REAPRECIAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRAZO PARA INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
REJEIÇÃO DO RECURSO
Sumário

I - A extensão do prazo de 10 dias previsto no art. 638º nº 7 do CPC para apresentação do recurso de apelação, quando tenha por objeto a reapreciação de prova gravada, depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação.
II - Tendo o recorrente invocado erro de julgamento quanto à matéria de facto, incumbia-lhe, sob pena de rejeição do recurso nessa parte, por força do disposto no art. 640º do C.P.C., indicar os factos que considera incorretamente julgados e bem assim, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, para além das passagens das gravações dos depoimentos gravados, em que funda o seu recurso.

Texto Integral

Processo n.º 3346/18.8T8VFR.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira - Juiz 3

Juíza Desembargadora Relatora:

Alexandra Pelayo

Juízas Desembargadoras Adjuntas:

Anabela Andrade Miranda

Maria Eiró

SUMÁRIO:

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Acordam as Juízas que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO:

O Autor AA instaurou acção declarativa com processo comum contra o Réu, BB, advogado, peticionando a condenação deste a pagar-lhe a quantia global de € 149.904,87, a título de danos patrimoniais (€ 146.604,87) e não patrimoniais (€ 3.300,00), emergentes da responsabilidade civil do Réu enquanto mandatário judicial do Autor, por incumprimento/cumprimento defeituoso do mandato exercido em representação do Autor em processo de inventário facultativo.

Alega, para o efeito em síntese, que em 21/11/1967, CC lavrou testamento, onde legou ao Autor todos os seus bens sitos em Portugal. CC faleceu em 28/07/1974, no estado de casado com DD, no regime da comunhão geral de bens, sendo esta a sua única herdeira legitimária.

Em 25/01/1990, a referida DD, instaurou processo de inventário facultativo e em 7 de Outubro de 1992, o Réu, na qualidade de advogado, assumiu o patrocínio forense do Autor em tal processo de inventário facultativo.

Nesse inventário, procedeu-se à avaliação de todos os bens que compunham a herança, incluindo os situados no Brasil. E realizou-se conferência de interessados, no qual se procedeu a licitações sobre os bens que compunham a herança sitos em Portugal.

Entretanto a referida DD vendeu a sua meação conjugal à sociedade A... Lda.  Foi elaborado o mapa de partilha, relativamente ao qual não foi apresentada reclamação, e proferida sentença homologatória, que não foi objeto de recurso.  Ao Autor apenas veio a caber o direito a tornas no montante de € 12.395,13.

O Autor entende, no entanto, que o Réu não assegurou convenientemente os seus interesses, pois que deveria ter recorrido do despacho homologatório da partilha.

Com efeito, não tendo a habilitada A... Lda. requerido a redução do legado, por inoficiosidade, deveria ter sido cumprido o legado na integra, tornando-se assim o Autor proprietário de todos os bens relacionados.

O Autor considera, assim, que deveria ter ficado com todos os bens do de cujus sitos em Portugal, em conformidade com o testamento, o que, de certo, viria a suceder se o Réu tivesse recorrido da sentença homologatória da partilha.

Em consequência, sofreu danos patrimoniais no montante de € 146.604,87, correspondente à diferença entre o valor atual dos imóveis (€ 159.000,00) e o quinhão que lhe foi atribuído de € 12.395,13.

E, sofreu ainda danos não patrimoniais, por não ter ficado com esses imóveis.

O Réu veio contestar, pugnando pela improcedência da acção, alegando  em suma, a inexistência de incumprimento ou cumprimento defeituoso do mandato judicial por si exercido em representação do Autor no âmbito do aludido processo de inventário.

O Autor veio requerer a intervenção principal provocada da sociedade B... Company, Sucursal em España, alegando em síntese que, estando em causa a responsabilidade civil do Réu enquanto advogado, a Ordem dos Advogados celebrou com tal Seguradora um seguro de grupo destinado a garantir as indemnizações devidas, com base em erro, omissão ou negligência, no exercício da atividade profissional de advogado. Assim, em caso de procedência da acção, a Seguradora responderá civilmente pelos danos imputados ao Réu.

Não tendo sido deduzida oposição, foi admitida a intervenção principal da Seguradora.

A B... Company, Sucursal em España, apresentou contestação, pugnando pela sua absolvição do pedido. Em resumo, por um lado, invocou as exceções do limite do capital seguro, fixado em € 150.000,00, e da franquia contratual aplicável, que ascende a € 5.000,00. Por outro lado, invocou a exceção do pré-conhecimento do sinistro prevista na alínea a) do art.º 3.º das condições especiais da apólice, pois que, à data de início do período seguro da apólice ( ...), o Réu tinha já conhecimento dos factos que, potencialmente, poderiam vir a gerar a sua responsabilidade civil no âmbito do patrocínio forense em crise nos autos pelo Autor. Por fim, impugnou a factualidade alegada pelo Autor quanto à responsabilização do Réu.

O Autor veio responder, pugnando pela improcedência das exceções deduzidas e pela procedência da acção nos termos peticionados.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador e proferidos despachos a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, não tendo sido apresentada qualquer reclamação.

Instruída a causa, procedeu-se à audiência final e no final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente a presente acção e, em consequência, absolvem-se o Réu e a Interveniente Principal do peticionado.

Custas a cargo do Autor.”

Inconformado, o Autor AA interpôs o presente recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:

“I. Entende o Recorrente que o Tribunal a quo fez errado julgamento da matéria de facto pois não retrata de modo fiel a produção de prova realizada e valorizada em audiência de discussão e julgamento.

II. Bem como, entende o Recorrente, o Tribunal a quo não procede à devida interpretação e subsunção jurídica quanto à matéria de direito.

III. A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma fluente e harmoniosa, o que se traduz numa técnica bem diferente daquela outra, aposta na mera enunciação de factos sincopados, copypaste do alegado pelas partes dos articulados.

IV. A sentença recorrida não ordena os factos de forma fluente, harmoniosa, linear, lógica e cronológica, antes transcreve em diferentes momentos, pontos alegados pelas partes nos respetivos articulados, com isso originando que na fundamentação de facto, total ou parcialmente repetidos.

V. Perante as inconstâncias da metodologia seguida e sem necessidade de maiores considerações, entende o Recorrente que a douta sentença enferma de nulidade, nos termos do disposto no art. 607º, nº 4 e art. 615º, nº 1, alínea b) e c) do CPC, que desde já invoca e pretende fazer valer para todos os efeitos legais.

VI. Recai sobre as partes o dever de alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir e em que se baseiam as exceções invocadas (art. 5º, nº 1, art. 552º, nº 1, al. D) e 572, al c) do CPC) a enunciação dos factos, tanto dos provados como dos não provados, dentro dos limites dos temas da prova anteriormente enunciados, deve ater-se igualmente aos factos essenciais alegados no processo por cada uma das partes, de modo a cobrir todas as soluções da questão ou questões de direito.

VII. A enunciação factológica efetuada pelo juiz na sentença deve materializar-se numa pronúncia (positiva, negativa, restritiva e exemplificativa), linear, lógica e cronológica sobre factos essências (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou fundar as exceções, e de outros factos, também eles essenciais, ainda que de natureza complementar e/ou concretizadora que, de acordo com a fattispecie da norma jurídica aplicável, se revelem necessários para a procedência da acção ou exceção.

VIII. Considerando a forma como o Autor, ora recorrente, estruturou a petição inicial com que introduziu em juízo a presente acção, atenta a causa de pedir que a suporta, a sentença recorrida enuncia diversos factos inconclusivos.

IX. No caso em apreço, existe uma clara e efetiva oposição entre os fundamentos e a decisão o que, e de igual modo, torna a sentença nula.

X. Termos em que deve ser revogada a sentença recorrida na parte que julgou improcedente o pedido do recorrente, sendo substituída por outra que determine a sua procedência, com as legais consequências.”

Veio responder ao recurso a Interveniente  B... COMPANY SE, Sucursal em Espanha, pugnando pela sua improcedência, concluindo da seguinte forma:

“1. O Recorrente intentou o recurso que ora se contra-alega, lançando mão do disposto no art. 638.º, n.º 7 do CPC, o qual prevê que, ao prazo geral dos 30 dias, acrescem 10 dias, caso o recurso tenha por objeto a reapreciação da prova gravada.

2. O disposto no art. 640.º, n.º 2, al. a) do CPC, prevê que: “Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.”

3. Assim, embora se retire do referido artigo que o Recorrente não está obrigado a transcrever os excertos que considere relevantes, a verdade é que está obrigado, sob pena de rejeição do recurso, a indicar com exatidão as passagens da gravação.

4. Para além de não transcrever os excertos dos depoimentos que pretende ver reapreciados, não indicou, quer o ficheiro, quer a passagem da gravação a que se os mesmos se reportam, (i. e., não fez uma indicação exata da passagem a que se referem os depoimentos em causa).

5. Ora, não tendo o Recorrente indicado com exatidão as passagens da gravação em que funda a sua discordância com o decidido e, concomitantemente, não tendo procedido à transcrição dos excertos dos depoimentos que pretende ver reapreciados – como sucedeu no caso em apreço – deverá o recurso ser rejeitado, por não se encontrar cumprido o disposto na al. a), do n.º 2, do art. 640.º do CPC.

6. Pelo que deve o recurso apresentado ser rejeitado, nos termos do disposto na al. a), do n.º 2, do art. 640.º do CPC, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida.

7. Por outro lado, atendendo a que o recurso não cumpre os formalismos legais, e considerando que o mesmo se remete à matéria de direito, sempre terá de se considerar que a apresentação do mesmo é extemporânea.

8. De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 638.º do CPC, o prazo para a interposição de recurso é de 30 dias (…).” – destaque nosso.

9. A sentença recorrida foi notificada às partes em 02.06.2023, tendo-se considerado as mesmas notificadas em 05.06.2023, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 248.º do CPC.

10. O prazo de 30 dias para interpor recurso, contados a partir da presunção de notificação às partes, terminava no dia 05.07.2023.

11. O que significa que o Recorrente tinha até ao dia 10.07.2023 para interpor recurso, com a cominação e nos temos do disposto no n.º 5 do art. 139.º do CPC.

12. Sucede que o Recorrente interpôs recurso, somente, em 01.09.2023.

13. Do exposto resulta que o recurso que ora se contra-alega é extemporâneo, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 638.º do CPC, devendo o mesmo ser julgado improcedente, pelo que deverá ser mantida in totum a sentença recorrida.

14. Sempre se diga que as alegações apresentadas pelo A., nomeadamente, quanto aos factos dados por provados e não provados, limita-se a fazer uma valoração dos depoimentos prestados, sem, sequer, transcrever as passagens das quais retira as conclusões a que chega para fundamentar o recurso apresentado.

15. Ora, como bem se sabe, o douto Tribunal beneficia do princípio da livre apreciação da prova, sendo que, ouvida toda a prova testemunhal, criou a sua própria convicção, decidindo pela improcedência da presente demanda, por considerar não estarem preenchidos todos os requisitos de que a lei faz depender a responsabilidade civil profissional do Réu advogado.

16. O A. limita-se a alegar que o Tribunal fez um errado julgamento da matéria de facto, fazendo, por isso, a sua própria interpretação daquilo que foi dito pelas testemunhas – o que, s.m.o., não pode ser suficiente para alterar o sentido da decisão proferida.

17. Da análise da sentença resulta que o Tribunal a quo discriminou, de forma clara e inteligível, todos os factos que considerou provados e não provados, tendo analisado criticamente todas a prova produzida, quer documental, quer testemunhal, bem como especificado os fundamentos da decisão.

18. É certo que interessa analisar a chamada perda de chance, porém, a decisão recorrida entendeu que não podia ser imputada qualquer responsabilidade profissional ao Réu Advogado, uma vez que não se encontravam preenchidos os requisitos, designadamente, a existência de ilícito.

19. Pelo que, não havendo, sequer, um ato ilícito, não faz sentido debater a eventual existência de perda de chance – como pretende o A., fazer crer o Tribunal ad quem.

20. E como bem conclui a decisão recorrida, não fica provada a ilicitude da conduta do Réu Advogado, pelo que, consequentemente, nenhuma responsabilidade poderá ser imputada à aqui Recorrida.

Assim, por tudo quanto se encontra exposto, e, ressalvando o devido respeito por melhor e douta opinião de V. Exas., deverá o Recurso interposto ser rejeitado por incumprimento dos formalismos legalmente previstos. Caso assim não se entenda, sempre deverá o Recurso interposto ser considerado extemporâneo. Caso assim não se entenda, sempre deverão improceder as conclusões do Recorrente, não merecendo a Douta Sentença recorrida qualquer censura, mantendo-se, assim, a decisão recorrida, só assim se fazendo, Justiça”.

O recurso foi admitido, como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II-OBJETO DO RECURSO:

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.

As questões a dirimir, delimitadas pelas conclusões do recurso são as seguintes:

-Nulidade da sentença -art. 615, nº 1, alínea b) e c) do Código de Processo Civil e;

-Impugnação da matéria de facto.

Questões prévias suscitadas nas contra-alegações:

-Tempestividade do recurso e;

-Rejeição do recurso, por incumprimento dos ónus do art. 640º do CPC.

III-FUDAMENTAÇÃO:

Na sentença foram julgados provados os seguintes factos:

A) Em 21 de Novembro de 1967, CC lavrou testamento junto como doc. n.º 1 com a p.i. e aqui dado por integralmente reproduzido, onde legou ao Autor todos os seus bens sitos em Portugal;

B) O referido CC faleceu em 28 de Julho de 1974, sem deixar ascendentes, nem descendentes;

C) O CC faleceu no estado de casado, no regime da comunhão geral de bens, com DD;

D) À data do testamento, o CC já era casado com a referida DD, no mencionado regime;

E) Em 25/01/1990, DD instaurou processo de inventário facultativo, por falecimento do CC, processo esse que correu termos pelo entretanto extinto 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca da Oliveira de Azeméis sob o n.º 228/1990;

F) No referido processo de inventário, em 31/05/1991, foram relacionados os seguintes bens:

1. Ativo

a. A quantia de 150.000$00 (€ 748,19), proveniente da venda de madeiras, feita pelo inventariante – aqui A. - de prédios pertença da herança (verba 1);

b. Pinhal e eucaliptal, sito no Lugar ..., freguesia ..., Oliveira de Azeméis, com a área de 1.590m2, que confina do norte com EE, sul com FF, nascente com caminho e poente com EE e outro, não descrito na Conservatória do Registo Predial e inscrito na matriz sob o artº ..., com o valor patrimonial de dois mil oitocentos e setenta e três escudos (verba 2);

c. Pinhal e eucaliptal, sito no Lugar ..., freguesia ..., desta Comarca de Oliveira de Azeméis, com a área de 830m2, a confinar do norte com AA e outro, sul e poente com caminhos e nascente com GG, Herdeiros, não descrito na Conservatória do Registo Predial e inscrito na matriz sob o artº ..., rústico com o valor patrimonial de mil e oito escudos (verba 3);

d. Cultura com ramada, sito no Lugar ..., com a área de 3.100m2, que confina do norte, sul, nascente e poente com HH, não descrito na Conservatória do Registo Predial e inscrito na matriz sob o artº ..., com o valor patrimonial de oito mil cento e quarenta escudos (verba 4);

e. Terra lavradia, com um barracão destinado a arrumos de produtos e alfaias agrícolas, poço de rega, com a área de 1.800m2, tendo o barracão a superfície coberta de 30m2, sito no Lugar ..., freguesia ..., Oliveira de Azeméis, que confina do norte com caminho de servidão, sul e poente com rego e nascente com caminho, não descrito na Conservatória do Registo Predial, omisso na matriz, tendo sido avaliado em setecentos e cinquenta mil escudos (verba 5).

2. Passivo

a. Dívida da herança ao cabeça de casal – aqui A. - de 80.000$00 que pagou a II, Oliveira de Azeméis, pelas obras que levou a efeito na mina que abastece de água o prédio da herança relacionado na verba n.º 4 (verba 1);

b. Dívida da herança ao cabeça de casal – aqui A. - de 100.000$00 relativo à obra que levou a efeito no prédio relacionado sob a verba 5 (verba 2).

G) No aludido processo de inventário, procedeu-se à avaliação de todos os bens que compunham a herança, incluindo os situados no Brasil;

H) Nesse processo de inventário, em sede de conferência de interessados, procedeu-se a licitações sobre os bens que compunham aquela herança, sitos em Portugal;

I) Posteriormente, a DD vendeu a sua meação conjugal à sociedade “A..., Lda.”, que naqueles autos foi habilitada;

J) Por despacho proferido em tal inventário em 31/03/2009, determinou-se a seguinte forma à partilha:

“Para além da sua única herdeira legitimária, o seu cônjuge (art.ºs 2157.º e 2133.º, n.º 1, al.ª a) ambos do Código Civil), o inventariado deixou uma disposição de vontade, lavrando testamento onde legou ao seu os bens que possuía em Portugal.

Nos termos do art.º 2158.º do Código Civil “A legítima do cônjuge, se não concorrer com descendentes nem ascendentes, é de metade da herança.

Somam-se os valores dos bens descritos e relacionados, tendo-se em consideração o valor resultante das licitações.

O valor apurado divide-se por dois e as metades alcançadas correspondem uma à meação conjugal do inventariado e, portanto, o acervo hereditário a partilhar e outra à meação conjugal do cônjuge sobrevivo – art.ºs 1732.º do Código Civil.

Ao acervo hereditário do inventariado subtrai-se o valor das dívidas relacionadas, do valor obtido metade corresponde à legítima e pertence na sua totalidade ao cônjuge do de cujus e a outra metade à quota disponível, a qual será preenchida com as deixas testamentárias.

Os bens relacionados e situados no Brasil apenas se atenderá ao seu valor para cálculo da legítima não sendo, pois, incluídos na partilha.”;

K) Em 17/04/2009, foi elaborado mapa informativo, informando que o valor dos bens doados ultrapassa a quota disponível:

- Valor total dos bens para cálculo da quota disponível - € 103.168,01 (Bens em Portugal - € 25.688,10; Bens no Brasil - € 77.479,91);

Valor da meação: € 51.584,00; Subtrai-se o passivo - € 897,84, Total - € 50.686,16;

Valor da quota disponível - € 25.343,08 e Valor dos bens doados - € 25.688,10;

L) Não foi requerida no inventário a redução do legado, por inoficiosidade;

M) Em 10/07/2009, foi elaborado o mapa de partilha:

Determinação do ativo:

(…).

Total € 25.688,10;

Passivo:

Verba n.º 1 € 897,84;

Operações da partilha

Somam-se os valores dos bens relacionados, subtrai-se o passivo. O valor apurado divide-se em duas partes iguais, sendo uma para a requerente e a outra para a requerida.

O preenchimento dos quinhões será feito conforme acordado na conferência de interessados – cfr. ata de conferência de fls. 97 dos autos.

Valor dos bens: € 25.688,10

Valor do passivo: € 897,84

Valor a partilhar: € 24.790,26;

Assim pertence a cada interessado:

A... Lda ½ (metade) € 12.395,13

AA ½ (metade) € 12.395,13

Passivo

(…)

Pagamentos

A... Lda.

O seu quinhão ½ (metade) € 12.395,13

Foi-lhe adjudicada Verba n.º 2 € 7.481,97

Verba n.º 3 € 498,80

Verba n.º 4 € 4.489,18

Verba n.º 5 € 12.469,95

Tem a mais € 12.095,85, que deve de tornas ao interessado AA

AA

O seu quinhão ½ (metade) € 12.395,13

Pertence-lhe Verba n.º 1 € 374,10

Passivo – responsabilidade ½ (metade) € 448,92

Tem a menos € 12.095,85, que recebe de tornas da interessada A... Lda.

Total da partilha: € 25.688,10;

N) Nesse inventário, não foi apresentada qualquer reclamação ao mapa de partilha;

O) E, a sentença homologatória da partilha constante do mapa, proferida em 23/09/2009 e transitada em julgado em 08/10/2009, a adjudicar aos interessados os respetivos bens, não foi objeto de recurso, nomeadamente pelo aqui Autor;

P) O Réu, advogado com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados, assumiu o patrocínio do Autor naquele processo de inventário em 7 de Outubro de 1992, tendo-lhe sido conferidos os competentes poderes forenses;

Q) Entre a Ordem dos Advogados e a Interveniente foi celebrado contrato de seguro de responsabilidade civil profissional do exercício da atividade de advocacia exercida pelos segurados, conforme regulado no Estatuto da Ordem dos Advogados, titulado pela apólice com o n.º ..., com início a 01.01.2018, garantindo os prejuízos patrimoniais ou não patrimoniais causados a terceiros no âmbito do exercício de tal atividade até ao limite do capital seguro de 150.000,00€ por sinistrado, com uma franquia de 5.000,00€ por sinistro, que nos termos da cláusula 10.ª das Condições Particulares não é oponível a terceiros lesados;

R) Em tal seguro, de acordo com as respetivas condições particulares, figuram como segurados, além dos demais, advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados que exerçam a atividade em prática individual ou societária;

S) Da alínea a) do artigo 3º das Condições Especiais da apólice, sob a epígrafe «Exclusões», consta o seguinte: “Ficam expressamente excluídas da cobertura da presente apólice, as reclamações: a) Por qualquer facto ou circunstância já anteriormente conhecido(a) do segurado, à data de início do período de seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação”;

T) No artigo 4.º dessas Condições Especiais, sob a epígrafe «Delimitação Temporal», consta que: “É expressamente aceite pelo tomador do seguro e pelos segurados que a presente apólice será competente exclusivamente para as reclamações que sejam apresentadas pela primeira vez no âmbito da presente apólice: a) Contra o segurado e notificadas ao segurador, ou b) Contra o segurador em exercício de ação direta; c) Durante o período de seguro, ou durante o período de descoberto, com fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional cometidos pelo segurado, após a data retroativa.”;

U) Em 18/12/2018, o Autor recebeu as tornas no valor de € 12.395,13, acrescido de juros, num total de € 16.468,91;

V) Até à data da propositura da acção, o Autor recusou-se a aceitar ou reclamar da outra interessada as tornas;

W) O Autor e o tio/inventariado tinham reciprocamente estima;

X) O Autor sempre cuidou dos imóveis a que se reportam o legado, pelo apreço que tinha pelo tio e na expectativa de, um dia, virem a ser seus;

Y) Com a morte do tio e em virtude do testamento, criou-se na mente do Autor a convicção inabalável de que tinha direito aos bens que compunham o legado do tio;

Z) O Autor sente-se desgostoso, revoltado, e impotente por não ter ficado com os imóveis;

AA) No ano de 2018, os bens das verbas n.ºs 2, 3, 4 e 5 valiam € 40.000,00, € 1.500,00, € 7.500,00 e € 110.000,00, respetivamente;

BB) No decurso do patrocínio no inventário, o Réu sempre afirmou ao Autor que, no entendimento dele, o testamento em causa era nulo ao individualizar bens como objeto de legado, uma vez que o CC legou bens que não eram seus, integrando o património comum do casal e como tal só podiam ser legados em conjunto por marido e mulher;

CC) O Réu teve conhecimento da participação feita pelo Autor, junto da Ordem dos advogados, dos factos aqui em causa, antes de 01/01/2018;

DD) Apesar disso, não participou tal situação à seguradora.

A.2. Matéria não provada:

Com relevo para a decisão, nenhuns outros factos ficaram demonstrados, nomeadamente não ficou provado que:

a) O Réu sempre transmitiu ao Autor que iria ficar com os imóveis do falecido sitos em Portugal, por força do testamento;

b) Depois da feitura do mapa de partilha, o Réu deixou de responder aos insistentes contactos do Autor;

c) O Autor apenas teve conhecimento do mapa de partilha e de que o processo estava findo quando se deslocou ao Tribunal, no seguimento da notificação que recebeu para pagar as custas processuais devidas;

d) O Réu não acompanhou, nem estudou, o processo;

e) O Autor estava seguro que o Réu iria reagir contra o despacho de 23/09/2009;

f) O Réu assegurou ao Autor que iria reagir contra tal despacho;

g) O A. recusou-se a aceitar ou reclamar as tornas porque era sua convicção que teria direito aos imóveis.

IV-APLICAÇÃO DO DIREITO:

Comecemos pela apreciação das questões prévias suscitadas pela Recorrida, nas contra-alegações:

4.1 (In)tempestividade do recurso

Defende a Recorrida a inadmissibilidade do recurso, por ter sido interposto fora do prazo.

Para tanto alega que o Recorrente intentou o recurso lançando mão do disposto no art. 638.º, n.º 7 do CPC, o qual prevê que, ao prazo geral dos 30 dias, acrescem 10 dias, caso o recurso tenha por objeto a reapreciação da prova gravada.

Porém o recorrente não observou na impugnação da matéria de facto, os ónus impostos no art. 640.º, n.º 2, al. a) do CPC.

O Recorrente estava obrigado, sob pena de rejeição do recurso, a indicar com exatidão as passagens da gravação, o que manifestamente não faz.

Ora, para além de não transcrever os excertos dos depoimentos que pretende ver reapreciados, não indicou, quer o ficheiro, quer a passagem da gravação a que se os mesmos se reportam, (i. e., não fez uma indicação exata da passagem a que se referem os depoimentos em causa).

Não tendo o Recorrente indicado com exatidão as passagens da gravação em que funda a sua discordância com o decidido e, concomitantemente, não tendo procedido à transcrição dos excertos dos depoimentos que pretende ver reapreciados – como sucedeu no caso em apreço – deverá o recurso ser rejeitado, por não se encontrar cumprido o disposto na al. a), do n.º 2, do art. 640.º do CPC e consequentemente, deverá o recurso apresentado ser rejeitado, nos termos do disposto na al. a), do n.º 2, do art. 640.º do CPC, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida.

Vejamos.

A questão que cumpre apreciar é a de saber se, para aferir a tempestividade do recurso se deverá contar o prazo estabelecido no nº 1 do art.638º do CPC que estabelece o prazo geral de 30 dias, a contar da notificação da decisão, ou o prazo alargado estabelecido no nº 7 da mesma norma que dispõe que “se o recurso tiver por objeto a reapreciação d aprova gravada, ao prazo de interposição e de resposta acrescem 10 dias.”.

 Defende a Recorrida que, porque o recurso deve ser rejeitado na parte da impugnação da matéria de facto, nos termos do art. 640º do CPC, não pode o recorrente beneficiar daquele alargamento do prazo.

Vejamos se é assim.

É certo que o disposto no art. 640.º, n.º 2, al. a) do CPC, prevê que: “Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”  e que o recorrente, como veremos de seguida,  não observou tal ónus, no recurso que interpôs.

Porém, para beneficiar do prazo alargado de recurso, estabelecido no nº 7 do artigo 638º do CPC., apenas será necessário que a alegação do recorrente contenha alguma impugnação da decisão proferida acerca da matéria de facto, a partir da reponderação de meios de prova que, tendo sido prestados oralmente tenham sido objeto de gravação, impendentemente do juízo que ulteriormente seja feito acerca do cumprimento do ónus de indicação das passagens da gravação ou de qualquer outro requisito previsto no art. 640º do CPC. [1]

Abrantes Geraldes,[2] conclui no sentido que “o recorrente apenas poderá beneficiar deste prazo alargado se integrar no recurso conclusões que envolvam efetivamente a impugnação da decisão da matéria de facto tendo por base depoimentos gravados”. E que “caso contrário, terá de se sujeitar ao prazo geral do art. 638º, nº 1. Se, apesar de existir prova gravada, o recurso for apresentado além do prazo normal sem ser inserida no seu objeto a impugnação da decisão da matéria de facto com base na reapreciação daquela prova verificar-se-á uma situação de extemporaneidade determinante da sua rejeição”.

O entendimento da jurisprudência tem sido, com efeito, no sentido que, a apreciação do modo como foram preenchidos os ónus de alegação contidos no art. 640º poderão condicionar o conhecimento da impugnação da matéria de facto, mas não colocam em crise a tempestividade do recurso de apelação que, naquelas condições tenha sido apresentado dentro do prazo legal.(entre outros ver os acórdãos do STJ de 28.4.2016, Proferido no P 1006/12.2TBPRD.P1.S1 e de 9.2.2017, proferido no P 471/10.7TTCSC.L1.S1).[3]

Conclui-se assim que a tempestividade dos recursos constitui um pressuposto processual atinente à sua admissibilidade, pelo que de modo algum o resultado alcançado aquando da apreciação do seu mérito poderá interferir em tal pressuposto cuja satisfação se deve reportar ao momento da sua interposição.

Indefere-se por isso a rejeição do recurso com fundamento na sua extemporaneidade.

4.2 Rejeição do recurso na parte da impugnação da matéria de facto

Pretende ainda o recorrido que o recurso seja rejeitado na parte em que é feita impugnação da matéria de facto, uma vez que, não tendo o Recorrente indicado com exatidão as passagens da gravação em que funda a sua discordância com o decidido e, concomitantemente, não tendo procedido à transcrição dos excertos dos depoimentos que pretende ver reapreciados – como sucedeu no caso em apreço – deverá o recurso ser rejeitado, por não se encontrar cumprido o disposto na al. a), do n.º 2, do art. 640.º do CPC.

Assim, deverá o recurso apresentado ser rejeitado, nos termos do disposto na al. a), do n.º 2, do art. 640.º do CPC, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida.

Vejamos.

Decorre do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que "A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa."

O Tribunal da Relação deve, pois, exercer um verdadeiro e efetivo segundo grau de jurisdição da matéria de facto, sindicando os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos impugnados diversa da recorrida, e referenciar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Porém, para que a parte que pretenda beneficiar dum “segundo julgamento” da matéria de facto, poder ver ser reapreciada a prova produzida, a lei impõe-lhe o cumprimento de alguns ónus, que se encontram devidamente especificados no art. 640º do C.P.C.

Dispõe esta norma o seguinte:

“Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. (…)”

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.

O legislador, quando introduziu um efetivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto, através do DL 39/95 de 15.2, deixou consignado no respetivo preâmbulo, os seguintes objetivos:

“A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a deteção e correção de pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.

A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objeto do recurso e à respetiva fundamentação.

Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redação do artigo 712.º) - e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1.ª instância - possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão inquestionavelmente correta.

Daí que se estabeleça, no artigo 690.º-A, que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto.”

Mostra-se, na verdade, incontestável que quando seja impugnada a matéria de facto o Recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas  - Cf. art.º 640.º, n.º 1, do CP Civil.

Sendo a prova gravada, terá ainda que indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.

A lei comina com a rejeição do recurso, quanto aqueles requisitos formais acabados de enunciar não se mostram observados.

Como refere Abrantes Geraldes,[4] “os aspetos fundamentais a assegurar neste campo são os relacionados com a definição clara do objeto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de factos em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova que são indicados ou em meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado produzido.

Afirma ainda Abrantes Geraldes,[5]que “as referidas exigências devem ser apreciadas á luz de um critério de rigor. Trata-se afinal de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto, s transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.

No caso em apreço, da leitura das conclusões de recurso, que como já tivemos oportunidade de dizer, delimitam o objeto do recurso, estas exigências  formais não se mostram observadas.

Com efeito, tendo o recorrente invocado erro de julgamento quanto à matéria de facto, incumbia-lhe assim e desde logo, por força do disposto no art. 640º do C.P.C. indicar os factos que considera incorretamente julgados e bem assim e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, o que não se verifica.

Menciona também depoimentos prestados, sem contudo indicar as respetivas passagens das gravações, nem proceder à transição dos respetivos depoimentos, na parte que entende relevar.

Desta forma, impõe-se a rejeição do recurso quanto á pretendida alteração da matéria de facto.

4.3 Da nulidade da sentença

Face á rejeição parcial do recurso, na parte da impugnação da matéria de facto, restará apreciar o outro fundamento recursivo que é a nulidade da sentença.

Defende o Recorrente que a sentença é nula, nos termos do disposto no art. 607º, nº 4 e art. 615º, nº 1, alínea b) e c) do CPC, porquanto a lei exige que a matéria de facto provada deva ser descrita pelo juiz de forma fluente e harmoniosa, o que se traduz numa técnica bem diferente daquela outra, aposta na mera enunciação de factos sincopados, “copypaste” do alegado pelas partes dos articulados.

Diz o apelante que, no caso em apreço, a sentença recorrida não ordena os factos de forma fluente, harmoniosa, linear, lógica e cronológica, antes transcreve em diferentes momentos, pontos alegados pelas partes nos respetivos articulados, com isso originando que na fundamentação de facto, total ou parcialmente repetidos.

Assim, perante as inconstâncias da metodologia seguida entende o Recorrente que a douta sentença enferma de nulidade, nos termos do disposto no art. 607º, nº 4 e art. 615º, nº 1, alínea b) e c) do CPC.

Vejamos.

Os vícios determinantes da nulidade da sentença, elencados no art. 615º do CPC, correspondem a casos de irregularidades que afetam formalmente a sentença e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).

As nulidades ínsitas no art. 615º do CPC incidem sobre causas relevantes de nulidade da sentença – além da falta da assinatura do juiz e da condenação em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, a falta de especificação dos fundamentos, de facto e de direito, que justificam a decisão, a contradição ou oposição entre os fundamentos e a decisão ou a ocorrência de alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível e, por fim, a omissão ou excesso de pronúncia.

A “metodologia” imposta por lei na elaboração da sentença, é a que consta do art. 607º do CPC, sobressaindo o disposto nos nº 2,  3 e 4, que têm a seguinte redação:

“(…)

2 - A sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar.

3 - Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.

4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.(…)”

Tudo isto é cumprido de forma exemplar na sentença recorrida, onde consta a enunciação das questões jurídicas a apreciar, a descrição da matéria de facto provada e não provada, dentro dos limites dos temas de prova, o que é feito de forma perfeitamente percetível e linear, seguida da exposição crítica dos meios da prova e da motivação jurídica, isto é da qualificação jurídica dos factos, identificando-se as normas aplicáveis, interpretando-as e aplicando-as á situação concreta.

Manifestamente não ocorre o vício invocado da alínea b) do art. 615º do CPC que estabelece que a sentença é nula “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.

O vício invocado é um vício de natureza meramente formal (omissão total da discriminação dos factos e/ou das normas jurídicas aplicáveis) e não substancial.

A fundamentação das decisões tem consagração Constitucional no artº 205º da CRP estando processualmente plasmada no artº 154º do Código de Processo Civil, no qual se dispõe «As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas” e no que às sentenças respeita, o art. 607º nº 3 e nº 4 expressamente prevê a sua fundamentação, sob pena de ocorrer a nulidade prevista no art. 615º nº 1 al b) do C.P.C.

A garantia da fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial.

A sentença recorrida não padece manifestamente deste vício, já que se mostra devidamente fundamentada quer quanto à factualidade a que o tribunal atendeu para fundamentar a decisão quer de direito, onde se mostra devidamente expressa a motivação jurídica da decisão.

Entende ainda o apelante que a sentença padece do vício previsto no art. 615.º, n.º 1, al. c) CPC. nos termos do qual,  a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Afirma que existe uma clara e efetiva oposição entre os fundamentos e a decisão o que, e de igual modo, torna a sentença nula.

Trata-se de uma afirmação desprovida de qualquer fundamento.

A nulidade da alínea c) do nº 1 do art. 615º do CPC remete para o princípio da coerência lógica da decisão uma vez que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica, i.e., a decisão proferida não pode seguir um caminho diverso daquele que apontava a linha de raciocínio plasmado nos fundamentos. Tem-se entendido que esta nulidade está relacionada, por um lado, com a obrigação de fundamentação da decisão prevista nos art. 154º e 607º nº 3 do CPC e, por outro, pelo facto da decisão dever constituir um silogismo lógico-jurídico em que a decisão deverá ser a conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor).

Tudo isso se mostra devidamente respeitado na sentença recorrida, que manifestamente não padece do vicio invocado.

Não ocorrem assim as nulidades apontadas, restando, por isso julgar improcedente o recurso.

V-DECISÃO

Pelo exposto e em conclusão, acordam as Juízas que compõem este Tribunal da Relação do Porto, em rejeitar o recurso na parte da impugnação da matéria de facto e, no demais, em julgá-lo improcedente.

Custas pelo Apelante.


Porto, 5.3.2024
Alexandra Pelayo
Anabela Miranda
Maria Eiró
_______________
[1] Ver António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in CPC anotado, Almedina, Vol I, pg. 766.
[2] In Recursos no NCPC, 3ª ed., pág. 125.
[3] Ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[4] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, pg. 175.
[5] Obra citada, pg. 169.