LIVRANÇA EM BRANCO
AVAL
PRECLUSÃO DE MEIOS DE DEFESA
QUESTÃO NOVA
Sumário

I - Constitui título executivo um título de crédito, como é uma livrança, desde que não mero quirógrafo, sem que se mostre necessário alegar (e comprovar) a relação subjacente (cfr. al. c), do nº1, do art. 703º, do CPC).
II - A avalista de livrança em branco fica sujeita à responsabilidade pelo pagamento do valor aposto nesse título (dele resultando a obrigação cambiária), a menos que, no requerimento inicial de embargos, cumpra o ónus de alegar factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito emergente do título de crédito e os venha a lograr provar (cfr. nº2, do art. 342º, e art. 378º, do CC).
III - Não densificam tais factos a separação de facto/divórcio, a falta de proveito, nem a falta de explicação das cláusulas contratuais gerais do contrato que esteve subjacente à subscrição da livrança em que a avalista não teve intervenção, destituídos de relevância jurídica.
IV - E por força do princípio da concentração da defesa, toda a defesa que o executado pretenda apresentar (factos pretéritos) tem de ser apresentada no requerimento inicial de embargos de executado, com o efeito de preclusão intraprocessual dos meios de defesa (preclusão operada no processo), sendo que outros meios de defesa ulteriormente apresentados no processo têm de ser desatendidos.
V - Outrossim, está vedado a este tribunal o conhecimento de “questões novas” - que não sejam de conhecimento oficioso e que não tenham sido suscitadas pelas partes nem apreciadas na decisão recorrida -, sobre as quais nunca pode haver pronúncia pelo Tribunal de recurso.

Texto Integral

Processo nº 2165/23.4T8PRT-A.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo de Execução do Porto - Juiz 5




Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto:  Des. Teresa Fonseca
2º Adjunto: Des. José Eusébio Almeida

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto




Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

Recorrido: Banco 1..., SA

AA veio deduzir oposição à execução que lhe é movida por Banco 1..., SA, pedindo que seja declarada extinta a execução.

Alega, para tanto e resumidamente, que se divorciou do executado em 23.11.2018, dele estando já separada de facto desde finais de 2012/início de 2013, sem vida em comum, nem partilha de rendimentos, e que subscreveu a livrança, apenas por ser casada com o executado e por exigência do Banco, sendo que a beneficiária do crédito foi uma sociedade da titularidade do executado, não tendo a embargante dele retirado qualquer proveito. Mais alega que o contrato de crédito foi elaborado pela exequente, não lhe tendo o seu conteúdo sido explicado, nem exibido.

A exequente contestou, invocando, em síntese, que os embargos carecem de fundamento legal, pois os argumentos apresentados não são suscetíveis de liberar a embargante da obrigação assumida com a prestação do aval e que a embargante subscreveu o pacto de preenchimento, no qual vêm descritas as situações em que a livrança podia ser preenchida, do que teve o devido conhecimento.


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Realizou-se a audiência prévia e dado o processo reunir todos os elementos necessários à decisão de mérito proferiu o Tribunal a quo decisão, no despacho saneador, ao abrigo do disposto nos arts. 591º, nº, al. d), 593º, nº 1, 595º, nº 1, al. b) e 597º, al. c), do Código de Processo Civil. Tem tal decisão a seguinte

parte dispositiva:

“Pelo exposto, julgo os presentes embargos de executado não provados e totalmente improcedentes e, em consequência, determino o prosseguimento da execução.

Custas a cargo da embargante/executada (vide art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia”.


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Apresentou a embargante recurso de apelação, pugnando por que seja concedido provimento ao recurso e revogada a decisão recorrida, formulando as seguintes

CONCLUSÕES:

  

“I. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença prolatada nos autos supra, que julgou “os presentes embargos de executado não provados e totalmente improcedentes e, em consequência, determinou o prosseguimento da execução”;

II. Para que melhor se compreenda o texto e contexto da motivação recursória, a Embargante, por economia e brevidade processuais, dá aqui por reproduzida e integrada a factualidade elencada nos pontos i a vii da questão prévia supra;

III. Ao Tribunal está vedado a prática de actos inúteis – art.º 130.º do C.P.C. – pelo que, junto aos autos o contrato de crédito por si ordenado e corporizado no ponto 3 da matéria assente, impunha-se ao Tribunal a relevância do propugnado pela Embargante (e não a sua desconsideração);

IV. Do sobredito convénio, não constam a assinatura e rubrica da Embargante - cfr. ponto 3 da matéria assente;

V. Talqualmente, a Embargante não participou na sua negociação, discussão e elaboração, cujos termos e condições só tomou conhecimento aquando da citação para a presente execução;

VI. Atento os factos alegados pela Embargante na petição de embargos - máxime, art.ºs 12.º a 23.º - e no requerimento por si enviado a Juízo sob Ref.ª 45866745, susceptíveis de influir na decisão final, o Tribunal podia e devia dar prosseguimento aos autos para produção de prova subsequente, na busca da verdade material e na prevalência na decisão de mérito sobre a formal;

VII. A assinatura aposta pela Embargante no título dado à execução/livrança, foi alcançada num contexto de verdadeiro estado de intimidação, privada de liberdade de decisão e receio de retaliação por parte do co-executado e ex-marido (em caso de recusa);

VIII. Na decisão ora impugnada, ocorre igualmente contradição entre os factos provados/assentes e a decisão, contradições da matéria de facto - mormente, pontos 3, 4, 6, 7 e 8 da matéria assente e respectiva decisão - que configuram erro de julgamento, que se deixa invocado, pois, reclamam decisão diversa da tomada;

IX. Não tendo sufragado o entendimento de que se impunha e é de primordial importância o prosseguimento dos autos (e não a improcedência dos embargos), assumindo particular importância a prova do alegado no ponto VII supra, o Tribunal recorrido violou o disposto nos art.ºs 6.º, n.º 1, 7.º, n.ºs 1 e 2, 130.º, 417.º, n.º 1 e 418.º, n.º 1 do C.P.C. e art.º 255.º do Código Civil”.


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Apresentou a embargada resposta às alegações pugnando pela manutenção da decisão recorrida, apresentando as seguintes

CONCLUSÕES:

1. Em momento algum que não em sede de recurso a embargante alegou que A assinatura aposta pela Embargante no título dado à execução/livrança, foi alcançada num contexto de verdadeiro estado de intimidação, privada de liberdade de decisão e receio de retaliação por parte do co-executado e ex-marido (em caso de recusa).

2. Ora, atentas as regras relativas ao regime de recursos em processo civil, constantes dos artigos 627.º e seguintes do CPC, máxime, do artigo 627.º, n.º 1 desse diploma, o recurso destina-se a impugnar uma determinada Decisão Judicial.

3. Sendo que a Recorrente, apenas nesta sede vem arguir tal questão e eventual não pronuncia/apreciação pelo douto Tribunal quando ultima com o pedido de prosseguimento dos autos para produção de prova subsequente.

4. Com efeito, tratando-se inquestionavelmente de matéria nova, apenas abordada pela Executada em sede de recurso, nos termos acima caracterizados, não poderão assim ser apreciadas por este Tribunal da Relação, pelo que deverão as mesmas ser dadas por não escritas e serem desconsiderados, consequentemente, os segmentos expendidos a este propósito pela Recorrente.

5.Os quais correspondem às alíneas C) e E) das alegações e número VI, VII, VIII e IX  das respetivas conclusões de recurso.

Quanto ao mais,

6. Não se poderá concordar com a posição assumida pela Recorrente seja de que o Tribunal podia e devia dar prosseguimento aos autos para produção de prova subsequente seja que na decisão ora impugnada, ocorre igualmente contradição entre os factos provados/assentes e a decisão.

7. Importa relembrar a Recorrente que a diferente valoração da prova não se confunde com o erro de julgamento.

8. A sentença recorrida faz uma correta análise dos factos trazidos aos autos pelas partes fazendo igualmente uma análise fundamentada da prova carreada ao processo e proferindo decisão em consonância com a matéria assente e o direito aplicável.

9. Ora, o que releva nos autos e que é factual é que a Recorrente não impugnou a assinatura aposta no verso da Livrança não impugnou a sua qualidade de avalista, não impugnou o pacto de preenchimento que validamente assinou e não impugnou a existência da dívida.

10. Limitando-se a alegar de forma genérica e abstrata que o contrato de crédito cuja livrança se mostrava a garantir não lhe foi comunicado e nele não teve intervenção.

11. Ora, o pedido de junção do contrato de crédito pelo Tribunal a Quo, ao contrário do entendimento da Recorrente, apenas teve a utilidade de comprovar tal alegação da Recorrente, sem que, da referida alegação se possa a final extrair as conclusões apresentadas pela mesma.

12. Assim, como bem refere a douta sentença, (…) há que fazer uma restrição evidente:

os avalistas que tenham intervindo no contrato – o que não é o caso - só se podem queixar da falta de cumprimento daqueles deveres relativamente às cláusulas do contrato que têm a ver com a emissão do aval, os pressupostos do preenchimento da livrança e o exercício do direito contra eles (e, por aí, com o incumprimento do contrato). O resto do contrato não tem nada a ver com eles e não lhes tem de ser comunicado nem informado. Nos presentes autos a embargante apenas põe em causa a validade do contrato no âmbito do qual se celebrou o pacto de preenchimento, por não lhe ter sido comunicado e explicado o conteúdo das suas cláusulas contratuais gerais. Porém, a embargante não outorgou, nem interveio no referido contrato, pelo que não tinha o seu conteúdo que lhe ser explicado, mas outorgou o pacto de preenchimento, e esse, não foi posto em causa.

13. Ora, carece de fundamento as alegações de recurso apresentadas quando nela a Recorrente vem dizer que o Tribunal a Quo devia ter tirado as ilações processuais reclamadas pela embargada em face da junção do contrato.

14. Ora, o Tribunal a Quo ao contrário do alegado, analisou critica e fundamentadamente aversão apresentada pela Embargada quanto à questão da não intervenção no contrato e respetivas consequências extraídas desse facto.

15. Tendo igualmente analisado o respetivo pacto de preenchimento

16. Que a Recorrida teve intervenção e não impugnou.

17. Ora, como é evidente bem andou o douto tribunal a quo em decidir como decidiu em face da prova produzida e da factualidade alegada.

18. Não havendo qualquer omissão de pronúncia na douta sentença nem havendo igualmente qualquer contradição entre os factos assentes e a fundamentação da decisão nem a necessidade de prosseguimento dos autos para produção de prova complementar.

19. Ademais nem a Recorrente alega no seu recurso os concretos factos e circunstâncias de tempo, modo e lugar que na sua ótica se mostrariam suscetíveis de influir na decisão final, desonerando-a do cumprimento e responsabilidades reclamadas pelo Banco Embargado.

20. E por consequência implicariam o prosseguimento dos autos para produção deprova subsequente.


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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.

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II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

 Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.

Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1ª. Da existência ou não de título executivo e de responsabilidade da embargante/avalista de livrança em branco:
- do ónus de alegação e da prova das circunstâncias densificadoras da defesa;
- da questão nova e da preclusão intraprocessual do direito de defesa.
2ª - Da responsabilidade tributária.


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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. FACTOS PROVADOS

Foram os seguintes os factos considerados assentes com relevância para a decisão (transcrição):

1. Foi apresentado à execução de que estes autos constituem um apenso, o documento anexo ao requerimento executivo, denominado “livrança”, além do mais, com os seguintes dizeres: - Importância – 30.368,13€; - Vencimento – 2022-12-12; - Local e Data de Emissão – Porto - 2022-11-30; - Valor: Garantia Contrato Crédito em Conta Corrente;

2. No local destinado ao subscritor mostra-se aposta a assinatura de BB, na qualidade de gerente da sociedade A..., Unip., Lda e no verso, mostram-se apostas as assinaturas da aqui embargante “AA”, em seu nome pessoal e de “BB”, também em seu nome pessoal, a seguir à expressão manuscrita com os seguintes dizeres:“Bom por aval” (cfr. doc. anexo ao requerimento executivo, cujo original foi junto através do requerimento de 06.02.2023 dos autos de execução, e cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido).

3. Entre o embargado Banco 1..., SA e a sociedade A... Unipessoal, Lda, representada pelo seu sócio gerente, o co executado BB, foi celebrado o acordo escrito denominado “Crédito em Conta Corrente”, outorgado a 04.01.2017 nos termos constantes do documento anexo ao requerimento de 03.10.2023, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4. A embargante, na qualidade de avalista, e a sociedade A... Unipessoal, Lda representada pelo executado BB, na qualidade de subscritora, subscreveram o documento intitulado “Pacto de Preenchimento de Livrança em Caução” com o seguinte teor:

“Mutuário(s): A..., UNIPESSOAL, LDA

Operações a garantir: Contrato(s) de Crédito em Conta Corrente no Valor de 50.000,00 EUR celebrado em 04-01-2017

Em garantia das responsabilidades, para com o Banco 1..., emergentes do(s) contrato(s) em epígrafe, cujo conteúdo e natureza declaram expressamente conhecer, incluindo as decorrentes das suas eventuais prorrogações elou renovações, no valor em capital acima indicado, acrescido dos correspondentes juros e encargos, contraídas pelo(s) mutuário(s) acima identificados, os garantes, subscritor(es) e avalista(s), abaixo identificados, entregam, nesta data, ao Banco 1..., uma livrança de caução, devidamente subscrita e avalizada pelos intervenientes, com o montante e a data de vencimento em branco, ficando o Banco irrevogavelmente autorizado a completar o seu preenchimento, nomeadamente no que diz respeito à data de vencimento, valor e local de pagamento, quando o entender necessário para a boa cobrança dos seus créditos, encargos e despesas que venha a suportar, logo que deixe de ser cumprida qualquer obrigação caucionada.

Os subscritores e avalistas assumem igualmente a responsabilidade pelo pagamento de todos os encargos inerentes à emissão da presente livrança, nomeadamente o correspondente imposto do selo, ficando o Banco desde autorizado a debitar para o efeito as contas de depósito à ordem existentes no Banco.

Marco de Canaveses, 4 de Janeiro de 2017” cfr. documento n. 1 anexo à contestação.

5. Os Executados contraíram casamento a 04 de julho de 1998, sob o regime de comunhão de bens de adquiridos, o qual se dissolveu por divórcio por mútuo consentimento, decretado a 23 de novembro de 2018 – cfr. documento n. 1, anexo à petição de embargos.

6. A embargante alega que em data indeterminada de final do ano de 2012, princípio de 2013, o casal já se encontrava separado de facto, em total separação de vidas, cada um provendo às suas necessidades e, pese embora a circunstância de o Executado ser sócio-gerente da sociedade comercial que gira sob a denominação “A..., Unipessoal, Lda”, constituída em Fevereiro de 2014, mantinha atividades próprias, alheias à Executada, porquanto, aquele nada partilhava com esta, nem tinha intenção de partilhar com ela quaisquer proveitos que recebesse.

6. A embargante alega também que o montante reclamado na execução se destinou a satisfazer contrato de crédito em conta corrente, de que foi beneficiária a sociedade A... Unipessoal, Lda e a assinatura da embargante aposta na livrança deve-se apenas ao facto de ter sido uma exigência do Banco para a concessão do crédito, por se encontrar casada com o executado.

7. A embargante alega desconhecer o conteúdo do contrato de abertura de crédito em conta corrente, cujo teor nunca lhe foi explicado, não tendo participado na sua negociação, discussão e elaboração, à semelhança do já ocorrido relativamente a 2 (duas) anteriores livranças também por si subscritas – em fevereiro e março de 2017 – que presume terem sido liquidadas pelo executado.

8. Mais alega que aquando da partilha do património conjugal a verba n.º 2, referente à “sociedade identificada, foi adjudicada ao Executado, no pressuposto e vontade de ambos, que todo e qualquer compromisso emergente do seu giro comercial, é da exclusiva responsabilidade do adjudicatário, porque dela único beneficiário”.

9. A embargada remeteu à embargante a carta datada de 30.11.2022, que esta recebeu a 12.12.2022, com o seguinte teor:

“Exma. Senhora,

Dada a situação de incumprimento da responsabilidade proveniente do empréstimo concedido a A... - UNIPESSOAL, LDA., por contrato datado de 04.01.2017, informamos que procedemos ao preenchimento da livrança dada de caução e avalizada por V. Exa., nela incluindo o capital em dívida e respectivos encargos, tudo no valor global de 30.368,13, tendo fixado o seu vencimento para o dia 12.12.2022, conforme pacto de preenchimento oportunamente entregue.

Se a referida livrança não for paga até à data indicada, o processo será encaminhado para tribunal, com vista à cobrança judicial. (…)” cfr. documentos n.ºs 4 e 5 anexos à contestação.


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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1ª - Do título executivo e da responsabilidade da avalista.

Insurge-se a apelante contra a decisão recorrida, que pretende ver revogada dado nenhuma intervenção ter tido no contrato de concessão de crédito subjacente à subscrição da livrança, que lhe não foi exibido nem explicado e nenhum proveito dele ter, para si, resultado.

Apreciemos.
Toda a execução tem de ter por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva (fins esses que, como previsto na lei, podem consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo, quer negativo - v. n.º 5 e 6, do art. 10º, do Código de Processo Civil, diploma a que se reportam todos os preceitos citados).

“O título executivo constitui pressuposto de caráter formal da ação executiva, destinado a conferir à pretensão substantiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor. Constitui a base da execução, por ele se determinando o tipo de ação e o seu objeto (nº5), assim como a legitimidade ativa e passiva para a ação (art. 53º, nº1).

O objeto da execução tem de corresponder ao objeto da situação jurídica acertada no título (…) É também pelo título que se determina a quantum da prestação”[1].

A ação executiva só pode ser intentada se tiver por base um título executivo (nulla executio sine titulo), o qual, para além de documentar os factos jurídicos que constituem a causa de pedir da pretensão deduzida pelo exequente, confere igualmente o grau de certeza necessário para que sejam aplicadas medidas coercivas contra o executado[2].

O título executivo realiza duas funções essenciais:

- por um lado, delimita o fim da execução, isto é determina, em função da obrigação que ele encerra, se a acção executiva tem por finalidade o pagamento de quantia certa, a entrega de coisa certa ou a prestação de facto;

- por outro lado, estabelece os limites da execução, ou seja, o credor não pode pedir mais do que aquilo que o título executivo lhe dá[3].

O art. 703º, apresenta uma enumeração taxativa (numerus clausus) dos títulos executivos que podem servir de base a uma ação executiva, entre eles se contando, como resulta do nº1, os títulos executivos extrajudiciais.

Assim, de acordo com o nº5, do art. 10º, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva, título esse que só pode ser um dos previstos no art. 703º, nº1, do mesmo diploma, entre os quais se encontram os títulos de crédito (c)).
Pela execução a que a apelante deduziu oposição, a exequente visa obter o pagamento coativo do crédito, titulado por livrança. Estamos, assim, perante de uma ação executiva para pagamento de quantia certa e o título executivo que serve de base à presente execução é um título extrajudicial, uma livrança.
“A livrança é um título cambiário à ordem, sujeita às formalidades enunciadas no art. 75º da LULL, mediante o qual, uma pessoa (o subscritor ou tomador) se obriga perante outra (beneficiário) a pagar-lhe determinada quantia em certa data.

Sendo a livrança um título necessariamente à ordem (n.º 5 do art. 75º da LULL), tal significa que uma vez subscrita a mesma e entregue pelo subscritor ao tomador, este está em condições de a fazer circular, o que faz mediante endosso[4].

Atenta a natureza de título de crédito, a livrança beneficia de um regime jurídico especial, o qual se destina a defender os interesses de terceiros de boa-fé, imposta pelas necessidades de facilitar a circulação dos títulos de crédito.

Esse regime jurídico encontra-se explanado, quanto às letras e livranças, na LULL, e dele decorrem os seguintes princípios:

a) incorporação da obrigação no título (a obrigação cambiária e o título constituem uma unidade, de modo que sem título não existe direito ou obrigação cambiária, sequer estes podem, respetivamente, ser exercitado ou reclamados contra os obrigados cambiários);

b) literalidade da obrigação (a reconstituição da obrigação cambiária faz-se pela simples inspeção do título, isto é, o direito cambiário tem unicamente a entidade concreta, a dimensão, as qualidades e a relação que o título descrevem);

c) abstração da obrigação (a obrigação cambiária é independente da causa debendi, pelo que o direito impregnado no título não é uma parte da relação fundamental, mas uma realidade nova, um quid distinto e, por isso, a relação cambiária não tem comunicação com a relação fundamental, não podendo ser afastada ou afetada por qualquer defeito desta);

d) independência recíproca das várias obrigações incorporadas no título (a nulidade de uma das obrigações que o título incorpora não se transmite às demais) e

e) autonomia, enquanto afirmação de que o direito do dono do título é independente do de um titular antecedente e não pode ser prejudicado por qualquer defeito que na relação anterior se teria alojado”[5].
Invoca a devedora a inexistência de obrigação, já que não teve intervenção no contrato subjacente à livrança e que o mesmo lhe não foi exibido e explicado. Contudo, e como bem decidiu o Tribunal a quo assim não sucede, existindo título executivo e a existência do título faz presumir que o crédito existe e que está por cumprir, não podendo os embargos deixar de improceder.
Analisemos.
Concluiu o Tribunal a quo, na livre subsunção jurídica dos factos da causa (não tendo a decisão de facto sido objeto de recurso e nunca se podendo impor ao julgador que siga uma determinada orientação por ter determinado a junção de um documento), que a livrança exequenda reúne os requisitos formais para fundar a ação executiva cambiária, concluindo nenhumas consequências poder ter para a execução a não comunicação e a não informação à ora embargante do contrato de adesão que constitui a relação subjacente, face à existência e validade  da obrigação cambiária, analisando “o título é condição suficiente da ação executiva, na medida em que na sua presença segue-se de imediato a execução, sem ser necessário indagar previamente sobre a real existência do direito a que se refere” e sendo o título dado à execução uma livrança, refere:

“A livrança é um título de crédito à ordem, pelo qual alguém se compromete para com outrem a pagar-lhe determinado montante em data determinada. Trata-se de promessa de pagamento que o emitente deve cumprir.

No caso presente provado ficou que a embargante subscreveu a livrança em causa nos presentes autos, comprometendo-se, assim, a proceder ao seu pagamento na data do seu vencimento.

A embargante assinou a livrança em causa nos autos em branco.

Nos termos do disposto no art.º 77º, parágrafo 2º da L.U.L.L., é admitida a livrança em branco, remetendo-se para o art.º 10º do citado diploma legal.

O pacto de preenchimento é o ato pelo qual as partes ajustam os termos e deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo de vencimento, a sede de pagamento, a estipulação de juros, etc.

O acordo de preenchimento poderá ser expresso ou tácito”.

Analisando o regime das cláusulas contratuais gerais[6] e descendo ao caso, refere o Tribunal a quo:

Aquilo que a embargante/avalista pretende invocar do contrato de abertura de crédito em conta corrente, celebrado na sua maior parte por adesão – estando por isso em causa cláusulas contratuais gerais (art. 1/1 da LCCG) -, é o facto de o Banco não ter cumprido os deveres de comunicação e de informação previstos nos arts. 5 e 6 da LCCG. Daí decorreria a consequência da exclusão de todas as cláusulas contratuais (art. 8/a-b da LCCG).

Mas, desde logo, há que fazer uma restrição evidente: os avalistas que tenham intervindo no contrato – o que não é o caso - só se podem queixar da falta de cumprimento daqueles deveres relativamente às cláusulas do contrato que têm a ver com a emissão do aval, os pressupostos do preenchimento da livrança e o exercício do direito contra eles (e, por aí, com o incumprimento do contrato). O resto do contrato não tem nada a ver com eles e não lhes tem de ser comunicado nem informado.

Nos presentes autos a embargante apenas põe em causa a validade do contrato no âmbito do qual se celebrou o pacto de preenchimento, por não lhe ter sido comunicado e explicado o conteúdo das suas cláusulas contratuais gerais.

Porém, a embargante não outorgou, nem interveio no referido contrato, pelo que não tinha o seu conteúdo que lhe ser explicado, mas outorgou o pacto de preenchimento, e esse, não foi posto em causa.

De resto, a embargante sabia que se tratava da concessão de um crédito para a sociedade gerida pelo seu então marido, tanto mais que alega que o Banco exigia, para a concessão desse crédito, que ela avalizasse também a livrança, por ser casada com o mutuário.

Para a questão do cumprimento, diz Carolina Cunha, Manual de letras e livranças, 2016, Almedina, pág. 222: “[…] quem subscreve e entrega uma letra ou livrança em branco, no instante em que celebra um contrato de financiamento não poderá, em princípio, deixar de possuir uma noção sumária de que está com esse comportamento a assumir uma garantia de cumprimento do contrato, a qual poderá, portanto, ser accionada (através do preenchimento do título) em caso de incumprimento. Sendo assim, como é possível sustentar que a cláusula que, afinal, se limita a reproduzir graficamente semelhante conteúdo de vontade, não foi comunicada ao aderente?”

Também assim, com mais desenvolvimento, a mesma autora nas Letras e livranças, citado, págs. 622-625, em que lembra que “sempre seria difícil alegar que não foi comunicada a cláusula que prevê um acto que efectivamente se praticou.” (nota 250 da pág. 625).

Daí que não se tenha por incumprido o dever de comunicação e informação relativamente ao pacto de preenchimento da livrança, desde logo, porque nem sequer foi invocado”.

E bem concluiu o Tribunal a quo pela existência da responsabilidade da embargante/avalista, referindo:

“A embargante invoca também que prestou o aval por ter sido uma exigência do Banco para a concessão do crédito, por se encontrar casada com o executado BB, de quem, aliás, se encontrava separada de facto desde 2012 e de quem se veio a divorciar em 2018, sendo que nunca retirou qualquer proveito do crédito que reverteu exclusivamente a favor da sociedade gerida pelo executado e que, após o divórcio, passou para a titularidade dele.

Importa perceber o alcance da obrigação assumida pela embargante, enquanto avalista, o que passa pela definição da natureza, função e finalidade do aval.

O aval é o ato pelo qual um terceiro ou signatário da letra ou livrança garante o pagamento da mesma por parte de um dos subscritores (cfr. arts. 30 e 77 da L.U.L.L.). Constitui, por isso, um verdadeiro ato cambiário, uma garantia cambial de natureza comercial, em que o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele avalizada.

O fim próprio do aval, a sua função específica, é garantir ou caucionar a obrigação de certo obrigado cambiário, dando origem a uma obrigação materialmente autónoma, pelo que o dador de aval não se responsabiliza pela pessoa garantida, antes assumindo a responsabilidade abstrata e objetiva pelo pagamento do valor indicado na letra ou na livrança (Cfr., Abel Delgado, “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, Anotada”, 7ª ed., págs. 167 a 176, e Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial”, vol. III, 1975, págs. 205 a 219).

O aval não tem, assim, aplicação nos contratos em geral, destinando-se antes a garantir títulos de crédito.

Acresce que o avalista não pode entender-se como sinónimo de fiador.

Com efeito, existem diferenças relevantes entre ambos, exatamente decorrentes da natureza cambiária do primeiro. Assim, por exemplo, a fiança tem de ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal (art. 628 do C.C.), enquanto o aval pode ser em branco ou incompleto, resultando da mera assinatura do dador aposta em certo lugar do título (art. 31 da L.U.L.L.), o fiador goza, em regra, do benefício da excussão (art. 638 do C.C.), enquanto o avalista responde, com os outros firmantes do título, solidária e subsidiariamente, perante o portador (art. 47 da L.U.L.L.), o fiador pode contratar especiais condições ou prazo de validade da fiança (art. 631 do C.C.), o que não acontece no aval, e pode requerer a sua liberação em determinados casos legalmente previstos (art. 648 do C.C.), sem que o possa fazer o dador de aval.

O avalista assume uma obrigação direta e pessoal, não com o do seu avalizado, e portanto responde, direta e pessoalmente, perante o credor cambiário, pelo pagamento do título e não pelo cumprimento deste. O avalista não assegura que o avalizado pagará, mas sim que o título será pago.

É perante o tomador, e não perante o avalizado, que o avalista assume a obrigação de pagar o crédito cambiário.

Conforme se acentua no referido AUJ nº 4/2013: “(…) A garantia é prestada para garantia do direito cambiário e não para pagamento da obrigação creditícia que foi incorporada no título. O aval não cumpre uma garantia da obrigação do avalizado mas sim uma garantia de satisfação do direito de crédito cambiário que o título incorpora. (…).” (sublinhado nosso)

E ainda, mais adiante: “(…) O avalista não é responsável ou não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado mas tão só ao pagamento da quantia titulada no título de crédito.

A obrigação firmada pelo avalista é perante a obrigação cartular e não perante a relação subjacente.(…).”

O mesmo é dizer que o aval constitui uma garantia dada pelo avalista à obrigação cambiária e não à relação extracartular.

Deste modo, ao prestar o aval, a embargante garantiu o pagamento da livrança, cujo preenchimento autorizou nos termos constantes do contrato de preenchimento que subscreveu e não pôs em causa, sendo irrelevante que tenha retirado ou não proveito do crédito ou se tenha divorciado, pois, como avalista, apenas tem a obrigação de garantir o pagamento do título de crédito e não o direito de dele beneficiar.

Tão pouco os factos alegados pela embargante configuram qualquer situação que seja subsumível em qualquer um dos vícios da vontade previstos nos artigos 240º a 257º do Código Civil e determine a anulabilidade do aval” (negrito nosso).


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No caso, existindo autorização de preenchimento da livrança, não tendo sido alegados factos a densificar vícios da vontade, como referido, ou qualquer circunstância suscetível de impedir, modificar ou extinguir o direito da exequente, bem foram os embargos julgados improcedentes.
Com efeito, bem conclui o Tribunal a quo pela existência de título e bem entendeu ter a exequente direito de reclamar o pagamento, resultando tal direito do título executivo (livrança), sendo que a causa de pedir da execução é o facto jurídico nuclear da obrigação, com raiz no título.
Existe, pois, título executivo, do qual decorre a obrigação cartular e não vem alegada no requerimento inicial dos embargos de executado (para ser objeto de prova) matéria suscetível de configurar defesa por exceção, sendo a relação subjacente irrelevante.
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- Do ónus de alegação e prova de factos a densificar de exceções perentórias.
Quanto à questão do ónus de alegação e da prova dos fundamentos dos embargos, pacífico é, na doutrina e jurisprudência, que recai sobre o embargante o ónus de alegar factos de onde resulte o preenchimento abusivo ou outra circunstância a integrar defesa por exceção e o ónus de os demonstrar.
Assim tivemos já, também, oportunidade de decidir e de tomar posição, como aconteceu no Ac. desta Relação de 19/12/2023, proc. nº 5168/22.2T8MAI-A.P1, em que a ora Relatora foi adjunta, com o sumário: “1. A entrega de títulos de crédito “em branco”, subscritos pelos devedores, mas sem que neles seja aposta qualquer quantia ou data de vencimento, é prática comum nas relações comerciais valendo como uma “garantia imprópria” de pagamento de obrigações emergentes de contratos e/ou do seu incumprimento; 2. O subscritor de livrança em branco fica sujeito a ver-se responsabilizado pela aposição nesse título de um valor e de uma data a que previamente deu o seu acordo, nos termos do pacto celebrado com vista ao seu preenchimento; 3. Apresentado à execução um tal título de crédito, o ónus de alegação e prova de um preenchimento abusivo, violador do acordo nesse sentido firmado e, portanto, passível de censura ético jurídica, é do embargante já que se trata de facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito”.
Neste Acórdão se analisou do direito aplicável à execução de títulos de crédito e da questão do preenchimento de livrança em branco, decidindo-se, com inteira pertinência para o caso sub judice (citando-se as respetivas notas, no local próprio, para melhor perceção):

tal título de crédito consubstancia título executivo sem necessidade de invocação de relação subjacente nos termos do previsto no artigo 703º, número 1 c), a contrario, do Código de Processo Civil e artigos 17º e 75º a 78º da Lei Uniforme das Letras e Livranças.

Assim, fundada a execução em título de crédito, estava o exequente dispensado de invocar qualquer relação subjacente à sua emissão valendo a mesma como demonstrativa de que foi estabelecida uma relação cambiária que foi, aliás, a causa e pedir da execução.

Era, porém, lícito à Embargante, enquanto obrigada cambiária, invocar tal relação subjacente nos termos do previsto no artigo 731º do Código de Processo Civil, que lhe permite opor-se à execução com os mesmos fundamentos que podia discutir o seu débito em ação declarativa.

Tal oposição, que agora, em sede de recurso, se restringe ao não cumprimento do acordo de preenchimento/preenchimento abusivo, sustenta-se na alegação de que a Exequente apôs nesse título - que lhe fora entregue em branco para garantia de cumprimento de contrato que ambas celebraram -, quantia que não lhe é devida.

A entrega de títulos de crédito “em branco”, subscritos pelos devedores, mas sem que neles seja aposta qualquer quantia ou data de vencimento, é prática comum nas relações comerciais valendo como uma “garantia imprópria” de pagamento de obrigações emergentes de contratos e/ou do seu incumprimento.

Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte[7] referem-se a essa prática afirmando: “É certo que a letra em branco e, mais vulgarmente, a livrança em branco não são usadas tão-só como meios de caução; com alguma frequência recorre-se a estes títulos de crédito para assegurar o cumprimento de uma obrigação, só que, em tal caso, eles não consubstanciam uma garantia especial”

Carolina Cunha[8], afirma, a propósito que “A utilização do título em branco compreende-se como uma prestação de garantia num contexto de relativa incerteza. Supõe, normalmente, uma relação fundamental que comporta um direito de crédito ainda não inteiramente definido (porque falta determinar o respectivo montante, ou porque se aguarda o seu vencimento), ou no seio da qual se prevê como apenas eventual a constituição de um direito de crédito. Ocorre, sobretudo, no âmbito de relações duradouras com prestações pecuniárias como expediente para fazer face ao espectro do incumprimento. Ou seja, determinante do recurso à letra em branco é tanto o carácter ilíquido da dívida como o seu carácter futuro e incerto”.

Assim, é imprescindível que seja celebrado um acordo para preenchimento da livrança em branco que, nas palavras de Romano Martinez e Fuzeta da Ponte[9], “(…) corresponde a um protocolo complementar ou acessório, também designado por side letters, nos termos do qual se pretende regulamentar o contrato, dito base (no caso concreto a livrança em branco”.

O subscritor de livrança em branco fica, assim, nos termos do pacto celebrado com vista ao seu preenchimento, sujeito a ver-se responsabilizado pela aposição nesse título de um valor e de uma data a que previamente deu o seu acordo.

Caso o título tenha sido preenchido abusivamente poderá socorrer-se do regime do artigo 10º da Lei Uniforme das Letras e Livranças (por via da remissão do seu artigo 77º) de que decorre, a contrario, que se o título tiver sido preenchido contrariamente aos acordos realizados, pode a inobservância dos mesmos ser oposta ao portador que tenha cometido uma falta grave.

Regressando às palavras de Carolina Cunha[10] “A solução do art. 10º LU pode, portanto, resumir-se deste modo: quem voluntariamente emite uma letra incompleta suporta o risco inerente a essa sua atuação – o risco da inserção de um conteúdo não coincidente com a sua vontade – a menos que se verifique um particular desmerecimento na posição do portador-adquirente por a sua atuação ser passível de um juízo de censura ético-jurídica.”

Provou-se, no caso, que a subscrição da livrança pela Recorrente foi contemporânea de um acordo de preenchimento e foi emitida precisamente para ser preenchida caso se viesse a verificar incumprimento das suas obrigações caso em que o portador poderia preencher tal título com um valor correspondente “(…) ao saldo em dívida de capital, juros e demais encargos e despesas emergentes do presente contrato (…)

Assim, o ónus de alegação e prova de um preenchimento abusivo, violador do acordo nesse sentido firmado e, portanto, passível de censura ético jurídica é da embargante porquanto se trata de  facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito – cfr. artigos  342º, número 2 e 378º, do Código Civil, e 571º, n.º 2, e 731º, do Código de Processo Civil.[11][12].
Decorre dos factos provados que a livrança em causa foi entregue em branco e, embora quando emitida se não mostrasse completa, a lei permite seja, posteriormente, completada (validamente) em conformidade com o acordado, nos termos do denominado pacto de preenchimento.
  O acordo de preenchimento é uma convenção extracartular, não sujeita a forma, em que as partes ajustam os termos em que deverá ser definida a obrigação cambiária, como seja o montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a data do pagamento, devendo o preenchimento do título ser efetuado em conformidade com o convencionado, sob pena de violação do pacto de preenchimento.
Uma vez completado o preenchimento do título e colocado este em circulação, cabe distinguir o domínio das relações mediatas do domínio das relações imediatas e, no âmbito destas, é lícito invocar a violação do pacto de preenchimento, embora recaia sobre o obrigado cambiário o ónus da prova dos factos que a densificam (cfr. artigos 342º n.º 2 e 378º do Código Civil e artigos 10º e 17º da LULL, a contrario)[13].
Como se analisou no Ac. RG de 17/12/2018, proc. nº 337/17.0T8PTL.G1, acima citado, em que a ora relatora foi adjunta, citando-se, também, as respetivas notas para melhor perceção:

“O aval pode ser prestado por um terceiro ou por um signatário da letra ou da livrança (art. 30º/2 e 77º da LULL) e tem de ser prestado a favor de um dos obrigados, sem prejuízo de não constar do aval a designação daquele por quem é dado, se considerar prestado a favor do sacador da letra (art. 31º/4 da LULL) e, tratando-se de livrança, a favor do subscritor desta (art. 77º, parte final, da LULL).

O aval é escrito na letra ou na livrança ou numa folha anexa e exprime-se pelas palavras “bom por aval” ou qualquer outra fórmula equivalente e a simples assinatura na face anterior da letra, que não seja a do sacador ou do sacado, vale como aval (art. 31º da LULL), ou, no caso de livrança, a simples aposição de assinatura na face anterior desta, que não seja a do subscritor, vale como aval (art. 77º da LULL).

Nos termos do art. 32º da LULL, o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, o que significa que a responsabilidade do avalista se determina pela do avalizado, sendo esta sua responsabilidade não subsidiária, mas sim solidária e cumulativa[14].

Acresce que a posição do avalista, como a de qualquer interveniente na letra ou na livrança, é também autónoma, posto que o aval subsiste mesmo que o ato do avalizado seja nulo por qualquer razão que não seja um vício de forma (art. 32º/2 da LULL), pelo que com a prestação do aval, o avalista passa a ser um devedor cambiário, sujeito de uma obrigação cambiária, embora dependente, no plano formal, da do avalizado (art. 47º e 77º da LULL), essa sua obrigação é materialmente autónoma em relação à do avalizado, de modo que a sua obrigação se mantem mesmo no caso em que a obrigação garantida seja nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.

A autonomia do aval traduz-se assim, “num regime segundo o qual o avalista é responsável pelo pagamento da obrigação cambiária própria, como avalista, que se define pela do avalizado, mas que vive e subsiste independentemente desta. Assim, o avalista do sacador é responsável mesmo que a assinatura do sacador seja falsa ou de uma pessoa fictícia (art. 7º da LULL), porque o avalista garante, não só que o sacador pagará, mas também a sua genuinidade”[15]. Ele responde, mesmo que o avalizado não deva responder. A garantia dada pode funcionar separadamente da obrigação deste, o que significa que “o avalista não está só em posição paralela à do avalizado; está numa posição de todo autónoma em relação a este”[16].

Os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador, o mesmo acontecendo com o subscritor, endossantes ou avalistas de uma livrança (arts. 47º/1 e 77º da LULL), tendo o portador da letra ou da livrança o direito de acionar todas estas pessoas, individual ou coletivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que elas se obrigaram”[17].

Resulta, pois, assim, que: “Sendo o título executivo uma livrança, quem nele se obriga, mediante a aposição da respetiva assinatura, assume a respetiva obrigação cambiária. IV- Obrigação esta que se caracteriza pela sua natureza abstrata e formal/literal, independente de qualquer relação subjacente, sem prejuízo de no âmbito das relações imediatas esta relação subjacente poder ser discutida. V- Encontram-se no âmbito das relações imediatas aqueles que de forma direta se encontram ligados através da relação subjacente. VI- Considera-se que o avalista que teve intervenção direta no contrato subjacente à emissão do título que avaliza e/ou no pacto de preenchimento deste último, se situa no âmbito das relações imediatas e como tal poderá discutir com o credor/portador as exceções derivadas de tal relação subjacente ou pacto de preenchimento. VII- Enquanto factos impeditivos ou extintivos do direito do portador do título cambiário/exequente, cabe ao embargante alegar e fazer prova desses mesmos factos”[18].
Mantém-se, pois, a fundamentação que o Tribunal de 1ª Instância desenvolveu na decisão que proferiu.
E, na verdade, não logrou a embargante alegar e provar qualquer factualidade que fundamente oposição à execução por meio de embargos de executado, sendo certo que sobre si impendiam os respetivos ónus da alegação e de prova de fundamentos de oposição à execução por aquele meio.
Com efeito, sendo os embargos de executado uma verdadeira ação declarativa, uma contra ação do executado à ação executiva do exequente, com vista a extinguir a execução ou a obstar à produção dos efeitos do título executivo, é sobre o embargante que recai o ónus de alegação e prova da inexistência de causa debendi ou do direito do exequente, de factos que, em processo declarativo, constituiriam matéria de exceção, densificando causa impeditiva, modificativa ou extintiva daquele direito (art. 342º, nº2, do CC). Neste sentido cfr, entre muitos disponíveis in dgsi.pt, Ac. RL de 13/11/2008, CJ, 2008, 5º, 84.
E não alegando e provando têm os embargos de improceder.

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- Da questão nova e da preclusão intraprocessual dos meios de defesa.

Vindo a embargante alegar, em sede de recurso, que a assinatura por si aposta no título dado à execução/livrança, foi alcançada num contexto de estado de intimidação, privada de liberdade de decisão e receio de retaliação por parte do co-executado e ex-marido (em caso de recusa), cumpre deixar claro que o recurso se destina a impugnar uma concreta decisão judicial e tal questão, suscitada nas alegações de recurso, é uma questão nova que, por isso, não pode ser apreciada.
Com efeito, salvo se de conhecimento oficioso, não é admissível ao recorrente suscitar, em sede de recurso, questões não colocadas perante o tribunal recorrido. Os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, estando este tribunal impedido de apreciar questões novas, não colocadas e resolvidas pelo tribunal recorrido.
Verifica-se que a apelante não aduziu no processo a questão dos vícios da vontade, estando-se perante argumentação nova e, por não se tratar de questão de conhecimento oficioso, não pode ser conhecida por este tribunal de recurso.
Bem se conclui, pois, pela existência do direito de crédito da exequente/embargada sobre a executada/embargante, nenhum facto impeditivo, modificativo ou extintivo da obrigação tendo, válida e eficazmente, sido alegado pela embargante, sendo que o afirmado na petição de embargos não é suscetível de gerar o efeito pretendido e os autos só poderiam prosseguir para prova de factos que tivessem sido alegados no requerimento de embargos de executado, nunca para prova de factos afirmados ex novo nas alegações de recurso.
 Estes não podem ser considerados dada a preclusão do direito de defesa operada no processo.
Com efeito, por força do princípio da concentração da defesa, toda a defesa que o executado pretenda apresentar no processo (factos pretéritos), todos os factos a densificar fundamentos de embargos, tem de ser apresentados no requerimento inicial de embargos de executado, com o efeito de preclusão intraprocessual dos meios de defesa - preclusão operada no processo dos factos não alegados, ficando definitivamente precludida nos autos a faculdade de invocação de novo meio de defesa por exceção perentória -, pelo que outros meios de defesa ulteriormente apresentados nos autos têm de ser desatendidos.
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Assim, nenhum erro de julgamento se verifica, não havendo contradição entre a decisão de facto e a de mérito, antes os factos provados conduzem, lógica e necessariamente, à subsunção jurídica efetuada.

O contrato de crédito, que servindo para comprovar a alegação da Recorrente e melhor enquadrar a facticidade do caso, nenhuma outra qualificação permite, não tendo a embargante outorgado o contrato, apenas tendo dado o aval e subscrito o pacto de preenchimento da livrança, nenhum fundamento existindo para a desresponsabilizar da obrigação cambiária/cartular que assumiu.
Destarte, nada tendo sido alegado, no requerimento de embargos de executado, e, consequentemente, podendo ser demonstrado, a impedir, a modificar ou a extinguir a obrigação cartular, impõe-se, na improcedência dos embargos, a improcedência do recurso.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer normativo invocado pelo apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.


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2. Da responsabilidade tributária.

As custas do recurso são da responsabilidade da recorrente dada a total improcedência da sua pretensão recursória (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).


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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.


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Custas pela apelante – art. 527º, nº1 e 2, do CPC –, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

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Porto, 4 de março de 2024
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Teresa Fonseca
José Eusébio Almeida

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[1] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 3ª Edição, Coimbra Editora, pág 33.
[2] Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 2016, Almedina, pág 43-44.
[3] Ibidem, pág 48.
[4] Oliveira Ascensão, “Direito Comercial”, vol. III Títulos de Créditos, Lisboa, 1992, págs. 237 e 238.
[5] Ac. RG de 17/12/2018, proc. nº 337/17.0T8PTL.G1 (de que se citaram as respetivas notas no local próprio).
[6]Como sendo “conjunto de proposições pré – elaboradas que proponentes ou destinatários indeterminados se limitam a propor ou aceitar respetivamente – cfr. Acórdão do STJ de 24.03.2011, com texto integral in www.dgsi.pt.
Devem ser recebidas em bloco por quem as subscreve ou aceite, pois não há a possibilidade de modelar o seu conteúdo, introduzindo, nelas, alterações.
Deste modo, as cláusulas contratuais gerais, que se encontram submetidas ao regime fixado pelo DL nº 446/85, de 25/10, (doravante designada por LCCG), “consistem em situações típicas do tráfego negocial de massas em que as declarações negociais de uma das partes se caracterizam pela pré – elaboração, generalidade e rigidez. Efetivamente, está-se nesses casos perante situações em que uma das partes elabora a sua declaração negocial previamente à entrada em negociações (pré – elaboração), a qual aplica genericamente a todos os seus contraentes (generalidade), sem que a estes seja concedida outra possibilidade que não seja a da sua aceitação ou rejeição, estando-lhes por isso vedada a possibilidade de discutir o conteúdo do contrato (rigidez)” - Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume I, 8ª edição, página 32.
Relativamente à comunicação à outra parte, especifica a lei que mesma deve ser integral (artigo 5º, n.º 1) e ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária, para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento efetivo por quem use de comum diligência (artigo 5º, n.º 2).
O grau de diligência postulado por parte do aderente, e que releva para efeitos de calcular o esforço posto na comunicação, é o comum (artigo 5º, n.º 2, in fine).
O ónus da prova da comunicação adequada e efetiva cabe à parte que utilize as cláusulas contratuais gerais (artigo 5º, n.º 3), sendo que, caso esta exigência de comunicação não seja cumprida, as cláusulas contratuais gerais consideram-se excluídas do contrato singular (artigo 8º, alínea a).
Para além da exigência de comunicação adequada e efetiva, surge ainda a exigência de informar a outra parte, de acordo com as circunstâncias, de todos os aspetos compreendidos nas cláusulas contratuais gerais cuja aclaração se justifique (artigo 6º, n.º 1) e de prestar todos os esclarecimentos razoáveis solicitados (artigo 6º, n.º 2).
Caso não tenha sido cumprida a exigência de informação, em termos de não ser de esperar o conhecimento efetivo pelo aderente, as cláusulas contratuais gerais consideram-se excluídas dos contratos singulares (artigo 8º, alínea b).”.
[7] Garantias de Cumprimento, Almedina, 2ª edição, página 41.
[8] Manual de Letras e Livranças, Almedina, págs. 165/166.
[9] Obra e página citadas.
[10] Obra citada, página 179.
[11] Neste sentido, entre muitos outros e a título meramente exemplificativo, o acórdão desta secção de 11-05-2020, no processo 56/19.2T8LOU-B.P1 e o do Supremo Tribunal de Justiça de 11-11-2004 no processo 04B43453 ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt
[12] Ac. da RP de 19/12/2023, proc. nº 5168/22.2T8MAI-A.P1
[13] Cfr. Acs. do STJ de 9/7/15, proc. 1306/12, de 20/5/2015, proc. 448/11, de 13/1/2015, proc. 4813/11, de 13/11/2018, proc. 2272/05, de 28/9/2017, proc. 779/14 e de 12/10/2017, proc. 1097/14, todos citados in António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 88 e seg.
[14] Pedro Pais de Vasconcelos, “Direito Comercial, Títulos de Créditos”, Associação Académica da Faculdade de Lisboa, 1990, pág. 126.
[15] Pedro Pais de Vasconcelos, ob. cit., págs. 127 e 128.
[16] Oliveira Ascensão, ob. cit., págs. 170 e 171.
[17] Ac. RG de 17/12/2018, proc. nº 337/17.0T8PTL.G1(Relator: José Alberto Moreira Dias).
[18] Ac. TRP de 2/12/2019, proc. nº. 8/12.3TBFLG-A.P2.