IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE FACTO IRRELEVANTE
AÇÃO DE DIVÓRCIO
RUTURA DEFINITIVA DO CASAMENTO
Sumário

I – Falecendo a possibilidade de uma qualquer alteração da decisão factual poder ter alguma projeção na decisão da matéria de direito em sentido favorável ao recorrente, deixa de ter justificação a reapreciação da matéria de facto por si requerida.
II – Os factos referidos como fundamento de divórcio sob a alínea d) do art. 1781º do C. Civil devem ser externamente apreensíveis e apresentar uma gravidade equivalente à das constelações fácticas descritas nas alíneas anteriores.

Texto Integral

Processo nº1842/22.1T8MTS.P1
(Comarca do Porto – Juízo de Família e Menores de Matosinhos – Juiz 1)



Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Teresa Maria Sena Fonseca
2º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida





Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


I Relatório

AA intentou ação de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge contra BB, pedindo que se declare a dissolução, por divórcio, do casamento entre ambos celebrado em 5-10-2005.
Alegou para tal factualidade que em seu entender integra violação grave e reiterada dos deveres conjugais de respeito, cooperação e assistência e, ainda, que não partilha leito com o réu e que mantém o firme propósito de não reatar qualquer relacionamento com ele, do que decorre a rutura definitiva do seu casamento.
Teve lugar a legal tentativa de conciliação.
O réu, notificado para contestar, não deduziu contestação.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador e subsequente despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Procedeu-se a julgamento, tendo na sua sequência sido proferida sentença que julgou a ação procedente e decretou o divórcio.

De tal sentença veio o réu interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. A AUTORA, NAS SUAS DECLARAÇÕES DE PARTE, DESMENTIU O ALEGADO NA PETIÇÃO INICIAL DE QUE TINHA DEIXADO DE PARTILHAR O LEITO COM O RÉU EM AGOSTO DE 2021 E QUE LHE TIVESSE COMUNICADO A INTENÇÃO DE SE DIVORCIAR EM OUTUBRO DE 2021.

II. A SENTENÇA RECORRIDA DEU COMO PROVADO O ALEGADO NA PETIÇÃO INICIAL, O QUE É CONTRARIADO PELA PRÓPRIA AUTORA, RAZÃO PELA QUAL O FACTO SETE DEVE SER DADO COMO NÃO PROVADO.

III. O MESMO OCORRE COM O FACTO OITO QUE A AUTORA IDENTIFICA NA PETIÇÃO INICIAL COMO OCORRIDO EM OUTUBRO, O QUE DESMENTE NAS SUAS DECLARAÇÕES DE PARTE E COMO A SENTENÇA RECORRIDA DEU COMO PROVADO O ALEGADO NA PETIÇÃO INICIAL, PELO QUE, TAMBÉM O FACTO OITO, DEVE SER DADO COMO NÃO PROVADO.

IV. NESTE CASO ACRESCE AINDA, QUE A AUTORA NÃO COMUNICOU TAIS FACTOS AO PROCESSO CRIMINAL REFERIDO NO FACTO 16, O QUE É INCOMPREENSÍVEL E DEMONSTRA QUE O FACTO NUNCA OCORREU SENÃO TERIA SIDO PARTICIPADO AO PROCESSO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICO, UMA VEZ QUE CONSTITUI UM ELEMENTO BASE DESSE CRIME.

V. A TESTEMUNHA CC, NAS PALAVRAS DA PRÓPRIA MERITÍSSIMA JUIZ “A QUO” NÃO “AJUDA MUITO” NA ELUCIDAÇÃO DOS FACTOS, PELO QUE O SEU DEPOIMENTO NÃO TEM QUALQUER UTILIDADE PROCESSUAL, NOMEADAMENTE O DE COMPLEMENTAR AS DECLARAÇÕES DE PARTE DA AUTORA.

VI. ABALADA IRREMEDIAVELMENTE, COMO ESTÁ A CREDIBILIDADE DAS DECLARAÇÕES DE PARTE DA AUTORA, E TENDO O DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA IDÊNTICA QUALIDADE PROBATÓRIA, NÃO EXISTE SUPORTE PARA DAR COMO PROVADO O FACTO DEZ, QUE DEVE SER DADO COMO NÃO PROVADO.

VII. A AUTORA NA SUA PETIÇÃO INICIAL NÃO CONCRETIZA O CONTEÚDO DAS MENSAGENS AMEAÇADORA QUE TERÁ RECEBIDO ENVIAS PELO RÉU, E A TESTEMUNHA CC, NUM PRIMEIRO MOMENTO, TAMBÉM NÃO REFERE O CONTEÚDO DAS MESMAS.

VIII. SÓ NUM SEGUNDO MOMENTO É QUE A TESTEMUNHA CC ATIRA QUE AS AMEAÇAS ERA À INTEGRIDADE FÍSICA DA AUTORA, NUMA TENTATIVA DESESPERADA DE SEGURAR O SEU DEPOIMENTO, NOVAMENTE SE CONCLUINDO, COMO EM IV, POIS TAIS MENSAGENS TAMBÉM NUNCA FORMA COMUNICADAS AO PROCESSO CRIMINAL.

IX. ASSIM, O FACTO ONZE TAMBÉM DEVE SER DADO COMO NÃO PROVADO, ATÉ PORQUE A AUTORA NÃO JUNTOU AOS AUTOS PROVA OBJECTIVA DE TAIS MENSAGENS EXISTIAM, COMO PRINT SCREEN AO ÉCRAN DO TEU TELEFONE OU FOTOGRAFIAS AO MESMO, POR EXEMPLO.

X. NO QUE CONCERNE AOS FACTOS DOZE E CATORZE, TENDO EM CONTA O QUE SE ACIMA SE CONCLUIU SOBRE O DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA CC, NÃO É CREDÍVEL QUE TENHA ASSISTIDO A QUAISQUER DISCUSSÕES, QUASE QUE COMO DE UM CONVITE SE TRATASSE, PELO QUE OS MESMOS DEVEM SER DADO COMO NÃO PROVADOS.

XI. RELATIVAMENTE AO FACTO TREZE, SUBSCREVENDO O TEOR DA CONCLUSÃO ANTERIOR, REFERE-SE AINDA QUE A TESTEMUNHA DD REPORTOU APENAS UMA OCASIÃO EM QUE O RÉU TENHA CONFRONTADO A AUTORA, AO PASSO QUE NESTE FACTO REFEREM-SE MÚLTIPLAS OCORRÊNCIAS, COM VÁRIAS PESSOAS.

XII. COMO NÃO EXISTE PROVA DE MÚLTIPLAS OCORRÊNCIAS, COM VÁRIAS AMIGAS DA AUTORA, O FACTO TREZE DEVE SER DADO COMO NÃO PROVADO.

XIII. O FACTO DEZASSETE DEVE SER REMOVIDO DA MATÉRIA APURADA POIS TRATA-SE DE UMA CONCLUSÃO E NÃO DE UM FACTO PROVADO

XIV. AS DECLARAÇÕES DE PARTE DA AUTORA NÃO SÃO CONFIRMADAS POR NENHUM MEIO DE PROVA E ATENTA A VERSÃO APRESENTADA PELA MESMA EM PETIÇÃO INICIAL, TERIAM DE EXISTIR VÁRIAS TESTEMUNHAS DA PERSEGUIÇÃO, SERIA FÁCIL COMPROVAR AS MENSAGENS, POR EXEMPLO.

XV. A DOUTA SENTENÇA QUIS PROTEGER AS DECLARAÇÕES DE PARTE DA AUTORA NÃO LEVANDO À MATÉRIA NÃO PROVADO DIVERSOS FACTOS ALEGADOS PELA AUTORA NA SUA PETIÇÃO INICIAL, MAS DESMENTIDOS POR ESTA NAS SUAS DECLARAÇÕES DE PARTE COMO OS FACTOS ALEGADOS EM DEZ, ONDE, DOZE, TREZE, CATORZE, VINTE, VINTE E SETE E CINTE E OITO DA PETIÇÃO INICIAL, O QUE SE REQUER.

XVI. AS DECLARAÇÕES DE PARTE DA AUTORA NÃO MERECEM QUALQUER CREDIBILIDADE PROBATÓRIA, O QUE FARÁ, NECESSARIAMENTE, SOÇOBRAR OS PRESENTES AUTOS.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), são as seguintes, por ordem lógica, as questões a tratar:
a) – apurar das alterações à matéria de facto da sentença recorrida propugnadas pelo recorrente;
b) – apurar se, por via da pretendida alteração da matéria de facto ou independentemente dela, ocorre fundamento para o divórcio.

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II – Fundamentação

É a seguinte a matéria de facto constante da sentença recorrida:
Factos provados
1. A Autora, AA, e o Réu, BB, contraíram entre si casamento católico no dia 05 de Outubro de 2005, sem convenção antenupcial, facto registado no Assento de Casamento nº ...13 da Conservatória do Registo Civil de Matosinhos.
2. No dia ../../2004 nasceu EE, registado como filho da autora e do réu.
3. No dia 20 de abril de 2014 nasceu FF, registada como filha da autora e do réu.
4. Por sentença homologatória proferida a 25 de maio de 2022 no apenso A), foram reguladas as responsabilidades das crianças.
5. O pai a 8 de julho de 2022 requereu alteração das responsabilidades parentais, ainda pendente.
6. Autora e réu passaram a discutir frequentemente.
7. Autora decidiu então, em agosto de 2021, passar a dormir no quarto da filha e em outubro do mesmo ano comunicou ao réu a sua intenção de se divorciar.
8. O réu após outubro de 2021 passou a inspecionar permanente e diariamente o telemóvel e a carteira da Autora.
9. Após, as discussões agravaram-se em casa e em frente dos filhos.
10. O réu persegue a autora, rondando o seu local de trabalho.
11.O réu envia sms para o telemóvel da autora com conteúdos ameaçadores.
12. Colocou um localizador no carro usado pela Autora, obrigando-a a comprovar onde se encontra, obrigando-a a sair da casa das amigas a fim de comprovar se está mesmo no local que lhe indicou.
13. O réu passou a chamar a Autora de “CABRA”, “PUTA”, “VACA” mesmo em frente aos filhos.
14. O réu bateu na autora em frente dos filhos de ambos de tal modo que o filho mais velho – EE – teve de se interpor entre a autora e o reu, a fim de proteger a mãe,
15. A autora por tais factos apresentou queixa a 15 de Março de 2022 que deu origem ao processo nº 239/22.8PRPRT, foi o réu no dia 21.04.2022 sujeito a interrogatório judicial tendo-lhe sido as medidas de coação, além do TIR, de:
- obrigação de não permanecer na residência de habitação da requerida progenitora, sita na Rua ..., Matosinhos;
- obrigação de não contactar com a requerida progenitora por qualquer meio, e de não se aproximar da mesma, da sua residência, e do seu local de trabalho a distância inferior a 200 metros, sem prejuízo do seu percurso diário no exercício da profissão e sem prejuízo do exercício das responsabilidades parentais; mediante fiscalização através de meios técnicos de controlo à distância.
16. No âmbito do referido Processo crime foi a 12 de outubro de 2022 deduzida acusação contra o réu para julgamento perante tribunal coletivo com base nos seguintes factos:

Da Acusação

O Ministério Público acusa, nos termos do disposto no artigo 283.º do Código de Processo Penal, para julgamento em Processo Comum e perante o Tribunal Coletivo:

BB, filho de GG e de HH, natural de ..., nascido a ../../1973, casado, residente na Rua ..., ..., ..., Matosinhos, titular do cartão de cidadão n.º ...25, porquanto indiciam suficientemente os autos que,

1. O arguido BB e a ofendida AA iniciaram uma relação de comunhão de leito, mesa e habitação em 2003 e são casados entre si desde outubro de 2005.
2. Desse relacionamento nasceram, em ../../2004, EE e, em ../../2014, FF.
3. O arguido, a ofendida e os filhos de ambos fixaram residência na Rua ... , Matosinhos.
4. Em setembro de 2021 a ofendida comunicou ao arguido a sua intenção de se divorciar.
5. Nessa ocasião, o arguido, não aceitando o termo do relacionamento, dirigiu à ofendida as seguintes expressões: “Vou-te fazer a vida negra, não te vou dar o divórcio, vou destruir a tua vida, vou-te perseguir, vou infernizar a tua vida, comeste.me a carne vais ter de comer os ossos”.
6. Desde o mês de setembro de 2021, até à presente data, de modo frequente e reiterado, o arguido tem vindo a seguir a ofendida nas suas deslocações diárias, nomeadamente nas deslocações para o local de trabalho da mesma, sito na Av. ..., Matosinhos, surgindo no local de trabalho da ofendida várias vezes ao dia e telefonando-lhe insistentemente, exigindo saber onde a mesma se encontra.
7. A ofendida passou a dormir no quarto da filha em dezembro de 2021.
8. Apesar disso, o arguido não respeita a sua privacidade e entra no quarto e na casa de banho sem bater à porta e sem autorização da ofendida, tendo guardado todas as chaves das portas das divisões da casa.
9. Em data não concretamente apurada, o arguido colocou dois localizadores no automóvel da ofendida, de modo a controlá-la nas suas deslocações diárias.
10. Em data não concretamente apurada, no interior da residência, a ofendida estava a jantar com os filhos e o arguido dirigiu-lhe a expressão “Vaca, andas com os advogados”.
11. Nesse momento, o arguido atirou para o chão da cozinha uma panela com comida que tinha sobrado do dia anterior.
12. De seguida, a ofendida pegou no seu telemóvel e disse ao arguido que ia tirar uma fotografia para mostrar na Polícia.
13. Em ato contínuo, o arguido desferiu uma palmada no aparelho (Iphone 11), que caiu no chão, ficando de imediato inutilizado e com o ecrã partido.
14. De imediato, a ofendida e os filhos dirigiram-se à Esquadra da Polícia de Segurança Pública.
15. A ofendida despendeu a quantia de 150 euros com a reparação do aparelho.
16. No dia 10 de março de 2022 a ofendida participou numa sessão de fotografias e vídeos para promoção da roupa da loja onde trabalha, e quando o arguido disse tomou conhecimento demonstrou o seu desagrado e disse-lhe “Deves-me obediência, deves-me satisfações, eu sou o teu marido”.
17. Em data não concretamente apurada, na sequência de uma discussão, a ofendida disse ao arguido que ia à polícia denunciar o caso, tendo o arguido apertado a cara da mesma, tendo sido afastado pelo filho.
18. No dia 11 de março de 2022, o arguido agarrou a cara da ofendida e dirigiu-lhe a expressão “Eu já te devia ter fodido o corpo há muito tempo, vou-te fazer a vida negra, um verdadeiro inferno, vais ficar de rastos, nem sabes o que te espera”.
19. No dia 15 de março de 2022 pelas 09.50 h., o arguido telefonou à ofendida a questioná-la onde se encontrava, dizendo-lhe que reparou que a sua viatura se encontrava estacionada no Porto, não sendo esse o seu local de trabalho.
20. No dia 16 de março de 2022, pelas 19.30 h., no interior da residência comum, na presença dos filhos, na sequência de uma discussão, o arguido apelidou a ofendida de “puta”, “vaca” e “cadela”.
21. Pelas 23.30 h. desse dia, quando a ofendida estava a preparar a filha para dormir, o arguido desferiu uma violenta bofetada na nuca da ofendida.
22. No dia 18 de março de 2022, pelas 12.30 h., o arguido deslocou-se junto do local de trabalho da ofendida e em seguida telefonou-lhe, perguntando-lhe onde se encontrava.
23. No dia 20 de março de 2022, pelas 19.30 h., no interior da residência comum, o arguido dirigiu insultos à ofendida e acusou-a de infidelidade.
24. A ofendida manifestou intenção de sair de casa e denunciar a situação.
25. Nesse momento, o arguido desferiu vários empurrões no corpo da ofendida, murros na face e puxões de cabelo, e apertou-lhe o pescoço com a mão, tendo sido impedido de continuar as agressões pelo filho.
26. Mercê da agressão infligida pelo arguido, AA sofreu dores na região frontal à esquerda e na face lateral direita do pescoço; no pescoço, duas equimoses avermelhadas com 1 por 0,3 cm na face lateral direita do pescoço; lesões estas que lhe determinaram, como consequência direta e necessária um período de cinco dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral ou profissional.
27. No dia 29 de março de 2022, pelas 08.15 h., o arguido passou de automóvel junto ao local de trabalho da ofendida, sito na Av. ..., Matosinhos, parou o veículo e buzinou, de forma a anunciar a sua presença.
28. Nesse mesmo dia, quando a ofendida se deslocou à Esquadra da Polícia de Segurança Pública, o arguido telefonou-lhe, sem que a mesma atendesse a chamada.
29. Mais tarde, nesse dia, no interior da residência, o arguido dirigiu insultos à ofendida e disse-lhe que a matava.
30. Pouco tempo depois, quando a ofendida se encontrava na cozinha, o arguido retirou do bolso uma barra de ferro que recolhe tornando-se mais pequena, objeto que em tudo se assemelha a um bastão extensível, e exibiu-o à ofendida, ao mesmo tempo que lhe dirigiu as palavras “Se te apanho com outro gajo mato-te. Tens que me atender o telefone sempre, se não acabo contigo!”, ao mesmo tempo que direcionava o bastão à cabeça da ofendida.
31. No dia 31 de março de 2022, pelas 08.15 h., no interior da residência e na presença da filha de ambos, o arguido disse à ofendida “Vais levar um tiro nos cornos se eu vos apanho juntos”.
32. Nesse dia, entre as 14.30 h. e as 15.40 h., quando a ofendida se encontrava nas instalações da Polícia de Segurança Pública a ser inquirida, o arguido telefonou-lhe, perguntando-lhe onde se encontrava, tendo a ofendida respondido informando-o que estava na Esquadra.
33. Momentos mais tarde, o arguido deslocou-se junto da Esquadra, aguardando no exterior pela saída da ofendida, e telefonou-lhe a informá-la disso mesmo, acabando por se ausentar do local antes que a mesma saísse.
34. Noutras ocasiões, o arguido disse à ofendida que iria rasgar toda a correspondência que à mesma viesse dirigida.
35. No dia 20 de abril de 2022, pelas 14.25 h., o arguido detinha, no interior do seu veículo automóvel de marca ..., modelo ..., de cor preto e matrícula ..-RQ-.., por baixo do banco do condutor, um bastão extensível com três segmentos, com diâmetro entre 3,10 e 2 cm, com 20,4 cm de comprimento, construído numa liga metálica com bastante rigidez e dureza, com revestimento em borracha na zona do cabo/empunhadura.
36. O arguido não é titular de qualquer licença ou autorização que lhe permitisse deter tal objeto, nem tem estatuto profissional que dispense a concessão de licença ou autorização para o efeito.
37. Após a aplicação das medidas de coação de proibição de contactar a ofendida e afastamento da mesma e da respetiva residência e local de trabalho, por decisão judicial de 21/04/2022 no âmbito dos presentes autos, o arguido deslocou-se à residência da ofendida, supostamente para retirar bens pessoais, e nessa ocasião rasgou várias peças de roupa interior da ofendida.
38. No dia 8 de julho de 2022, pelas 20.30 h., no percurso entre a ... -Matosinhos e ... Porto, o arguido, conduzindo o seu veículo automóvel, seguiu no encalço do veículo da ofendida, durante vários quilómetros, e a dado momento, junto à Esquadra da PSP ..., saiu do automóvel que conduzia empunhando um objeto bastão de cor preta, com cerca de um metro de comprimento e 4 a 5 cm de diâmetro, ordenando a ofendida a entregar-lhe a filha de ambos, FF, o que a ofendida fez, por sentir medo pela sua integridade física.
39. O arguido agarrou na filha bruscamente, puxando-a, e colocou-a no seu automóvel, ao mesmo tempo que a criança chorava.
40. No dia 15 de julho de 2022, o arguido foi buscar a filha ao veículo automóvel conduzido pela ofendida, em violação da medida de coação que lhe foi aplicada, de proibição de não se aproximar daquela.
41. No dia 1 de agosto de 2022, pelas 09.15 h. ou antes desta hora, o arguido dirigiu-se ao ATL “... Creche jardim de Infância ...”, estacionou a sua viatura de matrícula ..-RQ-.., de marca ... a uma distância aproximada de 300 metros daquele estabelecimento de ensino, e ali aguardou a chegada da ofendida.
42. Depois de a ofendida ter levado a filha ao estabelecimento de ensino, e abandonado o local, no seu automóvel, o arguido encetou perseguição automóvel à mesma, que apenas cessou quando verificou que a ofendida se dirigia a à Esquadra da PSP ....
43. No dia 10 de agosto de 2022, o arguido, através do número de telemóvel ...32 enviou para o telemóvel da ofendida mensagens SMS com o seguinte teor:
a. Eu se fosse ao teu marido minha puta Fodia te as trombas por andares com esse ladrão de mao dada Ele que va gozando;
b. O teu amante que olhe sempre para o lado;
c. Tenho pena de você e sua família Voce ser amante desse canalha Voce seu marido e seus filhos são gente boa Coitado do seu marido perde você para um canalha desses E seus filhos então nem si
d. Já sobe que você tinha boa vida e perdeu tudo por causa desse canalha Caralho…
e. Mas eu não quero falar com você Meu papo é com o canalha
f. Quem é EE?
g. É outro que você tem?
h. Afinal você é folgadinha Eu te entendo Tem que ter sei marido e esse tal EE para te satisfacer já que esse canalha ai não serve para nada so para tirar dinheiro
i. Minina eu ti conheço mal Meu problema não é com você Voce esta confundindo
j. Esse canalha é qui tem processo lá no brasil por violência domestica à II;
k. Minima está confundindo tudo Não quero falar mais com você
Meu problema é eu e esse canalha
l. Voce esta maluca
m. Ele não lhe paga não??? Para a fode? Pois você também nem quer ele não da pica.
n. Minima si você quiser se satistacer eu também estou aqui já que esse canalha não ti satisfaz Com todo o respeito qui eu não conheço bem você
44. No dia 12 de agosto de 2022 o arguido contactou JJ, diretora do jardim de infância que a filha FF frequenta e disse-lhe que contratou uns indivíduos com a finalidade de esfaquearem a cara do KK, atual namorado da ofendida.
45. Em várias ocasiões, o arguido contactou o namorado da ofendida, adotando um discurso ameaçador, dirigindo-lhe ameaças, por forma a pressioná-lo a terminar o relacionamento com a ofendida, e impedir que a mesma livremente se relacione afetivamente com terceiros.
46. Em dia não concretamente apurado da semana de 12 a 16 de setembro de 2022, o arguido deslocou-se de automóvel, na sua carrinha de cor preta, marca ..., até junto da residência da ofendida e atirou uma pedra com cerca 15 cm de diâmetro, que embateu no telhado do 1.º andar, fazendo barulho, como forma de a intimidar, bem como ao namorado da mesma.
47. Igualmente, em várias ocasiões, nomeadamente no dia 17 de setembro de 2022, o arguido disse aos filhos, menores, que à mãe não vai fazer mal, para já, mas que ao KK só descansa quando ele se for embora, e anunciando que vai morar para perto da ofendida.
48. Na noite/madrugada de 2 para 3 de outubro de 2022, o arguido pintou o muro/portão da casa de habitação da ofendida, sita na Rua ..., ..., Gondomar, com os dizeres “PRETO PAGA” e “XIGOLO”, de modo a pressionar a ofendida a terminar o relacionamento com o atual namorado.
49. Na noite/madrugada de 2 para 3 de outubro de 2022, o arguido pintou a fachada do local de trabalho da ofendida (salão de cabeleireiro sito em Matosinhos) com os dizeres “PRETO PAGA O K DEVES”, de modo a pressionar a ofendida a terminar o relacionamento com o atual namorado.
50. Sabia o arguido que com a sua descrita conduta lesava o seu cônjuge e mãe dos seus filhos na saúde física e mental, como efetivamente lesou, causando-lhe dores e lesões corporais, que a afetava na capacidade de livremente se decidir e deslocar, que a fazia temer pela sua vida e integridade física, aumentando o ascendente que sobre aquela detinha, tentando intencionalmente afetar a vida afetiva da mesma através do terror, e ainda que a humilhava e atacava a sua dignidade e consideração pessoais e que perturbava o seu bem-estar no lar, como efetivamente veio a suceder, não se coibindo de adotar tais comportamentos no interior da residência do casal/da vítima, e na presença dos filhos de ambos, menores de idade, o que quis.
51. O arguido conhecia as caraterísticas do bastão extensível que detinha, bem sabendo que a sua detenção lhe era vedada por lei, e que não possuía qualquer licença ou autorização que legitimasse a sua posse ou detenção, conhecendo o carácter e a natureza proibida da arma, e, ainda assim, quis deter tal objeto.
52. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei penal.

Pelo exposto, incorreu o arguido, em autoria concurso efetivo, material e na forma consumada, na prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos artigos 152.º, n.ºs 1, alíneas a) e c), 2, alínea a), 4, 5 e 6, do Código Penal, agravado nos termos do disposto no artigo 86.º, n.ºs 3 e 4, com referência ao n.º1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro; e de um crime de detenção de arma proibida, p.e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), com referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea an), e 3.º, n.º 2, alínea i), todos do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.

17. Autora e réu estão separados desde 21 de abril de 2022.
18. Existe uma rutura total e definitiva dos laços de casamento entre os cônjuges, sendo que apenas formalmente tal casamento existe.
19. A autora não partilha leito com o réu e não tem qualquer intenção de o retomar.

Factos não provados:
a. O réu contraiu dividas que conduziram o casal a uma situação financeira instável sem que o réu alguma vez a tivesse sequer alertado para tal situação.
b. É a autora que suporta todas as despesas de casa, sendo que o réu entende que não tem de contribuir para as despesas.
c. O réu exerce a sua autoridade para com a autora como um verdadeiro déspota, entendendo que a autora se deve subordinar a tudo que faz.
*
*
Vamos ao tratamento da primeira questão enunciada.
O recorrente, com base na sua interpretação de excertos, que identifica, das declarações de parte da autora e dos depoimentos das testemunhas CC e DD, pretende a alteração do julgamento da matéria de facto efetuado pelo tribunal recorrido relativamente aos nºs 7, 8, 10, 11, 12, 13 e 14 dos factos provados no sentido de os mesmos serem dados como não provados e pretende também que o nº17 deve ser retirado dos factos provados, porque, argumenta, não é um facto mas uma conclusão.
Analisemos.
Comecemos pelo nº17 dos factos provados, onde se diz que “Autora e réu estão separados desde 21 de abril de 2022”.
Como se referiu, o recorrente defende (ponto VI da motivação e conclusão XIII do recurso) que aquele ponto dever ser retirado da matéria de facto provada, pois o mesmo não integra um facto mas uma conclusão.
Mas não lhe é de reconhecer razão.
Ainda que o termo “separados” que ali consta inculque por si só alguma conclusividade, o facto de vir acompanhado da concretização da data em que tal passou a acontecer – 21 de abril de 2022 – tem o claro significado factual, para o comum das pessoas, de que a autora não vive com o réu desde essa altura.
Aliás, o próprio réu/recorrente reconhece que há separação de facto entre ambos desde aquela data, pois no próprio ponto VI da motivação do recurso afirma que “A 22 de Abril de 2023, cumpre-se um ano sobre a separação de facto entre a autora e o reu”.
Além disso, em complemento com o conteúdo daquele nº17, consta provado sob o nº19 (o qual não foi objeto de impugnação) que “A autora não partilha leito com o réu e não tem qualquer intenção de o retomar”, o que integra factualidade inequivocamente concretizadora da separação referida naquele.
Assim, é de manter o nº17 dos factos provados nos seus precisos termos.

Passemos para os nºs 7, 8, 10, 11, 12, 13 e 14 dos factos provados.
Ainda que o recorrente os tenha impugnado e defenda a sua não prova, existe outra factualidade dada como provada, nomeadamente sob os nºs 4, 15, 16, 17 e 19 dos factos provados, que, como veremos no tratamento da questão seguinte, só por si – isto é, sem a consideração daqueles factos impugnados –, denuncia, nos termos da alínea d) do art. 1781º do C. Civil, a rutura definitiva do casamento.
Ou seja, ainda que, no limite, se viessem a dar aqueles factos referidos pelo recorrente como não provados, como o mesmo pretende, sempre os factos daqueles outros pontos bastam para se concluir por aquela rutura do casamento.
Ora, como se refere no Acórdão desta mesma Relação de 4/10/2021 (proferido no proc. nº142/19.9T8BAO.P1, relatado por Carlos Gil e subscrito pelo ora relator como 1º juiz adjunto, disponível em www.dgsi.pt), a reapreciação da matéria de facto não é um exercício dirigido a todo o custo ao apuramento da verdade afirmada pelo recorrente mas antes e apenas um meio do mesmo poder reverter a seu favor uma decisão jurídica fundada numa certa realidade de facto que lhe é desfavorável e que pretende ver reapreciada de modo a que a realidade factual por si sustentada seja acolhida judicialmente, pelo que logo que faleça a possibilidade de uma qualquer alteração da decisão factual poder ter alguma projeção na decisão da matéria de direito em sentido favorável ao mesmo deixa de ter justificação a reapreciação requerida.
Deste modo, sendo a referenciada factualidade irrelevante nos termos sobreditos, e a fim de não se praticar atos inúteis no processo (o que sob o art. 130º do CPC até se proíbe), não há que conhecer da impugnação deduzida sobre a mesma [neste sentido, que é o mesmo do referido naquele Acórdão de 4/10/2021 que atrás se aludiu, vide também António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, Almedina, 2008, págs. 285 e 286, e ainda, entre variados outros, o Acórdão da Relação do Porto de 5/11/2018 (proc. nº 3737/13.0TBSTS.P1, relator Jorge Seabra), os Acórdãos da Relação de Coimbra de 24/4/2012 (proc. nº219/10.6T2VGS.C1, relator Beça Pereira) e de 27/5/2014 (proc. nº1024/12.0T2AVR.C1, relator Moreira do Carmo), todos estes disponíveis em www.dgsi.pt, e ainda o Acórdão do STJ de 23/1/2020 (proc. 4172/16.4TFNC.L1.S1, relator Manuel Tomé Soares Gomes), in CJ, Acórdãos do STJ, ano XXVII, tomo I/2020, págs. 13/16].
Como tal, indefere-se a reapreciação dos nºs 7, 8, 10, 11, 12, 13 e 14 dos factos provados.

Passemos agora à segunda questão enunciada.
Como se prevê no art. 1781º do C. Civil, com a epígrafe “Ruptura do casamento”, “São fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges…d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento”.
Independentemente dos pontos de factualidade provada questionados pelo recorrente, mostra-se provada, sob outros números dos factos provados, a seguinte factualidade:
- sob o nº4, que por sentença homologatória de 25 de maio de 2022 foram reguladas as responsabilidades parentais da autora e do réu para com os seus filhos, o que, como se sabe, só ocorre, no caso de ainda existência de casamento, entre cônjuges separados de facto (arts. 1905º, 1906º e 1909º nº1 do C. Civil);
- sob os nºs 15 e 16, a existência de processo crime decorrente de queixa apresentada por um contra o outro – no caso, da autora contra o réu e já com acusação formulada contra este por crime de violência doméstica – e inclusivamente a aplicação ao réu, no âmbito de tal processo crime, de medidas de coação traduzidas em obrigação de não permanecer na residência da autora e obrigação de não contactar com esta por qualquer meio e de não se aproximar da mesma, da sua residência e do seu local de trabalho a distância inferior a 200 metros;
- sob os nºs 17 e 19, que a autora e réu estão separados desde 21 de abril de 2022, não partilhando a autora leito com aquele e não tendo qualquer intenção de tal retomar.
A separação de facto que ocorre nos termos sobreditos, ao ponto de ter levado já à regulação das responsabilidades parentais dos filhos, a existência do processo crime com os contornos que se assinalaram e as medidas de coação no âmbito do mesmo aplicadas ao réu, são factoscomo o devem ser para se subsumirem à previsão da referida alínea d) do art, 1781º do C. Civil – “externamente apreensíveis” e que apresentam “uma gravidade equivalente à das constelações fácticas descritas nas als. anteriores” (citamos Rute Teixeira Pedro, in “Código Civil Anotado”, coordenação de Ana Prata, Vol. II, 2ª edição, Almedina, 2019, pág. 692, em anotação ao art. 1781º) que mostram de forma bem evidente a rutura definitiva do casamento.
Como tal, é de concluir pela existência de fundamento para o divórcio nos termos ali previstos, como aliás se fez na sentença recorrida.

Na sequência do que se veio de expor, é de julgar improcedente o recurso e confirmar aquela sentença.

As custas do recurso ficam a cargo do recorrente, que nele decaiu (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do eventual apoio judiciário de que possa beneficiar (face ao comprovativo de efetivação do respetivo pedido junto da segurança social que juntou com a interposição de recurso).
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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):
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III – Decisão
Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.


Custas pelo recorrente, sem prejuízo do eventual apoio judiciário de que possa beneficiar.
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Porto 4.3.2024.
Mendes Coelho
Teresa Fonseca
Fernanda Almeida