EXECUÇÃO
INDEFERIMENTO LIMINAR
PERSI
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Sumário

I – A aplicação do regime legal introduzido pelo Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, aos casos de mora iniciados antes do início da vigência deste diploma tem como pressuposto, além da manutenção da mora no incumprimento das obrigações contratuais, que o contrato permaneça em vigor nessa data.
II – Não tendo sido demonstrado que o credor havia procedido à resolução do contrato de crédito em momento anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, é forçoso concluir pela aplicabilidade deste diploma a tal contrato.
III – Consequentemente, não tendo a executada sido integrada em PERSI antes da instauração da execução destinada à cobrança coerciva do crédito, verifica-se a excepção dilatória atípica e inominada de falta da condição objectiva de procedibilidade, prevista no artigo 18º, nº 1, al. b) do citado Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, o que determina o indeferimento liminar do requerimento executivo.

Texto Integral

Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
 A intentou, em 26 de Agosto de 2023, contra B a presente acção executiva de pagamento de quantia certa, nos termos da qual requer a cobrança coerciva da quantia total de € 14.396,50 [sendo € 5.117,41 de capital em dívida e € 9.279,41 de juros remuneratórios, contabilizados à taxa contratual de 11,75%, acrescidos de juros moratórios, mediante a aplicação de uma sobretaxa anual de 3% desde 07/04/2011], acrescida de juros de mora calculados à taxa legal de 4,00% sobre o capital desde a data de entrada da execução até integral pagamento, bem como as despesas e honorários da Exmª Sra. Agente de Execução.
A exequente deu à execução uma livrança a cuja emissão (em branco) foi subjacente um contrato de mútuo que a executada celebrou com o “Banco Espírito Santo, S.A.”, contrato esse, que, em virtude de cessão de créditos entretanto efectuada, a ora exequente é titular. Alegou que, como a executada não cumpriu com o pagamento das prestações definidas naquele contrato, mantendo-se em reiterada situação de incumprimento, a exequente promoveu o preenchimento daquela livrança.
Em 16/10/2023, foi proferido despacho com o seguinte teor, para o que aqui interessa (cfr. Referência Citius nº 158316694):
“Questão prévia
A falta de integração obrigatória do cliente bancário no PERSI constitui impedimento legal da instauração, pelo credor, de ação com vista à cobrança do crédito.
É sobre o exequente que recai o ónus de comprovar o preenchimento das condições de procedibilidade da ação executiva, conforme sobejamente afirmado pela nossa jurisprudência (vide, por exemplo, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02/23/2021, processo 8821/19.4T8PRT-A.P1, in www.dgsi.pt, o qual, por seu turno, cita abundante jurisprudência].
(…)
A nossa jurisprudência vem entendendo que a falta de integração do cliente bancário no PERSI consubstancia uma exceção dilatória inominada, reconhecendo, por isso, a possibilidade do seu conhecimento oficioso, aplicando o regime decorrente dos artigos 576º, n.ºs 1 e 2 e 578º do Código de Processo Civil, sendo, assim, de admitir a sua invocação até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, não operando o efeito preclusivo do prazo para deduzir embargos – vide, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/29/2020, processo 1827/18.2T8ALM-B.L1-7, in www.dgsi.pt.
A circunstância do exequente não ser o primitivo credor não obsta, em nosso entender, ao acima exposto.
Termos em que, em face do exposto, convido o exequente, querendo, em 10 dias, a dizer/comprovar o que tiver por conveniente, nomeadamente o cumprimento de integração do(s) executado(s) no PERSI, tendo em consideração que a comunicação da integração do cliente bancário no PERSI e a comunicação da extinção do PERSI devem ser efetuadas em suporte duradouro (vide artigos 15º n.º 4 e 17º n.º 3 do DL 227/2012).
(…).”.
Nesta sequência, a exequente juntou aos autos, em 03/11/2023, requerimento (Referência Citius nº 14415348) com o seguinte teor, para o que aqui interessa:
“1. Salvo o devido respeito, por melhor entendimento, o regime PERSI, previsto no Decreto Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, não se aplica ao caso em concreto, uma vez que o incumprimento do contrato é prévio à implementação do referido Decreto Lei.
2. O regime previsto entrou em vigor apenas a 1 de Janeiro de 2013.
3. Porém, para os devidos efeitos, em respeito ao principio da cooperação processual, o exequente junta, como Doc. n.º 1, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, as cartas de interpelação e resolução, remetidas à data.”.
Notificada para o efeito, a exequente juntou aos autos um documento (sob o requerimento de 16/11/2023, Referência Citius nº 14470426), constituído por várias cartas enviadas para a executada, nomeadamente, a invocada pela apelante neste recurso, com o seguinte teor (para o que aqui releva):
“Lisboa, 06 de Abril de 2011
ASSUNTO: REGULARIZAÇÃO DO CONTRATO Nº 60004326755
PROCESSO Nº 012261179
Exmo(a) Senhor(a),
Não obstante as diligências por nós já efectuadas, ainda se encontra por regularizar o valor em dívida do contrato em epígrafe, no total de 787,89€, no qual se incluem juros de mora/penalizações.
Informamos que nesta data o processo transitou para a gestão do Núcleo de Recuperação Externa, pelo que solicitamos que, com urgência contacte os nossos serviços através do telefone 21 850 30 88 por forma a com o Recuperador a quem a dívida está afecta, proceder à regularização da mesma.
Se até à data de 16/04/2011 se mantiver o incumprimento, enviaremos o processo para o nosso departamento de Contencioso, tomando-se as medidas julgadas adequadas à defesa dos legítimos interesses da Instituição Credora.
Se a recepção desta carta ocorrer após ter efectuado a regularização em causa, agradecemos que a considere sem efeito e aceite as nossas desculpas pelo incómodo.
(…)”
Em 22/11/2023, foi proferida decisão com o seguinte teor (cfr. Referência Citius nº 158876803):
“Requerimento de 03/11/2023
Alega a exequente que quando o DL 227/2012 entrou em vigor já se verificava incumprimento no contrato que subjaz à dívida exequenda.
Na carta que a exequente junta com o requerimento de 16/11/2023 é solicitado o pagamento das quantias que se encontravam, à data, em mora.
Tal não obstava à aplicabilidade do regime especial regulado pelo diploma em análise vide artigos 39 e 40º.
Prevê-se no referido artigo 39º que:
1 - São automaticamente integrados no PERSI e sujeitos às disposições do presente diploma os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito que permaneçam em vigor, desde que o vencimento das obrigações em causa tenha ocorrido há mais de 30 dias.
2 - Nas situações referidas no número anterior, a instituição de crédito deve, nos 15 dias subsequentes à entrada em vigor do presente diploma, informar os clientes bancários da sua integração no PERSI, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 14.º
3 - Os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora quanto ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito há menos de 31 dias são integrados no PERSI nos termos previstos no n.º 1 do artigo 14.
O DL 227/2012 entrou em vigor em 01/01/2013; a carta junta pelo exequente é demonstradora da mora há mais de 30 dias, pelo que se considerariam a executada automaticamente integrada em PERSI.
Cabia à exequente demonstrar o cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 39º do diploma em análise e, consequentemente, a extinção do PERSI, o que não fez.
Não estando demonstrado nos autos que foi comunicado ao cliente bancário a integração e encerramento do PERSI, falta uma condição de procedibilidade da execução, pelo que, em conformidade com o exposto, indefiro o requerimento executivo.
(…)”.
Inconformada, a exequente recorre desta decisão, requerendo a revogação da mesma e a sua substituição por outra que determine o prosseguimento da execução; terminando as suas alegações de recurso com as seguintes Conclusões:
“A. Ao presente Recurso de Apelação subjaz a Sentença proferida pelo Juiz … do Juízo de Execução de Loures, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, que pôs termos à causa, ao indeferir o requerimento executivo, por considerar não ter sido aplicado o regime do PERSI, previsto no Decreto Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, o que em consequência, determinou a extinção da execução.
B. Com o devido respeito por opinião contrária, a decisão judicial aqui recorrida, merece total reparo, na medida em que não respeita a aplicação de uma norma, ou a desnecessidade de aplicação da mesma, ao caso em concreto, como se demonstrará.
C. Considerou o tribunal a quo que: “(…) Não estando demonstrado nos autos que foi comunicado ao cliente bancário a integração e encerramento do PERSI, falta uma condição de procedibilidade da execução, pelo que, em conformidade com o exposto, indefiro o requerimento executivo. (…)”.
D. Tal decisão, bem como, a sua fundamentação, é totalmente desajustada aos factos carreados aos autos.
E. Está subjacente à decisão do Tribunal a quo, a aplicação do regime PERSI e, na sua douta opinião, que o mesmo devia ter sido aplicado.
F. Importa esclarecer que o regime do PERSI, previsto no Decreto Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2013, conforme disposto no próprio artigo 40.º do referido diploma.
G. Como evidenciado nos autos, através do requerimento do exequente, o contrato de mútuo, pelo qual foi subscrita a livrança, dada à execução como título executivo, entrou em mora, em data prévia à aplicação do regime do supra identificado Decreto Lei.
H. Mais, não apenas entrou em mora, como foi resolvido – em face do incumprimento definitivo do mesmo- em data prévia à entrada em vigor do regime PERSI, tal como foi devidamente identificado pela Exequente, nos requerimentos com as referências 14415348 e 14470426, datados de 3 e 16 de Novembro, respetivamente.
I. Quer com isto dizer que, tal como identificado nos supra identificados requerimentos e da respetiva carta de resolução do referido contrato – a qual, só se pode considerar ter sido ignorada pelo Tribunal a quo-, o regime do Decreto Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, referente ao PERSI, não podia ser aplicado a este caso em concreto, por uma questão de aplicabilidade de lei no tempo.
J. É inevitável, considerar que o Tribunal a quo ignorou a documentação junta aos autos, pois de outra forma seria possível depreender da mesma que, o referido regime não seria aplicável.
K. Da mesma forma, importa ainda salientar que, pelo princípio geral das normas de aplicação da lei no tempo, previsto no artigo 12.º do Código Civil, o regime do Decreto Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, só vigora desde o dia 1 de Janeiro de 2013.
L. Considerando que, o contrato aqui em causa, foi resolvido a 16 de Abril de 2011, como se poderá comprovar pela carta datada de 6 de Abril de 2011, uma vez que a mesma indica clara e inequivocamente que “(…) Se até à data de 16/04/2011 se mantiver o incumprimento, enviaremos o processo para o nosso departamento de Contencioso, tomando-se as medidas julgadas adequadas à defesa dos legítimos interesses da Instituição Credora.(…)”.
M. Pelo princípio constitucional da segurança jurídica e da tutela jurisidicional efetiva, previstos no escopo do artigo 20.º da CRP, compreende-se que é dada uma última oportunidade à executada, para que liquide o valor em dívida e, não o fazendo até à data concedida, o contrato considerar-se-á resolvido.
N. In limine, o contrato considerou-se resolvido a 16 de Abril de 2011, constatando-se o seu incumprimento definitivo, nos termos e para efeitos dos artigos 224.º, n.º 1; 432.º, n.º 1; 436.º; 437.º, n.º 1, 1ª parte e artigo 808.º, n.º 1, todos do Código Civil.
O. Contrariamente ao que quer fazer crer a sentença recorrida: “(…) Na carta que a exequente junta com o requerimento de 16/11/2023 é solicitado o pagamento das quantias que se encontravam, à data, em mora.(…)”
P. E se dúvidas restam quanto ao tema, sobre a aplicação do regime do PERSI, retroativamente, atente-se ao Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 24 de Fevereiro de 2022, Processo 949/14.3TBSSB-E.E1, que diz:
“(…) I. A aplicação do regime de regularização de situações de incumprimento (PERSI) implementado pelo Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, aos casos de mora iniciados antes da entrada em vigor deste diploma, tem como pressuposto, além da manutenção da mora no incumprimento das obrigações contratuais, que o contrato permaneça em vigor, o que não ocorre se àquela data o contrato já tiver sido objecto de resolução com fundamento no incumprimento.
II. Assim, verificando-se que o contrato de crédito já havia sido resolvido antes da entrada em vigor do referido diploma, não tinha a instituição bancária que integrar o consumidor cliente bancário em PERSI, nem informar o fiador dessa possibilidade, antes de instaurar a execução.(…)”.
Q. Ora, tendo presente o objeto e a natureza da questão do presente recurso, torna-se necessário evidenciar que, andou mal o Tribunal a quo, não apenas ao ignorar as normas de aplicação da lei no tempo, como também, ao ignorar o meio de aplicação do regime do PERSI.
R. Conclui-se assim que, o regime do PERSI, tampouco o artigo 39.º do referido diploma, não se aplica a contratos resolvidos antes da sua entrada em vigor, logo ao caso sub judice.
S. De tudo quanto antecede, cabe concluir pela procedência do presente recurso de Apelação, devendo assim, ser revogado a Douta Sentença recorrida, julgando-se para os necessários e devidos efeitos, o deferimento do requerimento executivo, com a prossecução da ação em todos os seus trâmites.”
Citada para os termos do recurso e da causa, a executada não apresentou contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - QUESTÕES A DECIDIR
De acordo com as disposições conjugadas dos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, ambas do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do Recorrente que se delimita o objecto e o âmbito do recurso, seja quanto à pretensão do Recorrente, seja quanto às questões de facto e de direito que colocam. Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º, nº 3 do Cód. Proc. Civil). Não pode também este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas, porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas - cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, p. 114-116.
Assim, neste recurso, a única questão a decidir é apurar se o regime do PERSI, constante do Decreto Lei nº 227/2012, de 25/10, é de aplicar ao contrato de crédito que esteve subjacente à emissão da livrança dada à execução, outorgado entre o “Banco Espírito Santo, S.A.” e a executada.
 III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos provados com interesse para a decisão do recurso são os que constam da parte I-Relatório desta decisão, que se dão aqui por integralmente reproduzidos.
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, como é salientado no respectivo preâmbulo, visa “promover a adequada tutela dos interesses dos consumidores em incumprimento e a atuação célere das instituições de crédito na procura de medidas que contribuam para a superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos clientes bancários”, tendo instituído, nomeadamente, “um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), no âmbito do qual as instituições de crédito devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objetivos e necessidades do consumidor”.
Para cumprimento deste desígnio, o mencionado diploma não só torna obrigatória a integração do cliente bancário no Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (doravante designado PERSI), quando verificados os seus pressupostos (cfr., máxime, arts. 12º a 16º), como determina que incumbe às instituições bancárias desencadear oficiosamente junto do cliente bancário tal Procedimento.
No caso dos autos, é processualmente pacífico que o contrato subjacente à emissão da livrança dada à execução é um daqueles a que se aplica o Dec. Lei nº 227/2012, de 25/10 [art. 2º, nº 1, al. c)] e que o credor não promoveu as diligências necessárias à implementação do PERSI relativamente à executada.
Perante este circunstancialismo, e considerando o disposto nos arts. 39º nº 1 e 40º do Dec. Lei nº 227/2012, de 25/10, o tribunal a quo considerou que, não obstante o incumprimento do contrato de crédito por parte da executada ser anterior à entrada em vigor daquele diploma, o mesmo ainda permanecia em vigor nessa data, pelo que, tal legislação se lhe aplicava, donde faltar uma condição de procedibilidade da execução, com o consequente indeferimento liminar. A apelante - não pondo em causa a natureza dessa condição de procedibilidade, nem as consequências da sua falta, nem a circunstância de, no caso, ela não se verificar –  sustenta é que não havia lugar à aplicação do PERSI, por a legislação que previu essa obrigação não ser aplicável ao caso, invocando, em sede deste recurso, que o regime do PERSI entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2013 e o contrato de mútuo em referência não só entrou em mora em data prévia àquela “como foi resolvido – em face do incumprimento definitivo do mesmo- em data prévia à entrada em vigor do regime PERSI”, mais precisando que aquele contrato “foi resolvido a 16 de Abril de 2011, como se poderá comprovar pela carta datada de 6 de Abril de 2011, uma vez que a mesma indica clara e inequivocamente que “(…) Se até à data de 16/04/2011 se mantiver o incumprimento, enviaremos o processo para o nosso departamento de Contencioso, tomando-se as medidas julgadas adequadas à defesa dos legítimos interesses da Instituição Credora.(…)”.
Está, pois, aqui em causa a aplicabilidade do diploma que instituiu o regime do PERSI no tempo.
Este diploma entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2013 (art. 40º), estipulando, no art. 39º, que: “são automaticamente integrados no PERSI e sujeitos às disposições do presente diploma os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito que permaneçam em vigor, desde que o vencimento das obrigações em causa tenha ocorrido há mais de 30 dias” (nº 1); sendo que, nestas situações, “a instituição de crédito deve, nos 15 dias subsequentes à entrada em vigor do presente diploma, informar os clientes bancários da sua integração no PERSI, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 14.º” (nº 2).
Do citado art. 39º, nº 1 do Dec. Lei nº 227/2012, de 25/10, resulta que: (i) os devedores de quantias devidas por força de contratos de crédito que, na data de entrada em vigor deste diploma, já tivessem sido revogados ou denunciados, não necessitam de ser integrados no PERSI; (ii) se tais devedores estivessem em mora há mais de trinta dias a contar daquela data, em contrato ainda operantes, teriam que ser integrados nesses procedimentos.
Em suma, é essencial, para a aplicação do Dec. Lei nº 227/2012, de 25/10, a devedores que não tenham cumprido obrigações decorrentes de crédito cujo vencimento tenha ocorrido há mais de 30 dias a contar da entrada em vigor daquele diploma, que, nessa data, o contrato esteja em vigor, nomeadamente por não ter sido validamente resolvido - ou seja, não se verificando a aludida resolução, aplica-se de pleno o regime legal em referência.
Este entendimento – essencialidade da resolução anterior como fundamento para a não aplicação do regime legal introduzido no Dec. Lei nº 227/2012, de 25/10, por este pressupor a vigência das relações contratuais alegadas – encontra-se consolidado na jurisprudência, podendo consultar-se, por todos, os seguintes Acórdãos (acessíveis em www.dgsi.pt):
- do STJ de 02/19/2019, relator Acácio das Neves (proc. nº 144/13.9TCFUN-A.L1.S1): “I - A exigência de integração dos clientes bancários, em situação de mora há mais de um ano, à data da entrada em vigor do DL n.º 227/2012, de 25-10, no regime de regularização (PERSI) ali estabelecido, depende, nos termos do respetivo art. 39.º, da vigência dos contratos de crédito – o que não ocorre se estes entretanto já tiverem sido objeto de resolução com fundamento no incumprimento”;
- do TRE de 24/02/2022, relator Francisco Xavier (proc. nº 949/14.3TBSSB-E.E1): “A aplicação do regime de regularização de situações de incumprimento (PERSI) implementado pelo Decreto-Lei n.º 227/2012,de 25 de Outubro, aos casos de mora iniciados antes da entrada em vigor deste diploma, tem como pressuposto, além da manutenção da mora no incumprimento das obrigações contratuais, que o contrato permaneça em vigor, o que não ocorre se àquela data o contrato já tiver sido objecto de resolução com fundamento no incumprimento.”;
- do TRE de 07/04/2022, relatora Graça Araújo (proc. nº 741/21.9T8ENT.E1): “Por via do disposto no artigo 39º nº 1 do DL227/2012, de 25 de Outubro, tal diploma é aplicável aos contratos que estejam em vigor em 1.1.13, mesmo que o respectivo incumprimento seja anterior.”
- do TRE de 09/02/2023, relatora Anabela Luna de Carvalho (proc. nº 1096/14.3TBSTR-E.1): “(…) não tendo sido alegada, e muito menos documentalmente comprovada, qualquer resolução dos contratos exequendos anterior a 01/01/2013, ónus que incumbe à exequente, não havendo sequer escritos de resolução, não pode deixar de se concluir que a exequente não demonstrou a resolução do contrato em data anterior a 01/01/2013, que a isentasse do cumprimento do PERSI.”;
- do TRE de 30/03/2023, relator José Lúcio (proc. nº 16166/21.3YIPRT.E1): “A aplicação do regime legal introduzido pelo Decreto-Lei n.º227/2012, de 25 de Outubro, aos casos de mora iniciados antes do início da vigência deste diploma tem como pressuposto, além da manutenção da mora no incumprimento das obrigações contratuais, que o contrato invocado permaneça em vigor nessa data (cfr. art. 39º, n.º 1).”;
- do TRE de 07/11/2023, relatora Maria João Sousa e Faro (proc. nº 3366/21.5T8ENT.E1): “Só a prova da existência de resolução do contrato em momento anterior à entrada em vigor do regime do PERSI e por consequência da sua extinção antes de 1.1.2013, poderia eximir o exequente de cumprir os procedimentos legais previstos no art.13º e 15º do D.L. nº 272/2012, de 25 de Outubro.”;
- do TRL de 23/11/2023, relator António Moreira (proc. nº 076/13.1TBMTJ.L1-2): “2- Não estando demonstrado que a instituição bancária exequente comunicou aos executados a resolução dos contratos, antes da entrada em vigor do D.L. 227/2012, de 25/10, e estando assente que não comunicou aos mesmos a integração no PERSI por qualquer meio (em suporte duradouro ou não), ficou a mesma sujeita aos efeitos dessa não integração, desde logo a impossibilidade de demandar os mesmos por via da acção executiva, para cobrança dos valores em dívida emergentes dos contratos, face ao disposto no art.º 18º, nº 1, al. b), do D.L. 227/2012, de 25/10.”;
- do TRG de 18/01/2024, relatora Sandra Melo (proc. nº 657/13.2TBVVD-E.G1): “Com efeito, por “contratos de crédito que permaneçam em vigor” há que entender-se aqueles que não foram revogados, nem denunciados, nem objeto de qualquer outra vicissitude que lhes retirasse vigência. É claro que se a resolução do contrato ocorreu validamente antes da entrada em vigor da Lei 227/2012 esta não lhe é aplicável, nos termos do artigo 40º do DL 227/2012. Com efeito, carecia de sentido repristinar todas as relações jurídicas extintas à data de entrada em vigor deste diploma, aplicando-lhe um regime que pressupõe a tentativa de manutenção da própria relação, nem que para tanto se deva proceder à sua alteração.”.
Sustenta a apelante que, o contrato de crédito em referência foi resolvido em 16 de Abril de 2011 – portanto, em data anterior à entrada em vigor do citado Dec. Lei nº 227/2012, de 25/10 – através da carta datada de 6 de Abril de 2011, com o seguinte teor (para o que aqui releva):
Não obstante as diligências por nós já efectuadas, ainda se encontra por regularizar o valor em dívida do contrato em epígrafe, no total de 787,89€, no qual se incluem juros de mora/penalizações.
Informamos que nesta data o processo transitou para a gestão do Núcleo de Recuperação Externa, pelo que solicitamos que, com urgência contacte os nossos serviços através do telefone 21 850 30 88 por forma a com o Recuperador a quem a dívida está afecta, proceder à regularização da mesma.
Se até à data de 16/04/2011 se mantiver o incumprimento, enviaremos o processo para o nosso departamento de Contencioso, tomando-se as medidas julgadas adequadas à defesa dos legítimos interesses da Instituição Credora.”
A resolução é uma das formas de extinção dos contratos por vontade unilateral de um dos contraentes, fundada na lei ou em convenção, e é regulada nos arts. 432º a 436º do Cód. Civil. É “a destruição da relação contratual, operada por um acto posterior de vontade de um dos contraentes, que pretende fazer regressar as partes à situação em que elas se encontrariam, se o contrato não tivesse sido celebrado” - Antunes Varela, inDas obrigações em Geral”, 2ª ed., II, 1974, nº 336 (citado por Vaz Serra, in RLJ, Ano 11, nº 3635, de 11/05/1979, p. 29, nota 2).
A resolução exerce-se, como resulta do art. 436º do Cód. Civil, “mediante declaração à outra parte”.
Como evidencia Joana Farrajota, in “Os Efeitos da Resolução Infundada por Incumprimento do Contrato”, p. 31, acessível em https://run.unl.pt/bitstream/10362/18555/1/Farrajota_2013.pdf: “em resultado do carácter vinculado do exercício do direito de resolução, a declaração de resolução deve ser precisa quanto aos seus fundamentos, não bastando uma mera referência a uma situação de incumprimento. Com efeito, só desta forma será possível apreciar da respectiva validade.
A resolução opera por meio de uma declaração receptícia que, nos termos do artigo 224.º do CC, só produz efeitos quando chega ao destinatário ou deste é conhecida. Ao declarar que resolve o contrato o declarante não está pois (apenas) a descrever uma acção, mas a fazê-la, isto é, a resolver o contrato. Trata-se de um enunciado performativo56, elemento constitutivo da resolução”.
Perante o teor da mencionada carta de 06/04/2011, pela qual a apelante sustenta que foi efectuada a declaração de resolução, não há dúvidas de que está em causa o incumprimento do contrato. Porém, não é o “aviso” de que, caso se mantivesse o incumprimento até 16/04/2011, o processo seria enviado para “o departamento de Contencioso”, sendo  tomadas “as medidas julgadas adequadas à defesa dos legítimos interesses da Instituição Credora” que constitui causa de extinção do contrato, máxime, por resolução (art. 432º do Cód. Civil). Um declaratário normal, colocado na posição da real declaratária (cfr. art. 236º, nº 1 do Cód. Civil), não entenderia, nem interpretaria, seguramente, o teor daquela carta de 06/04/2011 como uma declaração de resolução do contrato de crédito em causa, se persistisse no incumprimento, nem tal interpretação encontra, sequer, qualquer correspondência no texto da carta.
Em suma, a declaração inserta na mencionada carta de 06/04/2011 consubstancia uma mera interpelação admonitória, com intimação para o cumprimento e não contém, ainda, uma declaração de resolução, ao contrário do propugnado pela apelante.
O que significa que, não estando provado que o credor efectuou a resolução [incumbindo o respectivo ónus à exequente/ora apelante: art. 342º, nº 1 do Cód. Civil], o contrato em causa ainda estava vigente aquando da entrada em vigor do Dec. Lei nº 227/2012, de 25/10, logo, encontrava-se sujeito ao PERSI (cfr. art. 39º, nºs 1 e 2 daquele diploma), com a consequente obrigatoriedade do respectivo cumprimento – o que não ocorreu.
Por isto, não tendo a credora cumprido previamente o PERSI, nos termos impostos pelo Dec. Lei nº 227/2012, de 25/10, falta a condição objectiva de procedibilidade prevista no art. 18º, nº 1, al. b) daquele diploma, o que constitui excepção dilatória atípica ou inominada, de conhecimento oficioso, que determina o indeferimento liminar do requerimento executivo, com a extinção da instância executiva.
Assim, improcede a apelação, sendo de manter a decisão recorrida.
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As custas devidas pela presente apelação são da responsabilidade da apelante – cfr. art. 527º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil e art. 1º, nºs 1 e 2 do Regulamento das Custas Processuais.

V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar a presente apelação improcedente, e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
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Lisboa, 9 de Abril de 2024
Cristina Silva Maximiano
Micaela Sousa
Rute Lopes