AMNISTIA
ÂMBITO
CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
Sumário

I - O crime de condução de veículo em estado de embriaguez está excluído da amnistia concedida pela Lei nº 38-A/2023, de 02/08, independentemente da fase processual em que os autos respetivos se encontrem.
II - O artigo 7º da Lei nº 38-A/2023, de 02/08, muito embora utilize a expressão “condenados” (“não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei ... os condenados por ... crimes … de condução de veículo em estado de embriaguez”), exclui a aplicação da amnistia em causa a todos os agentes que forem autores do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tenham, ou não, sido já “condenados”.

Texto Integral



ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


1. RELATÓRIO


A – Decisão Recorrida

No Proc. Abreviado nº 131/23.9GTABF.E1, com intervenção de tribunal singular, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Albufeira, Juiz 3, foi deduzida acusação pelo MP contra o arguido (A), pela prática de um crime de condução de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p., pelo Artsº 292 nº1 al. a) e 69 nº1, ambos do C. Penal.
Recebida tal acusação, mas antes de ser realizado julgamento, foi proferido o seguinte despacho (transcrição):
Através da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto o legislador procedeu ao perdão de diversas penas e à amnistia de algumas infracções criminais.
A amnistia concedida é aplicável a ilícitos praticados até 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do crime (art. 2º nº 1 do diploma legal).
No que importa ao caso dos autos, lê-se no art. 4º da referida lei que são amnistiadas as infracções penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.
Segundo o art. 128º nº 2 do Código Penal a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança.
O presente procedimento criminal corre por conta de um crime de condução em estado de embriaguez, ilícito punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias (art. 292º nº 1 do CP).
Os factos em causa nos presentes autos datam de 09/04/2023 (fls. 41).
Nessa data o arguido contava 26 anos de idade.
Por fim, o caso dos autos não se enquadra em qualquer das excepções previstas no art. 7º da Lei nº 38-A/2023.
Com efeito, o art. 7º nº 1 al. d) § ii) exclui a aplicação da amnistia concedida naquela Lei 38-A/2023, no que concerne a casos de condução de veículo em estado de embriaguez, nos seguintes termos:
Artigo 7.º
Exceções
1 — Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:
(...)
d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por:
(...)
ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal.
Da norma decorre pois (no que importa ao caso) que da amnistia (instituto que, de acordo com o supramencionado art. 128º nº 2 do CP, é aplicável tanto a condenados como a casos em que não houve ainda condenação) fica excluído quem tenha sido condenado pelo crime em causa — não tendo havido condenação não há exclusão de aplicação da amnistia.
Contra o que acaba de concluir-se antecipamos pelo menos alguns argumentos.
Desde logo, a solução aparenta gerar alguma incongruência lógica, amnistiando-se certos arguidos e outros não consoante, apenas, aquilo que, à revelia da sua actuação foi a marcha processual (ou, até mesmo, podendo beneficiar da amnistia quem tenha um contributo obstaculizante do processo). O argumento não convence. Com efeito, esta diferença é uma decorrência inerente à natureza dos institutos da amnistia e do perdão em causa. Pense-se, por exemplo, no caso de um arguido que, por causa de uma marcha processual mais célere, já expiou integralmente uma pena de prisão por conta de um crime que depois é amnistiado, e um arguido que por qualquer motivo (estar foragido, por exemplo) não iniciou o cumprimento de uma pena igual a vê, agora, ser apagada do ordenamento em virtude da amnistia.
Parece desigual mas, dada a sua natureza e o modo como funciona, é consequência inevitável de toda e qualquer amnistia (e, mutatis mutandis, também de qualquer perdão de penas).
Um outro contra-argumento de apelo à congruência lógica nos ocorre: o legislador amnistiou crimes aos quais, aplicando as regras de exclusão do art. 7º, não perdoaria a pena? Fará sentido? Foi essa a solução da lei? A resposta parece ser, numa primeira abordagem, negativa. Mas a verdade é que o disposto noutras normas da Lei nº 38-A/2023 leva incontroversamente à conclusão que em certos casos esta mesma foi escolha do legislador. Pense-se, por exemplo, em todos os casos de concurso de vários crimes amnistiados em que o condenado sofre, em cúmulo jurídico, pena de 130 dias (ou mais) de multa, ou prisão superior a um ano. No primeiro caso (multa), de acordo com a Lei nº 38-A/2023, são amnistiados todos os crimes, e por isso extinguem-se por amnistia todas as penas — mas, se não intercedesse a amnistia, o legislador não permitiria qualquer perdão à pena (art. 3º nº 2 al. a) e nº 4 do diploma). No segundo caso (prisão), extinguem-se também in totum as consequências penais em virtude da amnistia — mas se não operasse a amnistia a prisão única do concurso de crimes só seria perdoada até um ano. A conclusão inelutável é precisamente essa: em certos casos a Lei nº 38-A/2023 amnistiou os crimes, mas nem por isso aquela lei permitiria o perdão (integral, no caso da prisão) das respectivas penas.
Ou seja, o que à partida seria um argumento convincente, por a solução oposta aparentar levar a um resultado “contraditório”, acaba desarmado pela constatação de que essa mesmo foi, incontroversamente, a linha de raciocínio escolhida pelo legislador para certos casos.
Contra o que se conclui pode arguir-se, por outro lado, que o legislador terá usado a expressão condenados apenas porque usou de “pouco cuidado” no rigor legislativo, pois na verdade quereria referir-se a todos os casos que se reportem aos crimes excluídos independentemente do momento processual da acção penal. Não somos insensíveis a tal argumento (Ainda que nos pareça pelo menos discutível se, num campo do Direito em que o legislador está sujeito ao princípio estrito da legalidade (art. 1º do Código Penal), se deverá ampliar a letra da lei (pois que aplicar a exclusão da amnistia a não condenados é inquestionavelmente uma ampliação daquela letra) para corrigir “imperfeições de significado” e, em resultado disso, concluir-se pela responsabilização criminal de alguém), mas em nosso entender o mesmo também não colhe. Ab initio, a palavra condenados nem sequer é aquela que nos parece a mais natural, em termos de linguagem, que seria usada se fosse essa a intenção do legislador. Querendo-se excluir da amnistia os autores de todos crimes do art. 7º parece-nos que seria uma escolha de linguagem mais natural ter-se usado, precisamente, a palavra autores; Ou querendo-se excluir todos os crimes mencionados no art. 7º parece-nos que seria mais natural o legislador ter consagrado algo de semelhante a “O perdão a amnistia previstos na presente lei não têm aplicação aos crimes de...”. Todavia, parece-nos que para interpretar a letra da lei é desnecessário recorrer a estas considerações, que tanto de subjectivo têm. E assim porque se o legislador em várias das alíneas do art. 7º usou a expressão condenados noutras não usou essa expressão: as alíneas j), k) e l) daquele art. 7º não mencionam condenados.
Mais, na al. l) o legislador escolheu precisamente a palavra autores (em vez de condenados) para esclarecer quem fica excluído do perdão e amnistia. Deste contraponto extrai-se que, tanto quanto resulta do teor do art. 7º, a opção do legislador pela palavra condenados foi consciente e intencional.
Ainda um outro argumento contrário se suscita: fará sentido que o legislador tenha expressamente excluído da amnistia os autores das contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo (al. l) do art. 7º) e não exclua os autores de um crime com contornos semelhantes? Amnistia-se a infracção maior (o crime) mas não a menor (a contraordenação)? Também não somos insensíveis ao argumento e diremos mesmo que, não fosse o que se assinala em seguida, o subscreveríamos (Por exemplo, caso de aparente incongruência semelhante (“permitir-se o mais e não se permitir o menos”), originou, relativamente ao crime de consumo de estupefacientes (art. 40º nos1 e 2 do Decreto-Lei 15/93, entretanto descriminalizado) a Uniformização de Jurisprudência nº 8/2008, onde o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que aquela incongruência era a chave interpretativa para concluir que não houve lugar a descriminalização de certos casos de consumo.).
Sucede que a opção de se amnistiar o crime e não a contraordenação é, no caso da Lei 38-A/2023, a regra: em todos os casos de crimes que foram amnistiados em que exista comportamento relacionado ou semelhante (mas menos grave) punido como mera contra-ordenação que tutele os mesmos bens jurídicos, o legislador amnistiou o crime mas não a contraordenação. Com efeito, a Lei 38-A/2023 amnistiou todas as infracções penais (salvo as excluídas no art. 7º) cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa e não amnistiou nenhuma contraordenação (apenas perdoou sanções acessórias de certas contraordenações). Em decorrência, pense-se em casos de infracções de regras de segurança rodoviária: o crime (comportamento mais grave) de condução sem habilitação legal do art. 3º nº 1 do Decreto-lei nº 2/98 foi amnistiado, mas uma mera contraordenação leve (comportamento menos grave) correspondente, por exemplo, a um excesso de velocidade já não o foi. E (entrando já no campo de abrangência do perdão concedido na lei em causa) resultados semelhantes a esta regra não se verificam apenas no contraponto entre contraordenações e crimes. O mesmo sucede com crimes, mais graves, que exigiram a aplicação de prisão substituída ou suspensa, cujas penas são perdoadas quando não são perdoadas multas, aplicadas por infracções menos graves, caso a multa seja superior a 120 dias (art. 3º nº 2 da Lei 38-A/2023). Do que se conclui o seguinte: o argumento de que não fará sentido lógico ter-se amnistiado o crime mas não uma contraordenação relacionada ou semelhante seria, em circunstâncias habituais, um argumento forte contra o entendimento que perfilhamos. Todavia, na economia da Lei 38-A/2023 esse argumento não nos convence, uma vez que esta lei adoptou precisamente, e propositadamente, essa solução como regra. Não nos cabe, evidentemente, dizer se a escolha do legislador foi melhor ou pior, mas parece-nos que a constatação seguinte será insofismável: dentro dos pressupostos dos seus arts. 4º e 7º, a Lei 38-A/2023 amnistiou todos os crimes e não amnistiou nenhuma contraordenação que tutele os mesmos bens jurídicos. Assim sendo, não nos parece que a teleologia inerente àquela lei leve à conclusão de que deve também considerar-se excluído do perdão quem não é excluído pela letra da lei.
Ou seja, uma vez que a teleologia que perpassa a lei é no sentido de amnistiar crimes e não amnistiar contraordenações, entendemos que não pode concluir-se no sentido de que, ao contrário dessa solução geral, afinal está excluído da amnistia quem a letra da lei não exclui.
Posto o que antecede, voltemos ao início.
O art. 4º da Lei 38-A/2023 estatui que são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.
O crime em causa nos autos é punido com pena não superior a 1 ano de prisão ou 120 dias de multa.
Do art. 7º nº 1 do diploma decorre que não beneficiam do perdão e da amnistia previstos naquela lei (...) no âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por (...) crimes de (...) condução de veículo em estado de embriaguez.
O arguido não foi condenado pelo crime em causa nos autos. Em decorrência, o caso dos autos não está excluído, na letra da lei, da amnistia concedida.
Do mesmo modo, não vemos que, considerando o restante teor e a teleologia da lei em questão, o caso dos autos deva, sem apoio na letra da lei, considerar-se excluído da amnistia.
Pelo que supra fica exposto, declaro extinto, por amnistia, o procedimento criminal dos presentes autos.
Sem custas (arts. 513º nº 1 e 522º, todos do Código de Processo Penal).
Oportunamente, ao arquivo.

B – Recurso

O M. P. recorreu, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
1. O presente recurso é interposto do despacho que aplicou a amnistia ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º do Código Penal, na interpretação de que o art. 7.º, n.º 1, al. d), ponto ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 2.08, com a expressão condenados só exclui o perdão de penas, extinguindo o procedimento criminal contra o arguido;
2. A Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto veio instituir o perdão e amnistia de algumas infracções e penas por ocasião da Jornada Mundial da Juventude realizada em Portugal, mas como medida excepcional de clemência que é, concedida pelo Estado, visa sempre o respeito pelos princípios do Estado de Direito, aplicando-se apenas a situações que se consideram de menor gravidade;
3. Isso mesmo teve o legislador em consideração, não só quando balizou no tempo os ilícitos, fixando que sua prática até às 00h00 de 19 de Junho de 2023, mas também, a idade do infractor/autor/condenado à data da prática dos factos, 30 anos- cfr. artigo 2.º da referida Lei e também quando estabeleceu limites, quer no tocante ao perdão de penas, conforme decorre do artigo 3.º, quer no tocante às infracções penais amnistiáveis, fixando o limite máximo da pena em 1 ano de prisão ou 120 dias de multa, previsto no seu artigo 4.º;
4. Foram tomadas várias opções legislativas quanto ao tipo de criminalidade visada, considerada de menor gravidade, mas mesmo dentro destas molduras penais mais baixas, foram excluídos determinados ilícitos por se considerar que não obstante a sua moldura penal abstracta ou sanção/pena concreta, atento o tipo de ilícito que subjaz, são mais gravosos e as necessidades de prevenção são muito superiores, não podendo ser objecto de clemência, como é o caso de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art 292.º do Código Penal;
5. Corresponde a uma necessidade de política criminal dada a elevada sinistralidade que ocorre na rede viária nacional, sendo premente a prevenção quer geral que especial, sendo de realçar que a condução sob o efeito do álcool, como contra-ordenação e como crime, nunca foi contemplada em qualquer lei de amnistia, o que sem dúvida revela a intenção do legislador em não classificar como de pouca gravidade tal comportamento estradal e uma continuidade na opção e pensamento legislativo;
6. Assim, só podemos entender a utilização da expressão “condenados”, na no art. 7.º, n.º 1, al. d), ponto ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, como imprecisa, uma escolha menos feliz, antes utilizada em sentido lato e genérico, mas cuja exclusão se refere quer a aplicação do instituto da amnistia quer do perdão;
7. O legislador não foi preciso na escolha de linguagem técnico-jurídica, devendo fazer-se uma interpretação declarativa do pensamento legislativo, conforme com o art 9.º do Código Civil, atendendo também ao elemento sistémico, teleológico, histórico e de continuidade da Lei;
8. Ademais, seria incongruente e ilógico, proibir-se a sua aplicação aos ilícitos contra-ordenacionais e o perdão de penas e permitir-se a aplicação do instituto da amnistia aos ilícitos que ainda não se encontrem julgados ou condenados;
9. Tal equivaleria a atribuir um efeito mais benévolo a uma situação objectivamente mais grave do que aquela outra em que tal entendimento foi expressamente afastado pelo legislador, o que é vedado ao intérprete, face aos princípios vigentes em matéria de interpretação da lei enunciados pelo art. 9º do C. Civil. Quer porque sem correspondência no texto legal (n.º2), quer pela presunção estabelecida no n.º3 do citado preceito;
10. Pelo que, não pode excluir-se a aplicabilidade da referida exclusão/proibição da amnistia aos agentes/autores/arguidos pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º do Código Penal, sendo que a interpretação levada a cabo no douto despacho recorrido é desconforme à letra da lei, ao pensamento legislativo, a princípios de coerência e, também, ao seu elemento sistémico, teleológico e histórico;
11. Destarte, deverá o presente despacho ser revogado, porquanto com a sua interpretação violou o Tribunal a quo, os critérios contidos nos arts. arts. 2.º, n.º 1, 4.º e 7.º, n.º 1, al. d), ponto ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto e art. 9.º do Código Civil;
12. Deve pois tal decisão ser revogada e determinar-se o prosseguimento dos autos para julgamento, seguindo os seus ulteriores termos.

D – Tramitação subsequente
Recebidos os autos nesta Relação, foram os mesmos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim sendo, importa apenas apreciar se assiste razão ao recorrente no sentido de o despacho ser revogado, determinando-se o prosseguimento dos autos por não haver lugar à aplicação da amnistia.

B – Apreciação
A questão em causa, de apreciação eminentemente jurídica, parece ser de fácil resolução, enquadrando-se a mesma, a nosso ver, nos termos traçados pelo ora recorrente.
Por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude, realizadas em Portugal, em que o nosso País foi visitado pelo Papa, foi publicada a Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, que veio a estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações.
A amnistia, como se sabe, é uma medida de clemência que o Estado concede, em certas circunstâncias, anulando o preenchimento de determinados tipos legais de crimes, até determinada data, distinguindo-se do perdão, por este extinguir, total, ou parcialmente, a pena e aquela extinguir o procedimento criminal ou, no caso de já haver condenação, fazer cessar a execução da pena.
Na interpretação acolhida pelo tribunal a quo, do Artº7 nº 1 daquela Lei decorre que apenas não beneficiam do perdão e da amnistia ali previstos no âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por, entre outros, crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, pelo que, não tendo o arguido dos autos sido alvo de qualquer julgamento ou condenação, deve beneficiar da amnistia ali postulada.
A solução dos autos passa, assim, pela dimensão interpretativa a dar à norma em causa.
A situação sub judice foi muito recentemente, já tratada nesta Relação, em acórdão de 05/03/24, no Proc. 330/22.0GTABF.E1, em termos que se acolhem na íntegra e que, por isso, com a devida vénia, agora se reproduzem (transcrição):
As regras de interpretação legal, plasmadas no artigo 9.º do Código Civil, e que são aplicáveis a todos os ramos do Direito, demandam do intérprete que não se cinja à letra da lei, antes reconstruindo «a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.» e presumindo, no seu labor hermenêutico, que «o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»
Dir-se-á, pois, que, sempre que a letra da lei consinta (ou não obste) a que dela se extraia mais do que um sentido, será de optar por aquele sentido que se revele mais conforme com os princípios basilares do sistema jurídico e, em particular, do ramo do Direito em que a norma se insere; que seja mais coerente à luz no contexto político-social em que a lei foi criada, por um lado, e em que a lei será aplicada, por outro, e que, quando comparado com a aplicação de outras normas do mesmo sistema, ramo e visando tutelar o mesmo tipo de interesses jurídicos, não conduza a soluções absurdas e, como tal, incompreensíveis para o cidadão comum, em nome de quem se administra a Justiça num Estado de Direito Democrático.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 06-04-2022 (disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 1301/19.0PBAVR.P1), «Nenhuma interpretação da Lei pode levar a uma aplicação absurda da mesma, esta é uma regra que já nos vem do Direito Romano: “interpretatio facienda est, ut ne sequantur absurdum”.»
Nesta nossa interpretação da lei atendemos, pois, ao preceituado no artigo 9º do Código Civil (preceito legal que genericamente regula a matéria da interpretação da lei), onde se estabelece, como principal marca orientadora, que a interpretação da lei deve reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo como parâmetros a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
Interpretar uma lei mais não é do que determinar o seu sentido e o alcance com que ela se deve impor na comunidade jurídica a que se destina.
Uma interpretação meramente literal do preceito em análise dá apoio à tese sustentada na decisão recorrida.
Porém, como decorre dos princípios gerais de interpretação, a letra da lei, se bem que constitua um importante elemento de interpretação, não é o único, nem, porventura, o mais importante.
(…)
Se considerássemos apenas a referida expressão, então por que não entender que aqueles que já tivessem sido condenados pela prática dos crimes enunciados no artigo 7.º não podiam beneficiar da amnistia e do perdão? Ou seja, se tais indivíduos já registassem qualquer condenação pela prática de tais crimes – atendendo à expressão usada “os condenados por crimes de” -, então, não podiam beneficiar de qualquer das medidas de clemência.
Colocamos tal hipótese apenas por mero exercício interpretativo, na medida em que não compreendemos por que motivo o Tribunal a quo extrai da expressão “não beneficiam do perdão e da amnistia os condenados por crimes de (…)” o entendimento de que não beneficiam dessas medidas aqueles que ainda não tiverem sido condenados apenas no âmbito de determinado processo em que estiverem a ser julgados.
O legislador também não disse isto.
Podíamos questionar se a solução seria mais feliz se o legislador tivesse utilizado a expressão “arguidos”, ao invés da expressão “condenados”. Porventura, até nesse caso, estaria sujeita a ambiguidade, eventualmente surgindo uma tese de que o agente do crime que ainda não tivesse sido constituído arguido em determinado processo podia beneficiar da amnistia, mas o arguido não.
Considerando que, conforme referimos, o legislador também não pretendeu dizer o que o Tribunal a quo sufragou na decisão recorrida, temos de interpretar a lei.
É certo que “a amnistia bem como o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliações nem restrições; e na determinação do sentido dos mesmos diplomas não é admitida a interpretação extensiva, restritiva ou analógica, mas sim e só a interpretação declarativa”.
Em sede de interpretação de normas há que ter em conta o dispõe o artigo 9.º do Código Civil:
“1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
A letra do artigo 7.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto não é suficiente para resolver os problemas de interpretação.
Assim sendo, é necessário recorrer aos demais elementos de interpretação mencionados no artigo 9.º, do Código Civil.
Assim, além do teor verbal, hão de ser considerados «a coerência interna do preceito, o lugar em que se encontra e as suas relações com outros preceitos» (ou seja, a interpretação lógico-sistemática), assim como «a situação que se verificava anteriormente à lei e toda a evolução histórica», bem assim «a história da génese do preceito», que resulta particularmente dos trabalhos preparatórios, e finalmente o «fim particular da lei ou do preceito em singular» (ou seja, a interpretação teleológica) - cf. Karl Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, 3.ª ed., p. 111.
Nesta sequência, entendemos que releva o facto de o legislador ter decidido sistematicamente prever nos artigos nos artigos 3.º a 6.º os casos em que podia ser aplicada a amnistia e o perdão e, de seguida, sob a epigrafe “Excepções”, estabelecer no artigo 7.º os casos em que não podem ser aplicadas qualquer daquelas medidas de clemência.
No n.º 1, da citada disposição legal, o legislador elenca os casos que “não beneficiam do perdão e da amnistia” previstos naquela lei, pretendendo claramente com tal expressão excepcionar a amnistia em todos esses casos, apesar de utilizar a expressão “condenados” em vez de, por exemplo, “autores” ou de simplesmente enumerar os crimes em causa.
No n.º 2 o legislador diz que as “medidas previstas” na presente lei (amnistia e perdão) “não se aplicam a condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respetivas funções”.
E, por sua vez, no n.º 3, refere que “A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos”. O legislador pretendeu excluir os crimes elencados no artigo 7.º, ressalvando que tal prejudica a aplicação da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes.
É também ter necessário em consideração os crimes excluídos no artigo 7.º, que acima enumeramos (em particular quanto à amnistia), donde resulta a intenção clara de excluir a aplicação da amnistia mesmo a crimes puníveis com prisão não superior a um ano quando estão em causa necessidades de prevenção elevadas (por ex., crime de condução de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, crime de dano contra natureza, crime de poluição, respectivamente previstos nos artigos 292.º, n.ºs 1 e 2, 278.º, n.º 3, 279.º, n.º 5, do Código Penal, crimes praticados contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respetivas funções), crimes informáticos (acesso ilegítimo, previsto no artigo 6.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro), crimes ligados ao fenómeno desportivo (crime de participação em rixa no âmbito de espetáculo desportivo ou em acontecimento relacionado com o fenómeno desportivo, crime de invasão da área do espetáculo desportivo, previstos nos artigos 30.º e 32.º, n.º 2, da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho) ou crimes em praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis (crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável e crime de aliciamento de menores para fins sexuais, previstos nos artigos 172.º, n.º 2 e 176.º-A, do Código Penal).
No que concerne ao elemento histórico, há que ter em devida conta os precedentes legislativos em matéria de leis de clemência.
Nesta sequência, e no que concerne ao crime de condução em estado de embriaguez que aqui nos ocupa, já anteriormente, nomeadamente aquando a aplicação da Lei n.º 29/99, de 12.05 (Amnistia 1999), o legislador excluiu a aplicação da amnistia e do perdão aos infractores “ao Código da Estrada, seu Regulamento, legislação complementar e demais legislação rodoviária, quando tenham praticado a infracção sob a influência do álcool ou de estupefacientes”
Por outro lado, não faria sentido que, no âmbito da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, o legislador excluísse da amnistia a contra-ordenação relativa à condução sob o efeito do álcool (com uma taxa compreendida entre 0,5 g/l e 1,19 g/l de álcool no sangue) e o perdão da pena aplicada pela prática deste crime, punido com uma pena de até 1 ano de prisão ou 120 2 Cfr. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02.06.1999, processo 9941072: “O crime do artigo 292 do Código Penal (condução de veículo automóvel sob a influência do álcool) não se encontra abrangido pela Lei da amnistia n.29/99, de 12 de Maio”. E, ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15.12.1999, processo 2752/99: “1. Do texto da al.c), do n.º 1, do art.2º, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, decorre claramente que o legislador excluiu os benefícios concedidos (amnistia e perdão) aos infractores do Código da Estrada, seu Regulamento, legislação complementar e demais legislação rodoviária, quando tenham praticado a infracção sob a influência do álcool ou de estupefacientes ou com abandono de sinistrado, independentemente da pena. 2. Certo é que o crime do art.292º, do Código Penal, é inquestionavelmente um crime rodoviário, na medida em que visa tutelar ou proteger a segurança rodoviária, contra factos e estados de perigosidade relativos ao exercício da condução de veículo rodoviário, como aliás, claramente resulta da respectiva epígrafe - condução de veículo em estado de embriaguez - sendo que a circunstância de se encontrar inserido na lei substantiva penal não lhe retira a natureza de infracção rodoviária, consabido que o legislador tendo optado por sancionar a generalidade das infracções de trânsito nos quadros do direito de mera ordenação social, qualificando como contra-ordenações as infracções que anteriormente constituíam transgressões, remeteu para o Código Penal e legislação avulsa os comportamentos merecedores de qualificação de crime. 3. Assim, é evidente que o arguido, enquanto autor material de um crime rodoviário, excluído está dos benefícios concedidos pela Lei n.º 29/99 (amnistia e perdão).”
Apenas mais duas ou três notas em complemento do que, muito acertadamente, se afirmou no aresto atrás transcrito.
A primeira, para relembrar que a Lei n.º 38-A/2023 de 02/08, como qualquer lei de amnistia é uma decisão de clemência do próprio Estado e que, visando sempre o respeito pelos princípios do Estado de Direito, apenas se aplica a situações que se consideram de menor gravidade, como se vê, desde logo, pelos limites temporais fixados à sua aplicação e, principalmente, à idade do infractor e aos reduzidas molduras penais que dela podem beneficiar.
Depois, para notar que mesmo dentro das penas mais reduzidas, foram excluídos determinados ilícitos por se considerar que, ainda assim, as exigências de prevenção geral que deles decorrem demandam a sua exclusão do âmbito de aplicação da lei, como é caso, evidentemente, do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo Artº 292 do CP, atenta a elevada sinistralidade que grassa nas nossas estradas.
Na esteira desse entendimento, correspondente a situações que demandam fortes exigências de prevenção geral, assim se satisfazendo o tecido social, é que o ilícito de condução sob o efeito do álcool, seja como contraordenação, seja como crime, nunca foi contemplado em qualquer lei de amnistia, o que, sem qualquer dúvida, é bem revelador da intenção do legislador em não qualificar tal crime como de pouca gravidade e merecedor de ser enquadrado em diplomas de clemência como é uma lei de amnistia.
Por outro lado, e sendo evidente – atenta a habitualidade com que tal acontece – que o legislador, uma vez mais, não foi cuidadoso e, muito menos, rigoroso, na linguagem técnico-jurídico que utilizou na elaboração do diploma em causa, não deve o julgar ficar preso a uma interpretação literal da norma, sob pena de aplicar a lei no sentido contrário ao que com ela se prendia, respeitando, assim, uma continuidade no pensamento legislativo, bem revelador de uma clara continuidade no tratamento da questão em causa quando se trata de crimes estradais.
A isso nos obriga o disposto no Artº 9 do C. Civil, para que da interpretação acolhida não se extraem situações lesivas daquilo que se pensa ser o pensamento do legislador, mas que não soube ser traduzido na letra da lei, assim se evitando soluções contraditórias e irrazoáveis, como seria o de se proibir a aplicação da amnistia aos ilícitos contraordenacionais e o perdão das penas e permitir-se a aplicação deste instituto ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, desde que o arguido ainda não tivesse sido condenado.
Nessa medida, como bem nota o recorrente, “…só podemos entender a utilização da expressão “condenados”, na no art. 7.º, n.º 1, al. d), ponto ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, como imprecisa, uma escolha menos feliz, antes utilizada em sentido lato e genérico, mas cuja exclusão se refere quer a aplicação do instituto da amnistia quer do perdão”.
Assim sendo, entende-se que a interpretação levada a cabo no despacho recorrido é desconforme á letra da lei e contrário aos elementos sistemático, teológico e histórico que devem revestir qualquer interpretação legislativa e que impõem a aplicabilidade da exclusão/proibição da amnistia aos agentes/autores/arguidos pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. pelo Artº 292 do Código Penal.
Procede, pois, o recurso, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.

3. DECISÃO

Nestes termos, julga-se procedente o recurso e em consequência, revoga-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos ulteriores termos dos autos.
Sem custas.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 09 de abril de 2024
Renato Barroso
Maria Gomes Perquilhas
Carlos de Campos Lobo