CONTRA-ORDENAÇÃO AMBIENTAL
VEÍCULO AUTOMÓVEL
VEÍCULO EM FIM DE VIDA
Sumário

I - Não existe norma legal que, claramente, defina o momento em que um veículo automóvel, propriedade de um cidadão, passa à condição de VFV (“veículo em fim de vida”), se o mesmo estiver em local fora da via pública e nela não circule.
II - Não existindo tal norma, e por ausência de “tipicidade da conduta” (“tipicidade” que é decorrência do princípio da legalidade), não há razões legais que permitam a condenação do arguido e o “confisco” da sua viatura.
III - É que, o veículo em causa não circulava na via pública, estava depositado em prédio do seu proprietário, e a inexistência de “inspeção” ao veículo apenas implica a proibição de circulação, não autorizando nem a sua apreensão, nem a sua classificação como VFV.

Texto Integral



Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório

No recurso de contra-ordenação que correu termos, com o número supra indicado, no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal - Juízo Local Criminal de Grândola –, (A) foi condenado pelo IGAMAOT, Alentejo (Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território) no pagamento de uma coima no montante de 2.000,00€, pela prática de uma contraordenação ambiental grave, prevista e punida pelo n.º 2 do art.º 81.º, n.ºs 1 e 4 do artigo 84.º e alínea yy) do n.º 2 do art.º 90.º do DL n.º 152-D/2017, de 11/12, atualmente p.p. pelo n.º 2 do art.s 81.º, n.º 1 do art.s 84.º e alínea jjj) do n.º 2 do art. 90.º do DL n. 152-D/2017, de 11/12, na sua redação atual.


O arguido contestou, do seguinte modo:
(A), casado, NIF (…..), residente na Rua (…..), notificado do auto de contraordenação supra identificado, contestando o mesmo, vem dizer o seguinte:
1" O autuado adquiriu, por compra, o veículo ligeiro de mercadorias, matrícula (…..), de tração integral, há alguns anos atrás, no estado de usado.
2. Na altura da compra, o veículo em causa apresentava uma avaria no mecanismo de tração dianteira, o que não o impedia, todavia, de circular.
3. Apos a aquisição do veículo, o ora autuado estacionou o mesmo num terreno a si pertencente a aguardar oportunidade para reparação da avaria que o sistema de tração dianteira apresentava.
4. Pese embora o veículo esteja aparcado a aguardar reparação em terreno privado pertencente ao ora autuado, o mesmo, no que diz respeito aos restantes componentes mecânicos, está em excelentes condições.
5. Com efeito, o veículo em causa não verte óleo, seja do motor, seja dos diferenciais ou das transmissões.
6. Nunca o ora autuado abandonou o veículo, o qual, como já atrás se referiu, tem estado aparcado junto a um armazém agrícola que àquele pertence.
7. O veículo em causa continua na posse do autuado, o qual o vigia diariamente, actos de posse que pode exercer quando bem o entender e usá-lo igualmente se assim o entender fazer.
8. Nunca teve o ora autuado intenção de se desfazer do veículo, vendendo-o ou abandonando-o, uma vez que este se encontra em boas condições de mecânica, chapa, caixa de carga e pintura.
9. Para além disso, o veículo nunca se encontrou na via pública, como não se encontra actualmente.
10. Por outro lado, atendendo às condições em que a viatura se encontra, faltando-lhe apenas a reparação da transmissão dianteira, não resulta obrigação para o ora autuado do mesmo se desfazer da viatura.
11. A viatura em causa, atentas as condições mecânicas em que se encontra, não constitui um resíduo e muito menos representa perigo para o ambiente.
12.É. verdade que à data em que ocorreu o levantamento do auto de contraordenação, o veículo encontrava-se sem inspeção e sem seguro válido, sendo certo que a falta de inspeção ou de seguro válido não é relevante para efeitos de obrigatoriedade de encaminhar o veículo paru um centro de receção de desmantelamento de veículos em fim de vida.
13.O veículo em causa, atentos as suas condições físicas atrás referidas, não deve ser considerado um veículo em fim de vida.
14.Com efeito, a definição de veículo em fim de vida decorre do artigo 30 al. jjj) do D.L. 152-D/2017 de 11-12, que diz: "«VFV», veículo que para além dos referidos na alínea anterior, constitui um resíduo de acordo com a definição constante do D.L. 178/2006 de 05/12 na sua redação atual" .
15.Ora, a definição de resíduo constante do D.L. 178/2006 de 05/09, com a redação que lhe foi dada pelo D.L.73/2011 de 17-06, constante do artigo 3º al. ee) refere que: "resíduos quaisquer substancias ou objetos de que o detentor se desfaz ou tem intenção ou obrigação de se desfazer".
16.Desta forma, olhando para a factologia atrás referida, facilmente se constata que o veículo em causa não é um veículo "VFV", uma vez não constituir ele um resíduo, conforme se acha o mesmo definido no D.L. 73/2011 de 17-06 no seu artigo 3º al. ee).
17.Na verdade, como já atrás se referiu, o veículo não constitui uma qualquer substância, mas sim um veículo automóvel, sendo certo que o mesmo tem todas as condições e aptidões para ser classificado como tal, pois apenas e só tem uma avaria na sua transmissão dianteira, a qual apenas impede que o mesmo funcione com tração integral, uma vez tratar-se de veículo com tração às quatro rodas.
18. Acresce ainda que, o seu detentor, o Ora autuado, não se desfez do mesmo, não o abandonou e não tem qualquer intenção ou obrigação de se desfazer de tal veículo, mas sim reparar aquela avaria e usá-lo como bem entender.
19. Por outro lado, conforme consta do auto sob impugnação, o veículo não terá, como não tem, inspeção, nem seguro válido, sendo que a falta destes requisitos impede que o veículo circule na via pública, o que nunca aconteceu.
20.Com efeito, conforme determina o nº 2 al, a) do artigo 14º do D.L. 144/2012 de 11-07, a falta de inspeção quando o veículo está a ser utilizado, apenas tem como consequência uma contraordenação.
21.No que diz respeito ao seguro válido, a falta do mesmo tem como consequência apenas e só o impedimento do veículo poder circular, conforme prevê o artigo 4º n. 1do D.L. 291/2007 de 21-08.
22.Ora, não se pode retirar da falta de inspeção e de seguro válido que o veículo seja considerado um veículo em fim de vida e que o mesmo represente um resíduo, conforme se acha definido no artigo 3º al. ee) do D.L. 7312011 de 17 t06.
23.Desta forma, a factologia atrás referida não preenche os pressupostos legais para que seja aplicada ao autuado qualquer sanção referente ao veículo em causa.
Termos em que, por não estarem preenchidos os pressupostos factuais e legais aplicáveis, deve o presente auto de contraordenação ser declarado improcedente e, em consequência, arquivado, e por via disso o ora autuado ilibado da prática de qualquer contraordenação.


*
A decisão da entidade administrativa fundamentou-se da seguinte forma, quanto à contestação apresentada:
«O Arguido invoca que adquiriu a viatura já usada há alguns anos atrás e que a mesma apresentava, na altura da compra, uma avaria no mecanismo de tração dianteira, que não a impedia de circular, tendo estacionado a mesma, após a compra, no seu terreno, a aguardar oportunidade de reparação.
De tal invocação resulta que o veículo já se encontrava imobilizado há vários anos, desde a data em que foi comprado, deteriorando-se com a passagem do tempo e sem previsão de arranjo ou sequer se tal será possível, permanecendo em contacto direto com o solo não impermeabilizado.
As condições em que a viatura dos autos se encontrava, danificada e em mau estado de conservação, conforme demonstram as fotos anexadas ao Auto de Notícia, sem condições para circular como referido naquele Auto, revelam que já não estava apta para o fim a que se destina - circulação - assim constituindo um resíduo, i.e., um veículo em fim de vida (VFV), em conformidade com a definição legal vertida atualmente no art. 3º/1/qqq) do DL n. 152-D/2017, de 11-12.
O veículo e respetivo componentes, tal como descrito e fotografado pela GNR, sujeito às condições climatéricas, nomeadamente chuvas, secas, ventos e propiciando a infiltração no solo de escorrências de substâncias perigosas na sua constituição, entra na apontada classificação legal de VFV, estando, por isso, sujeito à obrigação de encaminhamento para Centro de Receção ou operador licenciado para o efeito. Ademais, sem inspeção periódica obrigatória e sem seguro de responsabilidade civil, o mesmo veículo não se encontrava apto para o fim a que se destina, que é circular.
O Arguido, na qualidade de proprietário e responsável por aquele veículo e respetivos componentes, não diligenciou esse encaminhamento para destino final adequado, como era sua obrigação legal, termos em que se têm por verificados os factos descritos nos Auto de Notícia.
Os veículos têm componentes que, pela sua natureza, são potenciais agentes poluentes e contaminantes dos solos e o estado que o VFV dos autos apresenta, aliado ao espaço temporal em que esteve parado - uma vez que a própria defesa refere que o veículo foi comprado "(...) há alguns anos atrás (...)" e que após a aquisição o Arguido estacionou o veículo para sua reparação -, comprovam que representa um perigo para o ambiente, pelo que não procede o argumento aduzido na defesa.
III. FACTOS com relevo para a decisão
Provados :
a) No dia 15-02-2O18, pelas l-5h55, os elementos da GNR de Grândola verificaram o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula (…..), marca Bedford Brava, de cor branca, com o n. de quadro (…..), depositado na parreirinha, na freguesia de Azinheira dos Barros, em Grândola, no local com as coordenadas geográficas 38º09.6160N e 08º19.7075W;
b) Aquele veículo encontrava-se degradado, em contato direto com o solo, sujeito às condições climatéricas, não apresentando condições para a regular utilização do fim a que se destina (circulação), chegando ao fim da sua vida útil, assim constituindo um resíduo/veículo em fim de vida (VFV), conforme demonstra o suporte fotográfico em anexo ao Auto de Notícia;
c) O mesmo veículo não tinha inspeção periódica obrigatória nem seguro de responsabilidade civil válido;
d) O proprietário do veículo era A (Arguido), encontrando-se o registo automóvel em seu nome;
e) O Arguido, enquanto proprietário daquele VFV, estava adstrito ao cumprimento de obrigação legal que sobre si impendia, in casu assegurar o encaminhamento do mesmo para um Centro de Receção ou para um operador de desmantelamento autorizado;
f) Não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária a que estava obrigado e de que era capaz, não resultando dos autos elementos que retirem ilicitude ou censurabilidade à sua conduta.
Não provados
Não se provaram outros factos com interesse para a decisão
Motivação
A apreciação da matéria supra fundou-se na análise crítica da prova nos autos - maxime no Auto de Notícia n. 131/18 da GNR do Destacamento Territorial de Grândola e respetivo suporte fotográfico, no defesa apresentada pelo Arguido e nos depoimentos dos testemunhos arroladas - conjugada com as regras da experiência.
FUNDAMENTAÇÃO.
Alteração legislativa
Com a entrada em vigor do DL n. 102-D/2020, de 10-12, a contraordenação ambiental em apreço, punida à data dos factos pela alínea yy) do n. 2 do artigo 90º do DL n. 152-D/2O17, de 11-12, encontra-se atualmente punida pela alínea jjj) do mesmo preceito legal, sem que dessa alteração tenha resultado a despenalização ou o desagravamento da conduta em apreço, que continua sancionada no atual diploma. Termos em que à situação dos autos continua a aplicar se a lei vigente ao tempo dos factos, conforme princípio ínsito no art. 4º da Lei n. 50/2006, de 29/08 (LQCA - Lei Quadro das Contraordenações Ambientais).
1. lnfracção
Incumprimento do dever de encaminhar VFV para um Centro de Recepção ou operador de desmantelamento.
O DL n. 152-D/2017,de1-1-f !2, consagra o Regime Unificado dos Fluxos Específicos de Resíduos, estabelecendo o regime jurídico o que ficou sujeito a gestão dos seguintes fluxos específicos de resíduos: o) Embalagens e resíduos de embalagens; b) Óleos e óleos usados; c) Pneus e pneus usados; d) Equipamentos elétricos e eletrónicos e resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos; e) Pilhas e acumuladores e resíduos de pilhos e acumuladores; f) Veículos e veículos em fim de vida (artigo 1º).
A alínea jjj) do art. 3. do DL n. 152-D/2017, de 11-12,veio definir o conceito de veículo em fim de vida como «VFV», veículo que, para alem dos referidos na alínea anterior, constitui um resíduo de acordo com o definição constante no Decreto-Lei n. 178/2006, de 5 de setembro, no sua redação atual", procedendo-se necessariamente à remissão para a alínea ee)do art. 3º do DL 178/2006, de 05-09, com as alterações introduzidas pelo DL n. 73/20L1, de 17/06, que define resíduos como sendo "quaisquer substâncias ou objetos de que o detentor se desfaz ou tem intenção ou obrigação de se desfazer".
Os VFV encontram-se classificados como resíduos perigosos na Lista Europeia de Resíduos (LER) sob o código LER 1.60104*, o que reflete a existência de substâncias e materiais perigosos na sua constituição, como os resíduos de combustíveis, os fluidos de travão, os óleos usados, os acumuladores de chumbo-ácido, os airbags, entre outros, que obrigam a uma gestão adequada para salvaguarda do ambiente e da saúde pública.
No caso vertente, as condições em que o veículo se encontrava, identificadas no ato de fiscalização, integra um VFV nos termos legais descritos, o que impunha ao Arguido a obrigação de lhe dar destino final adequado.
Neste sentido, determina o art. 81º/2 do DL n. 152-D/2017, de LL/12, que "Os proprietários e ou detentores de VFV são responsáveis pelo seu encaminhamento para um centro de recepção ou para um operador de desmantelamento". Por sua vez, determina o art. 84º/1 deste mesmo diploma que "Os proprietários ou detentores de VFV são responsáveis, nos termos do disposto no n. 2 do ortigo 81º e no presente artigo, pelo seu encaminhamento paro um centro de recepção ou para um operador de desmantelamento que exerça a sua atividade de acordo com o disposto no artigo 87º.
Prescreve a alínea yy) do n. 2 do art. 90º desse mesmo diploma que "O incumprimento por parte de proprietários ou detentores de VFV da obrigação assegurar o seu encaminhamento paro centros de recepção ou para operadores de desmantelamento licenciados, nos termos do n. 2 do artigo 81º e do n. 1 do artigo 84º constitui contraordenação ambiental grave.
Demonstrado nos factos provados, máxime em a) a d), que o Arguido era proprietário do VFV identificado nos autos e que não o encaminhou para um centro de receção ou operador de desmantelamento licenciado, tem-se a infração em apreço por verificada.
2. Atentos os fundamentos referidos em 1 do presente capítulo, o Arguido praticou:
Uma (1) contraordenação ambiental grave, prevista e punida pelo n. 2 do art. 81º.4, ns. 1 e 4 do artigo 84º e alínea yy) do n. 2 do art. 90º do DL n. 152-D /2017, de 11-12, atualmente p.p. pelo n. 2 do art.81º, n. 1 do art. 84º e alínea jjj) do n. 2 do art. 90º do DL n. 152-D/2011, de 11-12, na sua redação atual.
v. SANÇÃO
A determinação da coima faz-se em "...função do gravidade da contraordenação, da culpa do agente, da sua situação económica e dos benefícios obtidos com o pratico dos factos" (cf. o art. 20º da Lei n. 50/2006, de 29108).
Gravidade
Com a aprovação do quadro legal regulador dos VFV e seus componentes e materiais, o legislador veio impor obrigações/condições cuja violação classifica de contraordenações ambientais «muito graves», «graves» e «leves», em razão do maior ou menor juízo de desvalor atribuído aos diferentes graus de nocividade do desrespeito das mesmas para o ambiente e para a saúde pública.
No caso vertente o Arguido, enquanto proprietário de VFV, estava obrigado a proceder ao seu encaminhamento para um centro de receção ou operador de desmantelamento devidamente licenciado para o efeito.
O incumprimento de tal obrigação, nos termos referidos em lll e lV supra constitui «contraordenação ambiental grave», à qual, em consonância com o elevado juízo de desvalor reconhecido pelo legislador nessa classificação, deve corresponder um também elevado grau de gravidade, conforme entendimento constante no Acórdão n. 6/2018 do Supremo Tribunal de Justiça (Recurso Extraordinário de Fixação de Jurisprudência) quando afasta a possibilidade de aplicação de sanções próprias de contraordenaçôes leves às contraordenações graves e muito graves.
Culpa
No cumprimento das obrigações legais a que está adstrito, a conduta do Arguido apresenta-se subsumível no art. 15º/a do Código Penal, aplicável ex vi art. 32º do Regime Geral das Contraordenações (RGCO), termos em que, tendo violado o dever de cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, é sancionável a título de negligência, nos termos do n. 2 do art. 9º da Lei n. 50/2006, de 29/08, na redação da Lei n. 114/2015, de 28/08.
Situação económica
Apesar de notificado para o efeito, o Arguido não juntou elementos que permitam aferir da carência ou da abundância da sua situação económica, circunstância que, assim, não o poderá beneficiar nem prejudicar.
Benefício económico
No caso vertente, o benefício económico corresponde, pelo menos, aos gastos não suportados com o correto encaminhamento do VFV, cuja determinação não é possível por ora quantificar.
DECISÃO
Considerados os factos e fundamentos em ll, lll e lV e os pressupostos enunciados em V, decide-se:
1. Condenar o Arguido na coima de 2.000,00 (dois mil euros), pela prática de uma contraordenação ambiental grave (incumprimento da obrigação de encaminhar VFV para um centro de receção ou operador de desmantelamento autorizado, p. e p. pelo n. 2 do artigo l e 4 do artigo 84. e alínea yy) do n. 2 do artigo 90º do Decreto-Lei n. 152-D/2011, de 11-12), sancionável a título de negligência nos termos previstos na alínea a) do n. 3 do artigo 22º da Lei n. 50/2006, de 29 de agosto, na sua redação atual;
2. Condenar o Arguido em custas de processo no valor de 75,00 (setenta e cinco euros), ao abrigo do artigo 58º da Lei n. 50/2006, de 29 de agosto.
Notifique por carta registada com aviso de receção.
Registe.
A inspetora Diretora
(No uso das competências delegadas pelo n. 1.4 h) do Despacho n. 683/2022, publicado no Diário da República n. LL,2.e Série, de 17-01-2022.»
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O arguido impugnou judicialmente a decisão, a impugnação foi admitida e, realizado julgamento, o tribunal recorrido decidiu declarar improcedente a impugnação apresentada e manter a decisão recorrida, afirmando expressamente:

a) - Condeno o recorrente A pela prática de uma contraordenação ambiental grave, prevista e punida pelo n.º 2 do art.º 81.º, n.ºs 1 e 4 do artigo 84.º e alínea yy) do n.º 2 do art.º 90. º do DL n.º 152 -D/2017, de 11/12, atualmente p.p. pelo n.º 2 do art.s 8l.º, n.º 1 do art.s 84.º e alínea jjj) do n.º 2 do art. 90.º do DL n. 152-D/2017, de 11/12, na sua redação actual, na coima 2.000€ (dois mil euros), suspensa na sua execução na totalidade, pelo período de um ano com a condição de o recorrente cumprir a sanção acessória de, no prazo de 100 (cem) dias após o trânsito da presente sentença e caso não o tenha ainda feito, reencaminhar o veículo em fim de vida para centro de abate, fazendo prova nos autos do mesmo (art.º 20.º-A, n.º 1 e 30.º, n.º 1 al.ª j) e 4, da Lei n.º 50/2006, de 29-8).
b) Custas a cargo do recorrente.

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Inconformado com uma tal decisão, dela interpôs o arguido o presente recurso, pedindo seja concedido provimento ao mesmo no sentido de ser revogada a decisão recorrida, com as seguintes conclusões:

A) O Tribunal a quo, com vista a fundamentar a sua Decisão, deu como provado, referente ao veículo em causa, que o mesmo (…) encontrava-se degradado, em contacto direto com o solo, sujeito às condições climatéricas, não apresentando condições para a regular utilização do fim a que se destina (circulação), chegando ao fim da sua via útil. (…)
B) Do alegado atrás referido, fundamento da Decisão, afigura-se manifesto, salvo douta e melhor opinião, não existir um único facto que sustente a alegada Decisão sobre a matéria de facto.
C) Refere o douto Tribunal a quo, referindo-se ao veículo em causa, o termo “degradado”, mas tal termo tem de emergir de um conjunto de factos de onde se retira e conclui a existência de um estado de degradação, o que não se retira de matéria factual dada como provada na Sentença.
D) Mais é referido pelo douto Tribunal a quo na matéria de facto dada como provada a expressão “contacto direto com o solo”, sendo certo que esta , pese embora se entenda factual, não é, por si só, indiciadora de qualquer ilícito contraordenacional ambiental ou qualquer outro, na medida em que da matéria de facto dada como provada nada resulta no referente a esse contacto com o solo.
E) Com efeito, o veículo em causa não estava com a sua estrutura em contacto com o solo, sendo que esse contacto era apenas e só através do respetivo rodado, conforme se retira da prova produzida testemunhal e documental junta aos autos.
F) O contacto direto de um veículo com o solo, para efeitos ambientais, só ocorre quando a sua estrutura física, teto ou chassis está em contacto direto com o solo, o que não ocorria no caso em concreto.
G) Mais refere o douto Tribunal a quo como fundamento da sua Decisão que o veículo estaria sujeito às condições climatéricas, sendo certo que nenhum facto daí decorrente é dado como provado ocorrer como negativo para o ambiente.
H) O Tribunal a quo vem ainda referir que o veículo não apresentava condições para a regular utilização do fim a que se destina, chegando ao fim da sua vida útil, sem que se indique as razões de que emerge tal afirmação, diga-se sem qualquer base em factologia provada.
I) Diga-se que uma viatura com uma avaria não é uma viatura que chegou ao fim da sua vida útil desde que a avaria seja tecnicamente viável, o que não está demonstrado que assim não seja.
J) O Tribunal a quo com vista a sustentar a sua douta Decisão deita mão da inexistência de inspeção periódica obrigatória de veículo e bem assim de ausência de seguro de responsabilidade civil válido.
K) Com efeito, a falta de inspeção do veículo apenas tem como consequência uma contraordenação, conforme prevê a alínea a) do nº 2 do artigo 14º do Decreto-Lei 144/2012 de 11/07.
L) Por outro lado, a falta de seguro de responsabilidade civil obrigatório tem como consequência o impedimento de circulação de um veículo, conforme prevê o nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei 291/2007 de 21/08.
M) A ausência tanto de Inspeção periódica como de seguro de responsabilidade civil constituem violação da legislação ambiental, sendo certo que tal não consta do elenco de factos constantes da alínea ee) do artigo 3º do Decreto-Lei 73/2011 de 17/06.
N) O Tribunal a quo ao decidir como decidiu, violou, nomeadamente o disposto na alínea jjj) do artigo 3º do Decreto-Lei 152-D/2017 de 11/12 e bem assim o disposto no alínea ee) do artigo 3º do Decreto-Lei 178/2006 de 05/09, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 73/2011 de 17/06.
O) Sem prescindir do que atrás se referiu, sempre se diga que, não resulta de matéria dada como provada que a viatura ora em causa não dispusesse de condições para a circulação, após reparação mecânica.
P) Com efeito, a viatura em causa apenas necessitava de reparação da transmissão dianteira e de um ou outro retoque de pintura ou chapa que pese embora aconselháveis, não eram, essenciais para a sua circulação.
Q) Compulsado o D.L. 178/2006, de 05/09, retira-se da alínea ee), do atº 3º que: (…) “Resíduos” quaisquer substâncias ou objetos de que o detentor se desfaz ou tem a intenção ou a obrigação de se desfazer. (…), aplicável por via da alínea jjj) do nº 1, do art.º 3º, do D.L. 152-D/2017, de 11/12, que define VFV.
R) Olhando para jurisprudência a propósito da definição de veículos em fim de vida (VFV), veja-se Acórdão do T.R.C. de 12/03/2014, Proc. 714/12.2TBACB.C1 in www.dgsi.pt), que refere: (…) VFV é todo aquele relativamente ao qual deixa de se verificar a utilização para o fim a que se destina, ou seja, quando já não dispõe de condições para a circulação, seja por acidente, avaria, mau estado ou outro motivo (…).
S) Ainda sobre tal problemática veja-se o Acórdão do T.R.G. de 16/09/2019, Proc. 65/19.1TT8BRG.G1 in www.dgsi.pt, que entende que a legislação comunitária e a legislação nacional vão no sentido da recuperação do veículo em detrimento do respetivo abate ou seja, que o mesmo só deve acontecer quando aquele já não dispõe de condições para a circulação.
T) Atenta a inexistência de matéria de facto dada como provada que o veículo ora em causa não disponha de condições para a circulação, não poderá o mesmo ser qualificado na douta Decisão sob recurso, como veículo em fim de vida (VFV).
U) O Tribunal a quo tendo em conta que o veículo ora em causa não podia ser considerado um veículo em fim de vida, ao decidir pela suspensão da execução da pena deveria ter condicionado a mesma à prova nos autos da reparação do veículo e da submissão do mesmo a Inspeção periódica de veículos, com aprovação.
V) O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu violou, nomeadamente, o nº 2 do artigo 81º, nº 1 e 4 do artigo 84º e alínea yy) do nº 2 do artigo 90º, todos do Decreto Lei 152-D/2017 de 11/12.
Nestes termos e nos demais de direito aplicável, e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, deve a Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo se revogada e substituída por outra que absolva o arguido e ora recorrente da prática da contraordenação de que vem acusado ou, se assim não for entendido, deve a Sentença ora sob recurso ser revogada parcialmente, substituindo-se a condição da suspensão da execução da pena por prova da reparação do veículo e aprovação do mesmo em sede de Inspeção periódica de veículos, tudo com as legais consequências, com o que se fará mais uma vez, sã, serena e objetiva JUSTIÇA!!!

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A Digna Procuradora Adjunta respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência, com as seguintes conclusões:

1. O Recorrente A foi condenado pela prática de uma contraordenação ambiental grave, prevista e punida pelo n.º 2 do art.º 81.º, n.ºs 1 e 4 do artigo 84.º e alínea yy) do n.º 2 do art.º 90. º do DL n.º 152 -0/2017, de 11/12, atualmente p.p. pelo n.º 2 do artigo 8l.º, n.º 1 do artigo 84.º e alínea jjj) do n.º 2 do artigo 90.º do DL n. 152-D/2017, de 11/12, na sua redação atual, na coima 2.000€ (dois mil euros), suspensa na sua execução na totalidade, pelo período de um ano com a condição de o recorrente cumprir a sanção acessória de, no prazo de 100 (cem) dias após o trânsito da presente sentença e caso não o tenha ainda feito, reencaminhar o veículo em fim de vida para centro de abate, fazendo prova nos autos do mesmo (art.º 20.º-A, n.º 1 e 30.º, n.º 1 al.ª j) e 4, da Lei n.º 50/2006, de 29-8).
2. Careada toda a prova, o veículo em causa nos presentes autos é qualificado como um veículo em fim de vida, pelo que impunha ao Recorrente a obrigação de lhe dar destino final adequado, o que não sucedeu no caso concreto.
3. Compulsados os autos, verifica-se que o veículo em causa encontrava-se naquele local há cerca de 10 anos, degradado, em contacto direto com solo, sujeito as condições climatéricas, sem inspeção periódica e seguro de responsabilidade civil, não apresentando condições para a regular utilização do fim a que se destina, ou seja, a circulação.
4. As condições em que o veículo se encontrava são factos diretos que se sustentam na prova documental e testemunhal careada para os autos.
5. Não resulta dos autos prova que sustente a eventual e possível reparação do veículo em causa.
Pelo exposto, deverá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se, nos seus precisos termos, a Douta Sentença recorrida, com o que se fará a acostumada Justiça.

*

Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.


*

B.1 - Fundamentação:

B.1.1 – O tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. No dia 15/02/2018, pelas 15h55, os elementos da GNR de Grândola verificaram o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula (…..), marca Bedford Brava, de cor branca, com o n.º de quadro (…..), depositado na Parreirinha, na freguesia de Azinheira dos Barros, em Grândola, no local com as coordenadas geográficas 38°09.6160N e 08°19.7075W;
2. Aquele veículo encontrava-se degradado, em contato direto com o solo, sujeito às condições climatéricas, não apresentando condições para a regular utilização do fim a que se destina (circulação), chegando ao fim da sua vida útil.
3. O mesmo veículo não tinha inspeção periódica obrigatória nem seguro de responsabilidade civil válido;
4. O proprietário do veículo era A (Arguido), encontrando-se o registo automóvel em seu nome;
5. O Arguido, enquanto proprietário daquele VFV, estava adstrito ao cumprimento de obrigação legal que sobre si impendia, in casu assegurar o encaminhamento do mesmo para um Centro de Receção ou para um operador de desmantelamento autorizado;
6. Não o tendo feito violou deveres de cuidado a que estava obrigado, designadamente agir com a diligência necessária e de que era capaz.
7. O veículo não circulava e aguardava reparação há vários anos, pelo menos há 10 anos.

*

B.1.2 – E como não provado o seguinte facto: «A) - O veículo em causa, quando foi adquirido apenas tinha necessidade de reparação da transmissão dianteira, a qual, efetuada, daria todas as condições de circulação à dita viatura, enquanto viatura de "todo o terreno", uma vez que, sem essa transmissão, ainda assim poderia circular, apenas com a tração traseira.»

*

B.1.2 – E apresentou as seguintes razões na fundamentação factual:

«Para a decisão quanto à matéria de facto acima descrita e assente, o tribunal fundou a sua convicção na análise e valoração crítica da prova produzida em audiência e da prova documental junta aos autos, nomeadamente:

Nos documentos juntos aos autos com o auto de contra-ordenação, designadamente o relatório fotográfico e o auto de notícia Elementos estes conjugados com os depoimentos prestados pelos militares da GNR que se deslocaram ao local e elaboraram o respectivo auto de notícia, os quais explicaram o estado em que o veículo se encontrava e o local, confirmando o teor do auto de notícia.

No que concerne à defesa do recorrente, teve o Tribunal em consideração as suas declarações e as declarações prestadas pelas testemunhas B, o qual referiu ser empregado do recorrente e que o veículo se encontra há vários anos a aguardar reparação e a testemunha C, o qual referiu desconhecer o estado em que o veículo se encontra e que apenas teve contacto com o mesmo uma vez que foi levado à sua oficina, não sabendo precisar quando.

O recorrente prestou declarações afirmando que adquiriu a viatura já usada há alguns anos atrás, cerca de 10 anos e que a mesma apresentava, na altura da compra, uma avaria, tendo estacionado a mesma, após a compra, no seu terreno, a aguardar oportunidade de reparação».


*****

B.2 - Cumpre decidir.

O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº1, e 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal - não estando o tribunal de recurso impedido de conhecer dos vícios referidos no art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – nº 3 do referido preceito.

Por outro lado, nos termos do art. 75º nº1 do DL nº 433/82, de 27/10, nos processos de contra-ordenação a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões. Isto é, este Tribunal funcionará, no caso, como tribunal de revista.

Nas suas motivações, o recorrente assenta o seu recurso em inexistência de factos da decisão recorrida e da decisão administrativa e em erros de facto, os previstos no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, aplicável ao processo contra-ordenacional.

Quanto a estes fundamentos de recurso, o seu objecto é a inconformidade sobre o dever de apresentação do veículo a operador licenciado para desmantelamento e a própria classificação do veículo como VFV.


*

B.3 – Quanto à razão de inconformidade do recorrente convém começar por esclarecer quais os parâmetros legais que enformam a decisão, de forma a fugirmos à névoa legislativa de que quase sempre sofrem as contra-ordenações ambientais.

São estes os textos legislativos que suportam a decisão, sendo certo que as normas aplicáveis são, nos termos do artigo 2º, nº 4 do CPenal, as vigentes à data da prática dos factos.

Do Dec-Lei nº 152-D/2017, de 11 de dezembro:


Artigo 81.º
2 — Os proprietários e ou detentores de VFV são responsáveis pelo seu encaminhamento para um centro de receção ou para um operador de desmantelamento.
Artigo 84.º
Funcionamento do sistema integrado de gestão de VFV
1 — Os proprietários ou detentores de VFV são responsáveis, nos termos do disposto no presente artigo, pelo seu encaminhamento para um centro de receção ou para um operador de desmantelamento que exerça a sua atividade de acordo com o disposto no artigo 87.º

Tais preceitos são enquadrados:


Artigo 1.º
Objeto
1 — O presente decreto-lei estabelece o regime jurídico a que fica sujeita a gestão dos seguintes fluxos específicos de resíduos:
a) Embalagens e resíduos de embalagens;
b) Óleos e óleos usados;
c) Pneus e pneus usados;
d) Equipamentos elétricos e eletrónicos e resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos;
e) Pilhas e acumuladores e resíduos de pilhas e acumuladores;
f) Veículos e veículos em fim de vida.
Artigo 3.º
Definições
1 — Para efeitos de aplicação do presente decreto -lei, entende -se por:
iii) «Veículo», qualquer veículo classificado nas categorias M1 ou N1, definidas no anexo II ao Decreto-Lei n.º 16/2010, de 12 de março, bem como os veículos a motor de três rodas definidos no Decreto -Lei n.º 30/2002, de 16 de fevereiro, na sua redação atual, com exclusão dos triciclos a motor;
jjj) «VFV», veículo que, para além dos referidos na alínea anterior, constitui um resíduo de acordo com a definição constante no Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de setembro, na sua redação atual.

O que nos reenvia para os dois diplomas citados e uma Lista Europeia de Resíduos, o Decreto-Lei n.º 16/2010, de 12 de março e o Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de setembro.

Neste último encontramos a alínea u) que afirma:


Artigo 3º
Definições
Para os efeitos do disposto no presente decreto-lei, entende-se por:
u) «Resíduo» qualquer substância ou objecto de que o detentor se desfaz ou tem a intenção ou a obrigação de se desfazer, nomeadamente os identificados na Lista Europeia de Resíduos ou ainda:
i) Resíduos de produção ou de consumo não especificados nos termos das subalíneas seguintes;
ii) Produtos que não obedeçam às normas aplicáveis;
iii) Produtos fora de validade;
iv) Matérias acidentalmente derramadas, perdidas ou que sofreram qualquer outro acidente, incluindo quaisquer matérias ou equipamentos contaminados na sequência do incidente em causa;
v) Matérias contaminadas ou sujas na sequência de actividades deliberadas, tais como, entre outros, resíduos de operações de limpeza, materiais de embalagem ou recipientes;
vi) Elementos inutilizáveis, tais como baterias e catalisadores esgotados;
vii) Substâncias que se tornaram impróprias para utilização, tais como ácidos contaminados, solventes contaminados ou sais de têmpora esgotados;
viii) Resíduos de processos industriais, tais como escórias ou resíduos de destilação;
ix) Resíduos de processos antipoluição, tais como lamas de lavagem de gás, poeiras de filtros de ar ou filtros usados;
x) Resíduos de maquinagem ou acabamento, tais como aparas de torneamento e fresagem;
xi) Resíduos de extracção e preparação de matérias--primas, tais como resíduos de exploração mineira ou petrolífera;
xii) Matérias contaminadas, tais como óleos contaminados com bifenil policlorado;
xiii) Qualquer matéria, substância ou produto cuja utilização seja legalmente proibida;
xiv) Produtos que não tenham ou tenham deixado de ter utilidade para o detentor, tais como materiais agrícolas, domésticos, de escritório, de lojas ou de oficinas;
xv) Matérias, substâncias ou produtos contaminados provenientes de actividades de recuperação de terrenos;
xvi) Qualquer substância, matéria ou produto não abrangido pelas subalíneas anteriores;

A Lista Europeia de Resíduos no seu ponto 16.01.04 (LER 16.01.04*) explicita: [1]

16 01 04 (*) Veículos em fim de vida.

Quanto ao Decreto-Lei n.º 16/2010, de 12 de março, que aprova o Regulamento Que Estabelece o Quadro para a Homologação CE de Modelo de Automóveis e Reboques, Seus Sistemas, Componentes e Unidades Técnicas, altera o Regulamento Que Estabelece as Disposições Administrativas e Técnicas para a Homologação dos Veículos das Categorias M1 e N1, Referentes à Reutilização, Reciclagem e Valorização dos Seus Componentes e Materiais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 149/2008, de 29 de Julho, procede à transposição para a ordem jurídica interna da Directiva n.º 2007/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de Setembro, e da Directiva n.º 2009/1/CE, da Comissão, de 7 de Janeiro, e revoga o Decreto-Lei n.º 72/2000, de 6 de Maio, nenhum dos seus dispositivos é invocado pela decisão administrativa ou tribunal recorrido.


*

B.3 – De toda esta névoa legislativa cabe perguntar onde se define o início do dever de entrega da viatura a um agente autorizado e como se caracteriza um VFV. De outra forma, quem e como se define que um vulgar veículo passa à categoria de VFV?

Porque, sendo o veículo propriedade de um cidadão e estando o veículo aparcado em seu terreno privado – e não “depositado”, como se afirma na decisão administrativa, o que só demonstra que o uso dos termos deve ser cauteloso e não finalista – resta saber qual o dispositivo legal que, em dado momento, obriga o cidadão a entregar o seu veículo.

Porque esse dever tem que estar previsto em norma legal da República Portuguesa que “exproprie” o veículo e o defina como resíduo (?) “enxotável” pelo proprietário, com custos acrescidos e de sua responsabilidade.

O confisco, forçado e custoso, de bens não pode estar dependente da vontade arbitrária de um agente administrativo.

Se o uso do termo “depositado” pela decisão administrativa já era um alerta por querer sugerir uma finalidade, a circunstância de a GNR ter usado a localização GPS do veículo e não ter definido o terreno onde o veículo se encontrava aparcado como público ou privado, deveria ter alertado o tribunal recorrido para a estranheza de tal procedimento. Porquanto são coisas diversas estar o veículo aparcado em terreno privado ou na via pública. E só com a localização do GPS, apenas o google-maps nos descansa quanto à possibilidade de o veículo não se encontrar “depositado” no Atlântico e sim em S. Mamede do Sádão!

Porque também faz parte das funções judiciais entrever nas entrelinhas acções e intenções.

Assim, o cerne da questão está em saber qual a norma que impõe – e em que condições – que o proprietário entregue o seu veículo para desmantelamento e de onde resulte a violação do dever ínsita na negligência?

Se atendermos ao artigo 84.º do Dec-Lei nº 152-D/2017, de 11 de dezembro constatamos que várias são as situações em que o sistema integrado de gestão de VFV determina a obrigação legal de entrega de veículos para desmantelamento por inutilização e abandono.

1 — Os proprietários ou detentores de VFV são responsáveis, nos termos do disposto no presente artigo, pelo seu encaminhamento para um centro de receção ou para um operador de desmantelamento que exerça a sua atividade de acordo com o disposto no artigo 87.º
2 — Quando se trate de veículo inutilizado nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 119.º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, na sua redação atual, o proprietário é responsável pelos encargos com o seu encaminhamento para um centro de receção ou para um operador de desmantelamento, no prazo máximo de 30 dias a contar da data em que o veículo fique inutilizado, com exceção dos casos previstos nas alíneas a) e b)
do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 31/85, de 25 de janeiro, na sua redação atual.

3 — Sempre que se verifiquem situações de abandono de veículos, nos termos do artigo 165.º do Código da Estrada, as autoridades municipais ou policiais competentes procedem ao respetivo encaminhamento para um centro de receção ou um operador de desmantelamento, sendo os custos decorrentes dessa operação da responsabilidade do proprietário do veículo abandonado.
4 — Quando se trate de veículos inutilizados que integrem a esfera jurídica de uma companhia de seguros, esta fica responsável pelos encargos com o seu encaminhamento, para um centro de receção ou para um operador de desmantelamento, no prazo máximo de 30 dias a contar da data em que o veículo seja considerado inutilizado.
5 — (…)

Nos termos do nº 2 do preceito veículo inutilizado é, face ao nº 2 do artigo 116º do CE:


Artigo 116.º
Inspeções
2 - Pode determinar-se a sujeição dos veículos referidos no número anterior a inspeção extraordinária nos casos previstos no n.º 5 do artigo 114.º e ainda quando haja fundadas suspeitas sobre as suas condições de segurança ou dúvidas sobre a sua identificação, nomeadamente em consequência de alteração das características construtivas ou funcionais do veículo, ou de outras causas.

Sendo neste caso proibido o seu trânsito na via pública, face ao determinado no art. 114º do CE.

Artigo 114.º
Características dos veículos
5 - É proibido o trânsito de veículos que não disponham dos sistemas, componentes ou acessórios com que foram aprovados ou que utilizem sistemas, componentes ou acessórios não aprovados nos termos do n.º 3.
6 - Quem infringir o disposto no número anterior é sancionado com coima de (euro) 250 a (euro) 1250, sendo ainda apreendido o veículo até que este seja aprovado em inspeção extraordinária.

Mas o veículo em causa não circulava na via pública e a inexistência de inspecção apenas arrasta a proibição de circulação, não autoriza nem a sua apreensão, nem a sua classificação como VFV.

E levá-lo à oficina e/ou a uma inspecção faz-se, de forma simples, pelo seu transporte em reboque apropriado, o que permite a sua reparação/manutenção e sujeição a inspeção.

Não fora assim e não haveria mercado de carros clássicos. Mas, é claro, trata-se de uma Bedford e não de um Mercedes ou de um Ferrari, casos em que certamente não aconteceria o que ocorreu nestes autos.

Mas nada impede um proprietário de ter uma viatura utilitária mais barata à espera de “cláusula de melhor fortuna” desde que não haja indícios de corrimento de óleos.

Ora, nenhuma das normas indicadas define o momento em que um vulgar proprietário deve conduzir um veículo a local de abate, o que reconduz a actuação da força de segurança a um acto arbitrário.

O ilícito contra-ordenacional - enquanto direito sancionatório sujeito às regras do art. 6º da CEDH - está sujeito, igualmente, ao princípio da legalidade que, como sabido, é regulado no art. 29º da CRP nos seguintes termos:


ARTIGO 29.º

(Aplicação da lei criminal)

1. Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.

Por sua vez o RGCO determina que:


Artigo 2.º
(Princípio da legalidade)
Só será punido como contra-ordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática.

A tipicidade da conduta – como exigido pelo princípio da legalidade – não se encontra delimitada de forma clara nas normas previsivas e condenatórias usadas na decisão administrativa – nem o arguido com elas foi confrontado no processo, pois que inexiste norma que claramente defina o momento em que um veículo, propriedade de um cidadão, passa à condição de VFV se o mesmo estiver em local fora da via pública e nela não circule.

Se não está em condições de circular na via pública não pode nela circular, mas não foi isso que ocorreu nos autos, que se limita a ser o espelho de uma actuação arbitrária de um agente administrativo.

Não há, pois, razões legais que permitam a condenação do arguido e o confisco da sua viatura.

Por tudo é o recurso totalmente procedente.


***

C - Dispositivo

Face ao que precede, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, absolvendo o arguido da acusação deduzida.

Notifique.

Sem tributação.

Évora, 09 de abril de 2024

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa

Filipa Costa Lourenço

Renato Barroso

__________________________________________________

[1] Todo o ponto 16.01 da LER refere, tautologicamente:

16 RESÍDUOS NÃO ESPECIFICADOS EM OUTROS CAPÍTULOS DESTA LISTA:

16 01 Veículos em fim de vida de diferentes meios de transporte (incluindo máquinas todo o terreno) e resíduos do desmantelamento de veículos em fim de vida e da manutenção de veículos

(excepto 13, 14, 16 06 e 16 08):

16 01 03 Pneus usados.

16 01 04 (*) Veículos em fim de vida.

16 01 06 Veículos em fim de vida esvaziados de líquidos e outros componentes perigosos.

16 01 07 (*) Filtros de óleo.

16 01 08 (*) Componentes contendo mercúrio.

16 01 09 (*) Componentes contendo PCB.

16 01 10 (*) Componentes explosivos [por exemplo, almofadas de ar (air bags)].

16 01 11 (*) Pastilhas de travões contendo amianto.

16 01 12 Pastilhas de travões não abrangidas em 16 01 11.

16 01 13 (*) Fluidos de travões.

16 01 14 (*) Fluidos anticongelantes contendo substâncias perigosas.

16 01 15 Fluidos anticongelantes não abrangidos em 16 01 14.

16 01 16 Depósitos para gás liquefeito.

16 01 17 Metais ferrosos.

16 01 18 Metais não ferrosos.

16 01 19 Plástico.

16 01 20 Vidro.

16 01 21 (*) Componentes perigosos não abrangidos em 16 01 07 a 16 01 11, 16 01 13 e 16 01 14.

16 01 22 Componentes não anteriormente especificados.

16 01 99 Outros resíduos não anteriormente especificados