CONTRA-ORDENAÇÃO
BUSCA
APREENSÃO
CORREIO ELECTRÓNICO
PROVA
NULIDADE
Sumário

- As decisões interlocutórias da Autoridade da Concorrência são suscetíveis de recurso, ao abrigo do artigo 85.º da LC;
- Para o efeito, pode o Tribunal decidir por despacho ou, se considerar necessário, realizar audiência de julgamento;
- O conteúdo do despacho do Ministério Público – a razão pela qual deferiu ou indeferiu o mandado de busca/ apreensão –, enquanto autoridade judiciária, não é suscetível de recurso intercalar, mas antes de reclamação para o respetivo superior hierárquico, conforme dispõe o artigo 86.º-A da LC;
- Já é sindicável, por via do recurso intercalar, saber se o mandado executado pela Adc foi emitido pela autoridade legalmente competente;
- É nula, por padecer de inconstitucionalidade, a apreensão de correio eletrónico, seja aberto ou fechado, levada a cabo pela Adc, mediante mandado de busca/ apreensão emitido pelo Ministério Público.

Texto Integral

Acordam na Seção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I – Relatório
O Ministério Público apresentou recurso do despacho do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão que admitiu o recurso interlocutório de “Lusíadas, SA” e designou data de julgamento.
Posteriormente, a Lusíadas, SA, apresentou recurso de impugnação judicial da decisão proferida pela Autoridade da Concorrência, que julgou totalmente improcedente a sua pretensão e, em consequência, manteve as decisões recorridas.
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O Ministério Público inconformado com o despacho que admitiu o recurso interlocutório e designou data de audiência de julgamento, apresentando, em síntese, as seguintes conclusões:
“1 - O douto despacho judicial do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, proferido em 15.07.2019 (ref.ª 234364), que admitiu o recurso interlocutório de impugnação judicial apresentado pela visada “Lusíadas, S.A.” e se declarou competente em razão da hierarquia, matéria e território, constitui uma violação ao disposto no artigo 84.º, n.º 3, da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio, que aprovou o Novo Regime Jurídico da Concorrência;
2 - O acto material de apreensão de documentação da actividade comercial da visada “Lusíadas, S.A.”, em execução do mandado de busca e apreensão emitido pelo Ministério Público do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, autoridade judiciária competente, no período de vigência do respectivo do mandado e em execução deste, e no âmbito da investigação levada a cabo no PRC/2019/02, não integra o conceito de decisão na acepção dos artigos 84.º, n.º 1 e 85.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio;
3 - Os concretos actos materiais de execução de autorização do meio de obtenção prova em questão não são, em caso algum, e por definição, uma decisão de apreensão;
4 - A decisão de apreensão é do Ministério Público do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, nos termos do despacho proferido em 29.03.2019 e a competência para tanto decorre do disposto no artigo 18.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2, da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio, conjugado com os artigos 1.º, alínea b) e 267.º e seguintes do Código de Processo Penal;
5 - O Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão é materialmente incompetente para apreciar os despachos do Ministério Público, enquanto magistratura autónoma e com estatuto constitucional, porquanto, não tendo funções de Juiz de Instrução Criminal, não sindica o resultado dos actos do Ministério Público no processo e, por opção legislativa e constitucional, as decisões desta magistratura não são recorríveis para os tribunais;
6 - E mesmo que estivesse em causa o excesso de execução da autorização corporizada no competente mandado e busca, sempre estaria em causa uma deficiente execução deste, a ser arguida, por dela dependente e sem autonomia, perante a autoridade judiciária que a autorizou;
7 - Todas as demais nulidades e ilegalidades invocadas no recurso interlocutório de impugnação encontram-se prejudicadas, neste momento processual, pela falta de decisão recorrível;
8 - Acresce que qualquer dos vícios invocados e atinentes à prova adquirida em sede da busca e apreensão nos autos de contra-ordenação teria como efeito, enquanto eventual prova proibida, a sua inutilizabilidade para a decisão final da Autoridade da Concorrência, não se sabendo sequer, neste momento processual, se irão ser utilizadas como provas incriminatórias, pelo que a alegação da visada “Lusíadas, S.A.” é extemporânea, por prematura;
º - Com a apresentação do requerimento de recurso interlocutório de impugnação judicial, a visada “Lusíadas, S.A.” pretendeu impugnar os procedimentos materiais da diligência de busca e apreensão, ocorrida no período compreendido entre dias 10 e 22 de Maio de 2019, nas suas instalações, durante as quais não foram proferidas quaisquer decisões, mormente interlocutórias, na acepção do artigo 85.º, n.º 1 da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio;
10 - Sem prescindir, sempre se dirá que o douto despacho judicial proferido em 15.07.2019 (ref.ª 234364), ao determinar o prosseguimento dos autos e designar data para a realização da audiência de julgamento, violou ainda o disposto nos artigos 85.º e seguintes da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio;
11 - Do elemento literal e da inserção sistemática das normas dos artigos 85.º e 87.º, n.ºs 5 e 8 (com a epígrafe “recurso da decisão final”), da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio, resulta que, no recurso de decisão interlocutória da Autoridade da Concorrência, o qual constitui um recurso stricto sensu, em caso algum se admite a realização de audiência de julgamento;
12 - A redacção do artigo 85.º não prevê a realização de audiência de julgamento, logo não a admite, e isto porque a faculdade de os sujeitos processuais se oporem à decisão do recurso por mero despacho só se encontra consagrada expressamente no artigo 87.º, n.º 5 e a decisão com base na prova produzida na fase administrativa e na fase judicial só se verifica quando haja julgamento do recurso de impugnação judicial de decisão final sancionatória (coima ou sanção pecuniária compulsória), tal como se encontra consagrado no n.º 8 deste mesmo normativo;
13 - A organização do mesmo processo para todos os recursos interlocutórios, de medidas cautelares e da decisão final, no mesmo processo de contra-ordenação, visando a unicidade do sentido das diversas decisões e assim a unidade do sistema, não pode abdicar da tutela da imparcialidade do julgador que, na apreciação das medidas provisórias, deverá restringir-se a questões processuais de direito ou de interpretação, dotadas de autonomia em relação ao objecto essencial “incriminatório” (e por isso a subida dos recursos interlocutórios em separado do processo, na fase administrativa, é em traslado organizado pela Autoridade da Concorrência);
14 - O regime dos recursos das decisões interlocutórias tem ainda por escopo expurgar do processo contra-ordenacional eventuais vícios formais, mas evitando a formulação pelo julgador de pré-juízos de culpa que venham a contaminar a decisão final;
15 - E visa também a garantia da celeridade processual enquanto princípio estruturante do processo de contra-ordenação, sem descurar o princípio da independência da Autoridade da Concorrência na condução do processo contra-ordenacional.”
Tendo concluído que:
Face ao decidido e motivado, e ao que V. Exas., superior e oficiosamente, suprirão, requer-se que, na procedência do presente recurso interposto pelo Ministério Público, seja revogado o douto despacho judicial recorrido, rejeitando-se o recurso interlocutório de impugnação judicial apresentado pela visada “Lusíadas, S.A.”, por inadmissibilidade, com a consequente revogação do segmento decisório que designou data para realização de julgamento;
subsidiariamente, e por mera hipótese académica, caso se admita a existência de decisão recorrível (que sempre será uma decisão não escrita, conforme resulta do competente auto), sempre deverá ser revogado o despacho judicial no segmento decisório que designou data para realização de julgamento.”
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Admitido o recurso, respondeu a Lusíadas, SA, apresentando as seguintes conclusões:
“1. A presente resposta versa sobre o recurso do Ministério Público quanto ao despacho do TCRS de 15.07.2019, que admitiu o recurso interposto pela Recorrente quanto à decisão de apreensão tomada pela AdC no final da diligência de busca e apreensão que conduziu na sua sede.
2. A Recorrente considera que o recurso do Ministério Público, no que respeita à irrecorribilidade da decisão de apreensão da AdC, deve ser julgado improcedente, porquanto:
(i) ao contrário do sustentado pelo Ministério Público, a decisão de apreensão tomada pela AdC no final das buscas não é uma decisão do Ministério Público que emitiu o despacho e o mandado autorizativo da diligência, mas uma decisão da própria AdC, no uso de competência própria e com conteúdo decisório autónomo face ao conteúdo do decidido no despacho e no mandado do Ministério Público e, como tal, recorrível ao abrigo do disposto nos artigos 84.º, n.º 1 e 85.º, n.º 1 da LdC e no artigo 55.º do RGCO;
(ii) tal decisão da AdC de apreensão contendeu de forma inadmissível e não justificada com o sigilo da correspondência da Lusíadas que foi apreendida, protegido pelo artigo 34.º, n.º 4 da CRP, com o sigilo profissional de advogados, protegido pelo princípio da tutela jurisdicional efetiva, ínsito no artigo 20.º da CRP, salvaguardando elementos que foram apreendidos e com o direito à intimidade da vida privada, também garantido às pessoas coletivas, assegurado pelo artigo 26.º da CRP, apenas coartável por decisão de autoridade judiciária competente e nos limites desta;
(iii) admitir que a Autoridade pode apreender elementos para posteriormente decidir se condena com base neles é aceitar que os direitos, liberdades e garantias possam ser postergados com tal apreensão e que essa violação seja completamente desprotegida, valendo tudo em nome de uma tentativa de encontrar algum facto indiciador de uma qualquer infração às regras da concorrência e alguma prova remotamente válida para o sustentar, o que afronta os direitos consagrados nos n.ºs 1 e 5 do artigo 20.º da CRP e, em particular, o direito a tutela jurisdicional efetiva e célere, em violação do artigo 20.º da CRP e do artigo 6.º da CEDH.
3. É inconstitucional a norma resultante da conjugação dos artigos 84.º, n.º 1, 85.º, n.ºs 1, 2 e 3 da LdC com o artigo 55.º do RGCO, ex vi artigo 83.º n.º 1 da LdC, quando interpretada no sentido segundo o qual a decisão de apreensão tomada na sequência de buscas realizadas pela AdC e autorizadas por despacho do Ministério Público constitui uma decisão do Ministério Público e não da AdC e, como tal, irrecorrível, por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva e do contraditório, previstos nos artigos 2.º, 20.º, n.º 1, 32.º, n.º 1 e 10 e 268.º, n.º 4 da CRP e no artigo 6.º da CEDH.
4. A Recorrente considera que o recurso do Ministério Público, no que respeita à inadmissibilidade da realização de audiência de julgamento, deve ser julgado improcedente, porquanto:
(i) ao contrário do sustentado pelo Ministério Público, a circunstância de não se encontrar prevista a realização de audiência de julgamento no artigo 85.º da LdC não inviabiliza a sua realização no âmbito de recursos interlocutórios de decisões da AdC, na medida em que, por remissão do artigo 83.º da LdC, deve aplicar-se o disposto no RGCO, em particular o artigo 64.º, n.º 1 desse diploma, que tem vindo a ser aplicado, por analogia, aos recursos interpostos ao abrigo do disposto no respetivo artigo 55.º;
(ii) a tese do Ministério Público quanto à impossibilidade de realização de audiência de julgamento é, até, violadora do princípio da administração da Justiça e da primazia da descoberta da verdade material, na medida em que para a boa decisão de causas interlocutórias pode ser necessário apurar matéria de facto;
(iii) para além disso, a tese do Ministério Público poderia ainda colocar em causa a possibilidade de exercício do contraditório do arguido quanto a factos ou argumentos aduzidos pela AdC nas suas contra-alegações, apresentadas nos termos do artigo 85..º, n.º 4 da LdC.
5. É inconstitucional a norma resultante dos artigos 85.º, n.ºs 1, 2 e 3, e 87.º, n.º 5 da LdC, quando interpretada no sentido segundo o qual, em recursos interlocutórios interpostos ao abrigo do artigo 85.º, n.º 1 da LdC, não é admissível a realização de audiência de julgamento, por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva e do contraditório, previstos nos artigos 2.º, 20.º, n.º 1, 32.º, n.º 1 e 10 e 268.º, n.º 4 da CRP e no artigo 6.º da CEDH.”
Tendo concluído que:
“Termos em que o recurso do Ministério Público deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se na íntegra o Despacho Recorrido,
assim se fazendo a costumada Justiça!
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A Autoridade da Concorrência não se pronunciou sobre o recurso interposto pelo MP.
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Por sentença proferida a 3 de outubro de 2019 foi a referida impugnação judicial julgada improcedente, nos seguintes termos:
“Em face de todo o exposto, julgo o recurso totalmente improcedente, mantendo-se as decisões recorridas.”
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Inconformada com tal decisão, veio a Lusíadas, SA, interpôr recurso da mesma para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes conclusões:
“I. A decisão de que se recorre é a Sentença do TCRS, de 03.10.2019 nos termos da qual foi decidido não conhecer da questão suscitada pela Recorrente, referente à impossibilidade de apreensão de mensagens de correio eletrónico em processos contraordenacionais, e que negou provimento aos demais fundamentos recursórios apresentados.
II. Os interesses protegidos pelas normas constitucionais que salvaguardam a inviolabilidade da correspondência e o segredo profissional, impunham ao Tribunal a quo afirmar, expressamente, a sua competência para conhecer da questão da (im)possibilidade de apreensão de mensagens de correio eletrónico em processos contraordenacionais e, só depois disso, seria lícito ao Tribunal a quo conhecer – como realmente conheceu – das demais questões invocadas pela Recorrente em momento anterior à prolação da Decisão Recorrida.
III. A única interpretação normativa capaz de assegurar uma tutela jurisdicional efetiva para o invocado direito (1) à inviolabilidade da correspondência no âmbito do processo contraordenacional e (2) à salvaguarda do segredo profissional, será aquela da qual resulte a imposição de conhecimento, pelo Tribunal a quo, da questão que relegou para conhecimento de um eventual, futuro e não certo recurso de impugnação judicial de uma também eventual, futura e não certa decisão condenatória da AdC.
IV. O direito ao controlo jurisdicional da validade da decisão do Ministério Público que permitiu à AdC a apreensão de correio eletrónico na sede da Recorrente opera logo que se perfile a possibilidade de violação dos interesses constitucionalmente protegidos pela proibição de apreensão de correio eletrónico e pelo segredo profissional, e não só quando se tenha a certeza de que estão ou irão ser violados.
V. O recorte normativo da inviolabilidade da correspondência e da proteção do segredo profissional de advogado terá de assegurar que a respetiva tutela jurisdicional surja e se concretize com “efeito útil”, garantindo que os interesses constitucionalmente salvaguardados por esses direitos fundamentais não são atingidos no respetivo núcleo essencial, permitindo que a tutela jurisdicional que aos mesmos se reconheça seja protelada para uma diferente fase processual, futura e incerta, quer na sua ocorrência, quer no seu tempo.
VI. Independentemente do estatuído no artigo 34.º, n.º 4, do CRP, a compreensão e a estruturação do sistema sancionatório português, ancorado na proteção dos direitos fundamentais, nunca legitimará que, no direito contraordenacional, onde os interesses jurídicos tutelados são, por natureza, de valor inferior aos tutelados pelo direito penal, se permita uma ingerência – e mesmo lesão – de direitos fundamentais de modo mais ligeiro e facilitista que o permitido pelo direito penal.
VII. A norma que se extrai dos artigos 84.º, n.º 1 e 85.º, n.º 1, do NRJC com o artigo 112.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alíneas a) e b), da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (LOSJ), no sentido de o conhecimento da invocada invalidade dos atos da AdC, sustentados  em anteriores decisões do Ministério Público, praticados na fase organicamente administrativa do processo contraordenacional previsto no NRJC e que contendam com direitos fundamentais, ocorrer apenas no âmbito do conhecimento do recurso de impugnação judicial da decisão condenatória fina da AdC, é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 18.º, n.ºs 2 e 3, 20.º, n.º 5 e 24.º, n.º 4, todos da CRP.
VIII. Para além de violar o artigo 6.º da CEDH.
Se assim não se entender, mas sem conceder:
IX. Ao negar provimento ao recurso que antecede a Decisão Recorrida, o Tribunal a quo, necessária e implicitamente, permite a manutenção da decisão da AdC de apreender mensagens de correio eletrónico na sede da Recorrente, independentemente da questão de estarem, ou não, protegidas por segredo profissional.
X. A interpretação ou aplicação do NRJC no sentido de permitir à AdC, com ou sem cobertura de mandado prévio de autoridades judiciárias, a apreensão de mensagens de correio eletrónico em processos contraordenacionais, colidirá, sempre e invariavelmente – nunca é por de mais sublinhar e repetir –, com o disposto no artigo 34.º, n.º 4, da CRP.
XI. De modo perfeitamente patenteado, o Governo pretendeu, num momento inicial ao procedimento legislativo que culminou na aprovação do NRJC, que fosse incluída a correspondência e as mensagens de correio eletrónico na noção de documento naquilo que viria a ser o NRJC.
XII. Todavia, na proposta de lei que o Governo acabou por apresentar à Assembleia da República em fevereiro de 2012 (Proposta de Lei n.º 45/XII, já referenciada supra), como vimos, o artigo correspondente ao artigo 17.º, n.º 1, alínea c) do projeto sujeito a consulta pública (e às referidas disposições da Lei n.º 18/2003 e da LdC), já não apresentava aquela referência expressa a “documentação, incluindo a que for relativa a correspondência, mensagens de correio eletrónico, registo de comunicações”, antes adotando a redação que a final veio a resultar do texto do artigo 18.º, n.º 1, alínea c), do NRJC.
XIII. Nos termos legalmente previstos pelos artigos 18.º, n.º 1, alínea c) e 20.º, n.º 1, do NRJC, não é legalmente autorizado às autoridades administrativas, nomeadamente à AdC, no âmbito de processos contraordenacionais, proceder à apreensão de quaisquer mensagens de correio eletrónico, lidas ou não.
XIV. Apesar de na Decisão Recorrida se ter começado por afirmar uma recusa de conhecimento desta mesma questão, o que é certo é que o Tribunal a quo acaba por igualmente dissertar sobre um conjunto de (sub)questões que imbricam necessariamente com a mesma e que, manifestamente, são irrelevantes à apreciação da amplitude da proteção do segredo profissional.
XV. Uma dessas (sub)questões prende-se com (ir)relevância da sinalização como abertas/lidas ou fechadas/não lidas, das mensagens de correio eletrónico pretendidas apreender.
XVI. A Decisão Recorrida é o respaldo de uma confusão de conceitos díspares tentando argumentar-se no sentido de fazer igualar realidades diferentes, mas que, por serem diferentes, mereceram dos legisladores tratamentos diferenciados, sem prejuízo dos necessários – e legalmente previstos – pontos de contacto: a correspondência física e a correspondência eletrónica.
XVII. A Decisão Recorrida opta, contra legem, por retirar da lei sentidos que não têm na respetiva letra a mínima correspondência verbal, trazendo novas definições que nenhum dicionário (jurídico ou não) suporta para, dessa forma, afirmar aquilo que são preconceitos e prejuízos marcados de quem decide.
XVIII. Não esteve no espírito do legislador transpor para o correio eletrónico a distinção, por referência ao correio tradicional, de correio aberto ou fechado.
XIX. Não só a Decisão Recorrida expressa uma inadequada conformação constitucional da questão e da problemática que lhe é associada, como também espelha uma interpretação das normas aplicáveis totalmente dissociada e sem qualquer suporte, na letra da lei.
XX. Não colhem as razões apresentadas na Decisão Recorrida para afastar a proibição constitucional prevista no artigo 34.º, n.º 4, da CRP, à apreensão de mensagens de correio eletrónico – pouco importa se sinalizadas como lidas/abertas – no âmbito de quaisquer processos contraordenacionais, nomeadamente o previsto no NRJC.
XXI. A interpretação dos artigos 18.º, n.º 1, alínea c) e 20.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, no sentido de permitirem a apreensão e consequente valoração, enquanto meio de prova, de mensagens de correio eletrónico, mesmo que sinalizadas como lidas, é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, 32.º, n.ºs 8 e 10 e 34.º, n.º 4, todos da CRP.
XXII. As provas obtidas, violando a proteção constitucional da correspondência e das comunicações, incluindo mensagens de correio eletrónico, são nulas, nos termos dos artigos 126.º, n.º 3 do CPP, aplicável ex vi artigo 13.º, n.º 1 do NRJC e 41.º, n.º 1 do RGCO, e dos artigos 32.º, n.ºs 8 e 10 e 34.º, n.ºs 1 e 4 da CRP , não podendo ser utilizadas, a não ser que seja obtido o consentimento do titular, o que não sucedeu neste caso.
XXIII. Foi também violado o artigo 6.º da CEDH.
XXIV. Deverá, assim, e em consequência, ser declarada a nulidade de todos os elementos de prova recolhidos que correspondem a mensagens de correio eletrónico e outras comunicações que gozam da proteção conferida à correspondência e às comunicações.
XXV. À mesma conclusão chegaremos se, dissociados do facto de se tratar de prova de apreensão, produção, valoração ou utilização proibida em processo contraordenacional, concluirmos que esses elementos de prova – algumas das mensagens de correio eletrónico apreendidas – se encontram protegidos por segredo profissional e, por isso, vedada estaria à AdC, logo à partida, a possibilidade da respetiva apreensão, nomeadamente por decorrência expressa do previsto no artigo 20.º, n.º 5, do NRJC, aplicado à apreensão de quaisquer documentos (correspondência ou não) protegidos por segredo profissional que não se encontrem em escritório de advogados ou em local de arquivo a esse associado.
XXVI. A Decisão Recorrida não apenas procurou conformar determinados preconceitos jurídicos sobre um conjunto de questões ao que o quadro normativo aplicável prevê – apesar de os mesmos preconceitos não terem mínimo arrimo gramatical nesse mesmo quadro normativo –, como, e pior, molda a própria realidade fática também de modo a melhor enquadrá-la nesses preconceitos que se quiserem afirmar.
XXVII. São exemplos dos preconceitos firmados na Decisão Recorrida os seguintes:
a. Um já sinalizado supra, de que as mensagens de correio eletrónico sinalizadas como lidas/abertas não são, à luz da lei, mensagens de correio eletrónico, apesar do paradoxo conceptual evidente da afirmação;
b. O de que o exercício da advocacia se restringe ao exercício, em representação de outrem, do direito de defesa;
c. O de que unicamente as comunicações de sentido único, seja o Advogado o destinatário, seja o Cliente, e vice-versa, estão protegidas por segredo e apenas, claro, se forem respeitantes ao exercício do direito de defesa – e pela conclusão vertida no último ponto da Sentença recorrida, de análise das mensagens apreendidas, pelos vistos apenas as respeitantes ao direito de defesa em exercício no próprio processo onde estas se pretendem apreender é que relevará (quando se exclui a proteção de mensagens, mesmo sem dizer quais, porque se tratam de “de comunicação e de defesa noutros processos”);
d. Que em termos espaciais, o segredo profissional apenas vale dentro dos escritórios de advogados ou de sociedades de advogados e nos locais de arquivo aos mesmos associados;
e. Que apenas as mensagens de correio eletrónico remetidas ou recebidas no endereço de correio eletrónico registado junto da Ordem dos Advogados é que relevarão para efeitos de proteção de segredo.
XXVIII. Apesar de a Decisão Recorrida afirmar que o problema a resolver passa por dar resposta, em primeiro lugar, à negada tutela jurisdicional imediata à invocada proteção do segredo profissional, certo é que não encontramos qualquer tipo de fundamentação ou de análise a propósito desta mesma questão.
XXIX. Refere a Decisão Recorrida que o artigo 76.º do EOA não é aplicável in casu, uma vez que não se tratou de uma busca feita em escritório de Advogados, conclusão a que se chegaria pelo facto de este dispositivo legal se seguir ao artigo 75.º, que tem por epígrafe “Imposição de selos, arrolamentos e buscas em escritórios ou sociedades de advogados”.
XXX. Quisesse o legislador incluir no artigo 75.º o regime das apreensões de documentos, tê-lo-ia dito de imediato, não fazendo qualquer sentido estar aí a regular as diligências equivalentes e depois as apreensões numa disposição à parte, se não fosse – como realmente é – para consagrar regimes distintos.
XXXI. O legislador ao regular as buscas a escritórios de advogados no artigo 75.º do EOA e as apreensões no artigo 76.º do mesmo EOA, nada afirmando neste último dispositivo quanto à localização espacial da efetivação da apreensão, quis significar, contrariamente ao sustentado na Decisão Recorrida, que a localização espacial da apreensão é indiferente para afirmação da proteção do segredo profissional.
XXXII. O que releva é o facto de a apreensão respeitar, ou não, ao exercício da profissão de Advogado.
XXXIII. É materialmente inconstitucional, por violação do princípio do acesso ao Direito e da proteção das garantias da liberdade de exercício da Advocacia, a norma correspondente ao artigo 76.º, n.º 1, do EOA, no sentido de o mesmo ser exclusivamente aplicável no contexto de buscas realizadas no escritório ou sociedade de advogados ou em qualquer outro local onde faça arquivo.
XXXIV. Aplicando o artigo 76.º, n.º 1, do EOA, em sentido conforme à Lei Fundamental, a Decisão Recorrida não tinha como não concluir pela violação dos procedimentos previstos no artigo 77.º do mesmo EOA, assim como dos artigos 135.º, 179.º e 182.º, todos do CPP, independentemente de a final ter concluído que as mensagens concretamente apreendidas não gozam de proteção de segredo profissional, o que também é errado afirmar-se.
XXXV. Uma leitura integrada dessas normas, impõem afirmar que, seja no processo criminal, seja em processo contraordenacional, se no decurso de uma busca realizada fora de escritório de advogados, for invocado o segredo profissional de Advogado relativamente a documentos ou correspondência que se pretendam apreender, a entidade que preside à diligência deve acondicionar esses elementos em volume selado, sem os ler ou examinar, devendo, seguidamente, apresentá-los junto do Tribunal / Juiz competente – que à partida não estará presente, por não se tratar de busca em escritório de Advogados –, o qual, nos termos do n.º 3 do artigo 77.º do EOA, remeterá o volume em causa ao Presidente do Tribunal da Relação, que decidirá sobre a legitimidade do segredo invocado.
XXXVI. Só assim não se afirmou e concluiu na Decisão Recorrida, acima de tudo, por força das duas premissas / preconceitos / prejuízos que se refutaram no presente Recurso, referentes ao (1) entendimento de que mensagens de correio eletrónico lidas / abertas gozam do mesmo tratamento que meros documentos e (2) à negação da proteção do segredo profissional quanto a documentos que se queiram apreender fora de escritório de advogados, sociedade de advogados ou local de arquivo dos mesmos.
XXXVII. Apenas por concetualizar o espaço natural do exercício da advocacia como local único onde o segredo profissional de Advogado goza de proteção é que a Decisão Recorrida conclui pela irrelevância de ter sido a própria AdC a decidir – e não um Juiz, como requerido oportunamente pela Recorrente – da legitimidade da invocação do segredo, com a agravante de o segredo profissional se encontrar, já nesta fase, absolutamente destruído, com a cobertura de um Tribunal.
XXXVIII. Nestes autos e num processo contraordenacional, permitiu-se a meros funcionários da AdC aquilo que num processo-crime só é permitido aos Presidentes dos Tribunais da Relação, o que se validou na Decisão Recorrida nome da economia processual e de alguma jurisprudência do TJUE, sendo certo que as normas de direito comunitário possam, no ordenamento jurídico nacional, sobrepor-se normativamente às disposições infraconstitucionais, o mesmo não ocorrerá, em circunstância alguma, quanto ao que decorre das normas consagradas na CRP.
XXXIX. Situações como a dos autos já mereceram veemente repúdio da parte da Ordem dos Advogados, que configura a atuação dos funcionários da AdC passível de, em abstrato, configurar a prática de um crime de violação de segredo.
XL. Em síntese, e em suma:
a. As mensagens de correio eletrónico sinalizadas como lidas/abertas são, à luz da lei, mensagens de correio eletrónico;
b. O exercício da advocacia não se restringe ao exercício, em representação de outrem, do direito de defesa;
c. Além das comunicações de sentido único, seja o Advogado o destinatário, seja o Cliente, e vice-versa, outras há que estão protegidas por segredo independentemente do modelo concreto de exercício da profissão;
d. Em termos espaciais, o segredo profissional tanto vale dentro dos escritórios de advogados ou de sociedades de advogados e nos locais de arquivo aos mesmos associados, como em qualquer outro lugar;
e. Não são apenas as mensagens de correio eletrónico remetidas ou recebidas no endereço de correio eletrónico registado junto da Ordem dos Advogados que relevarão para efeitos de proteção de segredo.
XLI. A Decisão Recorrida violou o disposto nos artigos 76.º e 77.º, do EOA, o artigo 42.º do RGCO e o artigo 20.º, n.º 5, do NRJC, dos quais decorre a proibição de apreensão, em processo de contraordenação, de quaisquer formas de correspondência, sobretudo que gozem de proteção de segredo profissional, máxime de Advogado.
XLII. A apreensão presidida pela AdC é ilegal porque foi realizada em violação do segredo profissional, mediante a apreensão de prova protegida por tal segredo, o que tem por consequência a nulidade da aludida apreensão e, consequentemente, de toda a prova recolhida, devendo a mesma ser desconsiderada e não podendo ser utilizada para qualquer efeito, o que se alega nos termos do disposto nos artigos 20.º n.ºs 1 e 5 do NRJC, 42.º, n.º 1 do RGCO, dos artigos 135.º, 179.º, n.ºs 2 e 3 e 182.º, todos do CPP, 76.º e 77.º do EOA e 20.º, 32.º n.º 10, 34.º e 208.º da CRP, o que se requer.
XLIII. Assim, deve ainda ser declarada a nulidade da apreensão da correspondência realizada pela AdC e, consequentemente, a nulidade da prova e da recolha de elementos obtidos no decurso da diligência de busca, por força a violação do princípio da reserva de competência judicial para averiguar da legitimidade da recusa de entrega de documentos sujeitos ao sigilo profissional e dos direitos fundamentais de inviolabilidade do sigilo de correspondência, do desenvolvimento da personalidade, da garantia da liberdade individual e da auto determinação e da garantia da privacidade, devendo os funcionários da AdC que, indevidamente, tomaram conhecimento de factos abrangidos pelo sigilo profissional em causa ficar vinculados a guardar segredo quanto aos mesmos, sob pena de incorrerem na prática de crime.”
Concluiu:
“Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas., Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa certamente suprirão:
1. Deverá ser admitido o presente recurso;
2. Deverão ser expressamente conhecidas as questões de constitucionalidade suscitadas e recusada a aplicação das normas inconstitucionais invocadas;
3. Deverá ser julgada procedente a questão prévia invocada e, consequentemente, deverá ser ordenada a baixa dos autos ao Tribunal a quo, a fim de conhecer da questão cujo conhecimento foi recusado, referente à impossibilidade constitucional e legal de serem apreendidas mensagens de correio eletrónico no âmbito de quaisquer processos contraordenacionais;
Se assim não se entender, mas sem conceder,
4. Deverá ser reconhecida e declarada a impossibilidade constitucional e legal de serem apreendidas mensagens de correio eletrónico no âmbito de quaisquer processos contraordenacionais;
5. Deverá ser reconhecido e declarado que integram o conceito de correspondência eletrónica quaisquer mensagens de correio eletrónico, mesmo que sinalizadas como lidas / abertas;
6. Deverá ser reconhecido e declarado que no âmbito das buscas que estão na génese dos presentes autos de recurso, foram preteridos atos legalmente obrigatórios, nomeadamente os previstos no artigo 77.º do Estatuto da Ordem dos Advogados;
7. Deverá ser reconhecida a legitimidade da invocação do segredo profissional pela Recorrente;
8. Deverá ser revogada a Decisão Recorrida, substituindo-a por outra que, declarando a nulidade da referida diligência de busca, declare igualmente a nulidade da prova e da recolha de elementos obtidos no decurso da diligência de busca, devendo os funcionários da AdC que, indevidamente, tomaram conhecimento de factos abrangidos pelo sigilo profissional em causa ficar vinculados a guardar segredo quanto aos mesmos, sob pena de incorrerem na prática de crime.”
*
Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público, apresentando os seguintes argumentos:
“Na origem do recurso subscrito pela recorrente “Lusíadas, S.A.” está a divergência desta com a douta sentença datada de 03.10.2019 (ref.ª 239490), que julgou totalmente improcedente o recurso de impugnação judicial apresentado pela mesma, no processo de contra-ordenação n.º PRC/2019/2, no qual arguiu a nulidade da apreensão de correio electrónico, a ilegalidade da apreensão de mensagens de correio electrónio protegidas por segredo de advogado e a ilegalidade da apreensão de elementos fora do período temporal dos factos que justificaram a autorização do Ministério Público para as buscas e apreensão.

De todo o modo, e sem prejuízo da posição assumida, sempre se dirá que todas as pretensões e respectivos fundamentos apresentados pela ora recorrente no recurso de impugnação judicial, no referido processo de contra-ordenação n.º PRC/2019/2, foram apreciados na douta decisão ora recorrida, e em relação aos quais genericamente se adere, pelo que se entende que não se verificam as violações de lei e as inconstitucionalidades materiais invocadas.
Face ao exposto, por se entender que foram especificadamente apreciadas todas as pretensões apresentadas e que foi feita uma correcta apreciação da factualidade apurada à luz do disposto nos normativos citados da Constituição da República Portuguesa, do Novo Regime Jurídico da Concorrência, do Regime Geral das Contra-Ordenações, do Código de Processo Penal e do Estatuto da Ordem dos Advogados, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pela recorrente “Lusíadas, S.A.”, por improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida.
*
Por sua vez, respondeu a Autoridade da Concorrência, apresentando os seguintes argumentos:
“…
5.. Veio a Recorrente interpor recurso da decisão proferida no passado dia 03.10.2019, pelo TCRS, no que se refere aos seguintes pontos:
(i) A incompetência, em sede de recurso interlocutório, para conhecer da alegada decisão de apreensão de correio eletrónico em processo contraordenacional de concorrência; e
(ii) Inexistência de qualquer decisão de apreensão de mensagens de correio eletrónico protegidas por segredo de advogado.
6. Ora, considerando tudo o que a propósito destes temas se sustentou em sede de resposta ao recurso interposto pela Recorrente para o TCRS e dado o grau de exaustividade e o detalhe de fundamentação da sentença recorrida, na presente resposta a AdC abstém-se de alongar nos argumentos sobre os quais o Tribunal a quo pertinentemente discorreu, cingindo-se, por ora, a determinados argumentos.
Da possibilidade de apreensão de correio eletrónico em processo contraordenacional da concorrência
7. Independentemente da bondade da decisão do TCRS quanto à sua incompetência para conhecer, em sede de recurso de decisão interlocutória, a alegada ilegalidade da apreensão de correio eletrónico em processo contraordenacional da concorrência, a verdade é que, ainda que instrumentalmente, acaba por, de forma fundamentada e séria, tomar posição quanto ao tema de fundo, concluindo pela admissibilidade da apreensão de mensagens correio eletrónico já lidas.
8. No sentido dessa admissibilidade tem concluído o TCRS e já o próprio Tribunal ad quem[1].
9. Por outro lado, improcede também, por ausência de fundamento metodológico, o argumento da Recorrente no sentido de que se o legislador quisesse ter previsto a possibilidade de apreensão de correio eletrónico na Lei da Concorrência teria aceitado a sugestão da AdC feita em sede de consulta pública no sentido de a alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º daquela lei prever expressamente essa possibilidade.
10. Em primeiro lugar, o silêncio do legislador, só por si, nunca permitiria a conclusão de que as Recorrentes dele pretendem retirar dado que esse silêncio também pode ser atribuído à convicção do legislador de que uma tal referência em particular não seria necessária, face à previsão geral constante naquele normativo “demais documentação, independentemente do seu suporte”.
11. A sugestão da Autoridade da Concorrência visou evitar futuras discussões como aquela que aqui se verifica, mas também se compreende a posição do legislador àquela data, no sentido de que se acautelasse todas as possíveis dúvidas futuras suscitadas pela AdC, tornaria a lei desproporcionalmente pesada, aumentando os custos de conhecimento e aplicação da lei.
12. Em segundo lugar, este silêncio não pode ser metodologicamente equiparado ao “pensamento legislativo” a que se refere o artigo 9.º do Código Civil, não podendo ser considerado como elemento histórico relevante, seja por força de uma occasio legis, de um qualquer trabalho preparatório ou de uma qualquer opção do legislador histórico.
13. Em terceiro lugar, o n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil esclarece que não pode ser considerado pelo intérprete-aplicador um qualquer “pensamento legislativo” que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
14. Ora, ainda que se admitisse uma visão subjetivista-historicista, de correspondência do “pensamento legislativo” ao significado pretendido por um concreto legislador histórico — o que foi tem que ser afastado na discussão metodológica em favor de uma visão (objetiva) atualista — sempre se concluiria que nada na lei permite fundamentar a posição que as Recorrentes imputam ao legislador histórico.
15. Veja-se, aliás, o teor da Diretiva da União Europeia 2019/1 de 11 de dezembro de 2018 – cuja transposição para o ordenamento jurídico nacional está em curso –, onde o artigo 6.º desta tem uma redação em tudo semelhante à redação constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º da Lei da Concorrência, mais uma vez empregando a expressão “independentemente do suporte”.
16. E nos considerandos (30) a (32) da referida Diretiva, o legislador europeu densifica aquele artigo 6.º da Diretiva, revelando, designadamente, a abrangência do termo “independentemente do suporte”. Resulta, assim, manifesto que o legislador europeu interpreta o conceito de “independentemente do suporte” – reitera-se, um conceito semelhante ao adotado pelo legislador nacional – de modo a abranger naturalmente mensagens de correio eletrónico.
17. De resto, este entendimento tem ainda respaldo na própria definição de documento prevista na segunda parte do artigo 362.º do Código Civil: «diz-se documento qualquer objeto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto».
18. Por outro lado, o caminho percorrido pela primeira instância no sentido de distinguir as mensagens de correio eletrónico lidas das não lidas tem respaldo na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na Constituição da República Portuguesa (CRP) e na Lei da Concorrência, afastando a violação do n.º 4 do artigo 34.º da lei fundamental por se tratar de correspondência eletrónica lida.
19. Como corretamente explica a decisão recorrida, “[o] critério da correspondência aberta/fechada é o mais adequado para assegurar e refletir esta lógica de proteção, quer como critério positivo ou de inclusão, quer como critério negativo ou de exclusão, ou seja, como princípio e fim do ato comunicativo, que corporiza o espaço dinâmico de proteção.” (ponto 112).
20. Para além de todos os argumentos esgrimidos pelo TCRS no sentido da distinção entre mensagens de correio eletrónico lidas e não lidas, crê-se ser fundamental fazer-se um exercício de perspetiva face à realidade dos meios de comunicação dos nossos dias para facilmente concluir-se pela legitimidade desta interpretação atualista no sentido de se afastar a aplicação do n.º 4 do artigo 34.º da CRP.
21. Nem pode colher a argumentação no sentido da fragilidade do filtro “lido/ não lido” aplicado ao correio eletrónico, porque a verdade é que também relativamente a uma carta o seu destinatário pode voltar a selar o respetivo envelope, colocar noutro envelope selado, rasgar ou colocar num destruidor de papel.
22. Na realidade, este argumento também funciona necessariamente a favor do recetor da correspondência eletrónica, porquanto as empresas também podem facilmente adotar a classificação de não lido, mesmo após de lido, para assim se furtarem ao eventual crivo contraordenacional da concorrência. Com essa mesma facilidade, as mesmas empresas podem também eliminar essa correspondência a título permanente.
23. Dir-se-ia, aliás, que se o argumento da fragilidade do filtro lido/ não lido procedesse, seria em desfavor da Recorrente.
24. Assim, inexistem dúvidas de que o correio eletrónico lido se equipara um documento, estando por isso expressamente abrangido pela competência atribuída à Recorrida na alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º da Lei da Concorrência.
25. A procedência das inconstitucionalidades e das ilegalidades invocadas pela Recorrente seria, para além de infundamentada à luz da CRP, do direito comunitário e da lei ordinária, paradoxal.
26. Com efeito, a procedência dos argumentos da Recorrente levariam a que a AdC pudesse apreender um email impresso mas estivesse impedida de apreender esse mesmo email já lido, diretamente do servidor, apenas por o seu destinatário não fazer arquivo físico do mesmo (o que de resto, é cada vez mais comum, dada a tendência de desmaterialização do trabalho elaborado em suporte digital).
27. Por estes argumentos, que se somam aos que se elencaram na resposta ao recurso da Recorrente e na decisão recorrida, improcede tudo quanto alega a Recorrente a propósito da suposta inadmissibilidade de apreensão de correio eletrónico já lido.
III. DA BONDADE DA DECISÃO DO TRIBUNAL A QUO QUANTO À INEXSISTÊNCIA DE MENSAGENS DE CORREIO ELETRÓNICO APREENDIDAS PROTEGIDAS POR SEGREDO PROFISSIONAL
28. A Recorrente insurge-se quanto à decisão do TCRS por entender que esta se baseia num conjunto de preconceitos que não merecem acolhimento.
29. Não pode, novamente, colher a argumentação da Recorrente, afigurando-se correta a interpretação sistemática que o Tribunal fez das normas previstas, a propósito da apreensão de documentos abrangidos por segredo profissional, particularmente das normas que resultam do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA).
30. Ademais, o Tribunal não esgota a sua análise no enquadramento legal da questão, antes se preocupando em “(…) dispensar um olhar sobre os procedimentos que são adotados no direito europeu da concorrência” para, precisamente, concluir que “não tendo a diligência sido efetuada em escritório de advogado parece que a AdC não tinha de se preocupar com o segredo profissional do advogado. Contudo, não é exatamente assim.” (ponto 151 da decisão).
31. Em qualquer caso, mesmo que se entendesse que a decisão recorrida falhou na interpretação que fez do artigo 76.º do EOA, a solução da presente questão nunca seria diferente considerando o procedimento seguido pela AdC – nestas e nas restantes diligências de busca que realiza.
32. Com efeito, a AdC tem perfeitamente ciente que o sigilo profissional do advogado, na sua dimensão de proteção da correspondência entre o advogado e o seu cliente, é um pilar estruturante do processo penal e contraordenacional, não só em Portugal, mas em todos os sistemas jurídicos que habitualmente nos servem de referência.
33. É um corolário do princípio da confiança e da lealdade entre cliente e advogado e condição essencial para a livre comunicação entre ambos, sem a qual não é possível a defesa do cliente, nem o livre exercício da advocacia, ao serviço da justiça.
34. A AdC não pode, no entanto, ignorar, que este direito ao segredo do advogado está, naturalmente, em tensão com outros bens jurídicos tutelados por outras normas, como seja a defesa da concorrência, incumbência prioritária do Estado, com assento constitucional (alínea f) do artigo 81.º da CRP.
35. Tendo este enquadramento presente, a Autoridade atua no estrito cumprimento da Lei. Por essa razão, a AdC não faz buscas a escritórios de advogados, não faz buscas em computadores de advogados externos nem, tão pouco, faz buscas a computadores dos chamados advogados in house.
36. Aliás, tal como resulta da matéria de facto dada como provada (pontos l. e p.), a AdC, antes de iniciar as pesquisas, solicitou – como faz sempre – uma lista de advogados à Recorrente por forma a salvaguardar que não faz buscas nos computadores desses advogados (nem nas suas caixas de correio eletrónico).
37. Acresce que, no final das diligências de busca (ponto q. da matéria de facto dada como assente e ponto 12. da decisão), a AdC correu um filtro para identificar todos os emails listados para apreensão onde constasse algum advogado e posteriormente excluir aqueles que, mediante a aplicação dos critérios funcionais validados pelo próprio TCRS, se encontrassem sujeitos a segredo.
38. Note-se que o Tribunal a quo escalpeliza exaustivamente, para além do filtro espacial, os critérios funcionais ao abrigo dos quais determinada correspondência se encontra coberta pelo sigilo profissional, critérios esses que, conforme resulta decisão, foram pela AdC observados.
39. No mais, reitera-se a argumentação expendida pelo TCRS.
40. Em suma, bem andou o Tribunal a quo ao decidir que “As consequências da conclusão exposta para o caso concreto consistem em responder às duas questões identificadas de forma negativa, ou seja, os ficheiros eletrónicos identificados pela Recorrente no artigo 109.º, do recurso de impugnação, não violam o segredo profissional e a apreensão efetuada pela AdC não padece de qualquer vício por violação do princípio de reserva de juiz”.
...
Concluiu:
“Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas suprirão, deve o presente recurso ser julgado improcedente.”
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Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Senhor Procurador Geral Adjunto aderiu à resposta apresentada pelo Ministério Público junto da 1ª instância.
*
A Lusíadas, SA, em respondosta ao parecer, reiterou a posição assumida anteriormente e chamou à colação jurisprudência entretanto emanada do Tribunal Constitucional e desta Relação sobre a matéria em análise.
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Após exame preliminar, foram os autos aos vistos e, de seguida, à conferência.
*
II - Questões a decidir
- Recurso interposto pelo Ministério Público.
- se as condutas assumidas pela Autoridade da Concorrência aquando da busca, estando cobertas pelo mandado emitido pelo Ministério Público, são passíveis de recurso para o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão;
- se, sendo admissível o recurso, é admissível a realização de audiência de julgamento no âmbito do mesmo (por estarmos perante uma decisão interlocutória);
- Recurso interposto pela Lusíadas, SA.
- se o tribunal tinha de conhecer da questão referente à impossibilidade de apreensão de mensagens de correio eletrónico em processos de contraordenação;
- se a interpretação ou aplicação dos artigos 18.º, n.º 1, alínea c) e 20.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio NRJC no sentido de permitir à AdC, com ou sem cobertura de mandado prévio de autoridades judiciárias, a apreensão de mensagens de correio eletrónico em processos contraordenacionais colide com o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, 32.º, n.ºs 8 e 10, 34.º, n.º 4, da CRP no sentido de ser inconstitucional tal interpretação;
- se a prova resultante da dita apreensão é nula;
- se, sendo admissível a apreensão, é admissível, ainda assim, a apreensão de mensagens e comunicações transmitidas de e para advogados ou conhecimento de advogados;
- se é materialmente inconstitucional, por violação do princípio do acesso ao Direito e da protecção das garantias da liberdade de exercício da Advocacia, a norma correspondente ao artigo 76.º, n.º 1, do EOA, no sentido de o mesmo ser exclusivamente aplicável no contexto de buscas realizadas no escritório ou sociedade de advogados ou em qualquer outro local onde faça arquivo;
- se decisão Recorrida violou o disposto nos artigos 76.º e 77.º, do EOA, o artigo 42.º do RGCO e o artigo 20.º, n.º 5, do NRJC, dos quais decorre a proibição de apreensão, em processo de contraordenação, de quaisquer formas de correspondência, sobretudo que gozem de protecção de segredo profissional, máxime de Advogado;
- se a apreensão presidida pela AdC é ilegal porque foi realizada em violação do segredo profissional, mediante a apreensão de prova protegida por tal segredo, o que tem por consequência a nulidade da aludida apreensão e, consequentemente, de toda a prova recolhida, devendo a mesma ser desconsiderada e não podendo ser utilizada para qualquer efeito, o que se alega nos termos do disposto nos artigos 20.º n.ºs 1 e 5 do NRJC, 42.º, n.º 1 do RGCO, dos artigos 135.º, 179.º, n.ºs 2 e 3 e 182.º, todos do CPP, 76.º e 77.º do EOA e 20.º, 32.º n.º 10, 34.º e 208.º da CRP.
*
III - Fundamentação
A - Factos provados
A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos:
1. No dia 10.05.2019, a AdC apresentou-se na sede da Lusíadas, S.A. e da Lusíadas, SGPS, S.A., com dois despachos emitidos pelo Ministério Público, datados de 29.03.2019 e de 03.05.2019 (“Despachos”) e com um mandado emitido em 06.05.2019, ordenando a realização de diligência de busca e apreensão na referida sede, no âmbito de processo de contraordenação da Autoridade, conforme cópias que constam a fls. 176 a 182, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
2. De acordo com o Despacho de 29.03.2019, no processo de contraordenação investigam-se “indícios de práticas restritivas da concorrência que infringem o disposto na alínea a), do n.º 1, do art.º 9.º, da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, punível nos termos da alínea a), do n.º 1, do art.º 68.º, do mesmo diploma legal, levadas a cabo pelas empresas indicadas no presente requerimento, as quais desenvolvem a sua atividade na área da saúde”.
3. Esses indícios apontariam para uma “provável concertação das empresas visadas no âmbito da negociação das condições das convenções celebrada com o Instituto de Proteção e Assistência na Doença, I.P. (ADSE), e da definição e aplicação da tabela de preços e regras correspondentes”.
4. Explica-se ainda no Despacho de 29.03.2019 que “a referida concertação terá abrangido o processo de regularização das faturas de 2015 e 2016, que decorre da alteração das regras e procedimentos para prestadores convencionados, aprovada por Despacho do Diretor-Geral da ADSE de 29 de agosto de 2014”.
5. Diz-se ainda que “a 14 de dezembro de 2014 a ADSE desencadeou os procedimentos tendentes às regularizações referentes a 2015 e 2016, tendo notificado os operadores das regularizações dos atos praticados naqueles dois anos”.
6. Conclui-se, no Despacho de 29.03.2019, que “os elementos colhidos nas diligências efetuadas no âmbito do processo contraordenacional sugerem com clareza a existência de um acordo entre as empresas visadas no que tange à posição negocial a adotar face à ADSE e em particular relativamente ao processo de regularização da faturação de 2015 e 2016”.
7. Já no Despacho de 03.05.2019 é indicado que “no âmbito do processo contraordenacional registado sob o n.º PRC/2019/2, a Autoridade da Concorrência veio entretanto a constatar que algumas das empresas visadas adotaram relativamente ao Instituto de Ação Social das Forças Armadas, I.P. (IASFA), comportamento idêntico ao que haviam adotado em relação à ADSE, sendo que a similitude de atuação sugere a existência de uma efetiva replicação de comportamentos concertados a outras convenções que tenham por objecto a prestação de serviços na área da saúde celebradas ente os grupos hospitalares visados e outras entidades com os mesmos fins, incluindo empresas seguradoras”.
8. Assim, foi determinada a busca “tendo em vista a recolha de elementos probatórios que alicercem as suspeitas existentes também no que concerne às convenções celebradas entre as empresas visadas e a IASFA, bem como outras convenções celebradas entre aquelas e outras entidades com os mesmos fins”.
º. Ainda nos termos dos Despachos, foi autorizada a realização de busca para “exame, recolha e apreensão de cópias ou extratos da escrita e demais documentação, designadamente mensagens de correio eletrónico e documentos internos de reporte de informação entre as visadas, bem como atas de reuniões de administração e direção, quer se encontrem ou não em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, incluindo em qualquer suportes informáticos ou computadores, que estejam direta ou indiretamente relacionados com práticas restritivas da concorrência, e exame e cópia da informação que contiverem” (destacado nosso, transcrição do Despacho de 29.03.2019).
10. A diligência de busca iniciou-se no dia 10.05.2019 e durou até ao dia 22.05.2019.
11. No dia 10.05.2019, a AdC solicitou que lhe fossem disponibilizados os arquivos de correio eletrónico de (…), (…), (…), (…) e (…).
12. Nesse dia 10.05.2019, a Recorrente apresentou a lista dos seus advogados internos e externos, conforme cópia de fls. 215-216, e o requerimento escrito, que ficou anexo ao Auto de Suspensão da Diligência de 10.05.2019, de fls. 211-212, e cuja cópia consta a fls. 213-214, 217, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
13. Nesse requerimento, a Buscada expressamente requereu à AdC que “do universo de mensagens a pesquisar em cada caixa do correio analisada pela AdC, sejam excluídos os endereços eletrónicos indicados na lista anexa, mediante filtros de pesquisa, por forma a assegurar que a AdC não examina, nem analisa quaisquer mensagens de correio eletrónico em que os advogados constantes da lista anexa surjam como remetentes, destinatários ou lhes tenham sido enviados para conhecimento, assim salvaguardando o segredo da correspondência com advogados, previsto nos artigos 20.º n.ºs 1 e 5 da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, 42.º n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações, do 135.º e 182.º do Código de Processo Penal, 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados e 20.º, 32.º n.º 10, 34.º e 208.º da Constituição da República Portuguesa” e que “no caso de, durante a diligência, se apurar que existem mensagens de correio eletrónico trocadas com outros advogados que não constam identificados na lista anexa, as mesmas sejam imediatamente excluídas do universo de mensagens a pesquisar e não sejam visualizadas nem examinadas pela AdC”.
14. Tal requerimento não foi decidido pela AdC até ao momento.
15. Mais apresentou, no decurso das diligências, os requerimentos cujas cópias constam a fls. 221 a 233, 237 a 239, 243 a 249, 253-256, 260 a 262, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
16. A lista fornecida pela Buscada à AdC foi objeto de subsequentes aditamentos, nos dias 14.05.2019 e 15.05.2019, conforme resulta dos autos de diligência e, bem assim, dos requerimentos apresentados pela Buscada nesses mesmos dias e que foram anexos aos aludidos autos, conforme cópias de fls. 237 a 239, em particular fls. 238, e fls. 243 a 249, em particular fls. 244.
17. Só dia 21.05.2019, após ter terminado a seleção de mensagens de correio eletrónico e outros ficheiros informáticos relevantes para apreensão, a AdC iniciou um processo informático para identificar, dessas mensagens, aquelas que teriam sido trocadas com advogados mencionados na lista oportunamente fornecida pela Lusíadas.
18. No último dia de diligência, 22.05.2019, dia em que a apreensão foi concretizada, e em que a AdC transmitiu à Lusíadas que iria apreender 2412 ficheiros informáticos, a AdC confirmou, igualmente, que (i) o filtro informático corrido em 21.05.2019 (mencionado no artigo anterior) detetaria os endereços de correio eletrónico constantes da lista fornecida pela Lusíadas onde quer que os mesmos surgissem nas mensagens (i.e. quer surgissem como destinatários, remetentes, em CC ou até no corpo da mensagem ou em destinatários, remetentes, em CC de mensagens anteriores que constassem dessa mesma cadeia) e que (ii) nenhuma mensagem assinalada pelo filtro havia sido selecionada para efetiva apreensão.
19. Tendo como base este pressuposto, a Lusíadas apresentou um requerimento final arguindo a nulidade da apreensão de correspondência eletrónica, mas relegando para momento posterior a reação à apreensão com outros fundamentos caso viesse a constatar-se, da análise dos ficheiros apreendidos, que esta padeceria de vícios adicionais, conforme cópia que consta a fls. 193 a 209 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
20. De entre os ficheiros apreendidos, existiam mensagens que envolviam advogados da Buscada, designadamente as seguintes:
Email de 28.02.2019, 16:00, com o assunto “Fwd_ADSE”, enviado por (…) para (…), sendo na caixa desta que foi apreendido, reencaminhando email de (…) para (…), (…), (…) (através do endereço (…)@lusiadas.pt) e (…), sendo dirigido a advogado com instruções;
Email de 01.03.2019,12:49, com o assunto “FWD: Carta ADSE” enviado por (…) para (…), remetendo, para conhecimento, um e-mail de (…) para (…) (através do endereço @lusiadas.pt), sobre negociações e respetivo aconselhamento jurídico (sendo que este e-mail foi apreendido na caixa de correio (…)) – inclui cadeia de e-mails;
Email de 28.02.2019, 13:02, com o assunto “FWD: Carta ADSE” enviado por (…) para (…), remetendo e-mail enviado por (…) (através do endereço @lusiadas.pt) enviado a (…) com CC para (…) e (…), sobre carta da ADSE, que inclui anexo (sendo que este e-mail foi apreendido da caixa de correio de (…);
E-mail de 13.02.2019, 15:44, com o assunto “FW: Carta ADSE” enviado por (…) para (…), remetendo um e-mail enviado por (…) (através do endereço @lusiadas.pt) para (…), (…), (…), e (…), sobre proposta de carta ADSE (sendo que este e-mail foi apreendido da caixa de correio de (…);
E-mail de 09.11.2016, 19:39, com o assunto “RE: PCE – Incorporação assinatura digitalizada nos documentos”, enviado por (…) para (…), (…) com CC para (…) e (…) (sendo da caixa de e-mail deste último que o e-mail foi apreendido), que inclui cadeia de e-mails da qual consta email enviado em 03.11.2016, às 10:00, por (…) (através do endereço @lusiadas.pt) para (…) e (…), contendo aconselhamento jurídico.
21. A AdC apreendeu as seguintes mensagens de correio eletrónico anteriores a 29 de agosto de 2014:
E-mail de 19.08.2014, 14:57, com o assunto “RE: Convenções Almada”, enviado por (…) para (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido), (…), (…), (…), remetendo um e-mail enviado por (…) para (…), (…), (…) - inclui cadeia de e-mails;
E-mail de 01.07.2014, 15:32, com o assunto “RE: Pvp’s”, enviado por (…) para (…) (sendo da caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido), remetendo um e-mail de (…) para (…);
E-mail de 30.06.2014, 19:05, com o assunto “Pvp’s”, enviado por (…) para (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido - inclui cadeia de e-mails;
E-mail de 30.06.2014, 17:00, com o assunto “FW: Pvp’s”, enviado por (…) para (…) (sendo na caixa de correio do primeiro que o e-mail foi apreendido);
E-mail de 17.06.2014, 16:59, com o assunto “RE: HLL | Exames Neurologia – Potenciais Evocados dos somato-sensitivos e sensoriais / Estudos do Sistema Nervoso Autónomo”, enviado por (…) para (…), com CC para (…), (…) (sendo na caixa de correio deste último que o e-mail foi apreendido) e (…) - inclui cadeia de e-mails;
E-mail de 05.06.2014, 11:36, com o assunto “RE: HLL | Exames Neurologia – Potenciais Evocados dos somato-sensitivos e sensoriais / Estudos do Sistema Nervoso Autónomo”, enviado por (…) para (…), (…) com CC para (…) e (…) (sendo na caixa deste último que o e-mail foi apreendido) – inclui cadeia de e-mails;
E-mail de 05.06.2014, 11:31, com o assunto “RE: HLL | Exames Neurologia – Potenciais Evocados dos somato-sensitivos e sensoriais / Estudos do Sistema Nervoso Autónomo”, enviado por (…) para (…), (…), com CC para (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido) - inclui cadeia de e-mails;
E-mail de 24.03.2014, 18:37, com o assunto “FW: Lasik”, enviado por (…) para (…) com CC para (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido) e (…) - inclui cadeia de e-mails;
E-mail de 03.10.2013, 15:23, com o assunto “ALTAMENTE CONFIDENCIAL”, enviado por (…) para (…) (sendo na caixa de correio do primeiro que o e-mail foi apreendido);
E-mail de 10.09.2013, 19:17, com o assunto “RE: SAMS Norte”, enviado por (…) para (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido), (…) com CC para (…);
E-mail de 24.09.2013, 17:05, com o assunto “Re: é a pedido…”, enviado por (…) para (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido);
E-mail de 21.09.2013, 00:46, com o assunto “RE: Diversos…”, enviado por (…) para (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido);
E-mail de 19.09.2013, 18:22, com o assunto “RE: Diversos…”, enviado por (…) para (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido) - inclui cadeia de e-mails;
E-mail de 19.09.2013, 16:29, com o assunto “Fw: Diversos…”, enviado por (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido) para (…);
E-mail de 10.09.2013, 19:50, com o assunto “RE: SAMS Norte”, enviado por (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido) para (…), (…) - inclui cadeia de e-mails;
E-mail de 09.09.2013, 18:53, com o assunto “RE: SAMS Norte”, enviado por (…) para (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido) e (…) com CC para (…) – inclui cadeia de e-mails;
E-mail de 10.09.2013, 14:37, com o assunto “RE: SAMS Norte”, enviado por (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido) para (…) e (…) – inclui cadeia de e-mails;
E-mail de 09.09.2013, 18:36, com o assunto “RE: SAMS Norte”, enviado por (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido) para (…) e (…) - inclui cadeia de e-mails;
E-mail de 09.09.2013, 18:21, com o assunto “SAMS Norte”, enviado por (…) para (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido) e (…) - inclui cadeia de e-mails;
E-mail de 09.05.2013, 21:42, com o assunto “RE: Turismo_médico_piloto-hpp”, enviado por (…) a (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido) – inclui cadeia de e-mails;
E-mail de 09.05.2013, 17:23, com o assunto “FW: Pacotes” enviado por (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido) para (…);
E-mail de 17.04.2013, 12:45, com o assunto “Pacotes” enviado por (…) para (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido);
E-mail de 16.08.2012, 18:11, com o assunto “Proposta de preços ARS/ADSE para exames de Imagem colocada na Anaudi”, enviados por (…) para (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido);
E-mail de 06.06.2012, 14:47, com o assunto “Médis – Concorrencia Algarve”, enviados por (…) (sendo na caixa de correio deste que o e-mail foi apreendido) para (…);
Email de 06.06.2012, 14:44, com o assunto: “No subject”, enviado por (…) (e aí apreendido) para (…);
Email de 11.06.2012, 14:30, com o assunto “RE:”, enviado por (…) (e aí apreendido) para (…);
Email de 29.03.2012, 17:11, com o assunto “Duvidas”, enviado por (…) (e aí apreendido) para (…);
Email de 30.03.2012, 11:29, com o assunto “RE: Duvidas”, enviado por (…) para (…) (apreendido na caixa deste);
Email de 30.03.2012, 15:35, com o assunto “RE: Duvidas”, enviado por (…) para (…), apreendido na caixa de (…);
Email de 17.04.2012, 09:51, com o assunto “RE: Duvidas”, enviado por (…) para (…), apreendido na caixa de (…);
Email de 05.04.2011, 09:26, com o assunto “Comparativo Preços”, enviado por (…) para (…), apreendido na caixa deste;
Email de 05.04.2011, 17:39, com o assunto “RE: Comparativo Preços”, enviado por (…) para (…), apreendido na caixa de (...);
Email de 14.12.2010, 10:45, com o assunto: “Multicare - Tabela de Diárias do Hospital da Boavista”, enviado por (…) para (…), com conhecimento para (…) e (…) (inclui cadeia de emails sobre o assunto), apreendido na caixa de (…);
Email de 14.12.2010, 10:39, com o assunto: “RE: Multicare - Tabela de Diárias do Hospital da Boavista”, enviado por (…), para (…), com conhecimento para (…) e (…) (inclui cadeia de emails sobre o assunto), apreendido na caixa de (…);
Email de 14.12.2010, 10:05, com o assunto: “Multicare - Tabela de Diárias do Hospital da Boavista”, enviado por (…) para (…), com conhecimento para (…) e (…) (inclui cadeia de emails sobre o assunto), apreendido na caixa de (…);
Email de 13.12.2010, 13:32, com o assunto: “Tabela de Diárias do Hospital da Boavista”, enviado por (…) para (…) (inclui cadeia de emails sobre o assunto), apreendido na caixa de (…);
Email de 13.12.2010, 15:47, com o assunto: “RE: Tabela de Diárias do Hospital da Boavista”, enviado por (…) para (…), com conhecimento para (…) (inclui cadeia de emails sobre o assunto), apreendido na caixa de (…);
Email de 13.12.2010, 17:30, com o assunto: “FW: Tabela de Diárias do Hospital da Boavista”, enviado por (…) (e apreendido na caixa deste) para (…) (inclui cadeia de emails sobre o assunto);
Email de 13.12.2010, 16:35, com o assunto: “RE: Tabela de Diárias do Hospital da Boavista”, enviado por (…) para (…) (apreendido na caixa deste), com conhecimento para (…) (inclui cadeia de emails sobre o assunto);
Email de 13.12.2010, 16:33, com o assunto: “Tabela de Diárias do Hospital da Boavista”, enviado por (…) (inclui cadeia de emails sobre o assunto), apreendido na caixa deste;
Email de 13.12.2010, 16:11, com o assunto: “RE: Tabela de Diárias do Hospital da Boavista”, enviado por (…) (e apreendido na caixa deste) para (…), com conhecimento para (…) (inclui cadeia de emails sobre o assunto);
Email de 13.12.2010, 13:08, com o assunto: “FW: Tabela de Diárias do Hospital da Boavista”, enviado por (…) (e aí apreendido) para (…) (inclui cadeia de emails sobre o assunto);
Email de 10.12.2010, 15:33, com o assunto: “RE: Tabela de Diárias do Hospital da Boavista”, enviado por (…) para (…) e (…), com conhecimento para (…) (inclui cadeia de emails sobre o assunto), apreendido na caixa de (…);
Email de 10.12.2010, 15:23, com o assunto: “FW: Tabela de Diárias do Hospital da Boavista”, enviado por (…) (e aí apreendido) para (…), com conhecimento para (…) e (…) (inclui cadeia de emails sobre o assunto);
Email de 10.12.2010, 15:13, com o assunto: “Tabela de Diárias do Hospital da Boavista”, enviado por (…) para (…), com conhecimento para (…) (inclui cadeia de emails sobre o assunto), apreendido na caixa de (…);
Email de 10.12.2010, 15:34, com o assunto: “RE: Tabela de Diárias do Hospital da Boavista”, enviado por (…) (e aí apreendido) para (…), com conhecimento para (…) (inclui cadeia de emails sobre o assunto);
Email de 10.12.2010, 15:30, com o assunto: “RE: Tabela de Diárias do Hospital da Boavista”, enviado por (…) para (…) e para (…) com conhecimento para (…) (inclui cadeia de emails sobre o assunto), apreendido na caixa de (…);
Email de 10.12.2010, 15:21, com o assunto: “RE: Tabela de Diárias do Hospital da Boavista”, enviado por (…) (e aí apreendido) para (…), com conhecimento para (…) (inclui cadeia de emails sobre o assunto);
Email de 13.09.2010, 16:02, com o assunto: “FW: PMA – SS CGD”, enviado por (…) (apreendido na caixa deste) para (…);
Email de 15.02.2010, 15:50, com o assunto: “PMA – SS CGD”, enviado por (…) para (…), com conhecimento para (…) (e apreendido na caixa deste);
Email de 08.02.2010, 18:49, com o assunto: “FW: SS CGD”, enviado por (…) para (…), com conhecimento para várias pessoas, incluindo (…) (e apreendido na caixa deste);
Email de 08.02.2010, 16:53, com o assunto: “RE: SS CGD”, enviado por (…) (e apreendido na caixa deste) para (…) e (…), com conhecimento para (…);
Email de 05.02.2010, 19:15, com o assunto: “FW: SS CGD”, enviado por (…) para (…), com conhecimento para (…) (e apreendido na caixa deste último);
Email de 02.02.2010, 16:03, com o assunto: “SS CGD”, enviado por (…) para (…) (e apreendido na caixa deste); e
Email de 03.02.2010, 15:04, com o assunto “RE: SS CGD”, enviado por “/o=FidelidadeMundial/ou=First Administrative Group/cn=Recipients/cn=HPC0478”, para (…), com conhecimento para (…) (email assinado por e apreendido na caixa de correio de (…)).
22. Após a diligência, a AdC procedeu ao desentranhamento dos emails identificados na alínea t) (20) e devolução à Recorrente.
*
B - Factos não provados
A decisão recorrida não deu como provados os seguintes factos:
1. Email de 13.02.2019, 15:54, com o assunto “FW_Carta ADSE”, enviado (…) a (…), sendo na caixa desta que foi apreendido, remetendo email enviado por (…) (através do endereço (…)@lusiadas.pt) para (…), (…) a, enviando “proposta de carta a enviar à ADSE (com uns pequenos ajustes)”, contendo, indubitavelmente aconselhamento jurídico feito por advogado;
2. E-mail de 28.02.2019, 13:02, com o assunto “Fwd: Carta ADSE” enviado por (…) para (…), sobre Carta ADSE, remetendo e-mail enviado por (…) (através do endereço (...)@lusiadas.pt) para (…) com CC para (…) e (…), sobre Carta ADSE (sendo que este e-mail foi apreendido da caixa de (…) – inclui cadeia de e-mails.
*
IV - O Direito
O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. os artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2 e 410º, n.º 2, als. a), b) e c) do Código de Processo Penal).
*
Antes de mais, importa referir que no âmbito do presente processo, sendo no apenso A), foram suscitadas as mesmas questões, então pela Lusíadas, SGPS, e pelo Ministério Público, que originou a decisão deste Tribunal, de 4 de fevereiro de 2020.
*
Recurso do Ministério Público.
Vejamos então se as condutas assumidas pela Autoridade da Concorrência aquando da busca, estando cobertas pelo mandado emitido pelo Ministério Público, são passíveis de recurso para o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão.
Para darmos resposta a esta questão importa ter presente os factos considerados provados pelo Tribunal a quo e, ainda, os que se seguem:
1 - A Lusíadas, SA, impugnou a decisão de apreensão proferida pela Autoridade da Concorrência, no processo de contraordenação n.º PRC 2019/2, pugnando pela nulidade da apreensão (e da prova) referente a 2412 ficheiros informáticos encontrados na sede da Lusíadas, nomeadamente por corresponder a apreensão de mensagens de correio eletrónico, por, reportado ao “segredo de advogado”, não ter aplicado um filtro que permitisse excluir mensagens de correio eletrónico enviadas e/ou recebidas por advogados internos e externos e ainda porquanto não se ateve nos limites dos despachos do MP.
2 - Por despacho datado de 08.07.2019 (ref.ª 234008), na parte que ora interessa, o Ministério Público do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão introduziu em juízo o recurso interlocutório de impugnação judicial apresentado pela visada “Lusíadas, S.A.”, nos seguintes termos:
“O recurso, com efeito meramente devolutivo (art.º 84.º, n.º 4, parte da Lei 19/2012), visa a realização de actos praticados pela AdC no âmbito do PRC/2019/2 e não a prolação de decisão interlocutória desta Autoridade, razão pela qual não deverá ser admitido (art.º 85.º, n.º 1 da LC).”
3 - Na parte que ora releva, o recurso foi admitido por decisão de 11.07.2019 (refª citius 234364) a qual tem o seguinte conteúdo:
“…
4. Sem prejuízo de melhor entendimento, não se concorda, na medida em que a Recorrente visa, no fim da linha, a revogação da decisão de apreensão da AdC.
5. O recurso versa sobre decisão recorrível, foi interposto por quem tem legitimidade, está em tempo e cumpre os requisitos de forma legalmente exigíveis (cf. artigos 84.º, n.º 1, e 85.º, n.º 1, ambos do NRJC, 55.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações – RGCO – ex vi artigo 83.º, do NRJC). Trata-se de um recurso com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo (cf. artigos 85.º, n.º 1, do NRJC, e 408.º, do Código de Processo Penal – CPP – ex vi artigos 41.º, n.º 1, do RGCO, e 83.º, d NRJC). Em consequência, admito o recurso, com efeito meramente devolutivo.

2. Admito o rol de testemunhas indicado pela Recorrente e determino o prosseguimento dos autos para a realização da audiência de julgamento, que se designa para o dia: 23 de setembro de 2019, pelas 15h00m (podendo iniciar-se às 14h00m e realizar-se, em simultâneo com a audiência de julgamento designada no apenso A, caso todos os sujeitos processuais intervenientes concordem).”
A lei da concorrência, relativamente à matéria dos recursos judiciais, dedica um capítulo, no caso o IX.
Este capítulo começa por enunciar que “salvo disposição em sentido diverso da presente lei, aplicam-se à interposição, à tramitação e ao julgamento dos recursos previstos na presente secção os artigos seguintes e, subsidiariamente, o regime geral do ilícito de mera ordenação social” (artigo 83.º).
Por sua vez, estabelece o artigo 84.º da Lei 19/2012, de 8 de maio, sobre a epígrafe “Recurso, tribunal competente e efeitos do recurso”, que:
“1 - Cabe recurso das decisões proferidas pela AdC cuja irrecorribilidade não estiver expressamente prevista na presente lei.
2 - Não é admissível recurso de decisões de mero expediente e de decisões de arquivamento, com ou sem imposição de condições, exceto quando expressamente previsto na presente lei.
3 - Das decisões proferidas pela AdC cabe recurso para o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão.
4 - O recurso, incluindo o de decisão interlocutória, tem efeito meramente devolutivo, exceto no que respeita a decisões que imponham medidas de caráter estrutural determinadas nos termos do n.º 4 do artigo 29.º, cujo efeito é suspensivo.
5 - No caso de decisões que apliquem coimas ou outras sanções previstas na lei, o visado pode requerer, ao interpor o recurso, que o mesmo tenha efeito suspensivo quando se ofereça para prestar caução, no prazo de 20 dias, no valor de metade da coima aplicada, ficando a atribuição desse efeito condicionada à efetiva prestação de caução.”
Por sua vez, dispõe o artigo 85.º do mesmo diploma legal, sob a epígrafe “Recurso de decisões interlocutórias”, que:
“1 - O recurso de uma decisão interlocutória da AdC pode ser interposto no prazo de 20 dias úteis, não prorrogável.
2 - Interposto recurso de uma decisão interlocutória da AdC, o requerimento é remetido pela AdC ao Ministério Público, no prazo de 20 dias úteis, não prorrogável, com indicação do número de processo na fase administrativa, podendo no mesmo prazo juntar alegações e quaisquer elementos ou informações que a AdC considere relevantes para a decisão do recurso.
3 - Formam um único processo judicial os recursos de decisões interlocutórias da AdC proferidas no mesmo processo na fase administrativa.
4 - O tribunal decide por despacho, salvo se concluir pela necessidade de audiência de julgamento.”
Finalmente, estabelece o artigo 86.º-A, sob a epígrafe “Reação a decisões no âmbito de diligências de busca e apreensão”, que:
“1 - No âmbito de diligências de busca e apreensão, todos os incidentes, arguições de nulidade e requerimentos devem ser dirigidos à autoridade judiciária que autorizou o respetivo ato, no prazo de 10 dias úteis após o encerramento das referidas diligências ou da respetiva tomada de conhecimento.
2 - Das decisões da AdC referentes à execução do despacho da autoridade judiciária para as diligências de busca e apreensão cabe recurso nos termos do artigo 85.º
3 - Das decisões do Ministério Público relativas à validade dos seus atos há reclamação para o superior hierárquico imediato.
4 - Das decisões do juiz de instrução relativas à validade dos seus atos cabe recurso, nos termos do n.º 4 do artigo 89.º, com efeito meramente devolutivo, para o tribunal da relação competente, que decide em última instância.”
Dito isto, considerando que o recurso interposto pela Lusíadas, SA, versa – também – sobre as decisões da Adc referentes à execução do despacho proferido pelo Ministério Público, não podemos deixar de concordar que a decisão (Adc) em crise é recorrível.
Efetivamente, como vimos, a Recorrente coloca em causa a decisão da Adc de não aplicar o “filtro” e ainda de ir além – temporalmente – do objeto definido pelo mandado emitido pelo MP.
Esta constatação, salvo o devido respeito, per se, era suficiente para determinar a admissão do recurso.
Ainda assim, a Recorrente imputa outros vícios à busca/ apreensão levada a cabo pela Adc, nomeadamente em termos da possibilidade legal da sua realização, em particular pela violação de regras constitucionais, entre outras de (in)competência, de sigilo da correspondência, de sigilo profissional de advogados e do direito à intimidade da vida privada.
Chegados a este ponto, tendo presente que a Adc agiu com base num mandado emitido pelo MP, enquanto autoridade judiciária competente, conforme, aliás, decorre do disposto no artigo 18.º, n.º 1, al. c) e 2, da LC, impõe-se, face ao citado artigo 86.º-A, n.º 3, estabelecer o alcance do recurso.
Dito de outro modo, por reporte a estas últimas imputações, importa saber se a Recorrente deveria ter dirigido reclamação ao superior hierárquico do Digno MP que emitiu o mandado executado pela Adc ou, pelo contrário, andou bem ao dirigir o recurso ao Tribunal a quo.
Admitimos que a decisão se afigura sensível.
Porém, recorrendo à letra da lei, que se refere à validade do ato, entendemos que esta terá de se aquilatar por referência à sua substância, ou seja, à apreciação das razões que estiveram na base da decisão e não, por exemplo, à competência para o ato, pois que este, além de objetivo, também afeta indubitavelmente a busca/ apreensão levada a cabo pela Adc e, por isso, requer uma decisão atempada.
Efetivamente, a não se entender assim, estaríamos a admitir que atos com evidente impacto na esfera jurídica de particulares, sob a égide da competência, perdurassem até, eventualmente, à análise da decisão final.
Nessa medida, concordamos não ser sindicável, pela via do recurso intercalar, o conteúdo do despacho da autoridade judiciária, ou seja, a razão pela qual deferiu ou indeferiu tal mandado, mas já entendemos ser sindicável, por esta via, saber se o mandado executado pela Adc foi emitido pela autoridade legalmente competente.
Face ao exposto, concluímos que bem andou o Tribunal a quo ao admitir o recurso.  
*
Vejamos agora a segunda questão sucitada pelo Digno Ministério Público, ou seja, se é admissível a realização de audiência de julgamento no âmbito do mesmo (por estarmos perante uma decisão interlocutória).
A resposta a esta questão é-nos dada pelos citados artigos da LC, em particular pelos artigos 83.º, 85.º, n.º 4, e 86.º-A, n.º 2.
Efetivamente, resulta da conjugação dos referidos artigos que a decisão da Adc, por dizer respeito, como vimos, à execução do despacho da autoridade judiciária para a busca/ apreensão, pela remissão operada pelo artigo 86.º-A, n.º 2, para o artigo 85.º, sendo que o n.º 4 deste último prevê expressamente que “o tribunal decide por despacho, salvo se concluir pela necessidade de audiência de julgamento”.
Significa, assim, que cabe ao tribunal considerar essa necessidade e, na sequência, optar pela decisão por despacho ou pela realização da audiência de julgamento.
Aliás, sobre esta temática, o STA julgou não inconstitucional, em recursos de decisões interlocutórias da Autoridade da Concorrência, que o tribunal dispense a audiência de julgamento e profira decisão por simples julgamento, mesmo quando haja oposição do visado (acórdão n.º 579/2023, de 27 de setembro, in www.dgsi.pt), pelo que, a contrario, retiramos não lhe estar vedada a possibilidade de entender necessário realizar o julgamento.
Assim, também nesta parte, a decisão proferida pelo Tribunal a quo não nos merece reparo. 
*
Recurso da Lusíadas, S.A.
Importa agora saber se o tribunal tinha de conhecer da questão referente à impossibilidade de apreensão de mensagens de correio eletrónico em processos de contraordenação.
A sentença em crise considerou a inadmissibilidade legal de conhecimento, neste momento, do primeiro fundamento do recurso, ou seja, da admissibilidade de apreensão de correio eletrónico no âmbito do processo contraordenacional.
Para o efeito partiu da premissa que os atos do Ministério Público, seu âmbito e/ ou extensão, não são sindicáveis nesta fase interlocutória.
A argumentação explanada, de forma exaustiva e coerente, salvo as reservas acima enunciadas, quanto à competência, merece a nossa concordância.
Admitimos, pois, que o mérito e alcance da decisão proferida pelo Magistrado do Ministério Público não seja sindicável, nesta fase processual, por esta via.
Assim, a circunstância de o Tribunal a quo não se ter pronunciado sobre o alcance do mandado do Ministério Público não nos merece censura.
*
Vejamos agora se a interpretação ou aplicação dos artigos 18.º, n.º 1, alínea c) e 20.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, (NRJC) no sentido de permitir à AdC, com ou sem cobertura de mandado prévio de autoridades judiciárias, a apreensão de mensagens de correio eletrónico em processos contraordenacionais colide com o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, 32.º, n.ºs 8 e 10, 34.º, n.º 4, da CRP, no sentido de ser inconstitucional tal interpretação.
Importa, desde já, referir que esta matéria contende com a essência da competência da Adc, sendo, por isso, sindicável. O que nos leva a pugnar por entendimento diverso do adotado pelo Tribunal a quo.
Vejamos porquê.
O Tribunal Constitucional, nos acórdãos 91/2023, de 16 de março de 2023, e 314/2023, de 26 de maio de 2023, em situações identidas ao nosso caso, fixou a seguinte jurisprudência:
Ac. 91/2023
“ Julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 4, e 34.º, n.ºs 1 e 4, este conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, todos da Constituição, a norma extraída das disposições conjugadas do n.º 2 do artigo 18.º e do n.º 1 do artigo 20.º do Regime Jurídico da Concorrência, na versão aprovada pela Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, segundo a qual, em processo contraordenacional por prática restritiva da concorrência, é permitida à Autoridade da Concorrência a busca e apreensão de mensagens de correio eletrónico abertas mediante autorização do Ministério Público.”
Ac. 314/2023
julgar inconstitucional a norma contida nos artigos 18.º, n.º 1, alínea c), n.º 2, 20.º n.º 1 e 21.º do Novo Regime Jurídico da Concorrência, aprovado pela Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, na interpretação segundo a qual se admite o exame, recolha e apreensão de mensagens de correio eletrónico em processo de contraordenação da concorrência, desde que autorizado pelo Ministério Público, não sendo necessário despacho judicial prévio, por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 4, e 34.º, n.ºs 1 e 4, este conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, todos da Constituição;”
Para o efeito, apresentou (o primeiro acórdão) a seguinte fundamentação:
“Da segunda norma impugnada decorre que, «em processo por prática restritiva da concorrência, é permitida a busca e apreensão de mensagens de correio eletrónico abertas mediante autorização do Ministério Público». Esta norma foi extraída alínea c) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 18.º e do n.º 1 do artigo 20.º do RJC, que estabelecem o regime da «busca, exame, recolha e apreensão» facultadas à AdC no exercício dos seus poderes sancionatórios.
Tal como continua a verificar-se após as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/2022, este regime distingue-se daquele que se encontra previsto no artigo 19.º para a «busca domiciliária» pelo facto de, ao contrário deste, não fazer depender a realização de qualquer daquelas diligências da obrigatória intervenção do juiz de instrução.
Na versão aplicável ao caso dos autos, o artigo 19.º do RJC determina que a realização de busca domiciliária, para além de supor a «violação grave» do disposto nos respetivos artigos 9.º e 11.º ou dos artigos 101.º ou 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, «deve ser autorizada, por despacho, pelo juiz de instrução, a requerimento da Autoridade da Concorrência» (n.º 1), que terá de «mencionar a gravidade da infração investigada, a relevância dos meios de prova procurados, a participação da empresa ou associação de empresas envolvidas e a razoabilidade da suspeita de que as provas estão guardadas no domicílio para o qual é pedida a autorização» (n.º 2), podendo o «juiz de instrução» ordenar àquela entidade «a prestação de informações sobre os elementos que forem necessários para o controlo da proporcionalidade da diligência requerida» (n.º 3). Por sua vez, o n.º 2 do artigo 18.º do RJC prescreve que as diligências previstas nas alíneas c) e d) do n.º 1 dependem de autorização da «autoridade judiciária competente» — o mesmo é dizer, do juiz ou do Ministério Público (cfr. artigo 1.º, alínea b), do Código de Processo Penal) ¾, independentemente da natureza do objeto buscado, examinado, recolhido ou apreendido.
Os referidos regimes mantiveram-se, no essencial, inalterados pela Lei n.º 17/2022. A nova redação dada ao n.º 4 do artigo 18.º, relativa à impugnabilidade da decisão da autoridade judiciária competente que recuse conceder à AdC a autorização para a realização das diligências agora previstas nas alíneas a) a d) do n.º 1, veio mesmo reforçar que tal autorização pode ser concedida ou pelo Ministério Público, cabendo neste caso reclamação para o superior hierárquico imediato na hipótese de recusa, ou pelo juiz de instrução, situação em que a recusa será impugnável junto do tribunal da relação competente.
Aplicando o artigo 18.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, do RJC, na redação dada pela Lei n.º 19/2012, em conjugação com o n.º 1 do respetivo artigo 20.º, o Tribunal recorrido extraiu desse “arco legal” a norma segundo a qual, «em processo contraordenacional por prática restritiva da concorrência, é permitida à Autoridade da Concorrência a busca e apreensão de mensagens de correio eletrónico abertas mediante autorização do Ministério Público», o que lhe permitiu afastar qualquer vício adveniente da ausência de um controlo judicial prévio verificada no caso sub judice.
Trata-se, conforme se antecipou já (v. supra, o n.º 23), de um juízo que não pode ser confirmado.
26. É verdade que, ao contrário do que dispõe o n.º 2 do artigo 34.º da Constituição — que reserva à autoridade judicial competente a decisão sobre a ingerência no domicílio —, o respetivo n.º 4 não coloca expressamente na dependência da intervenção prévia de um juiz a ingerência das autoridades públicas nos meios de comunicação privada. Daí não se segue, todavia, que o legislador se encontre constitucionalmente autorizado a dispensar essa intervenção nos casos em que admita a possibilidade de obtenção de prova através da apreensão de mensagens de correio eletrónico, abertas ou fechadas.
Esta questão foi recentemente apreciada no Acórdão n.º 687/2021, já referido, que se ocupou, em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, de um conjunto de alterações ao artigo 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime), das quais decorria passar o Ministério Público a poder autorizar, ordenar e validar, enquanto autoridade judiciária competente em sede de inquérito, a apreensão de mensagens de correio eletrónico.
Partindo do diferente estatuto constitucional da magistratura judicial e da magistratura do Ministério Público e, em particular, do conjunto de garantias por um e outro proporcionadas, o Tribunal afirmou ali o seguinte:
«É certo que, como já vimos, a Lei Fundamental permite expressamente a ingerência das autoridades públicas na comunicação, nas suas várias formas, nos casos previstos na lei, em sede de processo penal. Além disso, não resulta diretamente da norma do n.º 4 do artigo 34.º da CRP que tal ingerência deva ocorrer, necessariamente, mediante intervenção de uma autoridade judicial. A este propósito, disse-se no Acórdão n.º 4/2006:
«O artigo 34.º da CRP, após proclamar, no n.º 1, a inviolabilidade do domicílio e do sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada, con­sidera, no n.º 4, “proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunica­ções e nos demais meios de comunicação, salvo os demais casos previstos na lei em matéria de processo criminal” (o inciso “e nos demais meios de comunicação” foi aditado pela revi­são constitucional de 1997, tendo em vista as modernas formas de comunica­ção à distância, que não correspondem aos sentidos tradicionais de correspondência ou de telecomunicações). Da formulação literal do n.º 4 do artigo 34.º da CRP resulta a limita­ção direta da admissibili­dade da “ingerência ... nas comunicações” ao âmbito do processo criminal e a sua sujeição a reserva de lei. Mas desse preceito constitucional já não resulta, ao menos de forma explícita e direta, a sujeição da “ingerência” a reserva de decisão judicial, como, diversamente, o pre­cedente n.º 2 faz relativamente à entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade, que só pode ser ordenada “pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei”.»
Neste prisma, poderia defender-se que a intervenção do Ministério Público, enquanto autoridade judiciária competente, na fase de inquérito, bastaria – atenta a sua autonomia e os estritos critérios de legalidade pelos quais deve pautar-se a sua intervenção processual – para assegurar a conformidade constitucional da solução legal prevista nas normas questionadas.
Sucede, porém, que, tratando-se, como se demonstrou, de normas restritivas de direitos, liberdades e garantias, a afetação de tais direitos deverá ser a menor possível, devendo limitar-se ao mínimo indispensável para assegurar uma efetiva prossecução dos bens e valores jusconstitucionais que fundamentam a restrição. Ora, considerando o impressivo e distinto retrato do juiz e do Ministério Público que resulta do texto constitucional e das disposições legais aplicáveis – vistos os seus diferentes estatutos e poderes – parece incontornável reconhecer que a intervenção judicial constitui uma garantia adicional de ponderação dos direitos e liberdades atingidos no decurso da investigação criminal (veja-se o que se disse nos Acórdãos n.ºs 42/2007, n.º 155/2007, n.º 228/2007 e n.º 213/2008).
Efetivamente, nos momentos processuais em que esteja em causa uma atuação restritiva das autoridades públicas no âmbito dos direitos fundamentais, a intervenção de um juiz – com as virtudes de independência e imparcialidade que tipicamente a caraterizam – é essencial para uma tutela efetiva desses direitos, mesmo nos casos em que estes devam parcialmente ceder, em nome da salvaguarda de outros bens jusconstitucionalmente consagrados. O juiz tem, nos termos da CRP, uma competência exclusiva e não delegável de garantia de direitos fundamentais no âmbito do processo criminal (à luz do artigo 32.º, n.º 4, do CPP), pelo que a lei apenas pode dispensar a sua intervenção em casos excecionais devidamente delimitados e justificados. Por outras palavras, tal dispensa é constitucionalmente admissível apenas em situações pontuais e definidas com rigor, em que não constitua um meio excessivo para prosseguir interesses particularmente relevantes de investigação criminal. Será o caso, por exemplo, de atuações preventivas ou cautelares, em que haja particular urgência ou perigo na demora no que toca à conservação de elementos probatórios, e desde que se assegure uma posterior validação judicial da atuação das autoridades competentes.
[…]
Existe, pois, uma ligação muito estreita entre a autorização constitucional de restrição, prevista no n.º 4 do artigo 34.º da CRP, e a previsão de competência primária do Juiz de Instrução Criminal para a prática de atos que diretamente contendam com direitos fundamentais, estatuída no n.º 4 do artigo 32.º da Constituição. Por isso, e como se disse, uma solução legal que dispense a prévia autorização daquele para a prática de atos de investigação penal que importam a invasão da esfera privada dos cidadãos só será constitucionalmente legítima se existir uma justificação cabal, robusta e bem determinada, não podendo, em caso algum, exceder os limites apertados de uma solução excecional.»
É esta jurisprudência, cujo sentido remonta, aliás, à Comissão Constitucional (v. o Acórdão n.º 7/1987), que aqui uma vez mais se reafirmará.
Seja porque conceito de «instrução» constante do n.º 4 do artigo 32.º da Constituição compreende os atos destinados a instruir probatoriamente uma futura acusação que contendam diretamente com direitos fundamentais (Acórdão n.º 7/1987, n.º 2.4.) — o que, independentemente da natureza da sanção aplicável, converte o juiz de instrução na «entidade exclusivamente competente para praticar, ordenar ou autorizar certos atos processuais singulares que, na sua pura objetividade externa, se traduzem em ataques a direitos, liberdades e garantias das pessoas constitucionalmente protegidos» (Jorge de Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, Coimbra, 1988, p. 16) —, seja porque, ao prevalecer-se da exceção à proibição da inviolabilidade das comunicações em matéria de processo penal prevista no n.º 4 do artigo 34.º da Constituição, o legislador se mantém vinculado ao princípio da proibição do excesso a que o n.º 2 do artigo 18.º sujeita as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias — o que inviabiliza a opção por um regime de acesso que não se encontre numa relação de justa medida com a posição do titular do direito atingido —, é inevitável concluir que, também em processo contraordenacional por prática restritiva da concorrência, a busca e apreensão de mensagens de correio eletrónico marcadas como abertas apenas será constitucionalmente viável se for, em regra, precedida da intervenção do juiz de instrução. Isto é, se for sujeita a um controlo judicial prévio, destinado a aferir, à semelhança do que ocorre com a realização de buscas domiciliárias, a gravidade da infração investigada, a relevância dos meios de prova procurados, o nível de indiciação da participação da empresa ou associação de empresas envolvidas e a razoabilidade da convicção de que a diligência pretendida é indispensável para a descoberta da verdade dos factos ou de que a prova tida em vista seria impossível ou muito difícil de obter por meios alternativos, menos intrusivos para os direitos do(s) visado(s).
É este o elemento que dita a incompatibilidade com a Constituição da solução globalmente alcançada pelo Tribunal recorrido. Não a circunstância de a busca e apreensão de mensagens de correio eletrónico abertas ocorrer no âmbito de um processo sancionatório por práticas restritivas da concorrência, mas o facto de ser realizada com dispensa das garantias inerentes ao modelo de autorização judicial prévia, o mesmo é dizer, sem que um juiz seja chamado a formular um juízo de ponderação suscetível de assegurar, no caso concreto, a adequação, necessidade e proporcionalidade daquele meio de obtenção de prova, tendo em conta a gravidade das práticas anticoncorrenciais indiciadas, a consistência das razões invocadas para justificar a necessidade da ingerência nas mensagens de correio eletrónico marcadas com abertas e a indispensabilidade da diligência para a realização das finalidades que com ela se pretendem prosseguir.
Resta, assim, concluir que o presente recurso deverá ser julgado apenas parcialmente procedente, tendo por base um juízo positivo de inconstitucionalidade limitado à segunda das normas impugnadas, por violação do disposto no n.º 4 do artigo 32.º e nos n.ºs 1 e 4 do 34.º, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, todos da Constituição. E que, justamente por assim ser, o juízo negativo de inconstitucionalidade que incidiu sobre a primeira norma impugnada não poderá deixar de refletir a exigência de um controlo judicial, em regra prévio, que constitui, como se viu, uma condição indispensável à conformidade constitucional do regime.”
Em face da citada jurisprudência, à qual aderimos, é manifesto que o mandado com que a Adc se fez valer para levar a cabo a apreensão do correio eletrónico, seja ele aberto ou fechado, tenha ou não a intervenção de advogado, mostra-se inquinado com o apontado vício de inconstitucionalidade.
Efetivamente, como decorre daqueles, não obstante a lei da concorrência atribuir competência ao Ministério Público para a busca / apreensão de, além do mais, correio eletrónico, a verdade é que o Tribunal Constitucional acabou por concluir que tal competência incumbe antes ao juiz e, nessa medida, porque o mandado utilizado pela Adc não foi emanado por aquele, necessariamente a prova obtida em violação daqueles princípios estruturantes não pode ser considerada, por ser nula (cfr. artigos 126.º, n.º 3, do CPP, artigo 13 do NRJC, artigo 41.º do RJCO e artigos 32.º, n.º 8 e 10, e 34.º, n.ºs 1 e 4 da CRP).
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As restantes questões suscitadas pela Recorrente, por dizerem respeito à apreensão de correio eletrónico ou outros meios de comunicação protegidas sob a égide do segredo profissional, quer por já ter sido “anulada” pela Adc, pois, como decorre do facto 22, devolveu à Recorrente essas comunicações, quer por também estarem abrangidas – por maioria de razão – por aqueles princípios constitucionais, entendemos que se mostram prejudicadas.
Ainda assim, para que dúvidas não subsistam, sempre se dirá que apenas padecem do referido vício – nulidade – o correio eletrónico apreendido, aberto ou fechado, e todas as comunicações, eletrónica ou não, abrangida pelo sigilo profissional (Advogado).
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Por todo o exposto, julgamos improcedente o recurso apresentado pelo Ministério Público e procedente o recurso interposto pela Lusíadas, SA.
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V - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar:
- improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, e;
- procedente o recurso interposto pela Lusíadas, SA, revogando a decisão recorrida e declarando nula a prova – correio eletrónico, aberto ou fechado – obtida mediante a busca/ apreensão levada a cabo pela Adc nos dias 10 a 22 de maio de 2019, nas instalações da Recorrente.
Sem custas.
Notifique.
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Lisboa, 10 de abril de 2024
Bernardino Tavares
Carlos M. G. de Melo Marinho
Alexandre Au-Yong Oliveira
_______________________________________________________ [1] Veja-se, a este propósito, o acórdão proferido no âmbito do processo n.º 229/18.5YUSTR.L2, em 26.09.2019.