PROCESSO TUTELAR EDUCATIVO
AUDIÊNCIA PRÉVIA
CASO JULGADO FORMAL
Sumário

I - Proferido despacho a designar “Audiência Prévia”, em conformidade com o disposto nos artigos 92º a 94º da Lei nº 166/99, de 14/09 (“Lei Tutelar Educativa”), o Juiz que preside a tal “Audiência Prévia” não pode, no início da mesma e a título de “questão prévia”, qualificar de forma diversa os factos, ignorando o despacho judicial previamente prolatado (que possui força de caso julgado formal) e entendendo que “os factos imputados pelo M.ºP.º não têm dignidade penal”, que “falha a verificação do pressuposto de que depende a intervenção tutelar educativa, ou seja, que os jovens A, B, C, D e E tenham cometido factos qualificados pela lei como crime - art. 1º da LTE”, e, consequentemente, determinando “o arquivamento dos autos”.
II - Os despachos proferidos ao longo do processo vão formando caso julgado formal, a não ser que os mesmos apenas constituam despacho tabelar, o que não é o caso, ou sejam revogados em recurso intentado para o efeito, o que não ocorreu.

Texto Integral




I – RELATÓRIO

O MP deduziu Requerimento de Abertura da Fase jurisdicional, no final do Inquérito Tutelar Educativo que abriu após denúncia da prática de factos qualificados pela lei penal como crime, a favor dos jovens A, B, C, D e E.
Foi proferido despacho a que alude o disposto no art.º 92.º a 94.º da Lei n.º 166/99, de 14/09, doravante Lei Tutelar Educativa.
No dia designado para realização da Audiência Prévia, e após ter sido declarada aberta, foi proferido o seguinte despacho:
Questão Prévia
Da impossibilidade legal do presente procedimento tutelar educativo:
O MP requereu a abertura da fase jurisdicional quanto aos jovens A, B, C, D e E, imputando-lhes em coautoria a prática de factos que em seu entender são qualificados pela lei penal como um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º nº.1 do Cód. Penal.
Em termos objectivos, os factos concretamente imputados são os seguintes:
“No ano letivo de 2021/2022, os menores A, B, C, D e E, residentes em Beja, frequentavam o 9.º ano de escolaridade na Escola D. Manuel I, na mesma localidade.
Pertenciam todos à mesma turma, eram amigos e saíam frequentemente juntos da Escola.
No período compreendido entre finais de janeiro de 2022 e o dia 15 de fevereiro do mesmo ano, quando não tinham aulas por falta dos professores, os 5 (cinco) menores passaram a aproveitar esses “furos” para sair da Escola e passear pela cidade de Beja.
Nessas saídas combinaram deslocar-se a uma zona de moradias próxima da Escola que frequentavam, para tocar às campainhas das habitações e fugir.
Em execução desse propósito comum, em datas ignoradas do referido período temporal, os 5 (cinco) deslocaram-se, um número indeterminado de vezes, à Rua (…..), em Beja, e, aleatoriamente, tocaram às campainhas das moradias sitas nos n.ºs 9 e 11, propriedade de F e G, respetivamente, que não conheciam.
Numa dessas ocasiões em que os menores se aproximaram do quintal da moradia sita no n.º 11, com o intuito de tocar à campainha, o dono, que se encontrava no interior da habitação com a esposa, apercebeu-se e veio de imediato à porta para os avisar.
Porém, os mesmos puseram-se em fuga.
Inconformados com o facto de terem sido avistados no local, os 5 (cinco) menores de imediato firmaram o propósito de se vingar dos proprietários das duas moradias em que habitualmente tocavam às campainhas, combinando que regressariam ao local, mas para arremessar para os quintais objetos.
Em execução desse propósito comum voltaram ao local por outras vezes, arremessando para o interior dos 2 (dois) quintais limões, que apanharam das árvores plantadas na zona.
Outras vezes, atiraram caixas de cartão próprias para transportar pizzas, contendo ainda restos de comida, e projetaram contra as paredes, vidros e portas das habitações limões e garrafas de Coca-Cola, bem como latas de Red Bull, algumas delas ainda com bebida, outras vazias.
Numa dessas ocasiões, os menores também atiraram para o quintal da moradia sita no n.º 9 um saco de plástico, contendo carne crua, que provinha de experiências que tinham feito na Escola, mas pediram à professora para trazer consigo, já com o intuito de arremessarem para o interior do logradouro da dita habitação.
No dia 15 de fevereiro de 2022, no período compreendido entre as 09h15 e as 10h40, os 5 (cinco) menores regressaram, uma vez mais, à zona das moradias e, em execução do mesmo propósito, arremessaram limões para o interior dos 2 (dois) quintais.
(…)
Em consequência dos objetos que os menores projetaram contra as paredes e portas das habitações, a pintura destas superfícies ficou com marcas escuras, sendo ignorado o valor dos estragos causados nas duas habitações e respetivos quintais.” – nosso sublinhado.
Após a entrada em vigor da Lei 61/2013, de 23 de Agosto, discutiu-se na jurisprudência se o regime nela instituído acarretava a descriminalização de condutas típicas do crime de dano, nomeadamente a desfiguração produzida em edifícios, públicos ou privados.
Não cabendo aqui desenvolver as teses em confronto, veio, entretanto, tal questão a ser resolvida pelo Acórdão de fixação de jurisprudência nº. 4/2018, de 24 de Outubro, DR nº. 205/2018, Série I, fixando-se jurisprudência no sentido de que aquela Lei não acarretou a descriminalização de qualquer das condutas típicas do crime de dano.
Porém, na sua fundamentação, tal acórdão acaba por delimitar a fronteira entre o âmbito de aplicação de tal Lei e o crime de dano, em particular no que respeita ao dano por desfiguração. Ali se diz «De tudo isso, só pode concluir-se que a Lei n.º 61/2013 não visou mais do que abranger e punir a título de contra-ordenação comportamentos associais que, causando prejuízos, não são abrangidos por qualquer dos conceitos através dos quais se realiza o crime de dano ou, sendo-o, não atingem o mínimo de danosidade social pressuposto nesse ilícito, ou, atingindo-o, ocorrem obstáculos à punição, como a ausência de queixa, nos casos em que é exigida para poder haver procedimento, ou a amnistia.
Haverá casos em que o comportamento do agente preenche apenas uma contra-ordenação, leve ou grave, e será punido a esse título. Outros, porém, como os de descaracterização, alteração, maculação e conspurcação, de forma permanente e prolongada, pondo em grave risco a restauração do bem, pelo carácter definitivo ou irreversível do meio utilizado para a sua alteração, que preenchem simultaneamente uma contra-ordenação muito grave e um crime de dano, na modalidade de desfiguração, serão punidos apenas como crime, por força da regra da subsidiariedade do regime contra-ordenacional relativamente ao regime penal, expressamente prevista no artigo 6.º da Lei n.º 61/2013, não obstante a diversidade de fundamento de cada um dos ilícitos: enquanto o crime de dano protege o direito de propriedade numa das suas dimensões, ou seja, nas palavras de Costa Andrade, "o direito reconhecido ao proprietário de fazer da coisa [...] o que quiser, retirando dela, no todo ou em parte, as gratificações ou utilidades que ela pode oferecer" (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, 1999, página 207), a contra-ordenação não tutela, pelo menos directamente, bens jurídicos individuais, mas interesses de índole administrativa, como se anuncia na Exposição de Motivos da Proposta de Lei e resulta desde logo do facto de poder haver contra-ordenação mesmo que a conduta típica seja autorizada pelo proprietário do bem.(…)» - nossos sublinhados.
Ora, no entender deste tribunal, a actuação que o MP imputa aos cinco jovens não preenche o tal mínimo de danosidade social pressuposto no crime de dano. Com efeito, os actos de conspurcação que alegadamente levaram a cabo não acarretaram uma desfiguração permanente e prolongada de bens alheios, nomeadamente pondo em grave risco a restauração do bem, pelo carácter definitivo ou irreversível do meio utilizado para a sua alteração.
Por outras palavras, os factos imputados pelo MP não têm dignidade penal.
Como tal, falha a verificação do pressuposto de que depende a intervenção tutelar educativa, ou seja, que os jovens A, B, C, D e E tenham cometido factos qualificados pela lei como crime – art. 1º da LTE.
Donde, por impossibilidade legal do procedimento, determino o arquivamento dos autos.

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Inconformado com esta decisão veio o MP intentar o presente recurso apresentando as seguintes conclusões:
1.ª — Proferido despacho judicial, nos termos dos arts. 92º-A e 93º, n.º 1, al. b) da L.T.E., de recebimento do requerimento de abertura da fase jurisdicional e de designação da audiência prévia, que se constituiu como caso julgado formal, não é lícito a um outro magistrado, em intervenção pontual nos autos, em serviço de turno, conhecer de uma pretensa “questão prévia” e decretar o arquivamento do processo, por suposta “impossibilidade legal do procedimento”, porquanto “os factos imputados pelo MP não têm dignidade penal” (cfr. despacho de 27.12.2023, inserto na ata da audiência prévia).
2.ª — O despacho recorrido é profundamente grave, inadmissível e até objetivamente desrespeitoso para com a Mm.ª Juíza titular dos autos, pois, conhece de questão de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) e viola o caso julgado formal, pelo que deve ser declarado nulo (art. 615º, n.º 1, al. d) do C.P.C., ex vi do n.º 2 do art. 128º da L.T.E.) e absolutamente desconsiderado como decisão a acatar (nos termos do art. 625º, n.º 2 do C..PC., ex vi do n.º 2 do art. 128º da L.T.E.).
3.ª — A doutrina dos acórdãos da Relação de Évora datados de 10.12.2009 (Proc. n.º 17/07, relator ANTÓNIO JOÃO LATAS) e de 20.10.2015 (Proc. n.º 25/13, relatora ANA MARIA BRITO) demonstram, até por maioria de razão, que o despacho impugnado é grosseiramente ilegal, pelo que deve ser revogado, retomando-se o reagendamento da audiência prévia.
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O recurso interposto pelo MP foi admitido por despacho de 19 de janeiro do corrente ano de 2024.
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O Sr. PGA junto desta Relação emitiu Parecer secundando a posição assumida pelo MP no Recurso.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417º, nº 2 do CPP, nada tendo sido dito.
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Colhidos os Vistos foi o Recurso à Conferência.
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II - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar art.ºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – art.º 410º nº 2 CPP.
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Questões a decidir:
(i) Existência de caso julgado incidente sobre as questões abrangidas pelo despacho de saneamento do processo.
(ii) Ilegalidade do despacho recorrido por conhecer de questão de que não podia conhecer.
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III.
Decidindo:
Apresentada denúncia pela prática de factos suscetíveis de serem qualificados como crime pela lei penal por pessoa praticados entre os 12 e os 16 anos de uma pessoa residente em território nacional, por dever de ofício redobrado, o MP abre necessariamente Inquérito Tutelar Educativo.
No decurso do Inquérito, o MP pode desde logo arquivar liminarmente os autos, estando em causa facto típico punível com pena de prisão até 1 ano e verificados os demais pressupostos do art.º 78º nº 1, do mesmo modo que pode arquivar o Inquérito nos termos do disposto no art.º 87.º, n.º 1, al. c), quando estejam em causa factos a que corresponda na lei penal pena de prisão até 3 anos e conclua pela desnecessidade de educação para o Direito.
Não havendo necessidade de educação para o direito não há lugar a intervenção tutelar educativa.
Não obstante, quando os factos praticados sejam qualificados pela lei penal como crime punível com pena superior a 3 anos, o legislador exige a concordância que o juiz concorde com a avaliação realizada pelo MP sobre a desnecessidade de educação para o direito, como de forma expressa fez constar no art.º 93.º, n.º 1, al. b): Arquiva o processo quando, sendo o facto qualificado como crime punível com pena de prisão de máximo superior a três anos, lhe merecer concordância a proposta do Ministério Público no sentido de que não é necessária a aplicação de medida tutelar.
Para além destas situações em que o Inquérito pode ser arquivado, durante o Inquérito pode ainda o MP decidir-se pela suspensão do processo, sempre que se verificar a necessidade de medida tutelar e o facto qualificado como crime seja punível com pena de prisão de máximo não superior a cinco anos, verificados os requisitos fixados no art.º 84.º, donde destacamos o plano de conduta e a concordância do jovem.
Pretende-se levar o jovem à compreensão do carácter censurável da sua conduta, consciencializar-se da necessidade de adequar a sua vida de acordo com o respeito pelos valores protegidos pela lei penal, a fim de participar de forma digna na vida em sociedade sem sujeição à fase jurisdicional e por conseguinte privilegiando-se a consensualidade, tudo de harmonia com as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Jovens (Regras de Beijing), Adotadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua resolução 40/33, de 29 de novembro de 1985, concretamente a regra 11., e o que se dispõe no art.º 40.º da Convenção dos Direitos da Criança.
Após a realização das diligências que considere adequadas durante o Inquérito, se o MP formular juízo de necessidade de educação para o Direito exigindo a aplicação de medida, isto é quando conclua que o jovem que praticou os factos entre os 13 e os 16 anos de idade carece de educação para o Direito e a suspensão do processo não se afigura como o meio adequado e suficiente à natureza do ilícito e necessidades educativas, apresenta requerimento de abertura da fase jurisdicional com vista à aplicação de medida tutelar educativa. As medidas Tutelares Educativas estão taxativamente indicadas no art.º 4.º da LTE, de acordo com uma ordem de gravidade e classificam-se em institucionais e não institucionais consoante sejam executadas em instituição – Centro Educativo, a medida de Internamento – ou na comunidade – as restantes medidas (art.º 4.º, n.º 2).
As medidas não institucionais são suscetíveis de aplicadas por acordo (a única medida institucional, medida de internamento em Centro Educativo, tem que ser aplicada após realização de audiência, com intervenção de Tribunal Coletivo Misto, não podendo ser aplicada por acordo, cf art.ºs 116.º e 117.º), pelo que, caso a medida proposta pelo MP no requerimento de abertura da fase jurisdicional mereça concordância ao juiz (art.º 104.º, n.º 2), é designada data para realização de Audiência Prévia, nos termos do disposto no art.º 94.º e ss., a qual decorrerá com observância do prescrito no art.º 104.º.
No caso, a medida proposta pelo MP, como se verifica da análise do seu Requerimento de Abertura da Fase Jurisdicional, deduzido em 8 de junho de 2023, constante do sistema Citius sob a ref.ª 33410598, é a de Realização de Tarefas a Favor da Comunidade de natureza indiferenciada, com a duração máxima de 30 (trinta) horas, que devem ser cumpridas num período de 5 (cinco) semanas, durante 2 (dois) dias semanais e pelo período de 3 (três) horas diárias, coincidentes com as suas pausas escolares, requerendo-se, desde já, que a definição da forma de prestação da supra referida medida e o seu acompanhamento sejam deferidos à D.G.R.S. – Equipa Alentejo Interior, nos termos do disposto nos arts. 4.º, n.º 1, alínea d); 6.º, n.ºs 1, 2 e 3; 7.º, n.º 1; 12.º e 20.º, todos da Lei Tutelar Educativa, sendo que, nos termos do art. 22º da L.T.E., os progenitores de cada menor também deverão ser convocados para participar na execução da referida medida.
É, pois, uma medida suscetível de ser aplicada por acordo pelo que, não existindo qualquer questão prévia ou incidental que impedisse a sua marcação, impunha-se, a marcação da Audiência Prévia, a não ser que se considerasse desajustada a medida proposta.
Ora, foi formulado e vertido, no despacho de saneamento a que alude o art.º 92.º a 94.º da LTE, proferido no dia 7 de setembro de 2023, juízo sobre os factos praticados e bem assim sobre a medida proposta. Na verdade, como nele consta, entendeu-se que os factos descritos no Requerimento de Abertura da Fase Jurisdicional, cuja prática o MP imputa aos jovens A, B, C, D e E são suscetíveis de preencher a qualificação jurídica de crime de dano, p.p. pelo art.º 212º, n.º 1 do Cód. Penal e designada data para Audiência Prévia.
A questão que se coloca desde já é a de saber se este juízo incidente sobre a qualificação dos referidos factos, como preenchendo os elementos constitutivos do crime de dano constante da lei penal, se praticados por pessoa penalmente imputável, constitui caso julgado e por conseguinte não podia ter sido proferido o despacho recorrido.
Como é sabido, a exceção do caso julgado impossibilita que sobre a mesma questão fáctico jurídica seja proferida nova decisão. O caso julgado, consoante o seu âmbito distingue-se em caso julgado formal e material, sendo a força do primeiro limitada ao processo dentro do qual são tomadas as diversas decisões incidentes e reguladoras do andamento do processo, e o segundo incidente sobre o mérito da causa, impedindo que seja novamente intentada a mesma ação contra as mesmas pessoas, no caso que seja intentado novo procedimento tutelar educativo a favor dos mesmos jovens pelas prática dos mesmos factos – pressupõe por isso uma tripla identidade: de procedimento (pedido), sujeitos e factualidade (V. a título meramente exemplificativo, Ac. STJ de 24-05-2006, Proc. 06P1041, Relator Henriques Gaspar, Ac. STJ, de 20-10-2010, Proc. 3554/02.3TDLSB.S2, Inês Ferreira Leite, Ne (Idem) bis in Idem, Proibição de Dupla Punição e de Duplo Julgamento, Vol. I e II).
No despacho Saneador proferido foi realizada uma verdadeira sindicância, no que à qualificação dos factos ali descritos diz respeito, não sobre a verificação ou prova destes, sobre a relevância jurídico-penal dos factos, já que esta qualificação constitui um dos pressupostos legitimadores da intervenção tutelar educativa e o primeiro indicador da necessidade de educação para o direito, outro dos pressupostos, a par da idade do jovem aquando da prática dos factos. Ou seja, no despacho a que alude o art.º 92.º A da LTE o juiz deve, para além de sindicar se o Requerimento para Abertura da Fase Jurisdicional observa os requisitos fixados no art.º 90.º, verificar se os factos nele descritos não forem qualificados pela lei penal como crime, como de forma expressa impõe o art.º 92.º A, n.º 2, al. b). Assim, proferido o despacho nesta norma previsto não podia o Sr. Juiz que presidiu à Audiência Prévia, invocar uma questão prévia para qualificar de forma diversa os factos, ignorando despacho judicial previamente proferido e com força de caso julgado formal. Os despachos proferidos ao longo do processo, como se disse, vão formando caso julgado formal, a não ser que os mesmos apenas constituam despacho tabelar, o que não é o caso ou sejam revogados em recurso intentado para o efeito, o que não se verificou, desde logo porque tal decisão não admite recurso (art.º 121.º da LTE).
Aqui chegados, concluímos, tal como o MP, pela ilegalidade do despacho proferido por contrariar despacho proferido anteriormente devidamente transitado em julgado, incidente sobre os mesmos factos igualmente e apenas descritos no Requerimento Para Abertura da Fase Jurisdicional (RAFJ), ou seja, sobre os quais apenas podia recair juízo indiciário.
Acresce que, o diploma legal invocado no despacho recorrido, Lei n.º 61/2013, de 23 de Agosto, que regulamenta a atividade de grafitos, afixações, picotagem e outras formas de alteração no espaço e mobiliário urbano, não respeita nem regula situações como a presente, já que apenas respeita a afixações, grafitos (conhecidos por grafitis) e picotagem e não a factos como os descritos no referido Requerimento, os quais, são qualificados pela lei penal como crime de dano. Além disso, o AUJ referido no próprio despacho recorrido, Acórdão n.º 4/2018, é claro quando estabelece «A Lei n.º 61/2013, de 23 de Agosto, não descriminalizou qualquer das condutas típicas do crime de dano, nomeadamente a de desfiguração».
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Atento o que se decidiu, nada mais cumpre apreciar e decidir.
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IV - Decisão:
Pelo exposto, decide-se nesta Relação de Évora, em:
Julgar PROVIDO o recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência determina-se a reabertura da Audiência Prévia, sem prejuízo do disposto no art.º 28.º, n.º 2, al. b) da LTE.
- Sem custas.

Évora, 9 de abril de 2024

Processado e revisto pela relatora (art.º 94º, nº 2 do CPP).
Maria Gomes Bernardo Perquilhas
Carlos de Campos Lobo
João Gomes de Sousa
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[1] Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271); o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263);
SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335;
RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363.