CANCELAMENTO PROVISÓRIO DO REGISTO CRIMINAL
PESSOA COLECTIVA
CONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Sumário

I - O instituto do cancelamento provisório do registo criminal não é aplicável a pessoas coletivas.
II - Tal exclusão não é inconstitucional (por violação do princípio da igualdade).

Texto Integral



Nos termos dos artigos 417.º, n.º 6, alínea b) e 420.º, n.ºs 1 alínea a) e 2 do CPP profere-se a seguinte

DECISÃO SUMÁRIA


I. RELATÓRIO
1. Da decisão
No Processo n.º 571/23.3TXEVR-A do Tribunal de Execução das Penas de Évora, Juízo de Execução das Penas de Évora – Juiz 1, foi proferido despacho com o seguinte teor (transcrição):

“(A), pessoa colectiva nº (…..), sociedade por quotas, requer o cancelamento provisório da decisão condenatória averbada no seu Certificado do Registo Criminal, a que faz o abrigo do disposto no art.º 12 da Lei n.º 37/2015 de 5/5.
Embora não o refira claramente, depreende-se do requerimento junto pretender-se, através do cancelamento provisório solicitado, dessa forma permitir a candidatura da requerente em concursos no âmbito da sua actividade comercial.
Mostra-se junto aos autos o seu Certificado do Registo Criminal.
Aqui chegados, e sendo certo que o citado art.º 12 da referida Lei prevê o cancelamento provisório das decisões averbadas no Certificado do Registo Criminal, tal possibilidade apenas se equaciona legalmente nos casos enunciados nos n.ºs 5 e 6 do art.º 10 dessa mesma Lei (e para onde aquele art.º 12 remete).
Ora, analisando estes dois outros normativos, verificamos que em ambos se prevê a emissão de Certificado do Registo Criminal requerido, apenas, por pessoa singular, tendo por finalidade uma das aí previstas, não se referenciando nunca o Certificado do Registo Criminal requerido por pessoa colectiva.
Aliás, para estas dispõe o n.º 7 desse art.º 10 que os certificados do registo criminal requeridos por pessoas colectivas ou entidades equiparadas contêm todas as decisões de tribunais portugueses vigentes, sem possibilidade de excepções. Ou seja, já não existem previsões semelhantes às contidas nos n.ºs 5 e 6 e que visem as pessoas colectivas.
Donde não se podem deixar de extrair as necessárias e legais consequências.
Consequências que, a nosso ver, passam pela inadmissibilidade legal do cancelamento provisório do registo criminal das pessoas colectivas.
Concordamos na íntegra com a argumentação apresentada pelo Tribunal da Relação do Porto, a propósito, e que aqui reproduzimos: “Os elementos literal e histórico de interpretação da norma em questão (o art.º 12 da Lei n.º 37/2015 de 5 de maio) apontam claramente no sentido (…) da não aplicação às pessoas colectivas do instituto do cancelamento provisório do registo criminal. O conceito de “readaptação”, como requisito desse cancelamento, e a remissão apenas para preceitos relativos a certificados de pessoas singulares leva-nos a afirmar que a letra do preceito não contempla as pessoas colectivas como possíveis beneficiárias do cancelamento provisório do registo criminal.
Este art.º 12 da Lei n.º 37/2015 de 5 de maio sobrepõe-se ao art.º 229 do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (…) não só por lhe ser posterior, como porque é ele que define os requisitos substantivos do cancelamento provisório do registo.
(…) se atendermos à história do preceito, não podemos concluir que tenha sido outra a intenção do legislador histórico. A um regime anterior que não excluía as pessoas colectivas do cancelamento provisório do registo sucedeu-se outro que, numa interpretação literal das normas em questão, as exclui. Parece claro que se fosse outra a intenção do legislador histórico, ele teria definido de outra forma os requisitos do cancelamento provisório e não teria limitado a remissão do aludido artigo 12º apenas para preceitos relativos a certificados de pessoas singulares, excluindo o preceito que é relativo a certificados de pessoas colectivas.
(…) No entanto, podemos dizer que o diferente tratamento das pessoas singulares e pessoas colectivas para este efeito não fere o princípio constitucional da igualdade. Há razões objectivas (…) que justificam essa desigualdade de tratamento. Trata-se de tratar de forma desigual o que é desigual, não de tratar de forma desigual o que é igual.” – cfr. Ac. RP de 12/10/2022, http://www.dgsi.pt.
Também no mesmo sentido se decidiu no Ac. da RP de 22/3/2023 (sob consulta na mesma base de dados).
Pelo exposto, e nos termos do disposto no art.º 230 n.ºs 1 e 2 do Código de Execução das Penas, rejeito liminarmente o requerido. (…)”.

2. Do recurso
2.1. Das conclusões da arguida
Inconformada com a decisão a arguida interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1) No âmbito do processo n.º 4000/18.6T9FAR, a Recorrente foi condenada, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, nos termos do disposto nos artigos 30.º n.º 2 e 79.º do CP e 6.º n.º 1, 7.º n.º 1 e 107.º n.º 1 ex vi do artigo 105.º n.ºs 1 e 4 do RGIT, numa pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à razão diária de € 9,00 (nove euros), perfazendo o montante global de € 1.440,00 (mil quatrocentos e quarenta euros).
2) A condenação terá sempre de ser analisada à luz dos circunstancialismos próprios daquela altura, porquanto, à data da prática dos factos, a Recorrente atravessava uma situação extremamente difícil e de grave crise económica.
3) A Recorrente tem, desde então, adotado uma postura cooperante com a Segurança Social e com o douto Tribunal, tendo para o efeito (i) cumprido integralmente a pena de multa pela qual foi condenada e, bem assim, (ii) celebrado diversos acordos de pagamento, do qual decorreu a regularização da sua situação contributiva junto daquela entidade.
4) Por força do disposto no artigo 5.º n.º 1 e n.º 2 alínea b), no artigo 6.º alínea a) e no artigo 7.º n.º 1 da Lei da Identificação Criminal, resulta averbado no registo criminal da Recorrente a condenação pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, sob a forma continuada, nos termos do disposto nos artigos 30.º n.º 2 e 79.º do CP e 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 1 e 107.º, n.º 1 ex vi do artigo 105.º, n.ºs 1 e 4 do RGIT.
5) A circunstância de constar, do certificado do registo criminal da Recorrente, a condenação pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, tem causado constrangimentos à participação da Recorrente em procedimentos de contratação pública.
6) Foi precisamente por considerar esses constrangimentos que a (A) requereu, por entender dispor de condições e fundamentos para tal, que fosse provisoriamente cancelado o seu registo criminal, nos termos e para os efeitos do artigo 12.º da LIC.
7) Sucede, porém, que o pedido de cancelamento provisório requerido pela Recorrente, nos termos e para os efeitos do artigo 12.º da LIC, foi pelo Tribunal a quo liminarmente rejeitado, o que constitui o objeto do presente recurso.
8) De forma sucinta, considerou o Tribunal a quo que o exercício da faculdade prevista no artigo 12.º da LIC, o qual remete para os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º do mesmo diploma, estaria vedado às pessoas coletivas.
9) Considera a Recorrente – e salvo melhor entendimento -que a Decisão Judicial proferida assenta numa incorreta interpretação do quadro normativo atinente ao instituto do cancelamento provisório do registo criminal, decorrente do Código de Execução de Penas e da Lei da Identificação Criminal, vício esse que determina, necessariamente, a sua revogação.
10) Isto, porquanto:
(i) uma interpretação literal do artigo 12.º da LIC, o qual remete para os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º do mesmo diploma, não pode ser bastante para se concluir pela exclusão das pessoas coletivas do âmbito de aplicação desta norma;
(ii) apenas uma interpretação suscetível de integrar a teleologia subjacente ao artigo 12.º poderá permitir uma correta interpretação e aplicação da norma;
(iii) o instituto do cancelamento provisório do registo criminal, previsto no artigo 12.º da LIC, visou, na sua globalidade, acautelar o acesso e exercício à profissão/atividade, por forma a contrariar os condicionalismos resultantes de anteriores condenações, pelo que a conclusão de que os seus destinatários são todas as pessoas – singulares ou coletivas – que pretendam exercer a sua atividade e se vejam impedidas para tal, é a única que se afigura coerente e correta com o sistema; e
(iv) somente um entendimento como o mencionado em (iv) poderá, aliás, acautelar o papel cada vez mais significativo que as pessoas coletivas têm vindo a assumir no nosso ordenamento jurídico, ao ponto de lhes ser hoje, imputável a prática de determinados crimes, por referência a uma culpa ficcionada, que poderá ditar, a par com as pessoas singulares, a transcrição para o seu Certificado de Registo Criminal de condenações dela decorrentes.
11) Neste sentido, qualquer interpretação que não reconheça que o instituto do cancelamento provisório do registo criminal tem na sua génese motivações que ultrapassam a pessoalidade – ou falta dela – dos sujeitos a que se destina, mais não será que um patente erro de direito que, descurando o elemento teleológico da norma, se foca, tão somente, na letra da lei.
12) É, pois, tendo em mente a interpretação levada a cabo pelo Tribunal a quo, de acordo com a qual o pedido de cancelamento provisório do registo criminal dirigido pela (A) é improcedente por não ser a Recorrente uma destinatária legítima desse pedido, que pugna a Recorrente pela revogação da Decisão Judicial proferida.
13) Com efeito, deve a Decisão Judicial ser revogada, na medida em que, apreciando o pedido de cancelamento provisório do registo criminal dirigido pela Recorrente, o rejeitou liminarmente, mediante uma incorreta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 12.º e 10.º, n.º 5 e 6 da Lei n.º 37/2015, considerando tratar-se esse de um instituto cuja aplicação se encontra limitada às pessoas singulares,
14) devendo ser substituída por outra que, em conformidade com o princípio da igualdade e da livre iniciativa económica e, nos termos e para os efeitos do artigo 9.º do Código Civil, conceda provimento ao requerido.
15) A par com essa incorreta interpretação e aplicação dos artigos 12.º e 10.º n.ºs 5 e 6 da LIC, a Recorrente considera, ainda, que a Decisão Judicial violou manifestamente o princípio da igualdade, plasmado no artigo 13.º da CRP, porquanto:
(i) o facto de as pessoas singulares e as pessoas coletivas serem substancial e juridicamente distintas, não releva, pois, para a apreciação da questão em apreço, porquanto a similitude que revelam em termos de imputação criminal e de impedimentos a elas aplicáveis, em termos laborais, decorrentes da desonra pela prática de crimes, impõe um tratamento igual, na medida da sua diferença; e
(ii) a circunstância de às pessoas coletivas ter sido atribuído um regime em tudo semelhante ao previsto para as pessoas singulares, dispondo também elas de fortes entraves à candidatura a concursos público sem razão da existência de antecedentes criminais, é razão mais que bastante para concluir que não podem as mesmas ver-se privadas do mecanismo legal que suaviza esses impedimentos.
16) Nessa medida, entende a Recorrente que a norma constante do 12.º da LIC, conjugada com o artigo 10.º n.ºs 5 e 6 do mesmo diploma, é inconstitucional, por violação do princípio 13.º da CRP, quando interpretada no sentido de que a faculdade de solicitar o cancelamento provisório do registo criminal se encontra circunscrito às pessoas singulares, não estando as pessoas coletivas abrangidas por esse normativo, inconstitucionalidade que desde já se argui para todos os efeitos legais.
Nestes termos e nos melhores de Direito, requer-se, muito respeitosamente, que V. Exa., se digne dar provimento ao presente recurso e, em consequência, seja a Decisão Judicial proferida revogada com todas as legais consequências e assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!
Requer-se ainda, expressamente, que V. Exas. se pronunciem sobre as inconstitucionalidades invocadas.(…)”.

2.2. Das contra-alegações do Ministério Público
Respondeu o Ministério Público defendendo o acerto da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
“1 – A sociedade “A” requereu o cancelamento provisório das decisões condenatórias averbadas no seu registo criminal, com vista à participação em concursos públicos no âmbito da sua actividade comercial.
2 – Tal requerimento foi liminarmente indeferido pela M.ma Juíza “a quo”, porque o instituto do cancelamento provisório do registo criminal só é susceptível de ser aplicado às pessoas singulares.
3 – Efectivamente, a Lei n º 37/2015 de 5-5, faz uma evidente separação entre as pessoas singulares e as pessoas colectivas, ao regulamentar o conteúdo dos certificados do registo criminal, restringindo-os naqueles que são requeridos pelas pessoas singulares quando destinados a certos fins, designadamente de natureza laboral (n ºs 5 e 6 do artigo 10 º), enquanto que para as pessoas colectivas, seja qual for o fim a que se destina, o registo tem de ser sempre integral (n º 7 do artigo 10 º).
4 – Por seu turno, o artigo 13º do referido diploma prevê expressamente os certificados a que se referem os nºs 5 e 6 do artigo 10 º, que de forma nítida dizem respeito, apenas às pessoas singulares, tendo a sua justificação na protecção do direito ao trabalho, e a não transcrição prevista no mesmo normativo se restrinja às pessoas singulares, tal como acontece com o cancelamento provisório previsto no artigo 12 º, prevendo o artigo 11 º (n º 1 als. c) e d) relativamente às pessoas colectivas, os requisitos para o cancelamento definitivo das condenações respectivas, dando às pessoas colectivas sempre um tratamento particular ou diferenciado do das pessoas singulares.
5 – Esta é a interpretação mais consentânea com os elementos literal, histórico, sistemático e teleológico das normas em referência.
6 – Considerando que são direitos de natureza diversa que justificam o tratamento diferenciado das pessoas singulares é manifesto que esse tratamento diferenciado não ofende quaisquer princípios constitucionais, designadamente o princípio da igualdade ou da universalidade consagrados nos artigos 12 º e 13 º da CRP.
7 – Consequentemente, bem andou a M.ma Juíza “a quo” ao indeferir liminarmente o requerido cancelamento provisório do registo criminal, sendo certo que no despacho recorrido foi efectuada uma correcta interpretação e aplicação da Lei.
Nesta conformidade, deverão V.as Ex.as negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, sendo feita justiça. (…)”.

2.3. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido de não merecer provimento o recurso interposto pela arguida.

2.4. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, cumprindo apreciar e decidir sumariamente o recurso interposto pela arguida.

II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
Seguindo de perto as bem fundamentadas contra-alegações de recurso apresentadas pelo MP em 1.ª instância, é momento de conhecer sumariamente a questão suscitada, por se tratar de caso de manifesta improcedência.
No processo em apreciação a sociedade por quotas “A” requereu o cancelamento provisório das condenações constantes do seu registo criminal, com vista à participação em concursos públicos no âmbito da sua atividade comercial.
Por despacho proferido em 10-11-2023 foi indeferido liminarmente o pedido formulado.
É dessa decisão que a requerente interpôs o presente recurso, sustentando, em síntese, que:
- O Tribunal fez uma interpretação incorreta do disposto nos artigos 10.º, n. ºs 5 e 6 e 12.º da Lei n.º 37/2015 de 5-5, ao descurar o elemento teleológico de interpretação de tais normas, cingindo-se à letra da lei;
- A interpretação em causa para além de ilegal é inconstitucional, por violar o princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da CRP.
Entende a recorrente que a norma constante do artigo 12.º da LIC, conjugada com o artigo 10.º n.ºs 5 e 6 do mesmo diploma, é inconstitucional, por violação do princípio 13.º da CRP, quando interpretada no sentido de que a faculdade de solicitar o cancelamento provisório do registo criminal se encontra circunscrito às pessoas singulares, não estando as pessoas coletivas abrangidas por esse normativo.
Cumpre, então, saber se o instituto do cancelamento provisório do registo criminal se aplica ou não às pessoas coletivas, e em caso negativo se tal inaplicabilidade é inconstitucional por violação do princípio da igualdade.
Confrontam-se a este respeito duas posições, uma preconizada pelo Tribunal a quo no despacho recorrido e outra pela recorrente na sua motivação recursiva[1].
Sobre a matéria rege o artigo 12.º da Lei n.º 37/2015 de 5-5 que remete para os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º do mesmo diploma.
Dispõe o primeiro destes normativos que:
“Sem prejuízo do disposto na lei n º 113/2009 de 17-9, estando em causa qualquer dos fins a que se destina o certificado requerido nos termos dos n ºs 5 e 6 do artigo 10 º[2] pode o Tribunal de Execução das Penas determinar o cancelamento total ou parcial das decisões que dele deveriam constar, desde que:
a) Já tenham sido extintas as penas aplicadas;
b) O interessado se tiver comportado de forma que seja razoável supor encontrar-se readaptado, e
c) O interessado haja cumprido a obrigação de indemnizar o ofendido, justificando a sua extinção por qualquer meio legal ou provado a impossibilidade do seu cumprimento.”
Por seu turno, referem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º que:
5 - “Sem prejuízo do disposto no número seguinte, os certificados do registo criminal requeridos por pessoas singulares para fins de emprego público ou privado, ou para o exercício de profissão ou actividade em Portugal, devem conter apenas:
a) As decisões dos Tribunais portugueses que decretem a demissão da função pública, proíbam o exercício de função pública, profissão ou actividade ou interditem esse exercício;
b) As decisões que sejam consequência, complemento ou execução das indicadas na alínea anterior e não tenham como efeito o cancelamento do registo;
c) As decisões com o conteúdo aludido nas alíneas a) e b) proferidas por outro Estado Membro ou de Estados terceiros, comunicadas pelas respectivas autoridades centrais, sem as reservas legalmente admissíveis.
6 - Os certificados do registo criminal requeridos por pessoas singulares para o exercício de qualquer profissão ou actividade para cujo exercício seja legalmente exigida a ausência total ou parcial, de antecedentes criminais ou a avaliação da idoneidade da pessoa, ou que sejam requeridos para qualquer outra finalidade, contêm todas as decisões dos Tribunais portugueses vigentes, com excepção das decisões canceladas provisoriamente nos termos do artigo 12 º, ou que não devam ser transcritas nos termos do artigo 13 º, bem como a revogação, a anulação ou a extinção da decisão de cancelamento, e ainda as decisões proferidas por Tribunais de outro Estado membro ou de Estados terceiros, nas mesmas condições, devendo o requerente especificar a profissão ou actividade a exercer ou a outra finalidade para que o certificado é requerido.”
Lendo os preceitos transcritos, resulta do elemento literal ter o legislador pretendido estabelecer um regime de excecionalidade do cancelamento provisório do registo criminal relativamente às pessoas singulares, para o fim do exercício de atividades profissionais. Esse cancelamento provisório apenas é decretado pelo Julgador quando este, perante o caso concreto, formula um juízo positivo de readaptação do condenado fundado num comportamento subjetivo deste (cf. alínea b) do artigo 12.º da LIC).
Segundo alguma jurisprudência a possibilidade de cancelamento provisório do registo criminal justificar-se-ia essencialmente por razões de reinserção e reintegração social do agente de acordo com a filosofia dos fins das penas consagrada no artigo 40.º, n.º 1 do CP. Daí, como tal possibilidade assentaria na não estigmatização social do condenado, nomeadamente para o efeito do exercício de atividade profissional, e uma lógica de reintegração social, o regime do cancelamento provisório não teria cabimento de aplicação às pessoas coletivas[3].
Para além do elemento literal decorrente da lei (cf. sublinhado e negrito nosso) a inaplicabilidade do instituto do cancelamento provisório às pessoas coletivas resulta, também, do recurso aos elementos sistemático e lógico de interpretação. Na verdade, o artigo 233.º da Lei n.º 115/2009 de 12-10 (CEPMPL) prevê a possibilidade de revogação do cancelamento provisório em caso de reincidência, instituto não aplicável às pessoas coletivas.
Depois essa argumentação quanto à impossibilidade de aplicação do instituto do cancelamento provisório do registo criminal relativamente às pessoas coletivas, ainda fica mais fortalecida se recorrermos ao elemento histórico de interpretação. No diploma anterior que regia a organização e o funcionamento da identificação criminal (Lei n.º 57/98 de 18-08 na redação dada pela Lei n º 114/2009 de 22-9) estavam abrangidos os particulares (pessoas coletivas e singulares) no cancelamento provisório do registo criminal[4], mas no novo regime a referência às pessoas coletivas foi eliminada (cf. Lei n º 37/2015 de 5-5). É, pois, lógico extrair-se dessa supressão a intenção de o legislador não manter o paradigma do regime anterior.
Assim, recorrendo aos elementos literal, sistemático, racional/teleológico e histórico de interpretação todos apontam de forma clara no sentido seguido pelo Tribunal a quo.
A favor da tese sufragada pelo Tribunal a quo podem citar-se as seguintes decisões:
- Ac. RL 20-12-2023, proferido no P. 709/23.0TXLSB-A.L1-3, relatado por CRISTINA ALMEIDA E SOUSA[5];
- Ac. RP de 22-03-2023, proferido no processo n.º 159/22.6TXPRT-A.P1, relatado por Raúl Esteves [6];
- Ac. RP de 12-10-2022, proferido no processo n º 275/22.4TXPRT-A.P1, relatado por Pedro Vaz Pato[7];
- Ac. RP 22-09-2021, proferido no processo n.º 270/21.0TXPRT-A.P1, relatado por Paulo Costa[8];
- Ac. RL de 19-10-2020, proferido no processo n.º 68/15.5IDFUN-B.L1-5 , relatado por Vieira Lamim[9].
Em reforço da tese acolhida pelo Julgador em 1.ª instância cumpre, ainda, atentar que o Tribunal Constitucional aponta para a não ocorrência de qualquer violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da CRP, quanto ao diferente tratamento das pessoas singulares e das pessoas coletivas realizado pela LIC. Aquele Tribunal baseia-se em razões objetivas que justificam essa desigualdade de tratamento, tratando-se de forma desigual o que é distinto.
No Acórdão do TC n º 410/2022[10], relativo a matéria conexa com a aqui em análise (a propósito de pedido de não transcrição de condenações criminais no CRC), faz-se uma distinção clara do regime aplicável às pessoas singulares e às pessoas coletivas no âmbito da Lei n º 37/2015. Nele se concluindo a favor da constitucionalidade do artigo 13.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, interpretado no sentido segundo o qual a possibilidade de não transcrição de decisões condenatórias ali prevista não ser de aplicar a pessoas coletivas.
Neste sentido também se pronunciou o Acórdão do TC de 20.9.2022, com o n.º 559/2022, proferido no Processo n.º 1138/2021, da 1.ª Secção, relatado por José António Teles Pereira no qual se decidiu “não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 13.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, interpretado no sentido segundo o qual a possibilidade de não transcrição de decisões condenatórias ali prevista não é aplicável a pessoas coletivas[11].
Sobre o regime da reabilitação do condenado por via do cancelamento provisório do registo criminal, nos termos do artigo 12.º da LIC, não ser extensível às pessoas coletivas e à não violação do princípio da igualdade em relação às pessoas singulares pode consultar-se o Ac. RL de 20-12-2023 proferido no P. 709/23.0TXLSB-A.L1-3, relatado por CRISTINA ALMEIDA E SOUSA[12].
Como a interpretação acolhida na 1.ª instância se encontra em sintonia com a letra da lei (elemento literal) e ainda com os elementos histórico, racional e sistemático de interpretação e o artigo 12.º da LIC, conjugada com o artigo 10.º n.ºs 5 e 6 do mesmo diploma, não são violadores do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) nem padecem de qualquer inconstitucionalidade, rejeita-se o recurso por manifesta improcedência.

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Decide-se rejeitar o recurso por manifesta improcedência.
2. Condena-se a recorrente no pagamento de 3 UC, nos termos constantes do n.º 3 do artigo 420.º do CPP.

Évora, 21 de março de 2024
Beatriz Marques Borges
__________________________________________________
[1] No sentido defendido pela arguida encontrámos apenas o Ac. da RL de 08-09-2021, proferido no Processo n.º 1975/20.9TXLSB-A.L1-3), relatado por FLORBELA SEBASTIÃO E SILVA e disponível para consulta em:
https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/1975-2021-190039375.
[2] Sublinhado e negrito nosso.
[3] Ac. TC n.º 410/2022 de 26 de maio de 2022, proferido no Processo n.º 150/2021 da 2.ª Secção e relatado por Assunção Raimundo no qual José Eduardo Figueiredo Dias votou a decisão, embora não subscrevendo a fundamentação do acórdão ”uma vez que a finalidade preventiva especial positiva das penas também se aplica às pessoas coletivas, como aliás decorre do n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal. Este preceito não foi alterado com a Reforma operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, que consagrou a responsabilidade penal das pessoas coletivas no artigo 11.º do Código Penal, não fazendo qualquer distinção quanto às finalidades de punição das pessoas singulares e das pessoas coletivas. Assim, penso poder mesmo afirmar-se que a finalidade preventivo-especial faz particular sentido em relação às pessoas coletivas. “.
[4] Cf. artigos 16.º, n.º 1 e 11.º e 12.º.
[5] Disponível para consulta em:
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/36027746c1e68c6e80258a8d0050df2b?OpenDocument.
[6] Disponível para consulta em:
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/63a925d74903a42680
[7] Disponível para consulta em:
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/dbc8faa0c97bac64802588e500308ee4?OpenDocument
[8] Disponível para consulta em:
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/c41b5d40d13a374b8025877d0055714e?OpenDocument
[9] Disponível para consulta em:
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/51929bfecc38a20d8025878800411235?OpenDocument
[10] Ac. do TC de 26 de maio de 2022, proferido no Processo n.º 150/2021 2.ª Secção e relatado por Assunção Raimundo, no qual se concluiu “Não julgar inconstitucional a norma extraível do artigo 13.º, n.º 1, da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, quando interpretada no sentido que «as pessoas coletivas estão excluídas do âmbito de aplicação do direito à não transcrição para o registo criminal»” e disponível para consulta em:
https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220410.html.
[11] Sublinhado e negrito nosso. Disponível para consulta em:
https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220559.html.
[12] Disponível para consulta em:
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/36027746c1e68c6e80258a8d0050df2b?OpenDocument.