VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PESSOA PARTICULARMENTE INDEFESA
RECIPROCIDADE DAS AGRESSÕES
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
ELEMENTOS DO TIPO
Sumário

I–Não sendo o recurso um novo julgamento, mas um mero instrumento processual de correção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada pelo recorrente, é patente a necessidade de impugnação especificada com a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, em termos de a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum, imporem diversa decisão.

II–Não cumprindo a recorrente (nas conclusões ou sequer no corpo da motivação) o ónus de impugnação especificada a que estava vinculada, não pode este Tribunal da Relação conhecer do respetivo recurso na parte afetada.
III–O crime de violência doméstica, integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, dentro deste, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, visa tutelar, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, abarcando, por isso, os comportamentos que lesam esta dignidade.
IV–Para caracterizar uma particular fragilidade da vítima, não basta a coabitação com o agente, nem mesmo que o ofendido se encontre numa das circunstâncias tidas em vista pela norma (idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica do agente). É também indispensável que, perante os factos dados como provados, se possa concluir que a vítima era uma pessoa particularmente indefesa, por se encontrar numa situação de particular vulnerabilidade e de especial incapacidade de reação relativamente às investidas do agente.
V–A reciprocidade suscetível de excluir o cometimento do crime – por traduzir a inexistência do desequilíbrio de posições que constitui pedra de toque do crime de violência doméstica – só é relevante se for contemporânea dos factos imputados ao arguido, mas já não se se mostrar desfasada no tempo.
VI–No crime de detenção de arma proibida previsto na alínea d) do nº 1 do artigo 86º do RJAM, o que releva é que se possa ter como provado que a posse das «armas» não está justificada face ao uso que normalmente lhes é dado, pelo arguido ou por qualquer outra pessoa.
VII–Se é inequívoco que a detenção dos instrumentos visa a sua utilização como arma de agressão, então está mais que não justificada a sua posse.
(Sumário da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

*

I.RELATÓRIO

No processo comum coletivo nº 12/23.6PHAMD do Juízo Central Criminal de Sintra (Juiz 1), do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, foi julgado o arguido AA, filho de BB e de CC, natural de ..., de nacionalidade ..., nascido em ........1979, titular do cartão de cidadão n.º 1......., residente, quando em liberdade, na ..., atualmente preso preventivamente, à ordem dos presentes autos, no Estabelecimento Prisional de Lisboa, tendo sido condenado, após comunicação de alteração não substancial dos factos, por acórdão datado de 27.11.2023, “pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. a), do Código Penal, de que foi vítima CC, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão; um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, als. d) e e), e n.º 2, al. a), do Código Penal, de que foi vítima DD, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão; um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. a), do Código Penal (não com a moldura penal prevista nos arts. 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código Penal), de que foi vítima BB, na pena de 3 (três) anos de prisão; e um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. d), com referência ao art. 2.º, n.º 1, al. m), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, na pena de 2 (dois) anos de prisão.

Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.

O arguido foi ainda condenado “na pena acessória de proibição de contacto com DD, incluindo o afastamento da residência e da escola desta, a uma distância mínima de 500 (quinhentos) metros, sendo o seu cumprimento fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, pelo período de 3 (três) anos” e “na pena acessória de proibição de contacto com BB, incluindo o afastamento da residência deste, a uma distância mínima de 500 (quinhentos) metros, sendo o seu cumprimento fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, pelo período de 3 (três) anos”.

Mais foi o arguido condenado “no pagamento a DD, a título de reparação pelos prejuízos por esta sofridos, da quantia de 750 € (setecentos e cinquenta euros), acrescida de juros, calculados, à taxa legal de juros civis, desde a data desta decisão até integral pagamento dessa quantia” e “no pagamento a BB, a título de reparação pelos prejuízos por este sofridos, da quantia de 1500 € (mil e quinhentos euros), acrescida de juros, calculados, à taxa legal de juros civis, desde a data desta decisão até integral pagamento dessa quantia”.

Inconformado com a decisão final, dela interpôs recurso o arguido, formulando as seguintes conclusões:
1ª-O Recorrente foi condenado pela prática de 3 crimes de violência doméstica e um crime de detenção de arma proibida, na pena única e em cúmulo de 5 anos e 3 meses de prisão e no pagamento de uma indemnização de 1.500,00€ a BB e 750,00€ a DD, entre outras.

2ª-O Recorrente não concorda com a pena que lhe foi aplicada.

Porquanto,

3ª- Entende que a mesma é desproporcional e elevadíssima face à situação em concreto.

4ª-O Tribunal apenas teve em consideração as declarações dos ofendidos BB e DD desvalorizando, quer o depoimento de CC como o do arguido.

5ª- Entendeu que aquela por ser mãe do arguido esteve sempre a defendê-lo com a intenção do que o mesmo não fosse preso e que o arguido se fez de vítima, quando na realidade do relatório social consta que o mesmo sempre foi vítima de maus tratos por parte do ofendido BB;

6ª-Os filhos são espelhos dos pais e daquilo que vêm em casa destes durante o seu crescimento.

7ª-Desconhece-se o circunstancialismo que deu origem aos factos, o qual teria sido importante conhecer. Porém,

8ª-Se o ofendido tinha consigo um pau no sofá (ultima linha de fls. 15 do acórdão) e o se o arguido pegou em duas facas de cozinha e depois as colocou no chão é porque não tinha intenção de lhe fazer qualquer mal, uma vez que se o quisesse fazer tê-lo-ia feito e não seria a menor DD a impedi-lo;

9ª-As declarações prestadas para memória futura pela menor DD são contraditórias com as prestadas pelo ofendido BB, que disse com toda a clareza que a catana era sua e que a tinha ido buscar à horta (fls. 17, 3º parágrafo do acórdão);

10ª-Há contradição nas declarações prestadas pelos ofendidos no que diz respeito aos factos dados como provados e referidos em 16 e 17, pelo que, é verdadeiro o dito por CC em sede de audiência de julgamento e transcrito no 2º paragrafo de fls. 19 do douto acórdão: “o marido e a neta mentem muitas vezes.”

11ª-Os depoimentos dos ofendidos prestados para memória futura e transcritos no douto acórdão são contraditórios e como tal não deveriam ter sido dados como provados os factos constantes dos nºs 25º, 26º e 29º dos factos provados do douto acórdão. Por outro lado,

12ª-Os pontos 7º, 8º, 10º, 12º, 15º, 16º, 17º, 33º dos factos provados do Acórdão Recorrido, apresentam expressões vagas e que não concretizam os factos, o que teria que ser feito, pelo que, os factos constantes dos mesmos não poderiam ter sido dados como provados.

13ª-Não se compreende, com o devido respeito, onde o Tribunal “a quo” foi buscar que o arguido tem um caracter afetivamente desapegado, uma vez que não foi feita qualquer avaliação psicológica ao mesmo.

14ª-O Tribunal “a quo” não teve em conta que o arguido tinha um problema severo de alcoolismo e de droga e que qualquer pena a aplicar ao mesmo teria que passar pelo tratamento dessas problemáticas.

15ª-O certo é que a convicção do Tribunal sobre a matéria de facto dada como provada assentou no depoimento dos ofendidos BB e DD, que se encontram zangados com o arguido, não tendo em conta o depoimento de CC, nem as declarações do arguido;

16ª-Esta contradição e imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo uma mera imputação genérica que segundo a Jurisprudência do Supremo Tribunal Judicial é insuscetível de sustentar uma condenação penal.

17ª-Entende-se, com o devido respeito pela opinião em contrário que os factos supra referidos dados como provados devem considerar-se como não provados.

18ª-O ofendido BBem momento algum disse ter tido medo do arguido, ou que tivesse temido pela sua vida. Deste modo,

19ª-Entende-se não estarmos perante crimes de violência doméstica, mas sim de falta de respeito mútuo.

20ª-O Recorrente não concorda com a pena de prisão efetiva que lhe foi aplicada, a qual, com o devido respeito, não observou os termos previstos no art. 71º do CP, não tendo sido feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção especial.

21ª-O Tribunal “a quo” não teve em conta que eram facas de cozinha, uma segundo a ofendida DD, de barrar o pão e a outra de cortar cebolas e que essas facas não eram do arguido, mas sim da casa; Por outro lado,

22ª-Também não teve em conta que a catana era do ofendido BB e que segundo o mesmo, em declarações prestadas para memória futura e transcritas no douto Acórdão foi este quem a foi buscar à horta;

23ª-Quanto aos paus, segundo a ofendida DD, também eram do ofendido António, que os tinha consigo sempre no sofá. Assim,

24ª-Nenhuma das armas era propriedade do arguido, elo que, não podia ser condenado pela prática do crime de detenção de arma proibida. Por outro lado,

25ª-Em momento algum o ofendido BB disse ter tido medo do arguido, tendo inclusive lhe feito frente dizendo que lhe dava com o pau e foi buscar a catana à horta, segundo o mesmo.

26ª-Os ofendidos DD e BB falaram em paus e nunca se falou em bastão algum.

27ª-O arguido não concorda com a pena que lhe foi aplicada em cúmulo jurídico, a qual considera desproporcionada, injusta e que ultrapassa em muito a medida da culpa;

28ª-Discorda também, da não suspensão da pena de prisão que lhe foi aplicada;

29ª-Na pena a aplicar ao arguido o Tribunal “a quo” deveria ter tido em conta que a dinâmica entre pai e filho sempre foi negativa, conflituosa, pautada por agressões físicas do pai para com o filho”, “que o arguido revela uma problemática de alcoolismo severa, bem como, eventual distúrbio psicológico, apesar de não existir qualquer diagnóstico médico-psiquiátrico nesse sentido, de que resulta um modo de vida de desorganização pessoal e social”, “que o arguido refere que, em liberdade, tem possibilidade de integração laboral como trabalhador da construção civil, num anterior patrão…” e que “ o arguido era consumidor de drogas;”(vide relatório social)

30ª-Ao não ter tido em conta estes factos que constam do relatório social junto aos autos e que se encontram insertos no douto Acórdão Recorrido, mal andou o Tribunal “a quo” ao aplicar uma pena de prisão de 5 anos e 3 meses de prisão efetiva ao arguido, por ser desproporcional e elevadíssima face aos factos dados como provados;

31ª-Face a tudo o supra alegado sempre teria que ser aplicado uma pena junto do limite mínimo, que caso se mantenha a condenação pelo crime de violência doméstica teria que ser de 3 anos de prisão e suspensa na sua execução, sujeito a regime de prova de tratamento ao álcool e à droga e proibição de contatos com os ofendidos e não aproximação dos mesmos.

32º-No caso concreto e face ao facto de o arguido já se encontrar em prisão preventiva há mais de 11 meses, o mesmo já interiorizou o desvalor da sua conduta e quer pautar a sua vida pelas regras socialmente impostas.

33ª-A aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução ao arguido será suficiente, uma vez que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

34ª-O fim das penas é a ressocialização dos arguidos, pelo que, mandá-los para os estabelecimentos prisionais, onde passam o dia inativos é mais uma forma de os excluir da sociedade e criar despesa ao contribuinte.

35ª-A pena tem que ser punitiva, mas uma punição exemplar que faça o arguido “sofrer” com a mesma;

36ª-No caso concreto aplicar-se-lhe uma pena suspensa com obrigações para cumprir, nomeadamente a submissão ao tratamento do álcool e da droga será mais doloroso do que estar sem fazer nada no estabelecimento prisional.

37ª-De acordo com o art. 53º nº do CP, “o tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reinserção do condenado na sociedade.”

38ª-Para determinação da medida da pena concretamente aplicada ao arguido o Tribunal “a quo” não observou os termos do disposto no nº 1 do art. 71º do CP, não tendo sido feita em função da “culpa” do agente e das exigências de prevenção especial.

39º-Nessa medida o Tribunal “a quo”, salvo melhor opinião, sabe que uma medida de afastamento com controlo à distância é suficiente para acautelar estas situações.

40ª-Consta do relatório social que a sua irmã Antónia Gonçalves que reside em Sintra está disposta a receber o arguido na sua casa e a acompanhá-lo nos tratamentos, pelo que, o Tribunal “a quo” deveria ter tido em conta tal facto e aplicar ao arguido uma pena de prisão suspensa na sua execução.

41ª-Com o devido respeito pela opinião em contrário, o Tribunal “a quo” ao não aplicar ao arguido uma pena de prisão suspensa na sua execução violou o preceituado no art. 70º conjugado com o art. 40º, ambos do CP, designadamente a obrigação de observar que em nenhum momento a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

42ª-Assim, pelo exposto e da ponderação de todo o circunstancialismo inerente aos factos em concreto, nomeadamente os relevantes para a determinação da medida da pena, impõe-se a correção da excessividade desta, decidindo-se, também, pelo reconhecimento do preenchimento das condições para a sua suspensão, conforme o disposto no nº 1 do art. 50º do CP mediante regime de prova, nos termos dos arts. 53º nºs 1 e 3 e 54º do CP..

43ª-Quanto ao valor das indemnizações arbitradas também se entende ser elevado, uma vez que o arguido não tem quaisquer bens ou rendimentos que lhe permita pagá-las.

44ª-As indemnizações arbitradas não obedecem aos critérios de equidade por serem elevadíssima e desproporcionais face aos rendimentos do arguido. Para além disso,

45ª-Não ficaram provados quaisquer danos dos ofendidos.

46ª-Reitera-se que a pena de prisão efetiva de 5 anos e 3 meses é elevadíssima e desproporcional à culpa do arguido, pelo que deve reduzir-se a mesma e suspendê-la na sua execução sujeito o arguido a regime de prova de tratamento do álcool e das drogas, bem como proibição de contatos e aproximação dos ofendidos. Pois,

47ª-A simples ameaça da execução da pena de prisão, no caso concreto é mais do que suficiente às finalidades da punição, tanto mais que o arguido já se encontra à mais de 11 meses em prisão preventiva e durante este período já interiorizou o desvalor da sua conduta. Assim,

48º-Com o devido respeito, mal andou o Tribunal “a quo” ao decidir como decidiu, pelo que deve ser revogado o Acórdão Recorrido. Porém,

49º-Se assim se não entender, reduzir a pena de prisão aplicada e suspender-se a mesma com regime de prova.

Nestes termos e nos mais de direito deve dar-se provimento ao presente recurso e, por via dele revogar-se o Acordão Recorrido e em consequência seja corrigido o excesso da pena a que foi condenado, bem como a necessária suspensão desta,

Assim, se fazendo a Costumada JUSTIÇA!”

O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.

O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, extraindo a respetiva motivação as seguintes conclusões:

1.–O Arguido/Recorrente AA foi condenado pela prática, de:

- um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. a), do Código Penal, de que foi vítima CC, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão;

- um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, als. d) e e), e n.º 2, al. a), do Código Penal, de que foi vítima DD, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão;

- um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. a), do Código Penal (não com a moldura penal prevista nos arts.º 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código Penal), de que foi vítima BB, na pena de 3 (três) anos de prisão;

- um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al. d), com referência ao art. 2.º, n.º 1, al. m), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, na pena de 2 (dois) anos de prisão.

Em cúmulo jurídico destas penas, na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.

2.–O Recorrente, ao impugnar a factualidade dada como provada nos pontos 7º, 8º, 10º, 12º, 15º, 16º, 17º, 25º, 26º, 29º e 33º, os quais, no seu entender, deveriam ter sido dados como não provados, limita-se a fazer referência ao seu “ponto de vista” no que respeita à prova produzida em audiência de julgamento, retirando uma ou outra frase dos depoimentos prestados pelas testemunhas CC, BB e EE, estes dois últimos em declarações para memória futura, para invocar contradições entre as mesmas (com excepção das declarações prestadas por CC, mãe do arguido, que manifestou vontade de prestar declarações, não obstante a advertência que lhe foi efectuada, nos termos do art.º 134.º, ns.º 1, al. a) e 2 do CPP e que, claramente, faltou à verdade, revelando parcialidade e protecção do arguido, mas que o Recorrente pretende ver valorado de forma positiva).

3.–Da motivação apresentada pelo Recorrente conclui-se que o mesmo entende que o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento.

4.–Porém, não deu cumprimento ao disposto nas alíneas a), b) e c), do n.º 3 do art.º 412.º, do CPP.

5.–Efectivamente, o Recorrente limitou-se a invocar e tentar contraditar os fundamentos que o tribunal a quo apresentou na motivação da matéria de facto.

6.–Pelo que, perante a falta de concretização dos factos fixados pelo tribunal a quo e que o Recorrente poderia considerar como não provados, coarctada ficou a possibilidade do tribunal ad quem sindicar a matéria de facto que foi fixada pelo tribunal a quo, matéria essa que, assim, se tem que dar por assente.

7.–No entanto sempre se dirá que da conjugação da prova que resultou da audiência de julgamento, conjugada com a prova documental existente nos autos, não resultaram razões para afastar o raciocínio lógico do tribunal a quo.

8.–De facto, a ofendida DD, nas suas declarações para memória futura, que se revelaram credíveis e isentas, esclareceu os factos relativamente aos quais tinha conhecimento directo pois ocorreram na sua presença.

9.–As quais foram corroboradas pelas declarações para memória futura prestadas pelo seu avô, o ofendido BB, na parte que lhe dizia respeito quer pelos Agentes da PSP que se deslocaram à residência deste.

10.–Sendo que da mera leitura do acórdão recorrido não resulta por demais evidente a “conclusão contrária” àquela a que chegou o Tribunal; pelo contrário é assertiva a fundamentação esplanada, permitindo compreender o raciocínio lógico que presidiu à sua prolação, não resultando do seu texto que tivesse que ser outra a decisão do Tribunal a quo, mesmo quando os factos ali assentes são conjugados com as regras da experiência.

11.–Há que concluir, assim, que os factos dados como provados, nomeadamente aqueles que foram impugnados pelo Recorrente, resultam da prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com a prova documental existente nos autos.

12.–O crime de violência doméstica agravada, previsto no art.º 152.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, é punível com pena de prisão de 2 a 5 anos;

13.–O crime de detenção de arma proibida previsto no art.º 86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, é punida com pena de prisão de 1 mês até 4 anos ou com pena de multa de 10 até 480 dias (cfr. arts. 41.º, n.º 1, e 47.º, n.º 1, do Código Penal).

14.–Com relevância para a determinação da medida da pena há a considerar que:

▪ o dolo, directo, cuja intensidade se tem por elevada;

▪ a não confissão do Recorrente;

▪ as exigências de prevenção geral que se revelam elevadas atendendo à frequência com que se verificam tais tipos de crime;

▪ as exigências de prevenção especial que se revelam muito elevadas, tendo em consideração que o Recorrente já tem antecedentes criminais pela prática de crimes da mesma natureza, com penas de prisão, suspensa na sua execução com sujeição a regime de prova, incluindo a obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica e com pena de multa (relativamente ao crime de detenção de arma proibida) o que não se revelou suficiente para o demover da prática de mais crimes.

15.–Ponderando todos estes factores, entendeu o tribunal a quo por adequada aplicar as penas de:

● 2 anos e 3 meses de prisão quanto ao crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. a), do Código Penal, de que foi vítima CC;

● 2 anos e 9 meses de prisão quanto ao crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, als. d) e e), e n.º 2, al. a), do Código Penal, de que foi vítima DD;

● 3 anos de prisão quanto ao crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. a), do Código Penal, de que foi vítima BB;

● 2 anos de prisão quanto ao crime de detenção de arma proibida.

Em cumulo jurídico destas penas parcelares, na pena única de 5 anos e 3 meses de prisão.

16.–Tendo em consideração o limite mínimo – 3 anos – e o limite máximo – 10 anos – a pena concreta fixada no acórdão, muito próxima do meio, é inteiramente justa, equilibrada e não merece reparo, mostrando-se conforme aos parâmetros gerais e concretos de fixação, segundo os art.ºs 40.º e 71.º, respectivamente, do CP.

17.–No caso dos autos, atenta a pena aplicada, não é legalmente admissível a sua suspensão.

18.–Porém, sempre se dirá que, mesmo que tal fosse admissível, tendo em consideração o que ficou dito e tendo em conta os tipos de crime em causa, não só as exigências de prevenção geral positiva, atento o forte alarme social das condutas praticadas, como as exigências de prevenção especial positiva, consubstanciadas no fato de atento o seu percurso não se afigurar como suficiente a simples ameaça da pena, sempre haveria que concluir pela necessidade de aplicação de uma pena de prisão efetiva.

19.–Quanto ao valor das indemnizações arbitradas também se entende serem os mesmos justos e adequados.

20.–No mais, não se mostrará violado qualquer preceito legal nem desrespeitado qualquer direito.

No entanto, Vossas Excelências decidirão, fazendo JUSTIÇA.”

Neste Tribunal, o Exmo Procurador-Geral Adjunto apresentou parecer, subscrevendo a posição expressa pelo Ministério Público na 1ª instância, e aditando:

“(…) não obstante o Arguido AA ter impugnado expressamente parte da matéria de facto dada provada, indicando os pontos de factos que considera incorretamente julgados, não indicou, no entanto, qualquer prova produzida que tenha a virtualidade de impor, claramente, decisão diversa da decisão recorrida.

Aliás, e sempre com o salvo e devido muito respeito, o Arguido AAlimita-se a divergir subjectiva e genericamente na avaliação da prova produzida com recurso a uma argumentação de valoração apoiada em apelos de vida pessoal e não apoiada em elementos de prova concretamente impositiva de sentido contrário à decidida pelo tribunal recorrido.

Ora, o Tribunal que julga em primeira instância, goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados.

Assim, a questão fundamental é que o tribunal recorrido adquiriu a convicção firme sobre o facto e fundamentou o juízo crítico sobre a prova em que suportou tal convicção de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

A ser assim, no exame crítico levado a efeito o Tribunal recorrido seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, tendo esta sido apreciada segundo as regras da experiência e da livre apreciação, nos termos do disposto no art. 127.º do Código de Processo penal.

Nesta conformidade, entende-se que não deve haver lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto e, consequentemente, deve improceder a impugnação sobre a matéria de facto.

Pelo exposto, e salvo o devido e muito respeito por diferente opinião, somos do parecer que o recurso interposto pelo Arguido AA deve ser julgado improcedente, mantendo-se na íntegra o Acórdão recorrido.”

Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

*

II.–QUESTÕES A DECIDIR
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quemtem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – o acórdão proferido nos autos – as questões a examinar e decidir prendem-se com o seguinte:

- saber se a matéria de facto foi incorretamente julgada;

- saber se os factos provados são bastantes para integrar os crimes pelos quais o arguido foi condenado;

- saber se a pena única em que o arguido foi condenado se mostra excessiva e deve ser reduzida e suspensa na sua execução;

- saber se as reparações arbitradas se mostram excessivas e devem ser reduzidas.

*

III.–TRANSCRIÇÃO DOS SEGMENTOS DA DECISÃO RECORRIDA RELEVANTES PARA APRECIAÇÃO DO RECURSO INTERPOSTO.

Da decisão recorrida, com interesse para as questões em apreciação em sede de recurso, consta o seguinte:

III.–DOS FACTOS

1.–Factos provados

Da prova produzida em audiência, resultaram provados os seguintes factos, com interesse para a decisão:

1º.-O arguido AA é filho de BB, nascido em ........1934, actualmente com 89 anos de idade, e de CC, nascida em ........1939, residentes na ....

2º.-O arguido não residiu permanentemente com os seus pais, tendo residido no distrito de ....

3º.-Quando pretendia visitá-los e à sua filha, DD, o arguido pernoitava na casa dos seus pais.

4º.-O arguido passou a residir com BB, CC e DD no ano de 2022.

5º.-BB e CC têm a seu cuidado, desde cerca do seu nascimento, DD, nascida em …2011.

6º.-O arguido é consumidor habitual de estupefacientes e álcool e é agressivo.

7º.-Em datas não concretamente apuradas, o arguido consumiu produtos estupefacientes e álcool na presença da sua filha DD.

8º.-Em data não concretamente apurada, no interior da residência, o arguido partiu o telemóvel e,

9º.- após, disse à filha “Se não me abrires a porta da próxima vez, faço-te o mesmo que ao telefone”.

10º.-Em data não concretamente apurada, no Verão de 2022, o arguido perguntou à filha onde estavam as coisas para fazer “a ganza”, ao que ela respondeu que não sabia.

11º.-Acto contínuo, o arguido desferiu-lhe uma bofetada de mão aberta na face.

12º.-Em data não concretamente apurada, pouco antes de 4 de Janeiro de 2023, o arguido e CC discutiram.

13º.-No decorrer da discussão, o arguido disse a CC: “prostituta” e “vaca”.

14º.-Após, o arguido saiu de casa e fechou a porta com força.

15º.- CC viajou para ....

16º.-Por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, o arguido disse a CC: “Dou-te uma chapada”.

17º.-Em data não concretamente apurada, o arguido partiu uma janela da sala com uma pedra.

18º.-No dia 4 de Janeiro de 2023, ao final da noite, o arguido chegou à habitação dos seus pais bastante alterado, não deixando o pai e a filha descansar.

19º.-O arguido começou a desferir socos de punho cerrado num armário que tinha vidros.

20º.-BB disse ao arguido para parar de o fazer,

21º.-e este, de imediato, começou a implicar com a sua filha, levantando-lhe a mão, com o fito de lhe bater.

22º.-Nesse instante, BB intrometeu-se entre ambos, pelo que o arguido não conseguiu prosseguir os seus intentos.

23º.-Então, o arguido começou a arremessar objectos para o chão, tais como a mesa e os pratos, que partiu, e talheres, partiu a porta da habitação e,

24º.-seguidamente, muniu-se de duas facas de cozinha, empunhando uma em cada mão e dirigiu-se a BB, que se encontrava sentado no sofá da sala.

25º.-O arguido sentou-se em cima de BB, empunhando as facas, ao mesmo tempo que lhe dizia “Vou-te dar duas facadas na cabeça”.

26º.-Acto contínuo, a DD desviou o avô para que não fosse atingido por faca que o arguido empunhava.

27º.-BB disse ao arguido que lhe dava com um pau na cabeça.

28º.-O arguido largou as facas e a DD foi guardá-las.

29º.-O arguido pegou numa catana.

30º.-BB tirou a catana das mãos do arguido e empurraram-se mutuamente.

31º.-BB e a DD saíram de casa e dirigiram-se à Esquadra de Polícia.

32º.-Os Agentes da Polícia de Segurança Pública deslocaram-se à habitação, porém, sem sinal da presença do arguido, regressaram à esquadra do ....

33º.-Passado algum tempo, o arguido introduziu-se na habitação, através da janela da cozinha, do que a sua filha se apercebeu e esta, com medo de que o arguido matasse ou magoasse o seu avô, dirigiu-se novamente com o avô à Esquadra de Polícia.

34º.-Quando o Agente da Polícia de Segurança Pública FF entrou na habitação, o arguido encontrava-se sentado, no sofá, munido de uma faca com 13,5 cm de lâmina e, junto do mesmo, encontravam-se um cutelo com 15,5 cm de lâmina, uma faca de cozinha com 12 cm de lâmina e um bastão de madeira.

35º.-Nesse momento, em tom sério, o arguido disse ao Agente da Polícia de Segurança Pública: “Estou à espera do meu pai para o matar”, sendo de imediato, detido.

36º.-O arguido, ao agir da forma supracorrespondentemente descrita, actuou com o propósito, concretizado, de molestar física e psicologicamente o seu pai e a sua filha DD e psicologicamente a sua mãe, e de lhes criar receio pela sua vida e integridade física, o que conseguiu agindo a coberto de um sentimento de impunidade, no interior da residência comum, comprometendo a pacífica convivência familiar.

37º.-Sabia que os seus pais eram octogenários e a sua filha uma criança.

38º.-O arguido conhecia as características das facas, do cutelo e do bastão de madeira com que se muniu, sabendo-os aptos a ser utilizados para atacar e detinha-os com a finalidade de atentar contra o corpo do seu pai.

39º.-O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei penal.

*

40º.- O arguido já foi condenado:

- por sentença proferida em 15.03.2018, transitada em julgado em 23.04.2018, pela prática, em 26.02.2016, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 6 €; por decisão proferida em 27.06.2019, transitada em julgado em 07.01.2020, esta pena, deduzida de um dia de detenção sofrida, foi convertida em 52 dias de prisão subsidiária, que se extinguiu, pelo pagamento da multa, em 06.04.2020 (Proc. n.º 198/16.6PBAMD do Juízo Local Criminal da Amadora);

- por sentença proferida em 27.11.2019, transitada em julgado em 09.01.2020, pela prática, em 26.09.2018, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. c), com referência aos arts. 2.º, n.º 1, al. aq), e 3.º, n.º 5, al. a), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de 5,5 €, e pela prática, desde Outubro de 2017 até 28.07.2018, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. b), e 2, do Código Penal, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos e 3 meses, com sujeição a regime de prova incluindo a obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica, nos termos do n.º 4 do art. 152.º do Código Penal, e na pena acessória de proibição de contactar com a ofendida GG, pelo período de 2 anos e 3 meses, nos termos do n.º 4 do art. 152.º do Código Penal (Proc. n.º 176/18.0GAOHP do Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Hospital).

*

41º.-O arguido nasceu em ........1979, em …, tem nacionalidade ..., encontra-se em Portugal desde 1997 e não possui autorização de residência.

42º.-Tem 13 irmãos.

43º.-Quando tinha 12 anos, os seus pais imigraram para Portugal, procurando uma vida melhor; ficou aos cuidados da irmã mais velha e, em ..., concluiu o 4.º ano de escolaridade.

44º.-Em Portugal, o seu pai sempre trabalhou como ...e a sua mãe como ....

45º.-O arguido veio viver para Portugal quando os pais conseguiram reunir os meios para tal.

46º.-Trabalhou na ... e como ....

47º.-É consumidor de haxixe há cerca de 20 anos, tendo começado a consumi-lo com amigos.

48º.-Aquando dos factos supra descritos a que se refere este processo, encontrava-se desempregado e desocupado.

49º.-Durante cerca de dois anos, tinha residido com uma actual ex-companheira, de nacionalidade …, no distrito de ..., sendo essa a vítima do crime de violência doméstica pelo qual foi condenado no Proc. n.º 176/18.0GAOHP.

50º.-Essa condenação não é algo que o incomode, porque, segundo o próprio, já queria acabar a relação.

51º.-Nessa sequência, após ter deixado de residir no distrito de ... e até, no Verão de 2022, ter passado, temporariamente, a residir com os pais e a filha, na casa destes, o arguido não tinha residência fixa, ocupando muitas vezes habitações abandonadas, tendo sido os pais que, por isso, tiveram a iniciativa de o acolher.

52º.-O arguido é um indivíduo isolado, autocentrado e desvinculado de ambientes estruturados e normativos, em resultado da sua problemática de alcoolismo severa.

53º.-O próprio não reconhece essa problemática, para a qual nunca fez qualquer tratamento.

54º.-Não tenciona deixar de consumir haxixe, porque gosta do seu efeito e considera que não lhe faz mal.

55º.-No âmbito do Proc. n.º 176/18.0GAOHP, não cumpriu as obrigações decorrentes do regime de prova a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de 2 anos e 2 meses de prisão em que foi condenado pela prática do crime de violência doméstica, uma vez que não compareceu no serviço da DGRSP encarregue da elaboração do respectivo plano de reinserção social, não tendo tal serviço conseguido contactá-lo por outra via e desconhecendo os seus familiares, na altura, o seu paradeiro.

56º.-À data dos factos supra descritos a que se refere este processo encontrava-se assim, de forma temporária, a pernoitar em casa dos seus pais, ao cuidado dos quais se encontra a sua filha.

57º.-Para além de visitas em épocas festivas, nunca conviveu regularmente com os elementos do agregado composto pela irmã, pelo cunhado e pelos filhos desse casal.

58º.-O pai do arguido sempre foi uma figura austera, que nunca aceitou os comportamentos disfuncionais do arguido, nomeadamente o seu consumo de estupefacientes e de álcool e a prática de comportamentos ilícitos que veio a determinar a intervenção do sistema de justiça.

59º.-O arguido percepciona o pai como uma figura autoritária e tem, relativamente a si próprio, uma atitude desculpabilizante.

60º.-Por isso, e porque sempre foi pouco cumpridor de regras, o arguido sempre teve uma relação conflituosa com o pai.

61º.-Nesse contexto, o arguido autonomizou-se cedo, passando a viver em zonas relativamente distantes, nomeadamente nas de ... e, mais tarde, de ..., com um estilo de vida desorganizado, pautado por consumos abusivos de álcool e drogas.

62º.-O pai do arguido e o seu cônjuge, mãe deste, apresentam idade avançada e problemas de saúde, nomeadamente de locomoção, padecendo a mãe também de doença do foro oncológico, e dependem de uma irmã do arguido, JJ, para o apoio estruturado do dia-a-dia; nesse contexto, a filha do arguido é apoiada pela CPCJ da ….

63º.-O pai do arguido teme novas situações de agressividade por parte deste, pelo que não quer voltar a manter qualquer contacto com o mesmo e acha bem que se mantenha preso; a mãe e a irmã do arguido consideram que essa posição do pai impede que o arguido retorne ao meio livre, tendo a irmã, desvalorizando os seus sentimentos de insegurança, manifestado disponibilidade para acolher o arguido no respectivo agregado.

64º.-O pai do arguido não compreende o funcionamento do equipamento de protecção para efeitos de fiscalização da proibição de contactos por meio do sistema de vigilância electrónica.

65º.-No âmbito dos presentes autos, o arguido foi detido em 04.01.2023 e está preso preventivamente desde 05.01.2023, ininterruptamente, encontrando-se actualmente no Estabelecimento Prisional de Lisboa.

66º.-O arguido tem reduzido juízo crítico quanto aos factos subjacentes à sua última condenação e aos supra descritos a que se refere este processo, relativamente aos quais não manifesta arrependimento.

2.–Factos não provados

Não se provou que:

a)-a referida filha do arguido tenha os nomes “AA”;

b)-é sob o efeito de estupefacientes e álcool que o arguido se torna agressivo;

c)-aquando do descrito no ponto 18.º dos factos provados, o arguido estava sob o efeito de estupefacientes;

d)-aquando do descrito no ponto 23.º dos factos provados, o arguido arremessou o telefone para o chão, partindo-o, e arrancou a tomada do fio de electricidade;

e)-aquando do descrito no ponto 25.º dos factos provados, o arguido disse “Parto-te todo, podes chamar a polícia que a polícia não pode fazer nada”;

f)-aquando do descrito no ponto 26.º dos factos provados, a DD desferiu um empurrão no seu avô;

g)-aquando do descrito no ponto 29.º dos factos provados, a catana se encontrava debaixo da cama;

h)-o arguido agiu com o propósito de tirar a vida a BB, somente não prosseguindo os seus intentos devido à intervenção da sua filha, e persistiu nessa intenção até ao momento da sua detenção pelos Agentes da Polícia de Segurança Pública;

i)-foi com o propósito firmado de tirar a vida a BB e com a finalidade de contra ela atentar que o arguido agiu como descrito nos pontos 24.º, 25.º, 34.º e 38.º dos factos provados.

3.– Motivação da matéria de facto

A convicção do tribunal quanto à matéria de facto provada nos pontos 1.º a 39.º resultou da análise crítica e conjugada, de acordo com as regras da experiência e da lógica, de toda a prova produzida, nomeadamente:

- das declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento;

- das declarações prestadas pelo arguido em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, realizado em 05.01.2023, cujo auto consta de fls. 34 a 45, estando gravadas no sistema Citius, das quais o arguido e o Ministério Público afirmaram em audiência de julgamento estarem inteirados, considerando-as reproduzidas nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 357.º, n.º 1, al. b), e 355.º do Código de Processo Penal, e em que o arguido negou a prática dos factos em causa;

- das declarações para memória futura de DD (filha do arguido), prestadas em 17.02.2023, constando o auto de tal diligência de fls. 146 a 148 e a respectiva gravação no sistema Citius;

- das declarações para memória futura de BB (pai do arguido), prestadas em 28.02.2023, constando o auto de tal diligência de fls. 153 e 154 e a respectiva gravação no sistema Citius;

- dos depoimentos, em audiência de julgamento, das testemunhas CC (mãe do arguido) e HH;

- do teor do auto de notícia por detenção de fls. 3 a 7, elaborado pelo agente da PSP FF e de que foi testemunha o agente da PSP HH, no que respeita ao por estes constatado quanto à ocorrência de 04.01.2023, às horas, ao local, à identidade das pessoas nesse documento registadas, a armas associadas e ao então observado pela polícia, tendo, com o acordo do Ministério Público e do arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 356.º, n.ºs 2, al. b), e 5, do Código de Processo Penal, sido lido por HH e considerado reproduzido em audiência o vertido a fls. 7, que por esta testemunha foi confirmado;

- do teor do auto de apreensão de fls. 12 e ao auto de exame e avaliação de fls. 13, respeitantes às facas, ao cutelo e ao bastão referidos no ponto 34.º dos factos provados e reveladores das suas características;

- do teor da certidão e dos registos dos assentos de nascimento de DD, do arguido e de CC, constantes de fls. 264 a 268, e do registo dos elementos identificativos de BB constante do verso de fls. 3, demonstrativos destes elementos, das respectivas datas de nascimento e das relações familiares descritas nos pontos 1.º e 5.º dos factos provados.

Importa realçar o seguinte:

Em audiência de julgamento o arguido prestou declarações, como já verificado em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, tendo a atitude com que o fez deixado patente o seu carácter desapegado, quezilento, falso e com tendência para a vitimização.

Referiu ser verdade o descrito na factualidade provada quanto à identidade e relações familiares das pessoas ali mencionadas, que afinal o pai tem “86 anos” e que a mãe tem “para aí” 80/82 anos, “menos uns oito” que o pai, e afirmou ser falso tudo o que lhe é imputado.

Referiu que era consumidor pontual de bebidas alcoólicas - “de vez em quando” bebe um copo -, e diário de haxixe - 1-2 “ganzas” por dia -, não abandonar este consumo por gostar dele, sustentando que é bom para si, e que é uma pessoa calma.

Disse que no dia 03.01.2023 chegou a casa depois do trabalho, pelas 11 e tal da noite, a mãe estava em ..., disse ao pai que não tinha tempo para fazer o jantar, tinha trabalho para fazer e o pai atacou-o com um taco de baseball; quanto ao descrito no ponto 34.º dos factos provados, disse que não tinha facas consigo.

Disse que o relacionamento com o pai foi sempre muito complicado, que todos sofreram à mão deste e que este é um homem que bebeu toda a vida; referindo-se a si próprio, disse-se uma pessoa normal, que costuma estar “no seu cantinho, trabalho-casa”.

Disse que só foi viver para casa dos pais para tomar conta de mãe e que esta lhe contava da “violência doméstica” do pai.

Referiu também que ganhava em média 1600 € por mês e que ajudava mensalmente a filha e a mãe, respectivamente com 100/200 € e 300/400€ e compras.

DD (filha do arguido, não chamada “AA”, como, por evidente lapso, mencionado na acusação) e BB, nas suas declarações para memória futura, relataram os factos de que revelaram ter conhecimento directo de forma que se revelou isenta e convincente, verificando-se que em momento algum procuraram empolar o vivenciado.

Limitaram os respectivos relatos àquilo de que se lembraram, com pormenores descritivos evidenciadores de que assim foi, e o que deles se extraiu, nos termos plasmados nos pontos 1.º (quanto à morada), 2.º (corroborado pelo teor da referida certidão de fls. 118 a 133) e 3.º a 33.º revelou--se essencialmente coerente entre si e com o que resultou da sua análise crítica e conjugada com a restante prova produzida.

DD referiu (em 17.02.2023) que uma vez o pai discutiu com o avô, porque a avó não a deixava (à neta) ir ver a “madrasta”; o pai chamou a avó de “prostituta” e “vaca”, bateu com a porta, e a avó foi para ....

O pai não morava lá, mas como não tinha onde viver, a avó acolheu-o; a casa é da avó; a Câmara até tirou da casa o nome dele e os dos tios;

De vez em quando ele chegava bêbado a casa, ela, DD, já estava a dormir e, como tem o sono pesado, não o ouvia e, por isso, não lhe abria a porta; então ele discutia consigo, a avó ia falar com ele e ele dizia à avó que lhe dava uma chapada.

O pai já partiu o próprio telemóvel à sua frente e disse-lhe que se não lhe abrisse a porta a ia tratar assim, como ao telemóvel.

Ele nunca lhe bateu; só lhe deu uma chapada num dia porque não sabia onde estavam as coisas para fazer “a ganza”; torceu-lhe a mão em duas situações; ele disse-lhe que nunca lhe ia bater, mas bateu.

Na última ocasião, antes de o pai ser preso, este chegou a casa bêbado; o avô já tinha jantado; o pai queria o chapéu, que ela não encontrava, e o pai começou a bater dentro do armário, que era frágil e tinha vidros, e o avô disse-lhe para parar, o pai foi buscar duas facas, uma tipo de manteiga e a outra tipo de cortar cebola, e o avô segurou na mão um pau que guardava para se defender; o avô disse-lhe que lhe ia dar com o pau, o pai pôs as facas no chão e ela foi guardá-las; depois o avô foi vestir-se, para ir à polícia, o pai, que foi para a rua, apanhou o machim/catana, o avô conseguiu tirar-lho e disse-lhe que lhe dava com ele, porque o pai já estava a empurrá-lo; ela já estava a chorar e gritou no prédio para chamarem a polícia, só que ninguém ligou; ela foi com o avô à polícia, fazer queixa, e depois foi para casa da mãe e o avô e a polícia foram para a casa onde estava o pai; teve medo de que o pai matasse o avô; o avô, que “está forte”, dizia-lhe que não tinha medo.

Ela mora com os avós.

O pai ficava em …, com o amigo dele, numa casa que não tinha luz, e foram visitá-lo lá um dia, porque o avô queria que ele voltasse para casa e ele voltou; anteriormente, o pai tinha deixado de viver em casa dos avós, porque já se tinha comportado de modo semelhante ao pela mesma descrito e, nessa altura, ele tinha ido viver com o tal amigo e disse que já tinha uma casa, mas era mentira.

O pai sempre comprava “ganza”/droga, por 5 €, e a avó não gostava que ele fumasse isso dentro de casa e ele já tinha discutido consigo, DD, por causa disso; às vezes ele fumava à sua frente, outras vezes no quarto; quando ele fumava isso ficava a tossir e depois dormia.

O pai chegava bêbado e dizia que fazia isso porque ficava naquela casa e ficava sem dinheiro; de vez em quando a garrafa de cerveja partia-se; ele dormia na sala e no quarto dela, DD.

Quando o pai chegava bêbado e ficava a “chatear” o avô, este pegava no pau e ameaçava-o e o pai ficava quieto; isso já tinha acontecido por duas vezes e, por isso, o avô tinha o pau guardado; eles (avós) tinham um dispositivo para chamar a polícia, mas ficou desligado quando o pai pintou a casa.

Descreveu também o que viu/vivenciou do plasmado nos pontos 18.º a 33.º dos factos provados e mencionou que, nessa sequência, foi para casa da mãe; passados dois dias, voltou para a casa dos avós; o pai já lá não estava, porque estava preso.

O pai nunca fez nenhum tipo de tratamento; da primeira vez que o pai fez “estas coisas” não estava bêbado; depois, umas vezes estava bêbado, outras não; com a “ganza” ficava calmo, só tossia e ficava calmo; chegou a mandá-la comprar-lhe a “ganza” na rua, mas os avós não permitiram que ela o fizesse.

A globalidade da descrição feita por DD foi contida, sem exageros, sem ceder a sugestões, sem artifícios, sendo evidente que apenas relatou aquilo de que se lembrou, por o ter vivenciado, e sendo notório o violento impacto que as descritas condutas do pai para consigo e para com os avós tiveram em si, o desassossego e a tristeza delas decorrentes, fazendo-a chorar e temer pela vida do avô, de modo tal que, na última situação, por duas vezes, a própria lhe deu a mão para irem pedir ajuda à polícia.

BB, pese embora com algumas dificuldades de expressão e de memória, naturalmente associadas ao facto de apenas saber falar em crioulo, à idade avançada e ao tempo entretanto decorrido, referiu (em 28.02.2023) que no dia em que aconteceu a última situação estava com a neta; o filho entrou em casa, agarrou na mesa, partiu tudo, pratos, tudo o que estava na cozinha; entrou como doido, maluco; a neta, por causa daquela violência, pediu-lhe (ao avô) para saírem de casa e irem à polícia; depois foi lá a polícia, pegaram no filho e levaram-no; tudo o que o filho fez não foi a brincar, o filho é violento e o que fez foi em consciência, sabia o que estava a fazer; o filho empunhou uma faca a ameaçá-lo, que lha espetava, até que chegou a polícia e pegaram nele; foram duas as facas em que o filho pegou, de cozinha, uma com lâmina do tamanho que BB riscou a fls. 155, e este viu que tinha que se defender; o filho disse-lhe que lhe espetava a faca e ele defendeu-se, foi buscar a catana que usava na horta; quando o filho chegou, estava sentado com a neta no sofá; o filho fuma droga em casa e também o faz em frente dela, até lhe pede para ir buscar fósforos; com o filho todos os dias há problemas, até ameaça a mãe com bofetadas; até pediram para repatriar o filho para ..., porque ele “só estraga o país”; depois de irem à Esquadra, a polícia foi lá a casa e pegaram no filho e levaram-no; quando o viu ele já não tinha nada na mão; a neta já tinha explicado tudo à polícia; já tinha deitado o pau fora; depois foi entregar dois paus à polícia; nesse dia a polícia foi lá três vezes e na terceira é que apanharam o filho e o levaram; o filho não bateu na neta porque ele, avô, não o deixou.

Foi notório o carinho da neta relativamente ao avô - recíproco -, o sentimento de protecção que o mesmo lhe proporciona e o de aflição provocado pelas descritas actuações do arguido.

CC, mãe do arguido, nascida em ........1939, fisicamente debilitada, não só pela idade, mas também em virtude de doença do foro oncológico, como declarou e com efeitos visíveis, depôs de forma evidentemente parcial e evasiva, deixando transparecer que o seu intuito não foi o de relatar os factos com verdade e rigor, mas sim o de conseguir a libertação do seu filho.

Disse que foi para ... no final de 2022 e que o filho (arguido) morava em sua casa há muitos anos, tendo vivido com uma companheira durante um período em ... e para ali voltado, já separado dela, no tempo da pandemia.

Referiu que quem vivia em sua casa eram a própria (CC), o arguido, o pai e a filha deste, esta desde os seus 7 meses de idade.

Disse que quando ela, CC, foi para ..., o arguido trabalhava para os lados de Sintra, como ... ou servente, dava dinheiro para as despesas da casa e, quando chegava a casa, tomava banho, bebia café e saía.

Referiu que o mesmo fumava cigarros, não saber se o mesmo fumava outras coisas, que ele bebia, não sabendo a mesma o quê, e que nunca o viu alterado por beber álcool; não bebia todos os dias, ele trabalhava, não podia estar embriagado, nunca o viu embriagado.

Afirmou que o arguido nunca a maltratou e que nunca o viu maltratar o pai ou a filha, nem vice-versa.

Sustentou que não havia discussões lá em casa.

Não ouviu o arguido chamar-lhe nomes.

O marido e a neta mentem muitas vezes.

O marido e a neta não têm razão nenhuma para mentir acerca do arguido.

Acha que o filho não é capaz de fazer mal a ninguém.

A DD tem medo do avô.

Deu conta do suposto “mau feitio” e carácter violento do marido, que no Domingo que antecedeu o depoimento dela “queria matá-la” e que “não deixa” a neta “andar na rua”, embora por saber que “lá fora”, na zona onde moram, o ambiente é perigoso.

Sabe que o filho já foi para a cadeia, mas não sabe qual foi o crime.

Disse ainda que, depois de ter regressado de ... e de lá ter voltado mais uma vez, para visitar os filhos, regressou em 02.10.2023.

HH, agente da PSP, num depoimento claramente isento - o que ficou evidenciado pelo seu conteúdo simples e desinteressado (sem outro interesse que não o de contribuir com a verdade para a realização da justiça), expresso de modo coerente -, revelou que só conhece o arguido do exercício das suas funções, em 04.01.2023, por ele (HH) e o seu colega FF terem sido chamados para uma ocorrência; foi-lhes comunicado que estava na Esquadra o “Sr. ..”, que dizia que o filho tinha entrado pela janela, partido a casa toda e empunhado uma faca na sua direcção, com que ameaçou matá-lo; foram então à residência com o Sr. …, que lhes abriu a porta; fizeram “entrada táctica”, protegidos com capacetes e escudos, e encontraram o arguido sentado no sofá, empunhando uma faca, com a respectiva lâmina virada para cima, tendo junto a si, no sofá, outras “três facas” e um bastão; não estava a comer, nem havia vestígios de que estivesse a fazer algo que implicasse o uso de faca; manietaram-no, algemaram-no e o arguido não ofereceu resistência; o arguido estava nervoso, tinha a respiração ofegante e os olhos muito abertos; foi conduzido à esquadra; não se apercebeu de que o arguido estivesse sob o efeito de algo, nem sentiu qualquer particular odor; confirmou ter por si constatado, na companhia do seu colega FF, o registado de fls. 3 a 7, tendo lido esta última com respeito pelo disposto no art. 356.º, n.ºs 2, al. b), e 5, do Código de Processo Penal; quando entrou na referida casa, verificou que estava “toda revirada”, correspondia ao descrito pela vítima, assim se referindo a BB; o Sr. BB estava então sozinho; para além do arguido, não viu mais ninguém em casa; não sabe quem é a mãe do arguido, nem se este tem filho ou filha; o quarto do Sr. BB estava completamente arrumado; havia um outro quarto desarrumado; a sala estava toda fora de ordem, não como se apenas estivesse desarrumada, mas sim propositadamente partida, revirada; a polícia já lá tinha ido anteriormente, mas ele e o referido colega só lá foram dessa última vez.

Ora, cabe realçar, o que o arguido tinha consigo, na mão e junto a si, nas circunstâncias em que foi abordado pelos mencionados agentes da PSP, foi objecto da apreensão a que se se refere o auto de fls. 12 e encontrava-se em condições de provocar lesões compatíveis com as características dos mencionados objectos, como igualmente se extrai do auto de exame de fls. 13, referente ao respectivo estado de conservação.

O verificado pelos mencionados agentes da PSP foi coerente com os pedidos de auxílio feitos por BB com a neta.

Da conjugação dos respectivos relatos com o estado em que aqueles agentes encontraram a casa e o arguido, resulta que tanto BB, como a neta, como os agentes da PSP apenas relataram o que directamente verificaram, num contexto dinâmico, e na medida em que de tal se lembravam, tendo resultado evidente que o arguido aproveitou a última saída de casa do seu pai e da sua filha (novamente para irem pedir ajuda à polícia), para se municiar de diversos objectos entretanto dispersos, razão pela qual, à chegada da polícia, tinha uma faca empunhada e os demais referidos objectos junto a si, no sofá.

Quando, então, BB abriu a porta de casa e a polícia antes dele ali entrou, esta fê-lo - tendo presente o relatado por aquele e pela neta, que já não o acompanhava, porque, por fim, tinha ido para casa da mãe, assim se tendo evitado a sua sujeição a maiores violência, perigo e sofrimento -, com as devidas precauções e encontrou exactamente o que as justificava: um cenário revolto, de destruição e o arguido preparado para novo ataque.

Por fim, importa realçar que, pese embora o avô - ainda mais do que a avó, ambos idosos e esta marcadamente doente e complacente para com os desmandos do filho -, procurasse proteger-se e, fazendo-se de forte e confiante, procurasse fazer a neta sentir-se segura e protegida perante os comportamentos do arguido, resultou naturalmente clara, face à robusta compleição física do arguido e à diferença de idades entre este, os pais - que sabia serem octogenários -, e a filha - que sabia ser uma criança -, a ostensiva superioridade física do arguido e o conhecimento que todos disso tinham e de que o arguido se prevalecia.

Em face de tudo o que vai explanado, o tribunal não fez fé nas declarações do arguido na parte em que negou o descrito nos factos provados, tendo resultado evidente a sua postura de vitimização e de sistemático recurso a subterfúgios evidentemente tendentes a ver afastada de si a responsabilidade pelas condutas que sabe ter levado a cabo e, tudo isto, num registo praticamente monocórdico e tendencialmente ríspido, revelador da sua insensibilidade a tudo o que a prova globalmente produzida e analisada patenteia nos termos descritos na factualidade provada.

Por tudo o exposto, pela análise crítica e conjugada, de toda a prova produzida, de acordo com as regras da experiência e da lógica, o tribunal concluiu, sem qualquer dúvida, que se verificou o descrito nos pontos 1.º a 39.º dos factos provados.

A factualidade descrita no ponto no ponto 40.º provou-se com base no teor do CRC junto aos autos sob a referência Citius 147091322, de 25.10.2023, e da certidão de fls. 118 a 135, revelador do que quanto ao Proc. n.º 176/18.0GAOHP consta dos pontos 40.º, 49.º e 55.º dos factos provados; quanto ao vertido no ponto 55.º, o tribunal baseou-se também no documentado a fls. 278, integrante do relatório elaborado pela DGRSP junto de fls. 274 a 279.

Especificamente quanto aos factos relativos à situação pessoal do arguido descritos nos pontos 41.º a 66.º, o tribunal atendeu às declarações a respeito prestadas pelo próprio e ao teor dos relatórios e informações elaborados pela DGRSP constantes de fls. 274 a 279 e sob a referência Citius 23985029, de 06.09.2023, apenas na medida em que se revelaram credíveis, considerados o conteúdo e o modo como foram prestadas aquelas declarações, os elementos em que se baseou a elaboração daqueles documentos e a sua análise crítica e conjugada, de acordo com as regras da experiência e da lógica com toda restante prova produzida quanto à restante factualidade, a que nesta sede o tribunal também atendeu; quanto às datas das suas detenção e sujeição a prisão preventiva no âmbito dos presentes autos, o tribunal atendeu ao teor do auto de notícia por detenção constante de fls. 3 a 6, do auto de primeiro interrogatório judicial de arguido detido constante de fls. 34 a 45 e da documentação de fls. 53 e 100.

O carácter violento e afectivamente desapegado do arguido, possibilitador das suas descritas actuações, revelou-se uma constante, isto apesar de o pai o ter recolhido do lugar sem condições onde habitava, acolhendo-o em sua casa, já depois de aquele ter deixado de viver no distrito de ..., em Oliveira do Hospital, onde fora condenado, por sentença proferida em 27.11.2019, transitada em julgado em 09.01.2020, pela prática, em 26.09.2018, de um crime de detenção de arma proibida, numa pena de multa, e pela prática, desde Outubro de 2017 até 28.07.2018, de um crime de violência doméstica, este p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. b), e 2, do Código Penal, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos e 3 meses, com sujeição a regime de prova incluindo a obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica, regime de prova que não cumpriu.

No que concerne aos factos não provados, importa referir que o vertido na al. a) assim foi considerado em face do teor dos documentos de fls. 264 a 266, que não foi produzida prova apta a demonstrar o que consta das als. b) a f) e que o plasmado na al. g) resultou infirmado em face do declarado por DD e BB, que permitiu concluir que, embora o machim/catana fosse habitualmente guardado debaixo da cama, na ocasião em causa estava na horta, onde BB costumava usá-lo e o arguido foi buscá-lo, quando saiu à rua, após o que lhe foi retirado pelo pai.

Quanto ao vertido nas als. h) e i), o tribunal teve em conta que, pese embora a grande violência da actuação do arguido para com o pai, para além do mais ao sentar-se sobre ele, empunhando duas facas, e dizendo-lhe “Vou-te dar duas facadas na cabeça”, a mesma foi sobretudo psíquica, pelo sem dúvida enorme receio que nas descritas circunstâncias quis incutir-lhe e desassossego que quis causar-lhe, não sendo, todavia, seguro afirmar que efectivamente queria, mais do que isso, matá-lo, pois, provavelmente, pela sua natural superioridade física e proximidade, se efectivamente o tivesse querido, tê-lo-ia feito; por conseguinte, também não é possível afirmar que se tenha verificado uma persistência dessa intenção (de matar), não obstante a afirmação feita aquando da abordagem final pela polícia; o tribunal não pôde assim concluir, com a segurança e o rigor que nesta sede se impõem, que essa intenção de matar, mais do que anunciada, efectivamente surgiu, embora tenha concluído, sem qualquer dúvida, que o arguido persistiu na sua intenção de causar um “clima” de terror ao pai, na sequência do que já lhe tinha causado e à filha, num registo de deliberada violência física e sobretudo psíquica e de perigo, em crescendo, servindo esse propósito a detenção dos objectos mencionados nos pontos 34.º e 38.º dos factos provados.”

*

IV.–FUNDAMENTAÇÃO

IV.1.– DO RECURSO EM MATÉRIA DE FACTO

Nas conclusões apresentadas insurge-se o recorrente contra a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, argumentando terem sido injustificadamente valorados os depoimentos dos ofendidos BB e DD, e, em sentido inverso, desconsideradas as suas declarações e o depoimento da, também ofendida, CC.

Reclama, face a esse seu entendimento, que se considerem não provados os factos 16 e 17, 25, 26 e 29 (porque, como terá afirmado CC, “o marido e a neta mentem muitas vezes”).

Pede, ainda, que se considerem não provados os factos 7, 8, 10, 12, 15, 16, 17 e 33, por conterem expressões vagas e que não concretizam factos.

Vejamos.

Como resulta do disposto no artigo 428º, nº 1, do Código de Processo Penal, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, do que decorre que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respetivos poderes de cognição.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, no que se denomina de «revista alargada», cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar2, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nos 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal, caso em que a apreciação se alarga à análise da prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, só podendo alterar-se o decidido se as provas indicadas obrigarem a decisão diversa da proferida [assim não podendo fazer-se caso tais provas apenas permitam uma outra decisão, a par da decisão recorrida - neste último caso, havendo duas, ou mais, possíveis soluções de facto, face à prova produzida (o que sucede, com algum grau de frequência, nomeadamente nos casos em que os elementos de prova recolhidos são totalmente opostos ou muito contraditórios entre si), se a decisão de primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções face às regras de experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, pois tal decisão foi proferida de acordo com as imposições previstas na lei (artigos 127º e 374º, nº 2 do Código de Processo Penal), inexistindo assim violação destes preceitos legais] – cf., por todos, o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 02.11.20213.

Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorretamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa4.

A reapreciação só determinará uma alteração à matéria fáctica provada quando, do reexame realizado dentro das balizas legais, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão5.

Assim, quando se visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto na modalidade ampla, as conclusões do recurso, por força do estabelecido no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, têm de discriminar:

a)-Os concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados;

b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c)-As provas que devem ser renovadas.

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.

A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cf. artigo 430º do Código de Processo Penal).

Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nos 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal), salientando-se que o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão nº 3/20126, fixou jurisprudência no sentido de que: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

As menções feitas nas alíneas a), b) e c) dos nos 3 e 4 do referido artigo 412º estão intimamente relacionadas com a inteligibilidade da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão fáctica.

Na verdade, o que decorre dos requisitos legais supra enunciados é algo simples – cabe ao recorrente enunciar qual a factualidade concreta que se mostra mal apreciada e discutir os diversos segmentos probatórios que, no seu entender, deveriam fundar uma diversa apreciação relativamente a tais pontos de facto.

Efetivamente, não basta afirmar sumariamente que A. ou B. disse isto ou aquilo, que não corresponde ao que foi dado como assente; necessário se mostra que o recorrente, com base nesses elementos probatórios, os discuta face aos restantes e demonstre que o raciocínio lógico e conviccional do tribunal a quo se mostra sem suporte, na análise global a realizar da prova, enunciando concretamente as razões para tal.

Assim, o que é pedido ao recorrente que invoca a existência de erro de julgamento é que aponte na decisão os segmentos que impugna e que os coloque em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas (se tal for o caso), quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quaisquer outros concretos e especificados elementos probatórios, demonstrando com argumentos a verificação do erro judiciário a que alude.

No caso, analisadas as conclusões do recurso (e a motivação que as precede), constata-se que o recorrente, embora aludindo a alguns factos que considera terem sido incorretamente julgados, não indicou os concretos meios de prova que, em seu entender, imporiam decisão diversa, limitando-se a manifestar a sua opinião de que a prova produzida foi contraditória, daí extraindo a conclusão de que o Tribunal errou na convicção formada. Nessa sequência, aludiu à prova produzida em termos genéricos, sem expressa indicação do conteúdo dos meios de prova, atendo-se apenas na sua pessoalíssima visão dos acontecimentos, não estabelecendo qualquer relação entre o conteúdo específico de cada meio de prova, ou conjugação de meios de prova (que não indica), e o facto individualizado que considera incorretamente julgado, o que se mostra essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida – face à exigência da alínea b), do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal – a demonstração desta imposição compete também ao recorrente.

Ou seja, a recorrente discorda do valor relativo atribuído aos meios de prova à disposição do Tribunal, sem que estabeleça qualquer relação entre os concretos segmentos dos depoimentos (que não indicou) e o específico ponto ou pontos de facto provados que, por este meio, almeja alterar.

É, pois, evidente que não foram apontadas pelo recorrente quaisquer provas que imponham decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal recorrido, mas apenas uma visão divergente quanto ao significado das declarações prestadas.

Com efeito, nem na motivação de recurso (corpo da mesma), nem nas respetivas conclusões, o recorrente estabelece a relação entre os concretos segmentos dos depoimentos (que não indicou, realce-se pela repetição) e o específico ponto ou pontos de facto provados que, por este meio, almeja alterar, antes os convocando de forma global e genérica e insistindo na existência de contradições, que não identifica em termos concretos e que resultam apenas da sua interpretação da prova.

Ora, não sendo o recurso um novo julgamento, mas um mero instrumento processual de correção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada pelo recorrente, é patente a necessidade de impugnação especificada com a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, em termos de a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum, imporem diversa decisão (cf. acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 25.01.20227).

Não é viável, no caso, o convite ao aperfeiçoamento das conclusões, já que a motivação (corpo) do recurso apresenta idênticos defeitos, pelo que a alteração a introduzir, para cumprir aquelas exigências, não poderia conter-se dentro dos limites do já alegado, antes representando uma oportunidade de reformular todo o recurso, o que não pode considerar-se compreendido na previsão do artigo 417º, nos 3 e 4, do Código de Processo Penal – neste sentido, vd. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.10.20048, e os acórdãos do Tribunal Constitucional nos 259/2002, de 18.06.2002, e 140/2004, de 10.03.2004, ambos consultáveis em www.tribunalconstitucional.pt.

Assim, não tendo cumprido o recorrente (nas conclusões ou sequer no corpo da motivação) o ónus de impugnação especificada a que estavam vinculados, não pode este Tribunal da Relação conhecer do respetivo recurso nesta parte.

Impõe-se, pois, a rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto.

*

O que se observa, porém, é que o recorrente, ao apresentar a sua impugnação da decisão de facto, na verdade limita-se a revelar na motivação do recurso, o seu desacordo quanto à leitura que o Tribunal recorrido fez da prova produzida.

Ora, como já se disse, e expressamente resulta do disposto no artigo 412º, nº 3, alíneas a) e b), e nº 4 do Código de Processo Penal, quanto à impugnação da matéria de facto, para além da especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, deve o recorrente indicar ainda as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Esse desiderato não se alcança com a mera formulação de opiniões quanto à clareza ou precisão do que foi dito, na medida em que tais elementos possam permitir diferentes conclusões – só se atinge com a indicação das provas que impõem, que obrigam a decisão diversa.

E, da análise do conjunto das provas produzidas em julgamento, resulta evidente que inexiste (e não foi indicada) qualquer prova que obrigasse a decisão diferente da proferida pelo Tribunal a quo, mostrando-se a decisão de facto devida e claramente fundamentada, estando suportada pela prova produzida, criticamente analisada pelo Tribunal, nos termos constantes da motivação da decisão de facto, acima reproduzida.

Como repetidamente se disse já em inúmeras decisões dos Tribunais Superiores em recursos sobre matéria de facto, é errado pretender-se que o Tribunal de julgamento está preso às palavras proferidas pelos declarantes e testemunhas, absorvendo-as qual esponja, para as verter do mesmo modo na decisão. Assim não acontece. Assim não deve acontecer, precisamente porque, como cremos que resulta claro do que acima se expôs quanto ao princípio da livre apreciação da prova, que rege a operação de determinação dos factos posta a cargo do julgador, que o seu adequado uso implica uma apreciação crítica do conjunto da prova produzida, de modo a dela extrair, do modo mais fiel possível, a verdade material, processualmente válida9. Nesta operação, o Tribunal não está vinculado à estrita literalidade das palavras proferidas, antes podendo (e devendo) retirar dos relatos perante si produzidos todo o respetivo conteúdo útil, apreciado à luz das regras de experiência.

O princípio da livre apreciação da prova impõe um exercício que não pode deixar de ser subjetivo, que resulta da imediação e da oralidade, cujo resultado só seria afastado se o recorrente demonstrasse que a apreciação do Tribunal a quo não teve o mínimo de consistência. O que não é o caso, porque só sabemos que o recorrente, se fosse o julgador, não teria interpretado os mencionados depoimentos nos termos em que o fez o coletivo julgador. Porém, o Tribunal a quo fundamentou de modo razoável e suficiente a sua convicção, com enquadramento no artigo 127º, do Código de Processo Penal.

Uma convicção solidamente fundamentada não exige uma concordância absoluta de toda a prova produzida, e também não exige a respetiva «perfeição». É função do julgador interpretar todos os contributos probatórios perante si trazidos, tomando em conta não só o que é dito, mas também o modo como é dito, e, além disso, avaliar, na medida do possível, todas as circunstâncias suscetíveis de intervir na genuinidade dos depoimentos, distinguindo indícios de falsidade de quaisquer outras (compreensíveis) emoções humanas.

Na esteira do que se referiu no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 18.01.201710, concordamos que “[n]aturalmente que a inimizade, a emoção própria de quem intervém directamente num litígio e o interesse individual num determinado sentido da decisão constituem circunstâncias que fazem recear pela fidedignidade, quer do depoimento da ofendida, quer das declarações do arguido; Seja por erro de percepção ou de memorização ou ainda intencionalmente por se entender que daí possa resultar benefício próprio ou para pessoa amiga ou familiar, acontece frequentemente que arguidos e testemunhas relatem versões díspares e mesmo absolutamente contraditórias dos mesmos tempos e espaços da história.

Porém, o tribunal não se encontra adstrito a desvalorização de um meio de prova, quer por relacionamento directo com os interesses em litígio, quer por outro motivo e a lei não impõe qualquer “contabilidade de provas”, nem exige a confirmação acrescida para a prova por depoimento da ofendida.

Exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento da entidade imparcial a quem compete julgar a matéria de facto depende sempre de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.

Com efeito, os motivos pelos quais se confere credibilidade a determinados elementos de prova – sejam declarações do arguido sejam depoimentos de testemunhas – têm subjacente elementos de racionalidade e experiência comum, mas também factores de que o tribunal de recurso não dispõe, onde se incluem a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo de áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação.

Neste sentido, não será a circunstância de o tribunal se deparar com versões contraditórias ou de o arguido afirmar repetidamente a sua inocência que deva conduzir a uma situação de dúvida intransponível e um consequente juízo probatório de «não provado».”

Tal reflexão é também justificada no caso que temos em mãos.

Lida a decisão (e a respetiva fundamentação), é de considerar que, de acordo com as regras da experiência comum, da normalidade das coisas e da lógica do homem médio, é razoável o entendimento do Tribunal a quo quanto à valoração da prova e à fixação da matéria de facto.

As provas existem para a decisão tomada e não se vislumbra qualquer violação de normas de direito probatório (nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica). O Tribunal a quo apreciou criticamente todas as provas produzidas conjugadas entre si e com as regras de experiência comum, conforme consta da respetiva fundamentação de facto.

O recorrente não concorda. Porém, a fundamentação da convicção do Tribunal, em conjugação com a matéria de facto fixada, não revela que seja notoriamente errada, ilógica, contrária às regras da experiência comum. Podemos, pois, concluir, que o Tribunal a quo, imbuído da imediação, explicitou as razões da sua convicção, de forma lógica e global, com o mínimo de consciência para a formulação do juízo sobre a credibilidade dos depoimentos apreciados e, com base no seu teor, alicerçar uma convicção sobre a verdade dos factos. Acresce que, para além, na dúvida razoável, tal juízo há de sempre sobrepor-se às convicções pessoais dos restantes sujeitos processuais, como corolário do princípio da livre apreciação da prova ou da liberdade do julgamento.

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Não obstante o recorrente não ter, no respetivo recurso, apontado ao acórdão recorrido, em termos expressos, a verificação de qualquer dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, pode entender-se que, ao sugerir que os factos dados como provados (designadamente sob os nos 7, 8, 10, 12, 15, 16, 17 e 33) «apresentam expressões vagas e que não concretizam os factos, o que teria que ser feito, pelo que, os factos constantes dos mesmos não poderiam ter sido dados como provados», pretende convocar a existência de insuficiência da matéria de facto apurada para a decisão, ou, eventualmente, erro notório na apreciação da prova.

Na medida em que se trata de matéria que deve ser conhecida oficiosamente11, cumpre analisar.

O artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal prevê que, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a)- A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b)- A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c)- Erro notório na apreciação da prova”. (sublinhado nosso)

A indagação de tais vícios, por parte do tribunal ad quem, é uma tarefa puramente jurídica, de matéria de direito, já que mais nenhuma outra prova é necessária para que se possa concluir pela eventual existência ou não dos mesmos. Mais não constitui tal tarefa de indagação do que a aplicação da norma adjetiva em causa às circunstâncias concretas da decisão em recurso. Como anota Pereira Madeira12, “É a lei quem o inculca com clareza ao impor que o vício resulte do texto da decisão recorrida, apenas e só, eventualmente com recurso às regras de experiência comum. Por isso, fica excluída da previsão do preceito toda a tarefa de apreciação e ou valoração da prova produzida, em audiência ou fora dela, nomeadamente a valoração de depoimentos, mesmo que objecto de gravação, documentos ou outro tipo de provas, tarefa reservada para o conhecimento do recurso em matéria de facto.”

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, “supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permite integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixem espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena. A insuficiência significa, por outro lado, que não seja também possível uma decisão diversa da que foi tomada; se não for o caso, os factos podem não ser bastantes para constituir a base da decisão que foi tomada, mas permitir suficientemente uma decisão alternativa, mesmo de non liquet em matéria de facto. Por fim, a insuficiência da matéria de facto tem de ser objectivamente avaliada perante as várias soluções possíveis e plausíveis dentro do objecto do processo, e não na perspectiva subjectiva decorrente da interpretação pessoal do interessado perante os factos provados e as provas produzidas que permitiram a decisão sobre a matéria de facto.”13

Note-se, todavia, que só há insuficiência para a decisão da matéria de facto quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto, necessária para a decisão de direito, ou quando há uma lacuna por não se apurar o que é evidente que se podia apurar, ou quando o tribunal não investiga a totalidade da matéria de facto, podendo fazê-lo.

Tal vício só se verificará se se concluir que o tribunal de julgamento deixou de dar resposta a um facto essencial postulado pelo referido objeto do processo, isto é, se deixou por esgotar o thema probandum.

Porém, como se assinalou no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 29.03.201114, «não se deve confundir este vício decisório com a errada subsunção dos factos (devida e totalmente apurados) ao direito, o que consubstancia um caso de erro de julgamento.

Nem, por outro lado, tal vício se reconduz à discordância sobre a factualidade que o tribunal, apreciando a prova com base nas “regras da experiência” e a sua “livre convicção”, nos termos do artigo 127.º do C.P.P., entendeu dar como provada. A insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão que pertence ao âmbito do princípio de livre apreciação da prova, não é sindicável caso não seja suscitada a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.»

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão é somente aquela que é intrínseca ao próprio teor da sentença, “considerada como peça autónoma e não também as contradições eventualmente existentes entre a decisão e o que consta do processo, no inquérito ou na instrução”.

O erro notório na apreciação da prova “constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da "experiência comum". Na dimensão valorativa das "regras da experiência comum" situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.”15

Ora, confrontando as noções que se deixam expostas com o teor da decisão recorrida, não vemos que na mesma se tenha cometido algum dos mencionados vícios – designadamente, que a matéria de facto provada seja insuficiente para a decisão, que seja evidente a existência de factos que ficaram por apurar ou que tenha sido extraída da matéria de facto qualquer conclusão patentemente errada, ilógica ou arbitrária.

Queixa-se o recorrente de que os factos que indica carecem de concretização, não permitindo situar os acontecimentos espácio-temporalmente.

Porém, olhando para os factos dados como provados, nomeadamente os suscetíveis de integrarem os crimes de violência doméstica imputados ao arguido, pode afirmar-se que é suficiente o que se apurou, apesar de não ter sido possível fazer uma melhor concretização temporal e espacial.

Na verdade, consta do ponto 4 dos factos provados que «o arguido passou a residir com BB, CC e DD no ano de 2022», e da leitura conjugada desse aspeto com o mais que se deu como provado é possível extrair que todos os demais acontecimentos se mostram balizados no período temporal ocorrido nesse ano de 2022 e até à data em que o arguido foi detido (em 04.01.2023).

E resulta também do contexto da factualidade dada como provada que todas as situações descritas tiveram lugar na residência que o arguido partilhava com os ofendidos.

Portanto, perante a delimitação temporal e espacial que resulta dos factos dados como provados, ainda que não tivesse sido possível fazer uma melhor concretização, consegue-se decidir da causa e verificar (como adiante veremos) se estão ou não preenchidos os crimes pelos quais o arguido foi condenado (o que mostra a suficiência dos factos apurados para proferir uma decisão, não existindo, por isso, o vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal)16.

Analisado o texto da decisão recorrida, vemos que a respetiva argumentação se desenvolve de forma lógica e coerente, achando-se preenchidos todos os pressupostos do silogismo judiciário.

A matéria de facto dada como provada deve, pois, manter-se inalterada – se os factos apurados permitem, ou não, concluir pelo preenchimento dos crimes imputados ao arguido, é o que veremos de seguida.

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IV.2.– DO RECURSO EM MATÉRIA DE DIREITO
O recorrente questiona o enquadramento jurídico dos factos, sustentando que “não [estamos] perante crimes de violência doméstica, mas sim de falta de respeito mútuo”, que “em momento algum o ofendido BB disse ter tido medo do arguido, tendo inclusive lhe feito frente dizendo que lhe dava com o pau e foi buscar a catana à horta”, e, por outro lado, que “nenhuma das armas era propriedade do arguido, [p]elo que, não podia ser condenado pela prática do crime de detenção de arma proibida”.

Embora a mesma se apresente sem rigor jurídico17, entende-se, face a tal argumentação, que o recorrente pretende discutir o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos dos crimes pelos quais foi condenado, face à matéria de facto dada como provada. Nesta medida, afigura-se-nos que o recurso está, minimamente, em condições de ser conhecido.

Analisaremos separadamente os dois crimes em questão.

IV.2.1.– DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011 (ratificada por Portugal em 2013), no seu artigo 3º, alínea b) estabelece que, para os respetivos efeitos, «Violência doméstica» abrange todos os atos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima.

Entre nós, o tipo de ilícito em apreço, integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, dentro deste, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, visa tutelar, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, abarcando, por isso, os comportamentos que lesam esta dignidade18 19. O bem jurídico protegido por este tipo de crime – a saúde física, psíquica e mental – é complexo e pode ser atingido por todos os comportamentos que afetem a dignidade pessoal do cônjuge, de pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que coabite com o agressor, ou de descendente menor, ainda que com ele não coabite (cf. alíneas a), d) e e) do nº 1 do artigo 152º do Código Penal).

O preenchimento do tipo legal não se basta com qualquer ofensa à saúde física, psíquica e emocional ou moral da vítima: «O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus tratos»20.

Por outro lado, tal crime pode unificar, através do elemento da reiteração – embora este seja, hoje, um requisito não imprescindível – uma multiplicidade de condutas que, consideradas isoladamente, poderiam integrar vários tipos legais de crime, mas que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma. A unidade de ação típica não é excluída pela realização repetida de atos parciais, quer estes atos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime. O tipo legal inclui na descrição da ação uma pluralidade indeterminada de atos parciais.

Muito embora, em princípio, o preenchimento do tipo não se baste com uma ação isolada do agente (tão-pouco com vários atos temporalmente muito distanciados entre si), já vinha sendo entendido pela jurisprudência que, em certos casos, uma só conduta, pela sua excecional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal21.

A entrada em vigor da Lei nº 59/2007, de 04 de setembro, introduziu alterações a tal ilícito, mas, no essencial e para o que aqui interessa, continua a ser punível, e em termos idênticos, a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa do seu cônjuge (ou companheiro ou progenitor de descendente comum – ou qualquer uma das categorias contempladas nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 152º do Código Penal), esclarecendo-se agora expressamente que tal atuação pode ser “de modo reiterado ou não” e que aqueles maus tratos incluem “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.

Importa, assim, analisar e caracterizar o quadro global da agressão de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal das vítimas que permita classificar a situação como de maus tratos, o que por si mesmo, constitui, nas palavras de Nuno Brandão22, «um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima», e impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.

O que releva é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma é suscetível de se classificar como “maus tratos”.

Como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30.06.201523, «essa conduta deverá revelar ainda um “plus” de danosidade, quando, face ao restante entorno factual se pode concluir pela sua adequação a afectar a dignidade pessoal do outro elemento do casal». Em síntese: «A imagem global do facto e a apreensão/percepção de todo o episódio de vida em apreciação relevam na delimitação da fronteira entre condutas que têm dignidade punitiva à luz do tipo de crime de violência doméstica e aquelas que não devem relevar para o direito penal, aqui. Condição necessária para a intervenção penal é sempre a ofensa efectiva de um bem jurídico (digno de protecção penal). A ratio do tipo “violência doméstica” não reside, na protecção da família, mas na protecção da pessoa individual na família, na tutela da sua dignidade, protegendo-a de um abuso de poder na relação afectiva».

Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os referidos contornos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa e que de outra forma seriam consumidos por aquele.

Por outro lado não pode deixar de ser tido em conta, como se expõe no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.01.201324, que “Aquilo que o legislador pretende não é - apenas - evitar que a pessoa inserida na relação de convivialidade seja «sovada», objecto de torturas, actos cruéis e vingativos, de ofensas que deixem mossas, sim que a sua dignidade individual como pessoa humana que estabeleceu voluntariamente uma relação como igual seja tratada como digno igual, evitando o tratamento como objecto de agressões, de fácil humilhação, de achincalhamento, de menosprezo pela sua dignidade individual e veja negada a sua importância familiar e social através da prática dos factos descritos no tipo. Assegurado isto, a dignidade, assegurado fica o respeito e o evitar da escalada para a crueldade.

Ou seja, a existência da crueldade não é elemento do tipo – o que ajuda a afastar a anterior jurisprudência que apostava na crueldade quer para caracterizar o acto não reiterado, quer os resultados – em sede de facto – que caracterizam uma postura desnecessariamente exigente, dos danos verificáveis.”

E mais adiante, ainda no mesmo aresto, “Que aquela violência está pressuposta no tipo também nos parece evidente. Que deve ser aferida em função dos dois pólos subjectivos e do pólo objectivo da situação também nos parece ser de impor.

Assim, aceitando os critérios propostos por Nuno Brandão25, entendemos ser exigível que a análise - fazendo apelo essencial à «imagem global do facto» - se debruce, no pólo objectivo, pela existência de uma agressão ou ofensa que revele o mínimo de violência sobre a pessoa, intensidade ou reiteração; subjectivamente e da parte do agressor uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento, menosprezo; da parte da vítima o reflexo negativo e sensível na sua dignidade, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual.

(…)

E, por fim, há que referir como abrangidos pelo tipo penal os casos de «micro violência continuada», que Nuno Brandão refere como caracterizando-se pela “opressão … exercida e assegurada normalmente através de repetidos actos de violência psíquica que apesar da sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação”.

É o caso abordado pelo acórdão do TRC de 07-10-2009 (Proc. 317/05.8GBPBL.C2, rel. Mouraz Lopes) em que a «ocorrência de várias condutas reiteradas no tempo, diferenciadas no grau e no tipo de conduta, que por si só não assumam uma especial gravidade, mas que quando interpretadas e vistas no enquadramento de uma relação conjugal assumem ou podem assumir claramente uma conformação de maus tratos. Ou seja, ao longo de um determinado período de tempo, no âmbito da relação conjugal, um dos cônjuges, agride, humilha, ameaça, injuria ou pratica outros actos que põem em causa a saúde do cônjuge, mesmo que não revista cada um deles de per si uma gravidade significativa».”

No concreto caso dos autos, importa ainda ter em conta que a incriminação dirigida contra o arguido, designadamente no que se refere aos factos que têm por vítimas os respetivos progenitores, assenta no preenchimento da alínea d) do nº 1 do artigo 152º do Código Penal, ou seja, quando os factos sejam praticados contra pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que coabite com o agressor.

Importa, por isso, densificar o conceito de «pessoa particularmente indefesa», definição que não se encontra na lei, dela apenas se podendo extrair que tal circunstância poderá advir, nomeadamente, da idade, de deficiência, de doença, de gravidez ou de dependência económica, sendo, em todo o caso, exigível que essa pessoa coabite com o agente.

Como é sabido, a autonomização do crime de violência doméstica relativamente aos “maus tratos e infração de regras de segurança” ocorreu com a reforma do Código Penal operada em 2007 (Lei nº 59/2007, de 04 de setembro), passando aquele a integrar o artigo 152º e estes últimos os artigos 152º-A e 152º-B do mesmo compêndio legal.

Mas enquanto no anterior crime de “maus tratos e infração de regras de segurança” se aludia a “pessoa menor ou particularmente indefesa” (nº 1 do artigo 152º, antes da alteração introduzida pela referida Lei nº 59/2007), depois a menoridade deixou de ser, por si só, um elemento integrante do tipo incriminador, podendo, contudo, essa condição de “pessoa particularmente indefesa” advir em “razão da idade”, quer por a vítima ser muito jovem, quer por ser já muito idosa.

Mas o que é uma pessoa particularmente indefesa?

Fazendo nossas as palavras do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16.11.202226, “Desde logo, é manifesto que tal qualidade está relacionada com as características, condições ou circunstâncias específicas do ofendido pelo crime. Trata-se, pois, de uma qualidade endógena da própria vítima.

Para Paulo Pinto de Albuquerque tais pessoas são «aquelas que se encontram numa situação de especial fragilidade, devido à sua idade precoce ou avançada, deficiência, doença física ou psíquica, gravidez ou dependência económica do agente (…).»

No acórdão deste Tribunal da Relação de 14-07-2021 (Proc. n.º 158/20.2GDSTS.P1) escreveu-se que pessoa particularmente indefesa para efeitos do disposto naquela norma legal (al. d) do n.º 1 do art. 152.º) é aquela «que se encontra numa situação de especial fragilidade, que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma»27.

Também no acórdão desta mesma Relação de 10-11-2021 (Proc. n.º 263/20.5GBOVR.P1) se escreveu que pessoa particularmente indefesa será «aquela que, com concretização factual, se encontra numa situação de especial fragilidade, que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz em função de qualquer das qualidades previstas na norma, idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica»28.”

Neste contexto, para caracterizar uma particular fragilidade da vítima, não basta a coabitação com o agente, nem mesmo que o ofendido se encontre numa das circunstâncias tidas em vista pela norma (idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica do agente). É também indispensável que, perante os factos dados como provados, se possa concluir que a vítima era uma pessoa particularmente indefesa, por se encontrar numa situação de especial vulnerabilidade e de incapacidade de reação eficaz relativamente às investidas do agente29.

Por último, e indo de encontro à alegação do recorrente, tem de referir-se que a reciprocidade suscetível de excluir o cometimento do crime – por traduzir a inexistência do desequilíbrio de posições que, como já vimos, constitui pedra de toque do crime de violência doméstica – só é relevante se for contemporânea dos factos imputados ao arguido, mas já não se se mostrar desfasada no tempo.

Como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.05.201830, “nada impede a prática de tal ilícito por parte de ambos os agressores em momentos divergentes, posto que nessa ocasião apenas um seja vítima e o bem jurídico saia lesado”.

Entendemos, pois, acompanhando o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 20.03.202431, que embora tal entendimento “possa valer para aquelas situações em que se esteja perante actos agressivos recíprocos na mesma ocasião e com igual ou idêntica gravidade, e, não por serem recíprocos, mas, por o fundamento do ilícito penal (o bem jurídico) protegido com o crime de violência doméstica não estar a ser afectado, por não se se poder considerar estar a ser afectada a dignidade humana de um perante o outro, ambos capazes e portadores da mesma (in)dignidade (…).

«A reciprocidade das agressões como forma de desconsideração da tipicidade, só serão de atender quando no curso dos episódios se desfaz a polaridade agressor-vítima, e assim a intenção de domínio e de humilhação de um deles sobre o outro»32”.

Do que se deixa exposto decorre que a eventualidade de o arguido ter sido vítima de «maus tratos» às mãos do seu pai – num passado mais ou menos distante – não constitui, em si mesmo, argumento definitivo para que se conclua pela inviabilidade de considerar cometido o crime de violência doméstica nas concretas circunstâncias apuradas nos autos.

Vistos os conceitos, e regressando ao caso dos autos, vemos que, a propósito da integração jurídica dos factos, considerou o Tribunal recorrido que:

“Comete o crime de violência doméstica previsto no art. 152.º, n.º 1, al. d), do Código Penal, quem, de modo reiterado ou não, infligir a pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, que com ele coabite, maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais; se o agente praticar o facto na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos, nos termos do disposto na al. a) do n.º 2 daquele art. 152.º.

O bem jurídico protegido pelo referido tipo legal é a saúde - física e mental - da pessoa individual e a sua dignidade humana, bem jurídico que pode ser afectado por uma multiplicidade de comportamentos, visando o âmbito de protecção das normas incriminadoras, ainda, indiscutivelmente, tutelar as situações de maus-tratos físicos ou psíquicos ocorridas no seio da família, tendo-se dispensado a verificação da reiteração de tais comportamentos, desde que, pela sua particular gravidade, traduzam crueldade, insensibilidade, humilhação, ameaça ou vingança, perturbadoras das relações pessoais e da paz da vítima, com capacidade para molestar.

Ora, no descrito contexto, as condutas do arguido para com a sua filha, com 11 anos de idade, na presença da qual consumiu produtos estupefacientes e álcool, e para com os seus pais, ambos octogenários, em casa dos quais estava a viver, onde:

- numa ocasião, partiu o telemóvel e disse à filha que, se não lhe abrisse a porta da próxima vez,lhe faria o mesmo que ao telefone;

- noutra ocasião, perguntou à filha onde estavam as coisas para fazer “a ganza e, tendo ela respondido que não sabia, o mesmo lhe desferiu uma bofetada na face;

- noutra ocasião, discutiu com a mãe, apelidou-a de “prostituta” e vaca e, ao sair de casa, fechou a porta com força;

- em diversas ocasiões, disse à mãe que lhe dava uma chapada;

- noutra ocasião, partiu uma janela da sala com uma pedra;

- por fim, no dia 04.01.2023, ao final da noite, chegou a casa dos pais bastante alterado, não deixando o pai e a filha descansar, tendo começado a desferir socos num armário que tinha vidros, tendo, quando o pai lhe disse para parar, começado a implicar com a sua filha, levantando-lhe a mão, com o fito de lhe bater, do que foi impedido pelo pai, tendo então começado a arremessar para o chão uma mesa e pratos, que partiu, e talheres, e partido a porta da habitação, na sequência do que se muniu de duas facas de cozinha, dirigiu-se ao pai, que se encontrava sentado no sofá da sala, sentou-se em cima dele, empunhando as facas, uma em cada mão, dizendo-lhe que lhe ia dar duas facadas na cabeça, tendo então a filha desviado o avô, pai do arguido, para que não fosse atingido por faca que o arguido empunhava, altura em que o pai do arguido disse a este que lhe dava com um pau na cabeça, o arguido largou as facas, a filha foi guardá-las, na sequência do que o arguido pegou numa catana, o pai tirou-lha e empurraram-se mutuamente, após o que o pai e a filha do arguido se dirigiram à Esquadra de Polícia e, passado algum tempo, o arguido se introduziu novamente na habitação - de onde entretanto tinha saído, razão pela qual não tinha ali sido logo encontrado pela polícia -, através da janela da cozinha, do que a sua filha se apercebeu, pelo que a mesma, temendo que o arguido matasse ou magoasse o seu avô, se dirigiu novamente com este à Esquadra, na sequência do que o arguido veio a ser pela polícia encontrado na habitação daqueles, sentado, no sofá, munido de uma faca com 13,5 cm de lâmina e tendo junto a si um cutelo com 15,5 cm de lâmina, uma faca de cozinha com 12 cm de lâmina e um bastão de madeira, a todos (pais e filha), nas circunstâncias que se lhes referem, impondo os maus-tratos provocados pelo carácter violento, descontrolado e abusivo que os actos dele patentearam, sabendo da avançada idade dos pais e que a filha era uma criança, diminuindo-os no respeito que lhes era devido e mostrando-se indiferente ao estado em que os deixava, tendo agido com o propósito, concretizado, de molestar física e psicologicamente o seu pai e a sua filha e psicologicamente a sua mãe e de lhes criar receio pela sua vida e integridade física, o que conseguiu agindo a coberto de um sentimento de impunidade, no interior da residência comum, comprometendo a pacífica convivência familiar, tais condutas, repete-se, integram relativamente aos seus pais e filha os elementos objectivos do tipo de crime em referência.

Por isso, tendo o arguido agido como queria, com conhecimento dos elementos objectivos referidos, ou seja, com dolo directo, nos termos do art. 14.º, n.º 1, do Código Penal, tendo executado os factos por si mesmo, contra as pessoas dos seus pais e da sua filha, conclui-se que preencheu na íntegra, como autor material, por três vezes (cfr. arts. 26.º e 30.º do Código Penal), o tipo da incriminação de violência doméstica agravada prevista no art. 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. a), do Código Penal, tendo assim praticado três crimes de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. d), e 2, al. a), do Código Penal, estando no que se refere à filha também preenchida a previsão da al. e) do n.º 1 daquele artigo, pelo que por tais crimes será condenado, mas não, no que se refere ao cometido contra o pai, com a aplicação da moldura penal prevista nos arts. 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código Penal, uma vez que não se provou que o arguido tenha efectivamente tentado matá-lo.”

No essencial, não vemos razão para dissentir do Tribunal a quo quanto ao enquadramento jurídico dos factos no que se refere às vítimas DD e BB.

Na verdade, da matéria de facto provada e da fundamentação da decisão, resulta abundantemente claro que o arguido não respeitou nenhum destes dois ofendidos, estabelecendo um padrão de comportamento em que a agressão (física e verbal) se transformou num hábito, no período em que com os mesmos coabitou, identificando-se, a par da agressão física, também a ocorrência de violência psicológica, traduzida, por um lado, no modo como o arguido a eles se dirigia, aos atos a que submeteu a sua filha, nomeadamente consumindo estupefacientes na sua presença e questionando-a sobre o local onde se encontrariam os artefactos que lhe permitiriam tal consumo, e, ainda, arremessando objetos e quebrando móveis e vidros.

Neste sentido, tem de considerar-se que, relativamente a estes dois ofendidos, se demonstrou existir um clima de «micro violência continuada» (com o sentido acima exposto) que preenche o tipo de ilícito em questão.

Adicionalmente, o episódio final, que levou à detenção do arguido, encerra, em si mesmo, um nível de violência que não é compatível com a manutenção da convivialidade entre os membros da família33 – e ao qual se mostrou não ser o pai do arguido capaz de se opor sem a intervenção das autoridades.

Não é igualmente possível duvidar que a atuação do arguido foi dolosa, na modalidade de dolo direto (a forma mais intensa de dolo). Independentemente das dificuldades que possam afetar o arguido, em função dos respetivos hábitos etílicos e de consumo de estupefacientes, face ao teor das agressões reportadas e das expressões dirigidas aos ofendidos, num padrão de entendimento médio, resulta que o arguido bem sabia da potencialidade ofensiva dos seus comportamentos, resultando igualmente claro que quis exercer esse ascendente sobre os ofendidos, causando-lhes medo e evidente infelicidade.

Mantendo presente que o nº 1 do artigo 152º do Código Penal identifica nas suas várias alíneas, taxativamente, as possíveis vítimas do crime de violência doméstica, com o sentido de que se a vítima da conduta delituosa não estiver aí expressamente prevista, o agente poderá incorrer em quaisquer outros ilícitos, mas não no crime de violência doméstica – concordamos com o enquadramento escolhido pelo Tribunal a quo, que levou em conta, no que se refere à ofendida DD que a mesma se integra na alínea e) daquele nº 1 (por ser menor e descendente do arguido – e, no caso, coabitando com o mesmo), e no que se refere ao ofendido BB, por tê-lo considerado pessoa particularmente indefesa, também em situação de coabitação com o arguido.

Como decorre do que já acima se expôs, a propósito do preenchimento da alínea d) do nº 1 do citado artigo 152º, não se trata apenas de considerar a avançada idade do ofendido – muito embora, tendo o mesmo quase 90 anos, a respetiva fragilidade é praticamente um facto notório – há que tomar em conta as suas concretas possibilidades de se opor à atuação do arguido, com o sentido de ser capaz de por termo à mesma.

Por outro lado, como decorre do que já se deixou exposto, não é a circunstância de, no passado, o ofendido BB poder ter maltratado o arguido (nomeadamente, durante o crescimento do mesmo), que obsta a que, agora, o mesmo possa ser vítima de maus-tratos por parte do seu filho – o ponto é que, para este efeito, não exista coincidência temporal entre os comportamentos, em termos de esta afastar a sujeição da vítima ao seu agressor.

Ora, os factos provados, designadamente, nos respetivos pontos 37, 38, 60, 62 e 63, dão conta dessa especial fragilidade, atenta a já referida idade avançada de BB, a conflitualidade do relacionamento, e os problemas de saúde que o afetam, nomeadamente de locomoção (dependendo ambos os progenitores do apoio diário de uma outra filha), permitindo a conclusão de que, pese embora alguma bravata, o progenitor do arguido não tem condições para se opor ao mesmo34, devendo, pois, incluir-se na mencionada categoria legal, que justifica a punição do arguido pela prática do crime de violência doméstica cometido contra o seu pai (e também contra a sua filha), tal como se considerou na decisão recorrida, que, nesta parte, não merece censura.

Já não é assim, porém, no que se refere aos factos que têm por vítima a mão do arguido, CC, relativamente à qual não é possível formular idêntico juízo.

Com efeito, os factos provados apenas dão conta de que, em data não concretamente apurada, pouco antes de 04.01.de 2023, o arguido e CC discutiram (12º), circunstância em que aquele a chamou «prostituta» e «vaca» (13º), após o que saiu de casa e fechou a porta com força (14º), tendo, depois disso, CC viajado para ... (15º).

Além disto, provou-se, também que, por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, o arguido disse a CC: “Dou-te uma chapada”.

Sendo embora verdade que, pela sua idade e pelos problemas de saúde que a afetam, também CC se apresenta como especialmente frágil, afigura-se-nos que a factualidade concreta que relativamente à mesma se apurou não traduz a violência relacional pressuposta pelo crime em questão, e, por outro lado, os factos provados indicam que esta ofendida teve condições para se subtrair à ação do arguido, ausentando-se para fora do país.

Assim, não obstante estar demonstrado o proferimento de expressões ofensivas (e, eventualmente, intimidantes), não pode concluir-se pelo preenchimento do crime de violência doméstica, por não apresentarem os factos idoneidade típica.

Restaria, então, apurar do preenchimento dos ilícitos criminais consumidos pelo crime de violência doméstica – que deixariam de estar abrangidos na unificação operada pelo mesmo – e que, no caso, poderiam reconduzir-se ao crime de injúria e ameaça, previstos e punidos nos artigos 181º, nº 1 e 153º, nº 1, ambos do Código Penal.

Todavia, os crimes em apreço apresentam natureza semi-pública, sendo manifesto, face à postura desta ofendida no julgamento (de que dá conta a fundamentação da decisão recorrida), que não pretende o prosseguimento do procedimento criminal.

Afigura-se-nos, pois, que não se mostram reunidas as condições processuais para que o arguido seja punido pela prática de tais crimes, devendo, por outro lado, ser absolvido do crime de violência doméstica que teria por vítima a sua mãe, CC.

Deve, nesta medida, proceder o recurso interposto.

IV.2.2.– DO CRIME DE DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
Nos termos previstos no artigo 86º, nº 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições35 (RJAM), “Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo: (…) d) Arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática ou ponta e mola, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, cardsharp ou cartão com lâmina dissimulada, estrela de lançar ou equiparada, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, as armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, artigos de pirotecnia, exceto os fogos-de-artifício das categorias F1, F2, F3, T1 ou P1 previstas nos artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 135/2015, de 28 de julho, e bem assim as munições de armas de fogo constantes nas alíneas q) e r) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.

E, em conformidade com a alínea m) do nº 1 do artigo 2º do mesmo RJAM, constitui «Arma branca» “todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, as estrelas de lançar ou equiparadas, os cardsharp ou cartões com lâmina dissimulada, os estiletes e todos os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões”.

Sobre o cometimento de tal ilícito pelo arguido recorrente, escreveu o Tribunal recorrido:

“O crime de detenção de arma proibida está construído como crime de perigo abstracto, em que a lei previne o risco de uma lesão que coincide com a própria actividade proibida; há como que uma presunção inelidível de perigo e, por isso, dispensa-se a criação de perigo efectivo (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., págs. 308-309).

Nos crimes de perigo abstracto o perigo constitui o motivo da proibição, em função da perigosidade típica para um bem jurídico ou para uma série de bens jurídicos, independentemente de ser criado um perigo efectivo para o bem jurídico.

No crime de detenção de arma proibida, a justificação da tutela penal e a carência de pena estão ligadas à perigosidade típica para bens jurídico-penalmente tutelados que podem ser afectados pela simples detenção - os valores da ordem, segurança e tranquilidade públicas. A justificação e a dimensão valorativa dos bens jurídicos protegidos identificam-se, mais remota ou difusamente, com a protecção de uma pluralidade de bens jurídicos, que a simples posse, ilegítima ou proibida, de um instrumento é susceptível de afectar, fazendo reverter para um campo de risco de afectação (cfr., v. g., acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.10.2006, no Proc. n.º 3042/06, e de 14.12.2006, no Proc. n.º 4344/06).

O bem jurídico, ainda numa projecção difusa de uma pluralidade de bens jurídicos e numa dimensão mais ampla, autonomiza-se de cada um dos concretos bens jurídicos que possam vir a ser individualmente afectados na respectiva titularidade concreta, sendo, por si, autonomamente e ex ante, considerado como relevante para justificar a definição de um crime de perigo.

Deste modo, a lesão do bem jurídico - o perigo - verifica-se logo no momento da detenção da arma proibida, independente da relação, específica e autónoma, de cada um dos valores individualizados que possam vir a ser concretamente afectados em crime posterior de resultado.

Uma vez que o arguido tinha consigo e em seu poder uma faca com 13,5 cm de lâmina, um cutelo com 15,5 cm lâmina, uma faca de cozinha com 12 cm de lâmina e um bastão de madeira, com a finalidade de atentar contra o corpo do seu pai, está preenchido o tipo objectivo desta incriminação.

A detenção de distintas armas proibidas não integra o correspondente número de crimes, sendo única a vontade da sua posse e guarda.

Por conseguinte, conhecendo o arguido as mencionadas características daqueles objectos que detinha e querendo actuar da forma descrita, actuou com dolo directo (art. 14.º, n.º 1, do Código Penal), pelo que praticou, como autor material (art. 26.º do Código Penal), um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. d), com referência ao art. 2.º, n.º 1, al. m), da Lei n.º 5/2006, de 23.02.”

Perante a argumentação exposta pelo Tribunal a quo, o recorrente limitou-se, singelamente, a afirmar que as facas não eram suas.

Ora, tal como decorre da previsão legal que acima se deixou transcrita, a titularidade do direito de propriedade sobre os instrumentos em causa não constitui elemento do tipo. Como considerou o Tribunal da Relação de Évora, no acórdão de 17.09.201336, cuja argumentação subscrevemos, “para efeitos do art. 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, tal como para os preceitos similares que o antecederam, pratica a ação típica na modalidade de detenção quem tenha a arma consigo ou quem a tenha na sua esfera de disponibilidade, ainda que de forma esporádica ou transitória.

Não só é este o sentido que corresponde ao significado do vocábulo do ponto de vista gramatical, como é o que se ajusta à natureza do crime enquanto crime de perigo de perigo abstrato que tem por bem jurídico protegido a segurança da comunidade face aos riscos derivados da livre circulação e detenção de armas proibidas, engenhos e materiais explosivos37. O crime consuma-se com a mera disponibilidade da arma por parte do agente, independentemente da finalidade da detenção e mesmo do tempo em que aquela se mantenha, sem prejuízo da eventual verificação das causas comuns de justificação ou de exclusão da culpa.”

Na verdade, como decorre da redação do preceito em causa, relevante para a respetiva integração objetiva é apenas que o agente sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente (no que ao caso importa) detenha, use ou traga consigo armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão, não justificando a sua posse.

Assim, perante tal redação, é de concluir que a não justificação da posse destas armas pelo seu portador é um elemento integrante do tipo deste crime. Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de ... de 30.06.201038, “este requisito legal «o seu portador não justifique a sua posse», para uma arma como aquela transportada pelo arguido, não é um mero elemento retórico, assim não disponível como uma mera fórmula mais ou menos utilizável de acordo com uma geometria variável, ou que se possa inferir de outros factos que não aludam à utilização efectiva ou potencial da arma ou instrumento. Das duas uma: ou a posse de tal arma tem uma aplicação e justificação concreta, e então não há crime, ou o seu portador não consegue justificar a posse, e assim há crime. São elementos constitutivos do tipo objectivo do crime em análise a detenção, uso e posse de armas proibidas fora das condições legais ou em contrário das prescrições das autoridades competentes. O crime de detenção de arma proibida é um crime de realização permanente e de perigo abstracto, em que o que está em causa é a própria perigosidade das armas, visando-se, com a incriminação da sua detenção tutelar o perigo de lesão da ordem, segurança e tranquilidade públicas face aos riscos da livre circulação e detenção de armas”.

Não obstante, tal elemento típico pode ser descrito (na acusação e nos factos provados) sob uma alegação ou referência não coincidente em termos exatos com aquela expressão legal - o que releva é que se possa ter como provado que a posse das «armas» não está justificada face ao uso que normalmente lhes é dado, pelo arguido ou por qualquer outra pessoa39.

No caso, o que se observa é que o arguido tinha na sua posse – no dia 04.01.2023, na altura em que foi detido – todos os descritos instrumentos (que inequivocamente integram a noção legal exposta na citada alínea m) do nº 1 do artigo 2º do RJAM), que reuniu com o assumido propósito de agredir o seu pai. E esta é a «justificação» de tal detenção.

Ora, como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de ... de 16.05.201240, “… esta expressão ou forma de alegação, é inequívoca quanto à utilidade, à aplicação, à justificação ou finalidade da posse dos objectos ou “armas”, pelo arguido recorrente: o mesmo tinha tais armas para delas fazer uso como “arma de agressão”.

Se esta finalidade é inequívoca, então está mais que não justificada a sua posse. A justificação da posse a que se refere o legislador visa precisamente outra finalidade que não a sua utilização como arma de agressão. Se assim for, ou seja, se a posse estiver justificada, não existirá crime. Mas se essa posse visar exactamente a sua utilização como “arma de agressão”, então a posse já constituirá indubitavelmente o dito crime.

Voltando agora ao exemplo do taco de golfe, se o possuidor não praticante daquela modalidade o transportar para o utilizar como arma de agressão e esta alegação e prova resultar inequívoca, com certeza que seria redundante estar a exigir-se ainda e indagar se a sua posse estava ou não justificada. Pode mesmo afirmar-se que a concretização da utilização ou finalidade da arma mais não é do que a concretização da expressão da “posse não justificada” ou, dito de outro modo, a expressão de “justificar ou não justificar a posse da arma” encerra em si mesmo um conceito de direito. Mas sabendo-se ou sendo conhecido o fim ou a utilização que se pretende dar a determinada arma, é possível concluir-se se a sua posse é legítima ou se se encontra justificada ou não.

E, manifestamente, no caso dos autos, a posse destas armas pelo arguido recorrente, não estava justificada, pelo que integra a mesma a previsão daquela disposição legal reproduzida supra.”

Este é, também o caso dos autos – pelo que nenhuma censura merece a decisão recorrida ao ter integrado tais factos no crime de detenção de arma proibida.

Improcede, por isso, este segmento do recurso.

*

IV.3.– DA MEDIDA DA PENA
Sustenta o recorrente que a pena (única) que lhe foi aplicada «é desproporcional e elevadíssima face à situação em concreto», reclamando a sua substituição por uma pena «junto do limite mínimo, que caso se mantenha a condenação pelo crime de violência doméstica teria que ser de 3 anos de prisão e suspensa na sua execução, sujeito a regime de prova de tratamento ao álcool e à droga e proibição de contatos com os ofendidos e não aproximação dos mesmos».

E, neste particular âmbito, adita ainda que «no caso concreto e face ao facto de o arguido já se encontrar em prisão preventiva há mais de 11 meses, o mesmo já interiorizou o desvalor da sua conduta e quer pautar a sua vida pelas regras socialmente impostas».

Cumpre apreciar.

Mantendo embora presente que, como se referiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.05.202141, “os recursos não são re-julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. Assim, também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico”, não pode deixar de relevar-se que a absolvição do arguido de um dos crimes de violência doméstica por que havia sido condenado em 1ª instância necessariamente impõe a reformulação do cúmulo jurídico realizado na decisão recorrida.

A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40º do Código Penal que as finalidades das penas reconduzem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).

O juiz começa por determinar a moldura penal abstrata e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para finalmente escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida, tendo em vista as penas de substituição que a lei prevê.

Estabelece o artigo 71º, nº 1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O nº 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o nº 3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjectiva no artigo 375º, nº1, do Código de Processo Penal, ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.

Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer42.

No que se refere à determinação da pena única no concurso de crimes, como ensina Paulo Pinto de Albuquerque43, em anotação ao artigo 77º do Código Penal, “A moldura do concurso de crimes é construída, não de acordo com o princípio da absorção puro (punição do concurso com a pena concreta do crime mais grave), nem com o princípio da exasperação ou agravação (punição do concurso com moldura do crime mais grave, devendo a pena concreta ser agravada em virtude do concurso de crimes), mas antes com o princípio da cumulação, segundo o qual se procede à punição do concurso com uma pena conjunta determinada no âmbito de uma moldura cujo limite máximo resulta da soma das penas concretas aplicadas a cada crime imputado, mas cuja medida concreta é decidida em função da imagem global dos crimes imputados e da personalidade do agente, procurando, nas palavras de Eduardo Correia, «na medida em que é possível e conveniente, trazer a ideia da chamada “pena unitária” para dentro do sistema da acumulação» (Actas CP/Eduardo Correia, 1965a: 155). Trata-se, pois, de um sistema de cumulação, mas na forma de um cúmulo jurídico. (…)

Em regra, a ponderação da imagem global dos crimes imputados e da personalidade é feita nos seguintes termos: tratando-se de uma personalidade mais gravemente desconforme com o Direito, o tribunal determina a pena única somando à pena concreta mais grave metade (ou, em casos excecionais, dois terços) de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso; tratando-se de uma personalidade menos gravemente desconforme ao Direito, o tribunal determina a pena conjunta à pena concreta mais grave um terço (ou, em casos excecionais, um quarto) de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso (em sentido próximo, por exemplo, acórdão do STJ, de 9.5.2002, processo 02P1259, acórdão do STJ, de 17.10.2002, processo 2792/2002, acórdão do STJ, de 27.1.2005, processo 04P4449, acórdão do STJ, de 12.7.2005, com anotação in RPCC, ano 16: 151, acórdão do STJ, de 6.10.2005, processo 05P2107, acórdão do STJ, de 14.1.2009, processo 3856/08-5, acórdão do STJ, de 26.2.2009, processo 08P2873, acórdão do STJ, de 29.10.2009, processo 18/06.0PELRA.C1.S1-5, acórdão do STJ, de 19.5.2010, in CJ, Acs. do STJ, XVIII, 2, 191, acórdão do STJ, de 12.7.2012, in CJ, Acs. do STJ, XX, 2, 238, acórdão do STJ, de 12.9.2014, CJ, Acs. do STJ, XXII, 3, 179, acórdão do STJ, de 4.2.2016, CJ, Acs. do STJ, XXIV, 2, 253, e acórdão do STJ, de 8.7.2020, processo 74/14.7JAPTM.3.E1.S1, e com considerações semelhantes, referindo-se a um fator de compressão do remanescente das penas parcelares, Carmona da Mota, 2009, Souto Moura, 2010: 108 e 109, Lourenço Martins, 2011: 306 e 307, Miguez Garcia e Castela Rio, 2014: 387, anotação 11ª ao artigo 77º, e Tiago Milheiro, 2020: 75 a 77, mas críticos desse fator, Simas Santos, 2010: 150, embora o Autor o tenha utilizado enquanto relator, por exemplo, nos acórdãos do STJ, de 27.1.2005, e de 6.10.2005 (referindo-se à ponderação de «menos de 1/3 da soma das restantes penas parcelares»), Artur Rodrigues da Costa, 2013: 180 e 181, admitindo que as fórmulas referidas conduzem a «penas conjuntas muito inferiores e aparentemente mais adequadas e mais conformes a um princípio de humanidade», mas duvidando da sua «suficiente solvabilidade jurídica», e BBBarreiros, 2009, ainda mais cético em relação à possibilidade de introduzir racionalidade no sistema legal de cúmulo jurídico, tendo até Isabel São Marcos, 2016, considerado que não era «viável identificar o concreto e preciso raciocínio que terá servido de fio condutor na metodologia porventura usada pelo mesmo [Supremo] Tribunal para concretizar tal operação»).”

Descendo ao caso concreto, há a ter em conta que o recorrente não impugnou as penas parcelares em que foi condenado – de 2 anos e 9 meses de prisão, e de 3 anos de prisão pelos (2) crimes de violência doméstica, e de 2 anos de prisão pelo crime de detenção de arma proibida – pelo que a moldura penal do concurso se acha definida entre um limite mínimo de 3 anos de prisão (pena mais elevada) e 7 anos e 9 meses de prisão (somatório das três penas concretamente aplicadas). Neste contexto, ponderada a imagem global dos factos que emerge da matéria provada e a personalidade do arguido revelada no respetivo cometimento – tendo em conta a objetiva gravidade dos factos, a circunstância de o arguido possuir antecedentes criminais pela prática do mesmo tipo de crimes e a total ausência de arrependimento ou reconhecimento do mal causado, afigura-se justo fixar a pena única a impor ao arguido em 4 anos e 3 meses de prisão.

Procede, pois, o recurso, nesta medida.

*

IV.4.–DA (NÃO) SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Tendo em conta a medida da pena única encontrada, impõe-se considerar a possibilidade de suspensão da respetiva execução.

Nos termos previstos no artigo 50º, nº 1 do Código Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Como se ponderou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.202144, “Para a aplicação da suspensão da execução da pena (artigo 50.º, do CP), a lei define um requisito objectivo (condenação em pena de prisão não superior a 5 anos) e estabelece pressupostos subjectivos, determinados por finalidades político-criminais – os que permitam concluir pelo afastamento futuro do delinquente da prática de novos crimes, através da sua capacidade de se reintegrar socialmente.

Trata-se, de alcançar a socialização, prevenindo a reincidência.

Assim, sempre que o julgador puder formular um juízo de prognose favorável, à luz de considerações de prevenção especial sobre a possibilidade de ressocialização do arguido, deverá deixar de decretar a execução da pena.

Estão em causa, não considerações sobre a culpa, mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção.

Pretende-se, como sublinha, com incontornável autoridade, o Professor Figueiredo Dias, «o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer correcção, melhora ou – ainda menos – metanóia das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É, em suma, como se exprime Zipf, uma questão de legalidade e não de moralidade que aqui está em causa. Ou como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o conteúdo mínimo da ideia de socialização, traduzida na prevenção da reincidência».

Depois de se optar por uma pena detentiva, à luz das considerações e com os critérios legais sobre-expostos, importa, pois, determinar se existe a esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada, a partir de razões fundadas e sérias que levem a acreditar na capacidade do delinquente para a auto-prevenção do cometimento de novos crimes, devendo negar-se a suspensão sempre que, fundadamente, seja de duvidar dessa capacidade.

Nos termos prevenidos no artigo 50.º, do CP, a averiguação de tal capacidade deve ser feita em concreto, através da análise da personalidade do arguido, das suas condições de vida, da conduta que manteve antes e depois do facto e das circunstâncias em que o praticou.

Se, dessa análise, resultar que é possível esperar que a ameaça da pena de prisão e a censura do facto são idóneos a permitir a formulação do referido juízo de confiança na capacidade do arguido para não cometer novos crimes, deverá ser decretada a suspensão da execução da pena.”

Assim, subjacente à decisão de suspensão da execução da pena está um juízo de prognose favorável sobre o futuro comportamento do arguido, ou seja, quando se possa prever que o mesmo não cometerá futuros crimes.

No caso, não se vê que seja possível formular um tal juízo de prognose favorável ao arguido AA.

De um lado, porque já foi condenado em pena de prisão, suspensa na execução, pela prática de crime de violência doméstica (e em pena de multa pela prática de crime de detenção de arma proibida), o que, porém, não foi suficiente para o afastar da criminalidade e de novo em sede de crime de violência doméstica, repetindo o padrão de comportamento anteriormente censurado – o que ocorreu menos de três anos após aquela condenação.

Por outro lado, tal como resulta da matéria de facto dada como provada, o arguido é um indivíduo isolado, autocentrado e desvinculado de ambientes estruturados e normativos, em resultado da sua problemática de alcoolismo severa; problemática que não reconhece e para a qual nunca fez qualquer tratamento. E também não tenciona deixar de consumir haxixe, porque gosta do seu efeito e considera que não lhe faz mal.

A isto acresce que no âmbito do processo nº 176/18.0GAOHP, não cumpriu as obrigações decorrentes do regime de prova a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de 2 anos e 2 meses de prisão em que foi condenado pela prática do crime de violência doméstica, uma vez que não compareceu no serviço da DGRSP encarregue da elaboração do respetivo plano de reinserção social, não tendo tal serviço conseguido contactá-lo por outra via e desconhecendo os seus familiares, na altura, o seu paradeiro.

Perante um tal quadro – e atenta a postura do arguido, bem patente ao longo de todo o processo – é manifestamente elevada a probabilidade de reincidência futura. E, paralelamente, é também indubitavelmente frágil e visivelmente pouco contentor o apoio familiar com que poderia contar, atendendo a que, como informaram os serviços da DGRSP, “Para além de visitas em épocas festivas, nunca conviveu regularmente com os elementos do agregado composto pela irmã, pelo cunhado e pelos filhos desse casal”, devendo relevar-se que aquela irmã mora a curta distância das vítimas (das quais é também cuidadora).

E, finalmente, porque a efetiva execução da pena de prisão, num caso como o dos autos, mostra-se indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização das expectativas comunitárias45. Na verdade, a violência doméstica vem grassando na nossa sociedade, sendo imperioso que a reação penal se constitua como um contributo para a alteração de padrões comportamentais disfuncionais, como os exibidos pelo arguido, e, por outro lado, dificilmente seria aceitável para o conjunto dos cidadãos que fosse suspensa na sua execução a pena correspondente a tal ilícito praticada por um arguido que já foi condenado por igual crime.

Como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.09.201546, “A suspensão da execução da pena aplicada ao arguido, sem que o mesmo revele uma mudança prospetiva de atitude, seria vista pela comunidade como oportunidade não merecida, além de comprometedora da tutela mínima dos bens jurídicos violados (…).

Com efeito, «nenhum ordenamento jurídico suporta pôr-se em causa a si mesmo, sob pena de deixar de existir enquanto tal. A sociedade tolera uma certa «perda» de efeito preventivo geral – isto é conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição. Já não tolera a sua ineficácia»47.”

É, pois, de concluir, face às elevadas exigências de prevenção geral e especial patentes no caso, que é de todo inviável a formulação de um prognóstico favorável à execução da pena na comunidade, impondo-se o seu efetivo cumprimento.

Já a afirmação de que, por se encontrar “em prisão preventiva há mais de 11 meses, o [arguido] já interiorizou o desvalor da sua conduta e quer pautar a sua vida pelas regras socialmente impostas” não apresenta qualquer suporte factual – a matéria provada aponta, aliás, em sentido diametralmente oposto, no que se reporta ao reconhecimento do mal praticado. A provar-se em momento posterior, será suscetível de relevar no decurso da execução da pena, a propósito da eventual flexibilização da mesma, mas não traduz, neste momento, qualquer atenuação das exigências de prevenção ou da necessidade da pena.

Nesta parte terá, por isso, de improceder o recurso.

*

IV.5.– DA INDEMNIZAÇÃO ARBITRADA
O recorrente insurge-se, ainda, contra o arbitramento de indemnização aos ofendidos DD e BB, fixada pelo Tribunal a quo, ao abrigo do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, no montante de € 750,00 para a primeira, e € 1.500,00 para o segundo – montantes que entende excessivos e desproporcionais, uma vez que “não tem quaisquer bens ou rendimentos que lhe permita pagá-las”, mais aditando que “não ficaram provados quaisquer danos dos ofendidos”.

Sucede que, de acordo com o disposto no artigo 400º, nº 2 do Código de Processo Penal, «…o recurso da parte da sentença relativa a indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade dessa alçada». Tal disposição consagra solução idêntica à adotada no artigo 629º, nº 1 do Código de Processo Civil.

Resulta do artigo 44º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) que, «em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5 000,00».

Constata-se, in casu, que o recorrente decaiu apenas no valor de € 2.250,00, que não é superior a metade da alçada da 1ª instância, sendo certo que os requisitos impostos pelo artigo 400º, nº 2 do Código de Processo Penal são de verificação cumulativa.

Como se considerou no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 20.02.202448: “É discutível a recorribilidade da decisão nestes casos de arbitramento de indemnização oficiosa ao abrigo do artigo 82º-A, em face do que dispõe o artigo 400º, nº 2 do Código de Processo Penal – o recurso da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.

Nestes casos, em que não há pedido de indemnização civil ou “enxerto cível”, o tribunal a quo não se encontra limitado pelo valor do pedido e, por conseguinte, pode até fixar uma indemnização superior ao valor da sua alçada. Por isso, temos vindo a entender, à luz da ratio legis do disposto artigo 400º, nº 2, do Código de Processo Penal, que será de atender, apenas, à circunstância de a decisão impugnada ser desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada em matéria civil do tribunal da primeira instância [fixado pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de agosto, em 5.000,00€ (cinco mil euros)].”

Também neste sentido se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 16.10.201349, aí se sustentando que é de rejeitar o conhecimento de tal questão, “pelo argumento lógico «identidade de razão» com o não conhecimento em Recurso da quantificação a quo de indemnização objecto de Pedido de Indemnização Civil quando não ultrapassa metade da alçada do Tribunal a quo.

Com efeito, tem-se por incongruente na Ordem Jurídica o conhecimento em Recurso do pedido de redução de quantum indemnizatório arbitrado oficiosamente que não era conhecível pela Relação caso tivesse sido quantificado a quoem sede de apreciação de Pedido de Indemnização Civil como expendido no nosso Acórdão de ........2013 no RP259/10.5GFVNG.P1:

“… o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada” (art 400-2 do CPP que foi fixada em 5.000 € pelo art 5 do DL 303/2007 de 24/8 (substituindo os 3.740,98 € do art 24-1 da Lei 3/99 de 13/1 e que foi mantida pelo art 31-1 da Lei 52/2008 de 29/8;

(…)

Isto mesmo se referiu, também no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22.09.201550, no qual se consignou que “a preconizada redução desses montantes é questão que não admite recurso, atenta a equiparação que deve fazer-se, pela identidade de natureza com o que acontece com a indemnização civil, de acordo com o art. 400.º, n.º 2, do CPP, quando esta, como é caso relativamente a cada uma das quantias arbitradas, não excede metade da alçada do tribunal recorrido (acórdão da Relação de ... de 29.04.2015, no proc. n.º 27/13.2GCLMG.C1, in www.dgsi.pt).

Esta é a solução que melhor se harmoniza com o carácter subsidiário das reparações em apreço, sem perder de vista que são indemnizações ainda que para casos especiais e, por maioria de razão, arbitradas na falta de dedução de pedido de indemnização civil no processo penal e tidas em conta em acção diversa que venha a conhecer de algum pedido dessa natureza.”51

Subscrevemos, na íntegra, as considerações tecidas nos arestos citados.

Nestes termos, face ao valor do decaimento do recorrente no que se reporta às indemnizações arbitradas, impõe-se concluir pela impossibilidade de conhecimento do recurso nesta parte.

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V.DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência:

i.-Revogar o acórdão recorrido no que se reporta ao crime de violência doméstica alegadamente cometido contra CC, do qual vai o arguido absolvido;

ii.-Manter a respetiva condenação pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alíneas d) e e), e nº 2, alínea a), do Código Penal, de que foi vítima DD, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea d), e nº 2, alínea a), do Código Penal, de que foi vítima BB, na pena de 3 (três) anos de prisão, e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, nº 1, alínea d), com referência ao artigo 2º, nº 1, alínea m), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

iii.-Reformular o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, condenando o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão.

iv.-Não conhecer do recurso no que se refere às indemnizações arbitradas aos ofendidos DD e BB.

v.-Manter, em tudo o mais, o acórdão recorrido, nos seus precisos termos.

Sem tributação nesta instância, face à parcial procedência.

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Lisboa, 09 de abril de 2024

(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)

Sandra Oliveira Pinto

(Juíza Desembargadora Relatora)

Maria José Costa Machado

(Juíza Desembargadora Adjunta)

João Ferreira

(Juiz Desembargador Adjunto)

1.cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, págs. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»

2.Cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).

3.No processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, relatado pelo, então, Desembargador Jorge Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt.

4.Sobre estas questões, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14.03.2007 (no processo nº 07P21, Relator: Conselheiro Santos Cabral), de 23.05.2007 (no processo 07P1498, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar), de 03.07.2008 (no processo nº 08P1312, Relator: Conselheiro Simas Santos), de 29.10.2008 (no processo nº 07P1016, Relator: Conselheiro Souto de Moura) e de 20.11.2008 (no processo nº 08P3269, Relator: Conselheiro Santos Carvalho), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

5.Note-se que, como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 01 de abril de 2008 (no processo nº 360/08-01, Relator: Desembargador Ribeiro Cardoso, acessível em www.dgsi.pt): “Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.

As provas que impõem decisão diversa são as provas relevantes e decisivas que não foram analisadas e apreciadas, ou, as que, tendo-o sido, ponham em causa ou contradigam o entendimento plasmado na decisão recorrida.”

6.Publicado no Diário da República, Iª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012.

7.No processo nº 4833/16.8T9SNT.L1-5, Relator: Desembargador Artur Vargues, em www.dgsi.pt).

8.No processo nº 3286/04, 5ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.

9.Que se traduz no apuramento dos factos efetivamente acontecidos, salvaguardadas as garantias de defesa constitucional e legalmente previstas.

10.No processo nº 1050/14.5PFCSC.L1-3, Relator: Desembargador João Lee Ferreira, acessível em www.dgsi.pt.

11.Cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência nº 7/95, de 19.10.1995, in Diário da República, Iª série, de 28.12.1995, que fixou jurisprudência no sentido de que «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito».

12.Código de Processo Penal Comentado, 3ª ed. revista, Almedina, 2021, pág. 1291.

13.Cf., entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.07.2005, no processo nº 2122/05, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar, acessível em www.dgsi.pt.

14.No processo nº 288/09.1GBMTJ.L1-5, relatado pelo, então, Desembargador Jorge Gonçalves, acessível em www.dgsi.pt.

15.Cf. cit. ac. STJ de 13.07.2005.

16.Com este mesmo sentido, em lugar paralelo, vd. o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.10.2013, no processo nº 120/11.6GCVFR.P1, relatado pela, então, Desembargadora Maria do Carmo Silva Dias, acessível em www.dgsi.pt.

17.O recorrente não indicou as normas violadas, nem o sentido em que teriam sido interpretadas pelo Tribunal recorrido, ou o sentido que reputaria adequado – cf. artigo 412º, nº 2 do Código de Processo Penal.

18.Cf. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, págs. 329 a 339.

19.Neste sentido, também, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.04.2017, no processo nº 2263/15.8JAPRT. P1.S1, Relator: Conselheiro Nuno Gomes da Silva, em www.dgsi.pt.

20.Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica – novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, nº 8, pág. 305.

21.Vd., entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05.04.2006 (no processo nº 06P468, Relator: Conselheiro João Bernardo) e de 06.04.2006 (no processo nº 06P1167, Relator: Conselheiro Simas Santos) e do Tribunal da Relação de Évora de 29.11.2005 (no processo nº 1653/05- 1, relatado pelo, então, Desembargador Pires da Graça), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

22.“Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Revista Julgar, nº 12 (Especial), Set-Dez, 2010.

23.No processo nº 1340/14.7TAPTM.E1, relatado pela, então, Desembargadora Ana Barata de Brito, em www.dgsi.pt.

24.No processo nº 113/10.0TAVVC.E1, Relator: Desembargador João Gomes de Sousa, acessível em www.dgsi.pt.

25.Ob. cit., pág. 22.

26.No processo nº 218/21.2GBAMT.P1, Relator: Desembargador Raul Cordeiro, acessível em www.dgsi.pt.

27.Acessível em www.dgsi.pt.

28.Acessível em www.dgsi.pt e também em CJ Ano XLVI – Tomo V/2021, págs. 184 a 186.

29.Com este sentido, também, o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 19.03.2024, no processo nº 284/23.6JAPDL.L1-5, Relator: Desembargador Manuel Advínculo Sequeira, em www.dgsi.pt.

30.No processo nº 40/17.0GCOAZ.P1, Relator: Desembargador José Carreto, acessível em www.dgsi.pt.

31.No processo nº 709/21.5SXLSB.L2-3, Relator: Desembargador Alfredo Costa, acessível em www.dgsi.pt.

32.Ac. do TRP, de 16.03.2022, in www.dgsi.pt.

33.Com o sentido de que não releva, no cometimento do crime de violência doméstica, se os factos ocorreram ao longo de um período de tempo mais ou menos extenso, ou apenas numa única ocasião, vd., também, o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 19.03.2024, no processo nº 287/22.8PGPDL.L1-5, Relator: Desembargador Paulo Barreto, em www.dgsi.pt, do qual citamos: “O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que os diversos ilícitos típicos que o podem preencher. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente atingidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente.

E, ainda com este alcance, vd. o acórdão do Tribunal da Relação de ... de 12.04.2018, no processo nº 3/17.6GCIDN.C1, relatado pelo, então, Desembargador Vasques Osório, acessível em www.dgsi.pt, do qual citamos: “Deve notar-se que a qualificação de uma determinada acção como mau trato não depende da sua aptidão para preencher um outro tipo de ilícito, da mesma forma que a aptidão de uma determinada acção para preencher o conceito de mau trato não significa, sem mais, a verificação do «crime de violência doméstica, tudo dependendo da respectiva situação ambiente e da imagem global do facto» (Nuno Brandão, ob. cit., pág. 19).

Na verdade, a violência doméstica não é, apenas, o mero somatório das acções, típicas ou não, praticadas pelo agente contra a vítima, mas o que deste conjunto de acções, globalmente considerado, resulta, a relação de domínio daquele sobre esta, relação esta apta a afectar de forma significativa a saúde física, psíquica e moral da vítima e, por esta via, a sua dignidade.”

34.E mostrando-se, de resto, receoso do comportamento que o arguido possa vir a ter se e quando for restituído à liberdade.

35.Aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro.

36.No processo nº 10/09.2GFMMN.E1, relatado pelo, então, Desembargador BBJoão Latas, acessível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/10-2013-93856775

37.Cfr Paula Ribeiro de Faria Comentário Conimbricense do C. Penal, II-1999 p. 891, em comentário ao art. 275º do C. Penal na versão de 1995.

38.No processo nº 1229/08.9GBAGD.C1, Relator: Desembargador Paulo Valério, acessível em www.dgsi.pt.

39.Neste sentido, também, o já citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.10.2013.

40.No processo nº 562/09.7JAAVR.C1, Relator: Desembargador Luís Teixeira, acessível em www.dgsi.pt.

41.No processo nº 10/18.1PELRA.S1, Relatora: Conselheira Ana Barata Brito, acessível em www.dgsi.pt.

42.Cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, págs. 227 e segs..

43.Comentário do Código Penal – à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª ed. atualizada, Universidade Católica Editora, 2021., págs. 407-408.

44.No processo nº 381/16.4GAMMC.C1.S1, Relator: Conselheiro BBClemente Lima, acessível em www.dgsi.pt.

45.Cf., a propósito, o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 10.10.2018, no processo nº 356/17.6GACSC.L1-3, Relator: Desembargador João Carlos Lee Ferreira, acessível em www.dgsi.pt.

46.No processo nº 10/14.0SFPRT.P1, Relatora: Desembargadora Eduarda Lobo, também acessível em www.dgsi.pt.

47.Cf. Costa Andrade, RLJ, 134º, p. 76.

48.No processo nº1395/16.0T9CSC.L2, relatado pela Desembargadora Maria José Machado, que assina a presente decisão como adjunta, disponível em www.dgsi.pt.

49.No processo nº 670/11.4PDVNG.P1, Relator: Desembargador Castela Rio, acessível em www.dgsi.pt.

50.No processo nº 671/14.0PBFAR.E1, Relator: Desembargador Carlos Jorge Berguete, também acessível em www.dgsi.pt.

51.Neste sentido, ainda, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.09.2016, no processo nº 724/14.5PBVLG.P1, relatado pelo, então, Desembargador II, em www.dgsi.pt.