FURTO
INTENÇÃO DE APROPRIAÇÃO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Sumário

I - Para além do dolo genérico, constituído por um elemento intelectual ou cognitivo (conhecimento de todos os elementos descritivos e normativos do facto típico) e por um elemento volitivo (vontade de realizar o facto típico), o tipo subjetivo do crime de furto exige, para o seu preenchimento, um elemento específico: a ilegítima intenção de apropriação, para si ou para outra pessoa.
II - Estando descrito na acusação, no tocante aos elementos subjetivos do crime de furto em causa, que “o arguido sabia que a lenha não lhe pertencia, mas ainda assim, cortou-a e levou-a consigo, sem qualquer autorização do seu dono, Junta da Freguesia de Amareleja, ou seu consentimento”, e que “o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente”, verifica-se que a acusação é omissa na alegação da ilegítima intenção de apropriação, por parte do arguido, da lenha de azinho que cortou e levou consigo.
III - Perante a falta de descrição, na acusação, do elemento específico do dolo do crime de furto (ilegítima intenção de apropriação), a acusação deve ser rejeitada, por ser manifestamente infundada.
IV - Na descrita situação, não podendo ser “aproveitada” a acusação (rejeitada por manifestamente infundada), o caminho a seguir pelo Ministério Público, caso pretenda “renovar” a acusação, tem de passar por apresentar uma nova acusação, em que seja colmatada a deficiência que determinou a rejeição da primeira acusação, não no mesmo processo em que tal ocorreu, mas, isso sim, em processo autónomo, a instaurar com base em certidão, cuja extração, para esse feito, deverá requerer.

Texto Integral



Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. Nestes autos de processo comum, por despacho proferido em 25/06/2023, foi rejeitada a acusação deduzida pelo Ministério Público contra (A), por manifestamente infundada, nos termos do disposto no artigo 311º, n.ºs 2 al. a) e 3, al. b), do Código de Processo Penal.

1.2. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso para este Tribunal da Relação, apresentando a respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões:
«1. Por despacho proferido em 25.06.2023, aqui dado por integralmente reproduzido, o Tribunal a quo rejeitou a acusação pública deduzida nos autos contra o arguido (A), pela prática, em autoria material, de um crime de furto simples, previsto e punido, nos termos do disposto no artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal.
2. Considerou a Mm.ª Juíza a quo que Será, então, a factualidade imputada na acusação suficiente e suscetível de preencher a integralidade dos elementos constitutivos do tipo legal de furto simples, p. e p. no art.º 203º, nº 1 do Código Penal? Entende-se que não, mediante a constatação de que se encontra omisso o elemento especial subjetivo da ilicitude do tipo, maxime a intenção ilegítima de apropriação por parte do arguido.
3. E concluiu que Face ao exposto, nos termos do art.º 311.º, n.º 1, 2. al. a) e 3, al. b), do Código de Processo Penal, rejeita-se a acusação, porque nula e manifestamente infundada.
4. A solução acolhida no referido despacho judicial não pode ser acolhida, desde logo porque a mesma traduz uma incorreta interpretação do disposto no n.º 2, al. a), e n.º 3, al. b) do referido artigo 311.º, com violação do princípio do acusatório, plasmado no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, só podendo se dever, em última análise, à equívoca com que o Tribunal a quo encara as finalidades do despacho saneador, previsto no sobredito artigo 311.º
5. No termos do disposto no artigo 311.º do Código de Processo Penal, o despacho, no âmbito do qual, o juiz saneia o processo, nomeadamente, através do conhecimento dos pressupostos processuais, do conhecimento de eventuais nulidades e irregularidades e do conhecimento de outras questões prévias ou incidentais, cuja solução deve preceder ao julgamento do processo.
6. No que se refere às nulidades e irregularidades passíveis de ser conhecidas nesse momento processual incluem-se os vícios da acusação decorrentes da violação do disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas a) a d) e f) do Código de Processo Penal, bem como a inexistência de factos no libelo acusatório que constituam crime.
7. Ou seja, no despacho saneador, o Juiz do Julgamento deve apenas controlar os vícios estruturais graves da acusação referidos no citado artigo 311.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, estando inibido, pelo princípio do acusatório, do controlo substantivo da acusação, de modo a evitar a formulação de um pré-juízo sobre o bem fundado da mesma e, com isto, comprometer o seu destino.
8. Ora, não foi o que sucedeu no caso dos autos, tendo o Tribunal a quo, com as considerações feitas no despacho ora em crise, para rejeitar a acusação pública deduzida, acima transcritas, extravasado as finalidades do despacho saneador.
9. Efetivamente, resulta da acusação dos autos a narração dos factos objetivos e subjetivos do crime imputado ao arguido, não se verificando qualquer falta, lacuna ou vazio no que à descrição subjetiva posta em causa no despacho recorrido.
10. O entendimento contrário defendido pelo despacho recorrido, viola o disposto no n.º 2, al. a), e n.º 3, al. b) do artigo 311.° do Código de Processo Penal.
11. Desde logo porque não foram considerados pela Mm.ª Juíza a quo, todos os factos descritos na acusação e que, salvo melhor opinião, invalidam a alegada falta da descrição do elemento subjetivo.
12. Na verdade, do despacho de acusação consta, além do mais, que O arguido sabia que a lenha não lhe pertencia, mas ainda assim, cortou-a e levou-a consigo, sem qualquer autorização do seu dono, Junta da Freguesia de Amareleja, ou seu consentimento; o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente e sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
13. Tal como descritos na acusação, os factos imputados ao arguido concretizam a narração factual do crime de furto em apreço, não resultando evidente que os referidos factos não descrevem o elemento subjetivo do tipo em causa.
14. Além de que, no que à descrição do elemento subjetivo concerne, é necessário e, suficiente que da mesma resulte a vontade da prática do ato pelo agente com o conhecimento de todos os elementos do facto típico criminoso, o que no caso se verifica.
15. Só e apenas quando de forma inequívoca a acusação seja inócua quanto à narração dos factos, é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundado e rejeitá-lo.
16. Mais se acrescenta, que os mesmos factos narrados na acusação pública foram apresentados à Mm.ª Juíza de Direito, em sede de suspensão provisória do processo, que esta aceitou, dando a sua concordância e em sede de acusação rejeitou a acusação pública, o que constitui, no mínimo, uma contradição sem precedentes.
17. Nos termos do disposto no artigo 283.º n.º 3 do Código de Processo Penal, a falta de narração dos factos integradores do tipo legal de crime tem como consequência a nulidade da acusação.
18. Dispõe o artigo 122.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que a verificação da nulidade determina a invalidade do ato e dos que dele dependeram, mas não dos atos anteriores, pelo que o vício de que a acusação padece não se comunica ao inquérito, mas antes e apenas aos atos subsequentes.
19. Neste sentido decidiu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 246/2017 (Processo n.º 880/2016) ao não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validam ente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.
20. Nestes termos, o despacho recorrido deveria ter declarado a nulidade da acusação e, de seguida, porque possível e necessário, ter ordenado a remessa do processo ao Ministério Público para repetição do ato sem o vício, o que não se verificou.
21. Termos em que deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que reconheça a suficiência da acusação e admita a acusação pública deduzida nos autos e designe data para a audiência de julgamento, nos termos do disposto no artigo 312.º do Código de Processo Penal, devendo o processo seguir os seus ulteriores termos, até final.
22. Ou, caso assim não se entenda, subsidiariamente se determine a devolução do processo ao Ministério Público para repetição do ato, deduzindo nova acusação.
TERMOS em que deve ser dado provimento ao Recurso, sendo revogado o despacho judicial e substituído por outro que, acolhendo o entendimento expresso neste Recurso receba a acusação pública deduzida devendo o processo seguir os seus ulteriores termos, até final, fazendo-se, desta forma, a desejada e costumada JUSTIÇA!».

1.3. O recurso foi regularmente admitido.
1.4. O arguido não respondeu ao recurso.
1.5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora–Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso dever obter provimento.
1.6. Foi dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não tendo havido resposta.
1.7. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.


2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
É consabido que as conclusões formuladas pelo recorrente, extraídas da motivação do recurso, balizam ou delimitam o objeto deste último (cf. artigo 412º do CPP), sem prejuízo da apreciação das questões de natureza oficiosa.
Assim, no caso em análise, considerando as conclusões da motivação do recurso, são as seguintes as questões suscitadas:
- A de saber se a acusação deduzida pelo Ministério Público contém a narração de factos bastantes para o preenchimento de todos os elementos do tipo subjetivo do crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, do Código Penal, imputado ao arguido, não sendo, por isso, nula e não devendo ser rejeitada, por manifestamente infundada;
- No caso de assim não se entender e considerando-se que a omissão da narração dos factos em falta determina a nulidade da acusação, saber se essa nulidade é sanável e o se o juiz deve ordenar a remessa do processo ao Ministério Público para dedução de (nova) acusação sem o vício/omissão assinalado(a).
Para que possamos apreciar as enunciadas questões, importa ter presente o teor do despacho recorrido, onde é reproduzido o conteúdo da acusação, no referente à narração dos factos, deduzida pelo Ministério Público, sendo nela imputado ao arguido a prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de furto, previsto e punível pelo artigo 203º, n.º 1 do Código Penal.


2.2. O despacho recorrido é do seguinte teor:
«(...)
A digna magistrada do Ministério Público deduziu acusação em processo comum e com intervenção do tribunal singular contra (A), imputando-lhe a autoria material, na forma consumada, de um crime de furto simples, p. e p. no art.º 203º do Código Penal, com base na seguinte factualidade:
1 - No dia 21.01.2020, em hora não concretamente apurada, mas antes das 11.30horas, o arguido (A), munido de um motosserra cortou lenha de azinho, no Baldio das Ferrarias, em Amareleja.
2 - Depois de cortada, acondicionou toda a lenha no seu veículo automóvel, tipo carrinha de caixa aberta de marca Mitsubishi, modelo L300.
3 - A lenha é propriedade da Junta da Freguesia de Amareleja.
4 - A Junta da Freguesia de Amareleja avaliou o seu prejuízo em €200,00.
5 - O arguido sabia que a lenha não lhe pertencia, mas ainda assim, cortou-a e levou-a consigo, sem qualquer autorização do seu dono, Junta da Freguesia de Amareleja, ou seu consentimento.
6- O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente.
7 - Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto no art.º 203º, n.º 1 do Código Penal, “Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
O tipo objetivo da norma encontra-se na primeira parte do preceito: (i) subtração, (ii) de coisa móvel, (iii) alheia.
Ao contrário da noção civilista amplíssima de “coisa” (prevista no art.º 202º, n.º 1 do Código Civil: “tudo aquilo que pode ser objeto de relações jurídicas”), que acaba por abarcar coisas móveis, imóveis e incorpóreas, no Direito Penal, para efeitos da pática de um crime de furto, a noção de coisa tem de ser interligada com a ideia de “subtração”. Noutras palavras, apenas podem verdadeiramente ser subtraídas coisas corpóreas, de substância física. Para efeitos de furto, podem apenas ser subtraídas coisas corpóreas pois só estas podem ser “agarradas”, “apanhadas”, “apreendidas” etc.
Por outro lado, a coisa para ser subtraída tem de ser “móvel”. Novamente, a noção deve ser desligada dos conceitos básicos de direito civil privado, bastando que a coisa seja, de facto, móvel, no sentido elementar naturalístico de poder ser deslocada, levada e transportada de um lado para o outro.
A coisa, além de ser móvel, tem de ser “alheia”. Alheia no sentido de que pertence a outrem quando o seu proprietário ou possuidor não é aquele que pratica a infração.
Ademais, o tipo objetivo do crime de furto exige ainda que haja “subtração”.
Subtração não se confunde com apreensão. Pode bem haver casos em que existe subtração sem que, para o efeito, o agente tenha, sequer, apreendido/tocado coisa alheia. A subtração é o elemento do tipo que demonstra maior relevância, por assumir simultaneamente a natureza de ação e resultado [GARCIA, M. Miguez, O Direito Penal Passo a Passo, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2011, pág. 45].
Subtrair é retirar a coisa/objeto de um determinado sítio, para outro, i.e., retirá-la do domínio de facto de certo sujeito e integrá-la na de outro; o que pode ser conseguido por inúmeras formas, diretamente ou por intermédio de outrem. Aquilo que verdadeiramente a caracteriza é o propósito e intenção do agente de integrar a coisa no seu património ou no de terceiro.
Não há dúvidas de que todos os elementos objetivos constitutivos do tipo criminal de furto se encontram presentes na douta acusação que antecede.
O mesmo já não se poderá dizer no que tange ao tipo subjetivo do crime.
Resulta da conjugação do art.º 203º com o art.º 13º do Código Penal a não incriminação do crime de furto por negligência. A contrario sensu pode-se concluir que o crime de furto é sempre e necessariamente doloso, qualquer que seja a sua modalidade (direto, necessário ou eventual).
A primeira componente do dolo é de ordem intelectual e não volitiva. Quem o determina é o art.º 16º, n.º 1 do Código Penal, quando se refere ao objeto do dolo como abrangendo os elementos de facto ou de direito. Quer isto dizer, portanto, que o agente tem que conhecer e querer tirar de terceiro, para dela se apoderar, o domínio do facto de coisa móvel que lhe é alheia. Exige-se que o agente queira realizar a ação de subtrair e logre obter o resultado dela decorrente.
A segunda componente do dolo é puramente volitiva e prende-se com a intenção de passar à posição jurídica de proprietário/possuidor. Estamos no âmbito de uma “vontade intencional” do agente de se comportar perante a coisa móvel como seu proprietário.
Isto porque, além do dolo genérico necessário para qualquer das suas modalidades (direto, necessário ou eventual) – que se direciona à demonstração que o agente agiu com conhecimento e vontade relativamente à conduta que vem acusado de praticar – exige-se para consumação deste tipo de crime um elemento especial subjetivo da ilicitude [Ac. do TRL de 12.1.2022, proc. n.º 230/21.1PFLSB.L1-9 (Rel. BRÁULIO MARTINS), disponível em www.dgsi.pt], consubstanciado nesta ilegítima intenção de apropriação para si ou terceira pessoa.
O elemento da ilegítima intenção de apropriação é preenchido pela vontade específica, traduzida na intenção de o agente, contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa furtada, a haver para si ou para outrem, integrando-a na sua esfera patrimonial [ac. do STJ de 26.10.1994, proc. n.º 046597 (Rel. TEIXEIRA DO CARMO), disponível em www.dgsi.pt].
O elemento subjetivo em causa, de que não se pode prescindir ou abdicar para a subsunção jurídico-penal do crime de furto, é essencial, entre outras coisas, para o diferenciar de outros tipos criminosos, nomeadamente o crime de furto de uso [ac. do TRC de 29.2.2012, proc. n.º 482/10.2PAVFR.C1 (Rel. BRÍZIDA MARTINS), disponível em www.dgsi.pt].
Conforme resulta do art.º 208º, n.º 1 do Código Penal, “Quem utilizar automóvel ou outro veículo motorizado, aeronave, barco ou bicicleta, sem autorização de quem de direito, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal” (s.n.).
É que entre ambos os furtos há elementos coincidentes, maxime um ato material de subtração de uma coisa móvel alheia. Todavia, ao contrário do crime de furto simples, no crime de furto de uso inexiste uma vontade dirigida a uma apropriação de coisa alheia, sendo o agente tão-só motivado a fazer uso ilegítimo de coisa alheia, de forma abusiva, para prossecução de outra atividade, nunca atuando com animus de proprietário.
Será, então, a factualidade imputada na acusação suficiente e suscetível de preencher a integralidade dos elementos constitutivos do tipo legal de furto simples, p. e p. no art.º 203º, n.º 1 do Código Penal? Entende-se que não, mediante a constatação de que se encontra omisso o elemento especial subjetivo da ilicitude do tipo, maxime a intenção ilegítima de apropriação por parte do arguido.
Ora, nos termos do disposto no art.º 311º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Penal, “Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respetivamente. 3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) Quando não contenha a identificação do arguido; b) Quando não contenha a narração dos factos; c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) Se os factos não constituírem crime” (s.n.).
Dependendo a apreciação da subsunção jurídico-penal ao tipo legal incriminador indicado na acusação da verificação de todos os elementos objetivos e subjetivos integrantes daquele, sem a verificação dos quais a acusação não é fundada, pois insuscetível de suportar a aplicação de uma pena ou medida de segurança (art.º 283º, n.º 3, al. b) do Código de Processo Penal) e, ainda, não sendo possível de suprir a omissão em causa a partir dos restantes elementos normativos objetivos elencados [vd. Ac. do STJ n.º 1/2015, publicado no Diário da República, Série I, de 27.01.2015 (Rel. RODRIGUES DA COSTA), disponível em www.stj.pt/?p=6329], impõe-se não receber a acusação ora apresentada pela digna magistrada do Ministério Público, porque nula e manifestamente infundada [cfr. disposto nos arts.º 311º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b) do Código de Processo Penal].
Face ao exposto, nos termos do art.º 311.º, n.º 1, 2, al. a) e 3, al. b), do Código de Processo Penal, rejeita-se a acusação, porque nula e manifestamente infundada.
Em face do disposto nos artigos 129.º do Código Penal e 71.º do Código de Processo Penal, como o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal deve apenas fundar-se na prática de um crime, rejeita-se igualmente, por inadmissibilidade legal, o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante Junta de Freguesia de Amareleja.
Notifique.»


2.3. Apreciação do mérito do recurso
2.3.1. Tal como supra referimos, a primeira questão suscitada no recurso é a de saber se a acusação deduzida pelo Ministério Público contém a narração de factos bastantes para o preenchimento de todos os elementos do tipo subjetivo do crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, do Código Penal, imputado ao arguido, não sendo, por isso, nula e não devendo ser rejeitada, por manifestamente infundada.
A Mm.ª Juiz a quo rejeitou, ao abrigo do disposto no artigo 311º, n.ºs 2, al. a) e 3, al. b) do Código de Processo Penal, a acusação deduzida pelo Ministério Público por falta de narração de factos que permitam imputar-lhe a prática de um crime de furto, concretamente, por se verificar a omissão do «elemento especial subjetivo da ilicitude do tipo, maxime a intenção ilegítima de apropriação por parte do arguido.»
O Ministério Público/recorrente sustenta não existir fundamento para a rejeição da acusação deduzida, na medida em que a mesma contém a descrição de factos bastantes para o preenchimento da tipicidade objetiva e subjetiva do crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, do CP, cuja prática se imputa ao arguido.
Neste enfoque, manifesta o recorrente que no concernente à descrição do elemento subjetivo é necessário e, suficiente que da mesma resulte a vontade da prática do ato pelo agente com o conhecimento de todos os elementos do facto típico criminoso, o que no caso se verifica, pelo que, a acusação não é manifestamente infundada e, como tal, não podia ser rejeitada.
Apreciando:
De harmonia com o disposto no artigo 283º, n.º 3, do CPP, «A acusação contém, sob pena de nulidade:
(...)
b) A narração, ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o modo, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.»
(...).»
Sobre o saneamento do processo, pelo juiz de julgamento, dispõe o artigo 311º do Código de Processo Penal:
«1. Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) (…).
3. Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis e as provas que a fundamentam;
d) Se os factos não constituírem crime
O n.º 3 do artigo 311º do CPP prevê, taxativamente, as situações em que a acusação se considera manifestamente infundada, pressuposto para que possa/deva ser rejeitada, pelo juiz, a quem o processo foi remetido/distribuído para julgamento (cf. al. a) do n.º 2 do mesmo artigo 311º).
Como se refere no Acórdão da RC de 07/03/2018[1] «A expressão “manifestamente infundada”, por referência à acusação, tem o sentido de ser evidente, notório, que a pretensão de submissão do arguido a uma pena ou a medida de segurança não pode proceder.»
Por outras palavras, só quando de uma forma inequívoca os factos que constam da acusação não constituem crime ou o arguido não possa ser penalmente responsabilizado, é que o tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.
Revertendo ao caso dos autos, a rejeição da acusação deduzida pelo Ministério Público, por manifestamente infundada, baseou-se, na falta de narração de factos que integrem o elemento subjetivo específico do crime de furto simples, cuja prática é imputada ao arguido, concretamente, «a intenção ilegítima de apropriação, por parte do arguido.»
Vejamos:
Nos termos do artigo 203º, nº. 1, do Código Penal pratica o crime de furto quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios.
São elementos do tipo objetivo do crime de furto:
a) a subtração;
b) de uma coisa móvel (ou animal);
c) que a coisa (ou animal) seja alheia (alheio).
Ao presente caso importa atentar no furto de coisa alheia.
No tocante ao conceito jurídico penal de coisa, como vem sendo salientado pela doutrina e jurisprudência, o mesmo não se confunde com a noção civilística extraída do artigo 202º do Código Civil.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque[2] «é coisa móvel para efeitos penais toda a coisa (corpórea ou incorpórea) que tem existência física autónoma, quantificável e pode ser fruída ou utilizada por uma pessoa.»
Esta noção abrange as coisas destacadas de imóveis, como as árvores, bastando desliga-las do solo, arrancando-as ou cortando-as[3].
Relativamente à subtração, entendemos que se verifica com a violação do poder de facto que o detentor tem de guardar o objeto ou de dele dispor, e a sua substituição pela do agente, ou por outras palavras, no momento em que a coisa deixe de estar sob o poder de detenção ou guarda do sujeito passivo (o ofendido) e se transfira para a esfera jurídica do agente, ou por ação deste, para a de terceira pessoa.
O caráter alheio da coisa é determinado pelas regras do direito civil.
Quanto ao tipo subjetivo do furto, o mesmo preenche-se quando o agente atua com ilegítima intenção de apropriação, traduzida no conhecimento de que a coisa é alheia e de que age contra a vontade do seu proprietário ou detentor, e na vontade de a haver, para si ou para outrem, integrando-a na respetiva esfera patrimonial.
Para além do dolo genérico, constituído por um elemento intelectual ou cognitivo (conhecimento de todos os elementos descritivos e normativos do facto que preenche o tipo objetivo de ilícito, designadamente, no crime de furto, que a coisa é alheia) e por um elemento volitivo (vontade de realizar o facto típico, no crime de furto, de subtrair a coisa alheia), o tipo subjetivo do crime de furto exige para o seu preenchimento um elemento específico, qual seja, a ilegítima intenção de apropriação, para si ou para outra pessoa.
A propósito da ilegítima intenção de apropriação, escreve M. Miguez Garcia[4]:
«Este elemento específico do crime de furto, a "intenção de apropriação", é a "ponte" que projecta a "subtracção" no âmbito do ilícito penal. Sem ele não há furto, ainda que à actuação sobre a coisa se possa seguir, por ex., dano, ou ficar-se o caso pelo furto do uso. (...) A intenção, assim entendida como um elemento subjectivo especial, coincide estruturalmente com o dolo directo, mas não se confunde com o dolo enquanto elemento subjectivo geral — conhecimento e vontade de realização do tipo. No furto o tipo objectivo esgota-se em o agente “subtrair coisa móvel alheia”. A intenção do agente, dirigida ao resultado apropriativo, é suficiente para o preenchimento do tipo, não tem que ser realizada, mas o ilícito não se verifica sem a “ilegítima intenção de apropriação”.
E acrescenta o mesmo autor[5] «No furto, o agente ao apropriar-se da coisa exprime ou confirma a intenção de passar à posição jurídica do proprietário (se ut dominum gerere), isto é, exprime a sua intenção de excluir o poder fáctico do lesado e, do mesmo passo, a sua própria vontade de domínio completo sobre uma coisa alheia. O sentido dessa apropriação é diferente, por um lado, da simples possibilidade de uso da coisa, como quando alguém entra no automóvel alheio e o conduz, sem estar autorizado, em breve passeio, após o que o restitui (furtum usus: artigo 208º, nº 1). É diferente, por outro, da subtracção da coisa para a destruir (dano?), ou simplesmente para desapossar dela o proprietário, (...).»
Nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque[6] «A “ilegitimidade” da intenção é um elemento normativo do tipo que remete para uma valoração global sobre a ilicitude da conduta (elemento valorativo global do tipo), bastando para a afirmação do dolo do tipo o conhecimento dos pressupostos fácticos da valoração (...). Por isso, a conduta do agente na convicção errada de que tem direito sobre a coisa (ou seja, que uma lei, uma sentença ou um ato administrativo protegem o seu direito à coisa) exclui o dolo típico, nos termos do artigo 16.º, n.º 1. (...).»
Baixando ao caso dos autos, na acusação deduzida pelo Ministério Público, são narrados os seguintes factos:
«1 - No dia 21.01.2020, em hora não concretamente apurada, mas antes das 11.30horas, o arguido (A), munido de um motosserra cortou lenha de azinho, no Baldio das Ferrarias, em Amareleja.
2 - Depois de cortada, acondicionou toda a lenha no seu veículo automóvel, tipo carrinha de caixa aberta de marca Mitsubishi, modelo L300.
3 - A lenha é propriedade da Junta da Freguesia de Amareleja.
4 - A Junta da Freguesia de Amareleja avaliou o seu prejuízo em €200,00.
5 - O arguido sabia que a lenha não lhe pertencia, mas ainda assim, cortou-a e levou-a consigo, sem qualquer autorização do seu dono, Junta da Freguesia de Amareleja, ou seu consentimento.
6 - O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente.
7 - Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal».
Nesse libelo acusatório é imputada ao arguido a prática de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, do Código Penal.
Considerando os factos que são narrados na acusação em apreço e os elementos constitutivos do crime de furto simples supra definidos, salvo o devido respeito pelo entendimento contrário propugnado pelo recorrente Ministério Público, entendemos que, tal como decidiu no despacho recorrido, a acusação é omissa na alegação da ilegítima intenção de apropriação, por parte do arguido, da lenha de azinho que cortou e levou consigo.
E embora na acusação seja alegado que o arguido tinha conhecimento de que a lenha que cortou e levou consigo não lhe pertencia e que atuava sem qualquer autorização ou consentimento do seu dono, Junta da Freguesia de Amareleja, tendo agido «de forma livre, deliberada e consciente», sendo estes factos bastantes para o preenchimento do dolo genérico, já não o são, contrariamente ao propugnado pelo recorrente Ministério Público, para o preenchimento do elemento específico do dolo do crime de furto, qual seja, a de ter o arguido atuado com a ilegítima intenção de apropriação da lenha de azinho em causa.
A omissão, na acusação, da narração de factos passíveis de integrar o elemento específico do dolo do crime de furto, consubstanciado na ilegítima intenção de apropriação, tratando-se de um elemento essencial ao preenchimento do tipo subjetivo do crime, não podendo, ante os factos descritos na acusação, extrair-se qual ilegitimidade da intenção de apropriação, por parte do arguido, estando a lenha de azinho que o arguido cortou e levou consigo, num baldio.
De acordo com a jurisprudência uniformizada no Acórdão do STJ, n.º 1/2015[7], «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.358.º do CPP».
E como se faz notar na fundamentação do mesmo Acórdão «De forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objetivos, com «recurso á lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum».”
A falta de descrição, na acusação, de factos passíveis de integrar todos os elementos do tipo subjetivo do crime imputado ao arguido, designadamente, como acontece no presente caso, do elemento específico do dolo do crime de furto, referente à ilegítima intenção de apropriação, cuja verificação é exigida para o preenchimento do crime, constitui causa de nulidade da acusação, prevista no artigo 283º, n.º 3, al. b), do CPP e não sendo essa omissão suscetível de ser colmatada, em julgamento, deve a acusação ser rejeitada, nos termos do disposto no artigo 311º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP, por ser manifestamente infundada.
Nesta conformidade, haverá de concluir-se não merecer censura o despacho recorrido, ao decidir rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público, por manifestamente infundada, nos termos do disposto no artigo 311º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP.
Improcede, assim, a primeira questão suscitada no recurso.


2.3.2. Apreciemos agora a segunda questão colocada à nossa apreciação, que é a de saber se a nulidade é sanável e o se o juiz deve ordenar a remessa do processo ao Ministério Público para dedução de (nova) acusação sem o vício/omissão assinalado(a).
Defende o recorrente que a declaração da nulidade da acusação, com base na insuficiência da descrição dos factos que integram o elemento subjetivo do crime nela imputado ao arguido, tem os efeitos previstos no artigo 122º, n.º 2, do CPP, podendo essa nulidade ser sanada, mediante a dedução de nova acusação, pelo Ministério Público, em que aquela deficiência fosse suprida, conforme decorre do decidido pelo TC, no Acórdão n.º 246/2017.
Assim, entende o recorrente que, sendo declarada a nulidade da acusação, no despacho recorrido, deveria ter sido ordenada a remessa do processo ao Ministério Público para que deduzisse nova acusação, sem o assinalado vício.
Vejamos:
A resposta a dar à questão em apreciação tem dividido a jurisprudência dos nossos Tribunais superiores, sendo que, na sequência do Acórdão do TC, n.º 246/2017[8] – que decidiu «não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.» – passou a ser largamente maioritário o entendimento de que sendo rejeitada a acusação, nos termos previstos no artigo 311º, n.º 2, al. a), do CPP, por falta ou insuficiente descrição de um elemento típico – seja ele objetivo ou subjetivo –, que torne a acusação manifestamente infundada e, como tal, “não-apta” a poder conformar o objeto do julgamento, não existe impedimento legal a que o Ministério Público – ou o assistente – possa deduzir uma nova acusação, com vista a suprir/colmatar a deficiência/vício de que a primeira estava eivada[9].
Sufragando-se o enunciado entendimento e em conformidade com a orientação jurisprudencial também maioritariamente acolhida, entendemos que, uma vez rejeitada a acusação, por manifestamente infundada, nos termos sobreditos, contrariamente ao defendido pelo recorrente e ressalvado o devido respeito, o juiz não deve/pode determinar, ao abrigo do artigo 122º do CPP, a devolução dos autos à fase de inquérito, em ordem à posterior correção da acusação pública, pelo Ministério Público.
Conforme se refere no Acórdão da RC de 07/03/2018[10] «Cremos que uma decisão nesse sentido que não só não respeitaria o disposto no art.311.º, n.º 2 do C.P.P., como constituiria uma ingerência judicial nos poderes atribuídos ao Ministério Público e colocaria em causa as legítimas expectativas do arguido e as garantias de defesa constitucionalmente tuteladas no artigo 32.º, n.º 1, da CRP.»
«A possibilidade de convite à correção, ao aperfeiçoamento ou à simples apresentação de um requerimento por parte do Ministério Público, por forma a completar elementos essenciais do tipo penal omitidos na acusação pública, rejeitada por manifestamente infundada, não é um ato processual previsto na lei, nem adequado aos princípios do processo (...), pelo que não reconhecemos qualquer violação do direito de intervenção (...) do Ministério Público no processo penal, nos termos do nº 7 do art.º 32º da Constituição da República Portuguesa, com a não concessão ao Ministério Público (...) de convite à reformulação da acusação.»
Como se faz notar no Acórdão da RC de 10/03/2021[11] «sendo o processo penal constituído por uma sucessão de actos processuais lógica e cronologicamente imbricados, legalmente regulamentados e organizados em fases sequenciais, cada uma delas com a sua função específica, após a remessa dos autos para julgamento, se a acusação - pública ou particular - vier a ser rejeitada, a única possibilidade de reacção nesse processo contra o correspondente despacho será através de recurso procurando convencer do bem fundado da acusação deduzida, uma vez que não prevendo a lei a possibilidade da reabertura do inquérito senão nos casos em que tenha havido arquivamento (art. 279º, nº 1, do CPP), não pode o MºPº ou o assistente sanar os vícios de que a acusação padeça, praticar novos actos de inquérito ou alterar a acusação.»
Daí que, na descrita situação, não podendo ser “aproveitada” a acusação, rejeitada por manifestamente infundada, o caminho a seguir pelo Ministério Público – ou pelo assistente –, caso pretenda renovar a acusação, tenha de passar por apresentar uma nova acusação, em que seja colmatada/suprido a deficiência/vício que determinou a rejeição da primeira acusação, não no mesmo processo em que tal ocorreu, mas sim, em processo autónomo, a instaurar com base em certidão, cuja extração, para esse feito, deverá requerer[12].
Perfilhando-se o enunciado entendimento, tendo a acusação deduzida pelo Ministério Público, nos presentes autos, sido rejeitada, por manifestamente infundada, decorrente da falta de descrição de um elemento do tipo subjetivo do crime de furto simples, imputado ao arguido, não sendo essa deficiência/omissão suscetível de ser colmatada/suprida, nestes autos, não existia fundamento legal para que fosse – o que não foi – ordenada a remessa do processo ao Ministério Público para que deduzisse nova acusação, sem a assinalada deficiência/vício.
Pelo exposto, sem necessidade de mais considerações, improcede igualmente a segunda questão suscitada no recurso, não merecendo censura o despacho recorrido.
O recurso, é, pois, improcedente.

3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, confirmar o despacho recorrido.

Sem tributação.

Notifique.

Évora, 09 de abril de 2024

Fátima Bernardes

Carlos de Campos Lobo

Renato Barroso

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[1] Proc. n.º 189/14.1PFCBR.C1, in www.dgsi.pt.

[2] In Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição, 2015, Universidade Católica Editora, pág. 794.

[3] Neste sentido, cf., entre outros, ma jurisprudência, Ac. da RC de 31/10/2007, proc. 82/02.0GBPMS.C1, in www.dgsi.pt e Ac. da RG de 06/02/2006, in CJ, 2006, Tomo I, pág. 292.

[4] In Direito Penal – Parte especial, § 13 (furto), 2007, pág.

[5] In ob. cit., pág. 7.

[6] In ob. cit., pág. 797, secundado o entendimento do Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, Coimbra Editora, 2007, pág. 354.

[7] In Diário da República, 1ª Série, n.º 18, de 27 de janeiro de 2015.

[8] Proferido em 17/05/2028, no âmbito do proc. n.º 880/2016, publicado no Diário da República n.º 142/2017, Série II de 25/07/2017.

[9] Neste sentido, cf., entre outros, Acs. desta RE de 10/04/2018, proc. n.º 1559/16.6BGABF.E1 e de 12/01/2021, proc. n.º 482/19.7T9FAR.E1; Acs. da RC de 08/05/2018, proc. n.º 542/16.6GCVIS.C1 e de 13/01/2021, proc. n.º 99/19.6GASAT.C1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.

[10] Proferido no proc. n.º 189/14.1PFCBR.C1, in www.dgsi.pt.

[11] Proferido no proc. n.º 80/18.2PZLSB.C1, in www.dgsi.pt

[12] Neste sentido, cf., por todos, Acórdãos desta RE de 22/06/2021, proc. n.º 1207/18.0PBFAR.E1, de 24/11/2020, proc. n.º 4747/18.9T9STB.E1, de 26/09/2023, proc. n.º 42/21.2GBFAR.E1 – este ultimo com voto de vencido -; Acórdãos da RC de 07/08/2018, proc. n.º 189/14.1PFCBR.C1, de 22/03/2023, proc. n.º 136/21.4GCACB-A.C1 e de 22/11/2023, proc. 27/22.1GAMMV-A.C1 e de 12/07/2023, proc. n.º 1917/20.1T9LRA.C1; Acs da RL de 24/05/2022, proc. n.º 565/20.0T9ALM.L1-5 e de 02/02/2021, proc. n.º 205/19.0T9MTA.L1-5; Ac. da RP de 17/06/2020, proc. n.º 559/17.3GAVFR.P1 e Ac. da RG de 12/10/2020, proc. n.º 2065/19.2T9VCT.G1; Ac. da RE de 42/21.2GBFAR.E1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.