CÚMULO JURÍDICO DE PENAS
PENA SUSPENSA
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE DO CONCURSO DE INFRACÇÕES
Sumário

I - Não existe óbice legal à realização de cúmulo jurídico entre penas de prisão efetivas e penas de prisão suspensas na sua execução, ou apenas entre penas de prisão suspensas, por conhecimento superveniente do concurso.
II - Verificando-se os pressupostos do concurso superveniente, tem que ser realizado o “Cúmulo Jurídico” das penas, independentemente da sua natureza efetiva ou substitutiva, não sendo lícito recusar a sua realização com fundamento no entendimento de que a mesma não é favorável ao condenado.

Texto Integral




I – RELATÓRIO

1 – No dia 06 de dezembro de 2023, foi proferido Despacho no qual se indeferiu a realização do Cúmulo Jurídico das penas aplicadas ao condenado (A), nele devidamente identificadas, com o seguinte teor:

Vistos os elementos informativos feitos coligir nos autos.

Estando em causa a eventual realização de cúmulo superveniente de penalidades contemplando as condenações antes sofridas nos processos n.ºs 21/22.2GHSTC e 448/21.7GHSTC, ambos do Juízo Local Criminal de Santiago do Cacém, cumprirá avaliar da pertinência da realização do cúmulo.
Para tanto, importará considerar que:
- no processo n.º 21/22.2GHSTC do J2 do Juízo Local Criminal de Santiago do Cacém, o arguido foi condenado por sentença de 17/05/2023, transitada em julgado em 16/06/2023, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos, sob regime probatório;
- os factos motivadores da condenação ocorreram em 12/01/2022;
- encontra-se em curso o prazo da suspensão, sendo que os indicados autos informam não ter sido até este momento revogada a suspensão de pena (fls. 40);
- no processo n.º 448/21.7GHSTC do mesmo Juízo Local (J1) fora o arguido condenado, por sentença proferida em 3/06/2022, transitada em julgado a 4/07/2022, na pena de 4 anos e 3 meses de prisão efetiva, que atualmente cumpre em regime prisional;
- os factos ali em apreço, motivadores do juízo condenatório, reportam-se a período temporal entre 26/09/2021 e 20/02/2022.
Face aos elementos informativos supra, temos que:
Estatui o artigo 78º, n.º 1 do CP que “Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes”.
Mais, refere o n.º 2 da invocada disposição legal que “O disposto no número anterior só é aplicável aos crimes cuja condenação transitou em julgado”.
Perfilhamos o entendimento que a competência para realização do cúmulo se aferirá pela data da condenação, independentemente do trânsito em julgado, o qual se configura como mero requisito para a admissibilidade de cúmulo de penas.
Neste sentido é extensa a jurisprudência junto dos tribunais superiores, aqui se destacando, entre outros, os Arestos do STJ de 19/10/94, CJ Ano II, Tomo 3, a pág. 216, de 25/10/90, BMJ n.º 400, a pág. 334, de 14/03/92, BMJ n.º 415, a pág. 280, e da RL de 4/10/95 (este último, sumariado in www.dgsi.pt).
À luz das considerações legais em evidência, encontram-se formalmente verificados os requisitos legais para a efetivação de cúmulo superveniente de penas.
Porém, a coexistência, em plano de autonomia, de uma pena de prisão de execução efetiva (em cumprimento atual) e de uma pena de prisão suspensa na sua execução (com prazo de suspensão em curso), face à qual não foi determinada revogação, ditará, no eventual cúmulo a realizar, uma decisão que se afigurará necessariamente desfavorável ao condenado, na medida em que, face aos limites mínimo e máximo do cúmulo, ditará, muito provavelmente, a aplicação de pena única de cumprimento efetivo.
Nessa medida, e encontrando-se, na essência, o juízo inerente à realização de cúmulo superveniente de penalidades, uma intenção de beneficiar a posição do condenado, ditando a formação de uma pena única que seja de duração inferior às penas parcelares em concurso, afigura-se-nos que a realização de cúmulo nestes autos desvirtuaria tal essência, na medida em que ditaria, na coexistência de penas em curso de formas diversas de cumprimento, uma pena única de cumprimento efetivo, certamente superior àquela que o arguido vem cumprindo.
Assim, e sem prejuízo da ponderação, em momento posterior, do eventual ajuste e benefício da realização de cúmulo, caso a suspensão em curso no processo n.º 21/22 venha a ser revogada, não se descortina, por ora, qualquer vantagem na realização de cúmulo superveniente de penalidades, que assim se entende não efetuar.
Notifique.
Informe os processos acima aludidos, bem como o TEP (dando resposta ao ofício já endereçado aos autos).
Oportunamente, arquive.

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Inconformado com a decisão veio o Ministério Pública interpor o presente recurso, apresentando as seguintes transcritas Conclusões:
1ª – Vem o presente recurso interposto do douto despacho que indeferiu a promovida realização de cúmulo jurídico das penas de prisão aplicadas ao arguido no Procº nº 21/22.2GHSTC do JLC de Santiago do Cacém J2 (suspensa na sua execução) e no Procº nº 448/21.7GHSTC do JLC de Santiago do Cacém J1 (efectiva);
2ª – A decisão recorrida teve como fundamento a constatação de que ainda se encontra em curso o período da suspensão da execução da pena de prisão aplicada no Procº nº 21/22.2GHSTC e a asserção de que a operação de cúmulo redundaria em prejuízo para o arguido;
3ª – Está hoje definitivamente ultrapassado na doutrina e na jurisprudência o entendimento – que nos parece ser efectivamente de repudiar– segundo o qual não é possível cumular juridicamente penas de prisão efectiva com penas de prisão de execução suspensa (mesmo que ainda não se mostre decorrido o período da suspensão);
4ª – A imposição da realização de cúmulo jurídico de pena sem caso de conhecimento superveniente do concurso de crimes – artº 78º nº 1 do C.P. – não tem por escopo beneficiar o condenado, mas dedicar-lhe o mesmo tratamento punitivo que é dispensado àquele cujo concurso de crimes é conhecido num único processo e no mesmo momento – artº 77º nº 1 do C.P. –, visando uma avaliação global dos factos e da personalidade do agente;
5ª – Ao decidir pela não realização de cúmulo jurídico das penas de prisão cominadas no Procº nº 21/22.2GHSTC e no Procº nº 448/21.7GHSTC com o sobredito fundamento, o despacho recorrido violou as disposições conjugadas do nº 1 do artº 77º e do nº 1 do artº 78º do C.P.;
6ª – Interpretando-as e aplicando-as no sentido de que, em caso de conhecimento superveniente de concurso de crimes punidos originariamente com pena de prisão efectiva e com pena de prisão suspensa na sua execução (e enquanto esta suspensão se mantiver sem ter decorrido o respectivo prazo), não está o tribunal competente obrigado a conhecer desse concurso e puni-lo com uma pena única – quando as deveria ter interpretado e aplicado no sentido contrário.
Termos em que deverá o presente recurso merecer provimento e ser o douto despacho recorrido revogado e substituído por outro que determine a realização de cúmulo jurídico das penas de prisão aplicadas ao arguido no Procº nº 21/22.2GHSTC e no Procº nº 448/21.7GHSTC.
V. Exªs, porém, melhor apreciarão, decidindo conforme for de JUSTIÇA
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Recebido o recurso não foi apresentada resposta.
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II - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar art.ºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – art.º 410º nº 2 CPP.
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Questões a decidir:
(i) Se as penas de prisão suspensas na sua execução podem ou não integrar cúmulo jurídico com penas efetivas.
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Analisando e decidindo:
Como resulta do recurso apresentado pelo MP, a jurisprudência do Supremo dividiu-se sobre a admissibilidade de integrar no cúmulo jurídico penas de prisão suspensas e efetivas. Era minoritária a posição que defendia que as penas suspensas apenas poderiam ser cumuladas com outras penas suspensas na execução, do mesmo modo que as penas efetivas apenas podiam ser cumuladas com penas efetivas. A maioria da jurisprudência sempre defendeu que as penas de prisão, sejam elas efetivas ou suspensas na sua execução podem e devem integrar o cúmulo jurídico, sempre, naturalmente que se verifiquem os pressupostos legais deste.
Atualmente este último entendimento é senão unânime, uniforme e reiterado, é largamente maioritário, sendo o entendimento jurídico a que aderimos.
Como podemos ler em O Cúmulo Jurídico Na Doutrina e na Jurisprudência do STJ, da autoria do Sr Conselheiro Rodrigues da Costa, disponível na página web do STJ, a pág. 16 e ss.:
A jurisprudência dominante do STJ tem assentado na ideia de que não se forma caso julgado sobre a suspensão da execução da pena, mas tão somente sobre a medida dessa pena, entendendo-se que a substituição está resolutivamente condicionada ao conhecimento superveniente do concurso, e ainda nas ideias de provisoriedade da suspensão da pena e de julgamento rebus sic stantibus quanto a tal questão.28[2]
Lê-se num dos arestos do STJ: «A lei afasta, expressamente, qualquer limite emergente de caso julgado de que tenham sido objecto as penas parcelares, com vista à efectivação do cúmulo e fixação autónoma ex novo da pena única conjunta. Poderá dizer-se mesmo que, se tal operação é efectuada em consequência de “conhecimento superveniente”, tem de aceitar-se, em consequência, que, aquando do julgamento parcelar, existia falta de conhecimento desse elemento de facto, pelo que, sendo tal julgamento hoc sensu, incompleto por deficiência desse elemento de facto, não repugna tê-lo como julgamento condicional, rebus sic stantibus, sempre ultrapassável, na hipótese de surgirem os novos elementos de facto então faltosos, o “conhecimento superveniente” a que se reporta o art. 78.º citado, que, justamente por isso, suplanta o normal regime de intangibilidade do caso julgado, se é que de caso julgado puro se pode falar nestas singulares circunstâncias, em que os julgamentos parcelares foram avante sem o inteiro domínio do facto pelos respectivos tribunais, e, assim, com uma realidade fáctica truncada e insuficiente. E o caso julgado tout court pressupõe a estabilidade das circunstâncias do julgamento, nomeadamente do quadro de facto que lhe subjaz.»29
Esta posição jurisprudencial, caucionada pelo Tribunal Constitucional,30 tem ainda a sancioná-la as posições doutrinais assumidas por PAULO DÁ MESQUITA31, ANDRÉ LAMAS LEITE32 e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE33.
Como já adiantámos supra, seguimos a Jurisprudência do STJ citada e aquela citada no Estudo acima identificado, segundo a qual, não existe óbice legal à realização de cúmulo jurídico entre penas de prisão e penas suspensas, ou apenas entre penas suspensas, por conhecimento superveniente do concurso.
II- O caso julgado relativo à formulação do cúmulo jurídico vale rebus sic stantibus, ou seja, se as circunstâncias se alterarem por, afinal, do concurso fazer parte outro crime e outra pena, o caso julgado fica sem efeito e as penas parcelares adquirem toda a sua autonomia para a determinação da nova moldura do concurso.
III- Podendo o legislador ter excluído do conhecimento superveniente do concurso de crimes as penas de prisão suspensas na sua execução, não o fez, por boas razões político criminais e em respeito ao princípio da igualdade. Desde logo por razões de prevenção geral e especial Ac. do STJ de 02-06-2021, Proc. 626/07.1PBCBR.S1, Relator António Gama.
Ao contrário do que se mostra vertido no despacho recorrido, verificando-se os pressupostos do concurso superveniente tem que ser realizado o Cúmulo Jurídico das penas, independentemente da sua natureza efetiva ou substitutiva, não sendo lícito recusar a sua realização com fundamento no entendimento de que o mesmo não é favorável ao condenado. Não nos encontramos perante sucessão de leis no tempo, pelo que o raciocínio seguido para concluir pela não realização do cúmulo jurídico não tem qualquer fundamento.
Face a todo o exposto impõe-se concluir pelo provimento do recurso.
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Decisão:
Julgar provido o recurso apresentado pelo Ministério Público, e em consequência:
- Revoga-se o despacho recorrido;
- Determina-se a realização do Cúmulo Jurídico.
- Sem custas.

Évora, 9 de abril de 2024

Processado e revisto pela relatora (art.º 94º, nº 2 do CPP).
Maria Gomes Bernardo Perquilhas
Renato Barroso
Carlos de Campos Lobo


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[1] Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271); o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263);
SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335;
RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363.
[2] 28 Cf. acórdãos de 02-03-2006, Proc. n.º 186/06, da 5.ª Secção; de 05-04-2006, Proc. n.º 101/06, da 3.ª Secção; de 08-06-2006, Proc. n.º 1558/06, da 5.ª Secção, todos disponíveis nos Sumários dos Acórdãos; de 04-12-2008, Proc. n.º 08P3628, da 5.ª Secção; de 14-01-2009, Proc. n.º 08P3975, da 5.ª Secção e de 16/11/2011, Proc. n.º 150/08.5JBLSB.L1.S1, daa 3.ª Secção, com acórdãos integrais disponíveis no site do STJ.