recorrida, o que, por seu turno, é essencial para aferir se a estrutura de remuneração acordada entre as partes contende ou não com as regras deontológicas aplicáveis e se é ou não, em, em si, mais um catalisador de conflitos de interesses na condução desta ação, por os próprios advogados passarem a ser parte interessada no desfecho da causa ao lado do Financiador, o que se verificará caso a remuneração esteja totalmente ou em larga medida dependente do resultado da ação.
39. Por esta razão, as Recorrentes não podem, uma vez mais, conformar-se com a decisão do Tribunal a quo de indeferir o pedido de junção deste(s) documento(s), a pretexto de “o(s) mesmo(s) não assumir(em) qualquer relevo para a descoberta da verdade material e, assim, para a boa decisão da causa”.
40. É, ainda, de rejeitar a tese do Tribunal a quo segundo a qual, contendo aquele(s) documento(s) matéria sigilosa e confidencial, não está em causa uma situação em que a quebra dessa confidencialidade seja admitida.
41. Pelo contrário, o(s) documento(s) em causa poderá/poderão vir a revelar a existência de conflitos de interesses por parte dos advogados da Recorrida na condução da presente ação, e por isso a divulgação dessa informação apresenta-se, no caso concreto, superior ao decorrente do dever de confidencialidade,
42. Razão pela qual se entende estar justificada, neste caso concreto, a quebra do segredo profissional, nos termos e para os efeitos do artigo 135.º, n.º 3 do CPP, aplicável ex vi artigo 417.º, n.º 4 do CPC.
43. Sem prejuízo do que antecede, o Tribunal poderá, com base no artigo 164.º do CPC, restringir o acesso aos referidos documentos apenas ao Tribunal e aos mandatários das Partes, que se devem submeter expressamente a um dever de confidencialidade, sendo a disponibilização desses documentos feita mediante a advertência, pelo Tribunal, de que os documentos apenas podem ser consultados e utilizados única e exclusivamente no âmbito da presente ação,
44. Ou, em alternativa, poderá determinar a criação de um apenso confidencial dos presentes autos, onde será colocada a referida documentação, e o qual apenas será acessível aos Mandatários constituídos pelas Partes neste processo,
45. Assim assegurando a preservação da confidencialidade no processo e a sua não divulgação a terceiros, mantendo-se intangível o núcleo essencial daquilo que constitui o dever de sigilo propriamente dito.
46. Pelo exposto, deverá o Despacho Recorrido ser revogado e substituído por outro que, a par da junção do Anexo I do AFC (sem partes omissas), admita a junção ao processo do(s) documento(s) no(s) qual/quais se encontrem reproduzidos os termos do(s) contrato(s) de mandato forense celebrados com os Mandatários que representam a Recorrida na presente ação, cuja junção ao processo foi igualmente requerida pelas Recorrentes ou que, caso inexista, determine a notificação da Recorrida para vir aos autos informar quais os termos desse(s) acordo(s).”
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A recorrida “Associação Ius Omnibus” respondeu ao recurso interposto, apresentando, neste particular, as seguintes conclusões:

“DO RECURSO SOBRE O PEDIDO DE JUNÇÃO DO ACORDO DE FINANCIAMENTO NÃO TRUNCADO
A Autora juntou o acordo de financiamento com partes omissas, especificamente quanto ao valor total do orçamento disponível à Autora e a consequente potencial remuneração do financiador, em prol do que à altura entendeu ser necessário à proteção da igualdade de armas entre as partes.
As Rés requereram que fosse ordenado à Autora a junção do acordo de financiamento na sua íntegra porque, em suma, e no seu entendimento, o Tribunal poderá vir a necessitar  da versão integral do acordo de financiamento para “proceder à avaliação de razoabilidade do valor dessa remuneração, valor esse eventualmente dependente, nos termos do AFC, dos valores orçamentados, tendo, por isso, o Tribunal, as pessoas representadas na presente ação, as Rés e os consumidores em geral, interesse legítimo nessa informação, assim como, em geral, no exercício de controlo sobre o AFC, designadamente sobre os seus termos e execução”.
Por detrás destas abstrações e referências obscuras esconde-se que os únicos detalhes omitidos da cópia do AFC apresentada pela Autora ao Tribunal foi o orçamento disponível para a ação e a correspondente potencial remuneração do financiador (sem prejuízo da decisão que vier a ser tomada pelo Tribunal a esse respeito).
O Tribunal considerou que:
--As Rés não indicaram “os factos que através do referido documento pretendem provar, não tendo, assim, dado cumprimento ao disposto no artigo 429.º, n.º 1, parte final, do CPC”, e
--Que a matéria em causa “em nada afeta os direitos das Rés, nem dos consumidores, uma vez que estes serão sempre primeiramente ressarcidos caso o Tribunal conclua pela procedência da ação, não se vislumbra, no momento, qualquer interesse para a  descoberta da verdade material e, assim, para a boa decisão da causa, a satisfação do pretendido pelas Rés.”.
Tendo, seguidamente, decidido que: “Caso o Tribunal venha a decidir pelo pagamento do custo do financiamento do presente contencioso, no momento oportuno, aferirá da necessidade da junção pela Autora da versão não confidencial do documento em causa, cujo teor apenas interessará ao Tribunal, para os referidos efeitos, e não às Rés. Em razão do que, indefere-se o requerido.”
Resulta da douta decisão que o Tribunal se limitou a indeferir, por ora, essa junção, protelando para final essa decisão, caso venha a decidir que é necessária a junção desse documento.
A junção do requerimento peticionada pelas Rés foi indeferida, mas sem que tal impeça o Tribunal de vir a ordenar a junção desse documento, caso o entenda necessário.
Efetivamente, não tendo as Rés invocado qualquer facto a provar com esse documento, não têm qualquer interesse objetivo com relevância jus-processual que possa fundar a sua pretensão.

DO RECURSO SOBRE O PEDIDO DE JUNÇÃO DO CONTRATO ENTRE A AUTORA E OS SEUS MANDATÁRIOS

As Rés requereram que fosse ordenado à Autora a junção dos seguintes documentos:
O(s) documento(s) no(s) qual/quais se encontrem reproduzidos os termos do(s) contrato(s) de mandato forense celebrados com os mandatários que a representam na presente ação ou que, na ausência de acordo escrito, venha aos autos informar quais os termos desse(s) acordo(s). O fundamento deste pedido reside de ser necessário apurar a estrutura da remuneração dos mandatários da Autora por tal aspeto relevar para aferir se a estrutura de remuneração acordada entre as partes contende ou não com as regras deontológicas aplicáveis e se é ou  não, em, em si, mais um catalisador de conflitos de interesses na condução desta ação, por os próprios advogados passarem a ser parte interessada no desfecho da causa ao lado do Financiador, o que se verificará caso a remuneração esteja totalmente ou em larga medida dependente do resultado da ação.
O Tribunal indeferiu esta pretensão, por entender que:
--As Rés não discriminaram “os factos que com ele(s) pretendem provar, não dando, assim, cumprimento cabal ao disposto no artigo 429.º, n.º 1, parte final, do CPC”;
--O documento ou documentos “não assumir(em) qualquer relevo para a descoberta da verdade material e, assim, para a boa decisão da causa”;
--O documento ou documentos abordam “matéria sigilosa, confidencial, que apenas ao mandatário e à cliente, aqui Autora, dizem respeito. Por outro lado, sendo a confidencialidade justificada por valores que se prendem com o exercício da própria profissão de advogado, a sua quebra apenas deve ocorrer em casos muito excecionais, quando seja absolutamente necessário para defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, o que não é o caso, conforme resulta da fundamentação apresentada pelas Rés para a junção do(s) documento(s) em causa – vide art.º 92.º, n.º 4 do EOA.”
Efetivamente, os Réus não discriminaram os factos que pretendem ver provados, o que –só por si – constitui fundamento suficiente para indeferir o requerido nos termos do art.º 429º, nº 1 do CPC, pelo que decidiu bem o Tribunal.
As Rés não discriminaram os factos que pretendem ver provados, porque – simplesmente - os documentos não têm qualquer relevância para “a descoberta da verdade material e, assim, para a boa decisão da causa” como corretamente declara o Tribunal. Assim sucede, porquanto o valor dos custos com a ação é irrelevante para o montante da indemnização a pagar pelas Rés, não estando qualquer pedido dependente do montante a pagar aos mandatários da Autora. A verdade material da causa, e a sua boa decisão (se as Rés devem ou não ser condenadas, e em que valor), não dependem, pois, do valor de honorários a pagar aos mandatários da Autora.
Ao que acresce o sigilo a que está sujeito o contrato entre a Autora e os seus mandatários, tal como o contrato entre as Rés e os seus mandatários, e entre qualquer parte e o respetivo mandatário.
As Rés (ora Recorrentes) alegam no presente recurso que:
“a disponibilização daquele(s) documento(s) releva de sobremaneira para efeitos de apuramento da estrutura da remuneração dos Mandatários da Recorrida, o que, por seu turno, é essencial para aferir se a estrutura de remuneração acordada entre as partes contende ou não com as regras deontológicas aplicáveis e se é ou não, em, em si, mais um catalisador de conflitos de interesses na condução desta ação, por os próprios advogados passarem a ser parte interessada no desfecho da causa ao lado do Financiador, o que se verificará caso a remuneração esteja totalmente ou em larga medida dependente do resultado da ação”.
E que: “o(s) documento(s) em causa poderá/poderão vir a revelar a existência de conflitos de interesses por parte dos advogados da Recorrida na condução da presente ação, e por isso a divulgação dessa informação apresenta-se, no caso concreto, superior ao decorrente do dever de confidencialidade”.
Entendendo as Rés (ora Recorrentes) “estar justificada, neste caso concreto, a quebra do segredo profissional, nos termos e para os efeitos do artigo 135.º, n.º 3 do CPP, aplicável ex vi artigo 417.º, n.º 4 do CPC”.
Sucede que a causa de pedir nos presentes autos não integra a questão da eventual violação de regras deontológicas pelos mandatários da Autora, nem é formulado qualquer pedido de responsabilidade disciplinar contra os mandatários da Autora.
Por um lado, porque (afirma-se em causa própria) não foram violadas regras deontológicas pelos mandatários da Autora. Por outro lado, mesmo que ocorresse um qualquer conflito de interesses (o que não sucede), tal não afetava a ação, mas apenas a relação entre os mandatários e a própria Autora, sem prejuízo de o Ministério Público se puder substituir à Autora caso entenda – inter alia – que ocorre qualquer comportamento lesivo dos interesses dos consumidores representados.
Acresce ainda que a responsabilidade disciplinar de Advogados é da exclusiva competência da Ordem dos Advogados (arts. 114º a 172º do Estatuto da Ordem dos Advogados), pelo que o Tribunal sempre estaria impedido de apreciar uma questão desta natureza.
Assim, não existe qualquer fundamento para levantamento de sigilo profissional de advogado, o que – aliás – não foi requerido, não tendo sido formulado qualquer pedido de responsabilidade disciplinar contra os mandatários da Autora, que não seria da competência deste Tribunal, e que – em qualquer caso – não afetaria o andamento dos autos nem a questão em juízo.
Por último, o ato jurídico declarativo do qual decorre a pretensão de junção aos autos do contrato entre a Autora e os seus mandatários formulada pelas Rés (ora Recorrentes), representadas pelos seus ilustres mandatários, constitui ainda uma violação do art.º 112º, n.º 1, al. a) do Estatuto da Ordem dos Advogados, pelo que é nulo o referido ato declarativo e a pretensão dele decorrente, nos termos dos arts. 294º, 295º, e 259º do Código Civil.”
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Admitido o recurso e colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO:                
Como decorre do disposto nos arts. 635.º, n.º 3, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, as conclusões do recorrente delimitam o recurso apresentado, estando vedado ao tribunal hierarquicamente superior àquele que proferiu a decisão recorrida conhecer de questões ou de matérias que não tenham sido suscitadas, com excepção daquelas que sejam de conhecimento oficioso.
Deste modo, compete à parte que se mostra inconformada com a decisão judicial proferida indicar, nas conclusões do recurso que interpôs, que segmento ou que segmentos decisórios pretende ver reapreciado(s), delimitando o recurso quanto aos seus sujeitos e/ou quanto ao seu objecto. 
A delimitação (objectiva e/ou subjectiva) do recurso condiciona a intervenção do tribunal hierarquicamente superior, que se deve cingir à apreciação e à decisão das matérias indicadas pela parte recorrente, com excepção de eventuais questões que se revelem de conhecimento oficioso.
Isto significa que está vedado ao tribunal de recurso proceder a uma reapreciação de questões ou de matérias que não tenham sido suscitadas e, por consequência, que os seus poderes de cognição se encontram delimitados pelo recurso interposto no âmbito de um processo da iniciativa das partes.
A iniciativa das partes condiciona a intervenção do tribunal de recurso e delimita os seus poderes de cognição, sem prejuízo do caso julgado já formado e de eventuais questões que possam ser apreciadas a título oficioso.
No caso vertente, as recorrentes “Mastercard Incorporated”, “Mastercard International” e “Mastercard Europe, SA” pretendem que a recorrida “Associação Ius Omnibus” seja notificada para juntar aos autos a versão integral do Anexo I do AFC (sem partes omissas) e do contrato de mandato forense que celebrou com os ilustres mandatários.
Por seu turno, a “Associação Ius Omnibus” sustentou, em síntese, que o recurso não indica qualquer facto que possa ser provado pela junção aos autos do acordo de financiamento não truncado, que esse documento não é útil para a procedência ou para a improcedência das pretensões das recorrentes “Mastercard Incorporated”, “Mastercard International” e “Mastercard Europe, SA” e que se deve manter a decisão proferida pelo tribunal a quo
A recorrida “Associação Ius Omnibus” acrescenta ainda que também não se discriminam os factos que se pretendem ver provados pelo contrato de mandato celebrado entre a autora e os seus ilustres advogados, que esse documento não tem qualquer relevância para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa, bem como que esse contrato se encontra sujeito a sigilo profissional, pelo que a pretensão apresentada pelas das recorrentes “Mastercard Incorporated”, “Mastercard International” e “Mastercard Europe, SA” consubstanciaria uma violação do art.º 112.º, n.º 1, al. a), do EOA.
O tribunal de primeira instância pronunciou-se, a este propósito, nos seguintes termos:“ (…) Quanto à pretendida Versão integral do Anexo I do AFC (sem partes omissas), as Rés justificam o seu interesse para a hipótese de o Tribunal entender que o artigo 19.º, n.º 7, da LPE, permite o pagamento do valor da remuneração do Financiador ao abrigo do AFC, situação em que importa aferir da razoabilidade do valor dessa remuneração. Resulta do disposto no artigo 19.º, n.º 7 da LPE o seguinte: As indemnizações que não sejam reclamadas pelos lesados num prazo razoável fixado pelo juiz da causa, ou parte delas, são afetas ao pagamento das custas, encargos, honorários e demais despesas incorridos pelo autor por força da ação.
A Autora, na petição inicial, formulou, entre outros, o seguinte pedido:
«d) Ser a Autora ressarcida das custas, encargos, honorários e demais despesas que incorreu por força da presente ação, incluindo o custo do financiamento do presente contencioso (a liquidar segundo o AFC), a partir do montante da indemnização global, sem ultrapassar o montante da indemnização global remanescente quando o direito de indemnização individual dos consumidores representados tiver prescrito.» (sublinhado nosso).
Ora, de acordo com o disposto no artigo 19.º, n.º 7 da LPE, a versão não confidencial do documento em causa apenas relevará caso o Tribunal venha a decidir pela procedência total do referido pedido formulado pela Autora, sendo que o pagamento em causa apenas terá lugar na hipótese das indemnizações fixadas pelo Tribunal não serem totalmente reclamadas pelos consumidores lesados, podendo o Tribunal, inclusive, determinar a afetação apenas de parte do remanescente não reclamado pelos consumidores lesados para pagamento das custas, encargos, honorários e demais despesas incorridos pela Autora por força da ação.
Assim, para além das Rés não terem indicado os factos que através do referido documento pretendem provar, não tendo, assim, dado cumprimento ao disposto no artigo 429.º, n.º 1, parte final, do CPC, e de tratar-se de matéria que em nada afeta os direitos das Rés, nem dos consumidores, uma vez que estes serão sempre primeiramente ressarcidos caso o Tribunal conclua pela procedência da ação, não se vislumbra, no momento, qualquer interesse para a descoberta da verdade material e, assim, para a boa decisão da causa, a satisfação do pretendido pelas Rés (…)”.
Relativamente ao pedido para junção aos autos de cópia do contrato de mandato forense, o tribunal a quo apreciou e decidiu o seguinte: “(…) para além de as Rés não terem discriminado os factos que com ele(s) pretendem provar, não dando, assim, cumprimento cabal ao disposto no artigo 429.º, n.º 1, parte final, do CPC, e de o(s) mesmo(s) não assumir(em) qualquer relevo para a descoberta da verdade material e, assim, para a boa decisão da causa, trata-se de matéria sigilosa, confidencial, que apenas ao mandatário e à cliente, aqui Autora, dizem respeito. (…) Pelo que, por falta de fundamento legal, indefere-se o requerido (…)”.
Deste modo, levando em consideração o recurso que se mostra interposto, importa apreciar se deve (ou não) ser determinada a junção aos autos dos documentos que se encontram em poder da recorrida “Associação Ius Omnibus” (a saber: a versão integral do acordo de financiamento e o contrato de mandato forense celebrado com os ilustres advogados que a representam nesta acção), conformem pretendem as recorrentes “Mastercard Incorporated”, “Mastercard International” e “Mastercard Europe, SA”.
Antes de prosseguir, importa recordar que o recurso não foi admitido, na parte em que as recorrentes pretendiam impugnar a decisão proferida pelo tribunal a quo por ter solicitado informações sobre os legais representantes destas sociedades, com vista a ser identificados e posteriormente notificados para oferecerem depoimento de parte em sede de audiência de julgamento.
Vejamos:  
Estabelece o disposto no art.º 429.º, n.º 1, do CPC, inserido no Capítulo II do Título V do Livro II, respeitante à prova por documento, que “(…) quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento, a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar (…)”.
Por seu turno, acrescenta o n.º 2 deste artigo que “(…) se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa, é ordenada a notificação”.
Deste dispositivo ressalta que só deve ser ordenada a notificação da parte contrária, sujeitando-a a colaborar com o tribunal, quando os documentos que estejam em seu poder apresentem interesse para a “decisão da causa”.
Por conseguinte, os documentos interessam à “decisão da causa” quando se mostrem relevantes para a prova de factos que constituam o objecto do processo, seja por integrarem a causa de pedir, seja por respeitarem a excepções invocadas pelas partes, de acordo com o disposto no art.º 5.º, n.º 1, do CPC.
Por isso, o n.º 1 do art.º 429.º do CPC exige que a parte interessada no documento especifique os factos que com o mesmo pretende provar, o que permite ao tribunal aquilatar da pertinência desse pedido, ou seja, verificar se em nome da boa decisão da causa e (da descoberta da verdade) se justifica que a parte contrária seja chamada a colaborar, apresentando documentos que tenha em seu poder.
Deste modo, o pedido para a apresentação de documentos em poder da parte contrária deverá ser indeferido pelo tribunal quando estes elementos de prova se mostrem irrelevantes ou supérfluos para a prova dos factos que integram o objecto do processo, de acordo com o disposto no art.º 5.º, n.º 1, do CPC.
In casu, verifica-se que as recorrentes “Mastercard Incorporated”, “Mastercard International” e “Mastercard Europe, SA” não deram cumprimento ao disposto no art.º 429.º, n.º 1, in fine, do CPC, que impõe à parte interessada nos elementos de prova a indicação dos factos que pretende ver provados com os documentos que não estão na sua disponibilidade.
Para fundamentar o recurso interposto, limitam-se, grosso modo, a invocar o interesse próprio (relacionado com o destino que será conferido ao dinheiro, em caso de eventual procedência do pedido formulado) ou o interesse público (relacionado com a eventual existência de conflitos de interesses ou com os interesses subjacentes à instauração da presente acção), mas sem especificar ou sem indicar de que modo esses elementos documentais podem contribuir para o apuramento da matéria de facto que constitui o objecto deste processo. 
Saliente-se que este regime jurídico diz respeito a documentos que estão em poder da parte contrária e que o tribunal somente pode determinar a sua colaboração, no sentido de serem apresentados em juízo, caso interessem para a prova de factos que integrem o objecto do processo judicial.
À semelhança de outros elementos probatórios (v.g. prova testemunhal ou pericial), os documentos destinam-se a demonstrar ou a contestar a prática de factos e, desse modo, contribuir para o apuramento dos acontecimentos da vida real que interessem para a decisão da causa pendente em tribunal.
As recorrentes “Mastercard Incorporated”, “Mastercard International” e “Mastercard Europe, SA, inviabilizam, desde logo, a pretensão formulada e a procedência do recurso interposto, ao não indicarem (e ao continuarem ser indicar neste recurso) os factos que pretendem ver provados com os documentos que se encontram em poder da “Associação Ius Omnibus”.
Como não indicam os factos, este tribunal não consegue afirmar que estes elementos probatórios interessam para a “decisão da causa” ou que podem contribuir para o apuramento do quadro factual que consubstancia o objecto do processo, o que conduzirá à improcedência do recurso e à confirmação da decisão proferida pelo tribunal a quo, nos termos do disposto no art.º 429.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Para além do que se deixa exposto, subscrevem-se inteiramente as considerações do tribunal de primeira instância, no sentido da impertinência dos documentos em causa para a decisão da causa, quando afirma que a versão integral do anexo I do AFC (sem partes omissas) poderá, eventualmente, interessar, mais tarde, caso a presente acção venha a ser julgada procedente, caso as indemnizações não sejam totalmente reclamadas pelos consumidores e caso o tribunal venha a decidir pelo pagamento do custo de financiamento do presente contencioso.
Por último, importa salientar que, de modo nenhum, incumbirá ao Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, no âmbito da acção judicial em referência, averiguar e decidir sobre a eventual violação de regras deontológicas por parte dos ilustres mandatários da recorrida “Associação Ius Omnibus”, muito menos apurar sobre a estrutura das suas remunerações.
Essa matéria não constitui objecto deste processo, o tribunal de primeira instância deve-se limitar a emitir pronúncia sobre a matéria de facto e sobre os pedidos que se encontram formulados nos autos, pelo que, se as recorrentes “Mastercard Incorporated”, “Mastercard International” e “Mastercard Europe, SA ”têm algumas suspeitas, devem lançar mão dos meios processuais próprios.
Em face do exposto, sem necessidade de outras considerações, improcede o recurso apresentado pelas recorrentes “Mastercard Incorporated”, “Mastercard International” e “Mastercard Europe, SA” e, em consequência, confirma-se, integralmente, a decisão recorrida proferida pelo tribunal a quo.

III – DECISÃO:
Em face do exposto, acordam os juízes que integram a secção da propriedade intelectual, concorrência, regulação e supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelas recorrentes “Mastercard Incorporated”, “Mastercard International” e “Mastercard Europe, SA” e, em consequência, confirmar a decisão proferida no dia 18-08-2023 pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão – Juiz 2, na parte em que indeferiu a junção aos autos da versão integral do Anexo I do AFC (sem partes omissas) e do contrato de mandato forense celebrado pela recorrida “Associação Ius Omnibus” com os seus ilustres mandatário no âmbito da presente acção.
Custas a cargo das recorrentes.
           
Lisboa, 10 de Abril de 2024
Paulo Registo
Eleonora Viegas
Bernardino Tavares