PODERES DO TRIBUNAL
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CONHECIMENTO OFICIOSO
MATÉRIA DE DIREITO
OBJETO DO PROCESSO
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
PRINCÍPIO DO PEDIDO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
LETRA EM BRANCO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
CONTRATO MISTO
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
EMBARGOS DE EXECUTADO
Sumário


I - Tendo o executado invocado que a letra (emitida em branco) não devia ter sido preenchida, considerando o tribunal que a letra podia ser preenchida, pode o tribunal – a partir de apreciações/qualificações jurídicas que, embora baseadas nos factos alegados, não correspondem exatamente ao que foi juridicamente invocado pelo executado – pronunciar-se (sem incorrer em nulidade por excesso de pronúncia) sobre a “bondade” do montante por que a letra foi preenchida, na medida em que tal requalificação jurídica não opere uma “transmutação” do objeto do processo.
II – O efeito prático-jurídico pretendido pelo executado é a extinção da execução e/ou a redução da quantia exequenda e é exatamente isto que é concedido (e não uma qualquer pretensão diferente e alternativa); e quanto à causa de pedir, consubstanciando-se a mesma na concreta factualidade alegada, há que ser considerada a relevância de tal factualidade perante o quadro normativo aplicável e em função e tendo em vista a espécie de tutela jurídica pretendida.

Texto Integral

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I – Relatório

Por apenso à execução para pagamento de quantia certa – titulada por uma letra de câmbio no valor de €125.621,91, com data de vencimento de 09/11/2021 – instaurada por Tenco Cafés, Lda., com sede em ..., veio o executado AA, deduzir embargos de executado, terminando nos seguintes termos:

«seja o executado absolvido da instância por não ter incumprido o contrato e não existir motivo para a sua resolução e o preenchimento da letra, e ainda:

- requer-se que V. Exa. se digne a proferir decisão no sentido de que, de forma justa e equitativa, seja o contrato cumprido, visto que estamos perante a alteração superveniente das circunstâncias prevista no artigo 437.º do CPC, mas com a prorrogação do prazo final de 60 meses para pelo menos mais 60 meses, ou, só se tal não for possível;

- requer o executado a resolução do presente contrato, entregando o valor de 25.000,00€ que lhe foi mutuado, o valor que usufruiu de desconto (proporcional ao café por si adquirido até à data da resolução do contrato) e todos os bens da exequente que se encontram em sua posse, não tendo mais nenhum valor a entregar e desvinculando-se para sempre destas suas obrigações.»

Tendo alegado, em súmula:

que uma das máquinas de café já foi devolvida e o toldo não corresponde aos critérios da Câmara para ser emitida licença, o que foi comunicado requerendo-se a sua troca, o que até hoje não aconteceu;

que o contrato foi celebrado para dois estabelecimentos comerciais, mas um deles teve de ser fechado, tendo o executado continuado a cumprir o contrato no café que se manteve em funcionamento, porém, com a pandemia covid-19, foi obrigado a fechar 2 meses em 2020 e 3 meses em 2021, após o que reabriu com as restrições legais que limitaram muito rendimentos e consumos de café durante aquela época, situação que o executado expôs à exequente requerendo o prolongamento do prazo do contrato, o que não foi aceite apesar de o comercial da exequente, responsável pela apresentação da proposta e negociação, ter criado no executado a certeza de que, se por algum motivo não conseguisse cumprir com a quantidades contratada, se poderia sempre alargar o prazo contratual;

que não houve incumprimento definitivo do contrato e que a interpelação da exequente de 2021 não especifica o incumprimento que espoleta a resolução contratual e a exequente atua com abuso do direito.

A embargada contestou.

Alegou que não houve a entrega de qualquer máquina de café; que não houve qualquer alteração anormal das circunstâncias porque o executado sempre comprou quantidades muito inferiores às que estavam contratadas e trespassou um dos estabelecimentos sem se assegurar que o trespassário continuaria a consumir, razão pela qual, depois de muito ter tentado que o executado começasse a cumprir o contrato, através de interpelações admonitórias de 21/07/2020 e de 27/07/2021, a exequente teve de proceder à resolução contratual por incumprimento ao abrigo das cláusulas 4ª, 5ª e 6ª do contrato, o que comunicou ao executado por carta registada de 18/10/2021; e que não está a atuar em abuso do direito.

Realizada a audiência prévia, procedeu-se à prolação de despacho saneador – em que se julgou a instância regular, estado em que se mantém – e em que foi proferido despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova.

Efetuada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença em que os embargos foram julgados improcedentes e em que se ordenou o prosseguimento da execução.

Inconformado com tal decisão, interpôs o executado/embargante recurso de apelação, que foi admitido, tendo a Relação do Porto, por Acórdão de 09/11/2023, julgado o mesmo parcialmente procedente e, em consequência, “julgado os embargos de executado parcialmente procedentes, reduzindo a quantia exequenda para o capital de € 25.000,00, a que acrescem juros de mora contados sobre esse montante desde a data de vencimento aposta no título”.

Agora inconformada a exequente/embargada, interpõe o presente recurso de revista, visando a revogação do Acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que repristine o sentenciado na 1.ª Instância.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

“(…)

1.º A aqui Recorrente não pode conformar-se com a decisão prolatada no Acórdão recorrido, POIS QUE, além de existir um excesso de pronúncia por parte do Tribunal da Relação, tendo este abordado factos que não foram alegados pelo Apelante/Embargante (art. 615º, nº1, alínea d) do C.P.C), existe ainda uma errada interpretação e aplicação de normas jurídicas, tais como os artigos 232º, 236º, 238º, 334º C.C., e bem assim, o Acórdão recorrido, violou o principio da liberdade contratual (cfr. artigo 405º, do mesmo diploma legal).

2º Os documentos juntos aos autos confirmam inteiramente a errada interpretação e aplicação das supra normas legais, aplicáveis ao caso vertente.

3º Através da douta sentença prolatada em 1ª instância foi decidido, julgar a ação de Embargos de Executado improcedente, dando-se a respetiva continuidade à Ação Executiva.

4º Veio o Tribunal da Relação do Porto decidir, pela improcedência parcial dos Embargos reduzindo a quantia exequenda ao valor de € 25.000,00, valor esse que, presume-se, é o valor entregue pela Recorrente/Embargada ao Recorrido/Embargante aquando da celebração do contrato,

5º Valor este concedido a título de desconto antecipado, e no pressuposto de cumprimento pontual e integral do contrato.

6º O primeiro ponto com dignidade de apreciação nesta revisão, diz respeito a uma interpretação inadequada e a um evidente excesso de pronúncia, por parte do Tribunal da Relação, ao considerar a existência de um suposto abuso no preenchimento do título dado à execução.

7º O Recurso apresentado pelo Apelante, no Tribunal da Relação do Porto, suscitou a possibilidade da existência de um abuso de direito, conforme preconizado pelo artigo 334º do Código Civil, não fazendo menção explícita nem tácita ao preenchimento do título ou a um abuso no mesmo.

8º Contudo o Tribunal da Relação do Porto, entretanto, adentrou a matéria não alegada, ultrapassando os limites do recurso, substituindo-se à questão apresentada e demandando uma análise e decisão sobre um ponto não diretamente questionado,

9º constituindo tal, uma nulidade do Acórdão (art. 674º nº1 alínea c) e 615º nº1 alínea d) do C.P.C.),

10 POIS QUE, se o Apelante não alegou tal questão, não deveria sobre esta, o TRP, ter-se pronunciado, pelo que é nulo o referido acórdão por excesso de pronúncia,

11º ORA SENÃO VEJAMOS, fls 33, “De novo o recorrente suscita uma questão com inteira pertinência para a sua defesa, mas equivoca-se na formulação da questão e na qualificação jurídica dos factos que lhe dão suporte. O que se deve perguntar é se a quantia exequenda corresponde ao valor que o pacto de preenchimento da letra permitia que fosse colocado nesta, rectius, se a quantia exequenda corresponde ao valor indemnizatório que a exequente pode exigir do executado em virtude do incumprimento do contrato.” (sublinhado nosso).

12º Nesse sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo nº 13336/19.8T8LSB.L1.S1, “A nulidade por excesso de pronúncia reconduz-se a um vício formal, em sentido lato, traduzido em “error in procedendo” ou erro de atividade que afeta a validade da decisão.”.

13º Ora, está bom de ver que o TRP, se excedeu sob pronúncia de factos ou questões pertinentes alegadas, consubstanciando-se tal, num vício formal, vicio esse que deve conduzir à nulidade do Acórdão, confirmando-se a decisão proferida em 1ª instância.

14º Outrossim, a discordância assenta também na interpretação equivocada da cláusula 6ª do contrato em análise, e a respetiva aplicação das normas jurídicas do C.C. (arts. 232º, 236º, 238º e 405º)

15º O TRP, ao analisar o suposto abuso no preenchimento do título, interpretou a cláusula 6ª de maneira divergente da intenção das partes, extrapolando os limites contratuais e substituindo a interpretação acordada pelas partes por uma nova interpretação.

16º ORA SENÃO VEJAMOS, a redação do clausulado 6, do contrato junto aos autos, prende-se por ser a seguinte “ Consequência do incumprimento, total ou parcial da presente Parceria, por motivo imputável, objectiva ou subjetivamente à Segunda Outorgante, considera-se perdido o beneficio do prazo concedido para aquisição do café, tendo a Primeira Outorgante o direito a receber de imediato o valor do café em falta, de acordo com os seus extractos de consumos, ao PVP e IVA em vigor, e sem descontos, à data do efectivo pagamento do mesmo.” (negrito e sublinhado nossos).

17º A interpretação feita pelo Tribunal da Relação do Porto, destoa da literalidade e da lateralidade do texto da cláusula contratual em questão (arts.236º, 238º e 405º do C.C), 18º POIS QUE, entende este, que “ Como se vê, esta cláusula apenas estipula que havendo incumprimento total ou parcial do contrato por motivo imputável ao executado este perde o beneficio do prazo que o contrato estipula a seu favor para adquirir a quantidade mínima total de café a que se obrigou.

Por outras palavras, conforme o clausulado, havendo incumprimento do contrato (a cláusula não o refere, mas parece dever entender-se: incumprimento definitivo, situação que no caso ocorreu por via da interpelação admonitória, conforme antes assinalado), a exequente passou a poder exigir do cliente que de imediato e a pronto lhe adquira a quantidade de café correspondente à diferença entre o café adquirido e o café que devia ser adquirido, pagando o respectivo preço, a valores correntes e sem qualquer desconto.

Até ai o executado dispunha do prazo de cinco anos para adquirir os 3.600 kg de café; Tendo incumprido o contrato esse prazo foi eliminado e a obrigação de compra da totalidade do café passou a ser-lhe exigível de imediato, pela totalidade.

Sendo assim, a exequente equivocou-se no preenchimento do título, pressupondo erradamente que o contrato lhe atribui de imediato o direito a receber o equivalente ao preço corrente do café em falta.”.

19º Segundo o artigo 238º, nº1, do Código Civil, a interpretação das declarações contratuais deve deter pelo menos uma mínima correspondência com a literalidade do texto, não podendo ser modificada ou extrapolada a partir de uma interpretação subjetiva.

20º A esse respeito, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo nº 7968/04.6YYLSB-A.L1-2: “Os negócios cambiários são negócios formais, pelo que a prevalência do sentido objetivo decorre da mera aplicação das regras de interpretação do negócio jurídico previstas nos artigos 236.° e 238.° do Código Civil.

O nosso ordenamento jurídico permite que um sentido não traduzido rudimentarmente sequer no documento possa valer, desde que se verifique o duplo condicionalismo previsto no n.° 2 do artigo 238.° do Código Civil: se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.

Num caso em que constam da livrança dada à execução as assinaturas dos executados apostas no verso do documento, a primeira condição ficou demonstrada pela manifesta vontade dos avalistas-declarantes, exteriorizada no pacto de preenchimento que subscreveram, e o compreendido pelo credor-declaratário, não se justificando dar relevo ao sentido objetivo normal da declaração.

No que concerne à segunda condição, a livrança em apreço não circulou, antes se manteve nas mãos do Banco credor, pelo que não há razões de segurança ou de certeza que se oponham à validade dos avales prestados.”

21º O contrato em análise foi fruto de negociação entre as partes, conforme preceitua o artigo 232º do Código Civil, sendo crucial considerar essa premissa na interpretação da cláusula em discussão.

22º Dessa forma, a consequência do inadimplemento prevista na cláusula contratual, não corresponde à interpretação dada pelo Tribunal da Relação.

23º A cláusula 6ª estabelece que, diante do inadimplemento, a primeira outorgante pode preencher a letra de câmbio de acordo com as consequências contratuais estipuladas e negociadas pelas partes, respeitando a autorização de preenchimento de letras em branco, não implicando qualquer aquisição imediata da totalidade dos quilogramas de café.

24º O Tribunal da Relação, ao extrapolar os limites contratuais e interpretativos acordados pelas partes, criou uma nova cláusula, alterando a matéria de fato e interpretando o contrato de forma incompatível com o texto estabelecido, e as intenções negociadas pelas partes no momento da celebração,

25º PELO QUE, deve o acórdão ser revogado quanto a essa parte, pois que, nem a literalidade, nem a lateralidade do texto do clausulado compadece com a interpretação elaborada, salvo melhor opinião, erradamente, pelo Tribunal da Relação do Porto.

26º O douto Acórdão recorrido, além do excesso de pronúncia (art. 674º nº1 alínea c), 615º nº1 alínea d) do C.P.C.), violou por erro de interpretação e de aplicação, nomeadamente, o disposto nos arts. 232º, 236º nº1 e 238º nº2 do C.C., e bem assim, o Principio da Liberdade Contratual (art.405º do mesmo diploma legal). (…)”

O executado/embargante respondeu, sustentando que o Acórdão recorrido não violou qualquer norma processual ou substantiva, designadamente as referidas pela recorrente, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*


II - Fundamentação de Facto

II – A – Factos Provados

1. A exequente deu à execução como titulo executivo uma letra de câmbio, no valor de €125.621,91 (cento e vinte e cinco mil seiscentos e vinte e um euros e noventa e um cêntimo), emitida e vencida em 09/11/2021.

2. Tal letra de câmbio foi sacada pela exequente e aceite pelo executado e representa o valor devido à exequente em consequência de incumprimento contratual/resolução de contrato comercial firmado entre aquela e o executado.

5. Por carta registada, com a aviso de recepção, dirigida ao executado, datada de 18-10-2021, junta com o requerimento executivo como doc. 4 e aqui dada como reproduzida, a exequente declarou:

Na qualidade de mandatário da “Tenco Cafés, Lda.”, sociedade comercial por quotas, com sede na Rua do ..., Zona Industrial .... ... ..., venho pela presente, comunicar a V Exa quanto segue:

1. Através do contrato supra identificado, celebrado em 24/05/2018, V Exª obrigou-se, para além do mais, a adquirir à M/ Constituinte, a quantidade mínima de 3.600 (três mil e seiscentos) Kg de café, fraccionados pelo período de 60 meses, em quantidades mensais mínimas de 60 (sessenta) Kg de café, marca Tenco, Lote “Buono” (conforme consta das Cláusulas Primeira e Quarta, do supra identificado contrato);

2. Acontece que: no ano de 2018 e no período correspondente a 8 meses, V Exª apenas adquiriu 182 Kg de café, quando a quantidade mínima era (e é) de 480 Kg de café; no ano 2019, V. Exª apenas adquiriu 205 Kg de café; no ano 2020, V. Exª apenas adquiriu 115 Kg de café, quando em tais períodos, a quantidade mínima era (e é) de 720 Kg de café, por cada ano; no ano 2021, e no período de correspondente a 9 meses, V Exª apenas adquiriu 65 Kg de café, quando em tal período, a quantidade mínima era (e é) de 540 Kg de café;

3. Assim, e nos períodos supra-referidos no número anterior, a quantidade de café por V. Exª adquirida foi de 567 Kg;

4. Atenta a Cláusula Quarta, Cláusula Quinta e Cláusula Sexta, do supra identificado contrato, ocorreu incumprimento contratual de V Exª que fundamenta a resolução do mesmo contrato, que pela presente via vos é comunicada;

5. Em consequência de tal resolução, e conforme estipulado na Cláusula Sexta, nº 1, a M/ Constituinte tem direito de receber “o valor do café em falta, de acordo com os seus extractos de consumos, ao PVP e IVA em vigor, e sem descontos, à data do efectivo pagamento do mesmo”;

6. Desta forma, e dado que a quantidade mínima de café a adquirir por V Exª era (e é) de 3.600 Kg. e V. Exª apenas adquiriu 567 Kg. ocorre um diferencial de 3.033 Kg de café, com o que, o valor devido à M/ Constituinte, é de €69.061,41 (3.033 Kg x €22.77/Kg), ao qual acresce IVA, à taxa de 23%, do valor de €15.884,12, o que dá um total de €84.945,53;

7. Por outro lado, e conforme Cláusula Terceira, nº 1, do aludido contrato, foi concedido a V. Exª “um desconto de €11,30 por cada Kg.”, a que V. Exª se vinculou (3.600 Kg), a ser pago, através do fornecimento de diverso equipamento e material (discriminado na referida cláusula), no estado de novo, e do valor global de € 40.676,38 sendo que, e conforme alínea a), €25.000,00 por transferência bancária e €15.300,00 em equipamento, conforme alínea b) e €376.38, conforme alínea c);

8. Atento o incumprimento do contrato sob referência, por parte de V Exª. e tendo em conta o constante da Cláusula Terceira, nº 3, o material e equipamento entregue a V. Exª, mantém-se propriedade da M/ Constituinte, até emissão do documento previsto na alínea c) do nº 1, da mesma Cláusula, sendo V. Exª “responsável pela sua utilização, conservação e reparação, a expensas próprias sem qualquer direito de retenção ou compensação, obrigando-se a não as deslocar e autorizar o seu levantamento;

9. Dado que V. Exª não procedeu à entrega do material e equipamento, a M/ Constituinte, tem direito a receber, o valor de €40.676,38;

10. Assim, o valor em divida à M/ Constituinte, é, nesta data, de €125.621,91 (€84.945,53 + €40.676,38);

11. Conforme é do absoluto conhecimento de V. Exª, foi entregue à M/ Constituinte uma letra de câmbio, em branco, cujas condições de preenchimento, são também do absoluto conhecimento de V Exª;

12. A referida letra de câmbio mostra-se aceite por V Exª;

13. Pela presente, comunico a V. Exa que tem o prazo de 10 dias, a contar da data de recepção da presente, para proceder ao pagamento à M/ Constituinte, do referido valor de €125.621,91, pagamento esse, que deverá ser feito, por depósito ou transferência para o IBAN PT50.......................05;

14. Caso tal pagamento não sobrevenha, a M/ Constituinte irá proceder ao preenchimento da letra de câmbio, que tem na sua posse, e, com base nela, irá instaurar a competente acção executiva, com penhora imediata de bens (imóveis e móveis), propriedade de V. Exª.

6. A missiva id. em 5. foi efectivamente recebida pelo executado.

7. O executado assinou o documento de autorização para preenchimento da letra de câmbio, em caso de incumprimento contratual/resolução, e pelo valor global da dívida, à aqui exequente.

8. O contrato denominado de “parceria comercial”, foi realizado pelo embargante e pela aqui embargada na data de 24 de Maio de 2018.

9. Nele foram contratualizadas entre outras obrigações, a venda de 3.600 kg de café, fraccionados em 60 meses, isto é, 60 kg de café por mês.

11. Conforme alínea B da “parceria comercial”, as obrigações de aquisição foram definidas pelas expectativas do embargante.

12. A embargada comprometeu-se, e entregou ao embargante, um valor global de €40.676,38, conforme cláusula 3, referente:

Designação Descrição Montante Qt. Mensal Qt. Total

1040101 Buono (kg) 0.00 60.00 3.600

Cheque transf. bancária 25.000,00 0.00 1

Máq. café casadiomaquina 0.00 0.00 2

Moinho café K6 nº 625027 0.00 0,00 2

Depurador de filtro 0.00 0.00 2

Máq. de lavar louça GS3523OV50HZDWI 0.00 0.00 2

Reclame 0.00 0.00 2

Guarda-Sol 180 cm (Un.) 0.00 0.00 2

Estores 0.00 0.00 4

Mesas de exterior castanhas 0.00 0.00 5

Cadeiras de exterior castanhas 0.00 0.00 10

13. O montante supra, reporta-se ao desconto antecipado, relativamente à quantidade de café que o Embargante se propôs a comprar.

14. Caso o embargante tivesse proposto adquirir menos quantidade de café, a Embargada não entregaria àquele o referido valor.

3.1.15. O executado adquiriu as seguintes quantidades de café:

Mês Cliente Estab. Vendas Contrato Desvio Desvio %

5 5.00 60.00 -55,00 -91,67

6 25.00 60.00 -35.00 -58,33

7 20.00 6 0 00 -40.00 -66,67

8 15.00 60.00 -45.00 -75,00

9 30.00 60 00 -30.00 -50,00

10 42.00 60.00 -18.00 -30,00

11 25.00 60 00 -35.00 -58,33

12 20.00 60.00 -40.00 -66,67

2018 Resumo Anual 182.00 420.00 -238.00 -56,67

1 30.00 60 00 -30.00 -50,00

2 20.00 60.00 -40.00 -66,87

3 10.00 60.00 -50.00 -83,33

5 20.00 60 00 - 40.00 -66,67

6 10.00 60.00 -50.00 -83,33

7 20.00 60.00 -40.00 -66,67

8 5.00 60.00 -55.00 -91,67

9 15.00 60.00 -45.00 -75,00

10 25,00 60.00 -35.00 -58,33

11 25.00 60.00 -35.00 -58,33

12 25.00 60 00 -35.00 -58,33

2019 Resumo Anual 205.00 720,00 -515.00 -71,53

1 15.00 60.00 - 45.00 -75,00

2 10.00 60.00 -50.00 -83,33

3 10.00 60.00 -50.00 -83,33

5 5.00 60.00 -55.00 -91,67

6 10.00 60.00 -50,00 -83,33

7 5.00 60.00 -55.00 -91,67

8 15 00 60.00 - 45.00 -75,00

9 10 00 60.00 -50,00 -63,33

10 10.00 60.00 -50.00 -83,33

11 15.00 60.00 -45.00 -75,00

12 10.00 60.00 -50.00 -83,33

2020 Resumo Anual 115.00 720.00 -605.00 -84,03

1 5.00 60.00 -55.00 -91,67

3 5.00 60.00 -55.00 -91,67

4 10.00 60.00 -50.00 -83,33

5 15 00 60.00 -45.00 -75,00

6 10.00 60.00 -50.00 -83,33

7 10.00 60.00 -50.00 -83,33

8 5.00 60.00 -55.00 -91,67

9 5.00 60.00 -55.00 -91,67

2021 Resumo Anual 65.00 720.00 -655.00 -90,97

2018/0083 Resumo do Contrato 567.00 3.600.00 -3.033.00 -84,25

Euro/kg Contrato = 11,30 A executar = 34.269,85.

Euro/kg Financeiro = 6,40 A executar = 21.062,50.

Euro/kg Não Financeiro = 4,35 A executar = 13.207,35.

16. Um dos estabelecimentos foi trespassado, não tendo o trespassário continuado a consumir café fornecido pela embargada.

17.A. Por carta datada de 21/07/2020 a embargada comunicou ao embargado:

Como é certamente do s/ conhecimento, o contrato nº 2018/0083 celebrado entre ambas as partes a 24 de Maio de 2018, não está a ser cumprido por V. Exa.

Neste sentido, solicitámos que no prazo máximo de 10 dias úteis, contabilizados a partir da recepção desta carta, retomem o consumo das quantidades acordadas contratualmente, em regime de exclusividade com a Tenco Cafés, sob pena de recurso aos competentes meios judiciais e pedido de levantamento do sigilo fiscal à Autoridade Tributária por incumprimento contratual, com vista à reclamação de todos os valores, acrescidos de juros à taxa comercial em vigor.

17.B. Por carta datada de 27/07/2021 a embargada comunicou ao embargado:

Assunto: Contrato nº 2018/0083

Indemnização devida a incumprimento contratual

Resolução do contrato

Como será certamente do vosso conhecimento encontra-se em incumprimento o contrato celebrado a 24 de Maio de 2018 entre V. Exas. e a Tenco Cafés Lda. por omissão de aquisição da quantidade mínima contratada e exclusividade.

Assim, informamos V. Exas. que dispõe do prazo de 8 dias para procederem à aquisição do café em falta e manterem as aquisições acordadas findo o prazo, sem que a aquisição seja efectuada, consideramos definitivamente incumprido o contrato, por facto imputável a V. Exas., sendo o mesmo resolvido e, neste caso é devido à Tenco Cafés Lda. valor indemnizatório contratualmente fixado no montante de 85.365,64€ acrescido de IVA e de juros à taxa legal.

Findo o prazo concedido, sem que se mostre adquirido o café em falta ou pago, procederemos à cobrança coerciva.

18. No estabelecimento comercial do executado, pertencente à Exequente, existe, pelo menos: uma máquina de café, uma máquina de lavar chávenas, um moinho de café, quatro mesas, oito cadeiras e um toldo.

19. O executado manteve a exploração da Cafetaria ..., que na decorrência da pandemia do covid-19, teve de ser fechada por dois meses em 2020 e três meses em 2021.

20. Quando reabriu foi com todas as restrições impostas pelo governo, o que limitou os rendimentos e consumos de café durante aquela época.


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II – B – Factos não Provados

Não se provou que:

a) Em finais de 2018, início de 2019, o embargante devolveu à embargada uma das máquinas de café.

b) O toldo fornecido não corresponde aos critérios da Câmara para que seja proferida uma licença, tendo isso mesmo sido comunicado requerendo-se a sua troca, o que até hoje não aconteceu – prejudicando o Executado e não cumprindo com parte da sua obrigação

c) Um dos estabelecimentos comerciais, o Café ..., teve de ser fechado.

d) Os fatores atinentes às imitações ao exercício da actividade decorrente das medidas impostas pelo governo para fazer face à Pandemia por Sars Covid 2 foram explicados à Exequente: o facto de as quantidades contratadas não estarem a ser cumpridas foi devido a circunstâncias de força maior às quais o Executado é completamente alheio

e) Tendo o executado proposto que se aumentasse o prazo para cumprimento do total dos kg acordados.

f) Aquando das negociações, o comercial da Exequente, Sr. BB descansou o Executado dizendo-lhe que se existissem dificuldades em cumprir com aquelas quantidades o prazo poderia sempre ser prorrogado (aliás na Cláusula Segunda pode ler-se “de pelo menos 60 (sessenta) meses”).


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III – Fundamentação de Direito

As partes celebraram, em 24/05/2018, o contrato (que denominaram como de “parceria comercial”) a que aludem os pontos 8 e ss. dos factos provados, contrato segundo o qual e no essencial o aqui executado se obrigava a adquirir (em exclusivo) à exequente 3.600 kg de café, em 60 meses, e ainda a publicitar a marca “Tenco” da exequente nos seus dois estabelecimentos/cafés, concedendo-lhe a exequente, em contrapartida, um desconto no preço de aquisição do café, desconto esse no valor global de € 40.678,38 (antecipadamente pago, sendo € 25.000,00 em dinheiro, € 15.300,00 em equipamentos indispensáveis à atividade do executado e € 376,38 de “valor residual”).

Sucedendo que, segundo a exequente, entrado tal contrato na sua fase dinâmica, o executado não cumpriu o que no mesmo estava estipulado, o que levou a exequente, após notificação admonitória, a considerar definitivamente incumprido o contrato por facto imputável ao executado, a resolver o contrato e a preencher a letra que tinha em seu poder (assinada em branco pelo executado) pelo montante que, a seu ver, lhe é devido em termos de “liquidação contratual”.

É pois assim que chegamos ao que está exarado nos pontos 1 e 2 dos factos provados:

1. A exequente deu à execução como título executivo uma letra de câmbio, no valor de €125.621,91, emitida e vencida em 09/11/2021.

2. Tal letra de câmbio foi sacada pela exequente e aceite pelo executado e representa o valor devido à exequente em consequência de incumprimento contratual/resolução de contrato comercial firmado entre aquela e o executado.

Ou seja, em termos subjacentes/causais/fundamentais, a quantia exequenda corresponde e representa a quantia/valor que a liquidação contratual do referido contrato (denominado de “parceria comercial”) confere (ou não) à exequente; e, claro, estando a letra (título executivo) nas relações imediatas nenhum obstáculo existe a que toda a discussão se situe, como vem sucedendo nos autos, no plano na relação subjacente1.

Discussão esta em que o executado veio invocar, na PI de embargos, que não incumpriu o contrato e que se verificaram os pressupostos da alteração anormal das circunstâncias (do art. 437.º do C. Civil), devendo o contrato ser prorrogado por “pelo menos mais 60 meses”, invocações estas que, sendo procedentes, conduziriam diretamente ao indevido preenchimento da letra, à procedência dos embargos e à extinção da execução.

Sucede que tais invocações – não ter o executado incorrido em incumprimento contratual e verificarem-se os pressupostos da alteração anormal das circunstâncias – foram julgadas improcedentes pelas Instâncias, tendo o Acórdão recorrido declarado o contrato definitivamente incumprido por razão imputável ao executado e sendo a partir daqui (do que a seguir se expendeu e apreciou no Acórdão recorrido) que surge e se situa a revista da exequente.

Efetivamente, o Acórdão recorrido, após confirmar o referido incumprimento definitivo do contrato (imputável ao executado), debruçou-se sobre o preenchimento da letra e sendo o montante de € 125.621,91, nela inscrito, a soma de 3 verbas – € 84.945,53, € 15.678,38 e € 25.000,00 (como resulta e se explica na carta da exequente ao executada, constante do ponto5 dos factos) – considerou que as duas primeiras verbas não podiam ser “incluídas” no preenchimento da letra, representando a sua inclusão um preenchimento abusivo (o que, naturalmente, levou à procedência parcial dos embargos, determinando-se o prosseguimento da execução apenas para o pagamento da quantia exequenda de € 25.000,00).

Sendo a propósito de tais apreciações/conhecimentos e da “exclusão” de tais duas verbas (€ 84.945,53, € 15.678,38) que a exequente/embargada vem, na presente revista, invocar:

“um excesso de pronúncia por parte do Tribunal da Relação, tendo este abordado factos que não foram alegados pelo Apelante/Embargante (art. 615º, nº1, alínea d) do C.P.C)”; e

“uma errada interpretação e aplicação de normas jurídicas, tais como os artigos 232º, 236º, 238º, 334º C.C.”

As questões a solucionar são pois as seguintes:

Uma primeira, de cariz processual, respeitante à nulidade por excesso de pronúncia do Acórdão recorrido; e

Uma segunda, de natureza substantiva, respeitante ao que se considerou como constituindo preenchimentos abusivos (questão esta, claro, a ser apenas apreciada caso não se verifique o invocado excesso de pronúncia).

Vejamos pois,

Começando pela nulidade por excesso de pronúncia:

Diz a recorrente/embargada que a apelação (do embargante) “suscitou a possibilidade da existência de um abuso de direito, conforme preconizado pelo artigo 334º do Código Civil, não fazendo menção explícita nem tácita ao preenchimento do título ou a um abuso no mesmo, contudo o Tribunal da Relação do Porto adentrou a matéria não alegada, ultrapassando os limites do recurso, substituindo-se à questão apresentada e demandando uma análise e decisão sobre um ponto não diretamente questionado”.

No centro da nulidade suscitada – mais do que o que deve entender-se por nulidade por excesso de pronúncia – está o modo de compatibilizar/conciliar o princípio que concede ao juiz liberdade na indagação do direito aplicável (com expressão no art. 5.º/3 do CPC) com o princípio do dispositivo, com os limites que o objeto do processo, traçado pelas partes, coloca a tal indagação.

E a concretização de tal compatibilização, sem prejuízo das considerações teóricas que o tema suscita, tem sempre que ser feita a partir dos exatos contornos do caso concreto, havendo claramente casos em que ao juiz cabe (não só pode, como deve) requalificar juridicamente as alegações das partes e outros em que uma determinada configuração e /ou requalificação jurídica está vedada por ultrapassar abertamente o domínio definido pelo objeto do processo.

Impõe-se pois que comecemos por descrever os exatos contornos do caso.

Percorrendo a PI (dos embargos), não vemos (com exceção do que se refere nos arts. 32.º e 83.º, em que se diz que “nos valores peticionados não vem descontada a máquina que foi entregue2) uma explícita alusão à indevida inclusão das duas referidas verbas (€ 84.945,53, € 15.678,38) que compõem os € 125.621,91 inscritos na letra: a lógica defensiva do executado, como já foi referido, centra-se sobre a não existência de incumprimento contratual da sua parte e é a partir daqui que se invoca que a exequente não podia sequer ter preenchido e “dado” à execução a letra (que havia recebido, assinada em branco pelo executado).

E é nesta lógica defensiva que surge a invocação do abuso do direito, invocando-se (no art. 68.º da PI) que “nunca deveria ter sido preenchida a letra que conduz a esta execução”, ou seja, em momento algum (com a exceção referida) é explicitamente invocado pelo executado que, caso se considere que incumpriu o contrato, então, o montante devido em termos de “liquidação contratual” é diferente do inscrito na letra ou, dito de outro modo, em momento algum (com a exceção referida) o executado esgrime/invoca o conteúdo/clausulado do contrato celebrado, tendo em vista discutir o montante devido em termos de “liquidação contratual”.

Em todo o caso, o executado – após dizer que não incumpriu o contrato, “pelo que não existe motivo para a resolução do contrato e para preenchimento da letra em branco que serve como título executivo” – termina a PI a “pedir” que o contrato, caso não seja prorrogado, “seja resolvido, entregando o valor de 25.000, 00 € que lhe foi mutuado (…) e todos os bens que são da exequente e que se encontram em sua posse, não tendo mais nenhum valor a entregar e desvinculando-se para sempre destas suas obrigações”.

E, passando agora às conclusões da apelação do executado/embargante, continuamos a não ver uma qualquer explícita invocação/alusão à indevida inclusão da verba de € 84.945,53 na verba global de € 125.621,91 inscrita na letra.

O apelo ao abuso do direito, como se vê da conclusão W (da apelação), tem a ver, na perspetiva do apelante, com “uma aplicação justa, equitativa (…) na averiguação do incumprimento”, não tendo a ver com o “abuso”, quanto ao montante, no preenchimento da letra.

Ao invés, há explícitas invocações quanto ao desconto no montante global da verba de € 15.300,00, designadamente:

GG. Vejamos que o desconto no café, no valor de maquinaria e equipamento, totalizando 15.300, 00 €, está garantido pela reserva de propriedade dos mesmos até final de contrato, tal como no ponto 3 da Cláusula Terceira do contrato de parceria comercial

MM. Olhando para toda a situação apresentada: a prova acarretada nos autos, os factos dados como provados e já referidos, quanto ao término de consumo por um dos cafés, as condicionantes do COVID que afetaram o negócio, as datas das interpelações, o silêncio e inflexibilidade da recorrida, o curto tempo decorrido do contrato, a se considerar procedente a execução, nunca deveria ser pela totalidade da execução.

NN. Aqui deveria o tribunal a quo proceder ao desconto daquele valor da maquinaria mediante a sua entrega e obrigando o recorrente, no limite, a devolver o desconto do café, cumprindo-se os juízos de equidade gerais e ainda do artigo 437.º do CC.

Ou seja, na apelação, o executado até esgrime com o conteúdo/clausulado do contrato celebrado para diminuir o montante por que foi preenchida a letra, porém, apenas e só para discutir o desconto dado/“pago” em maquinaria e equipamento.

Colocado perante tais alegações/invocações do executado/embargante, entendeu-se no Acórdão recorrido:

(…)

O recorrente questiona a dada altura a inclusão na quantia exequenda de um valor relativo às máquinas e equipamentos que lhe foram entregues ao abrigo do contrato sustentando que os mesmos «estão garantidos pela reserva de propriedade» havendo da sua parte disponibilidade para os devolver. (…)

Existe no contrato uma única cláusula que se refere às máquinas e equipamentos a que nos estamos a referir. Trata-se da cláusula 3.ª que se encontra redigida da seguinte forma: (…)

Se bem interpretamos esta cláusula, o que na mesma se estabelece é que os bens são propriedade da embargada durante todo o contrato, eles apenas são «afetados» (!) aos estabelecimentos comerciais do embargante para efeitos da comercialização do café adquirido à embargada. A sua entrega não corresponde, pois, a uma qualquer forma de transferência da propriedade para o cliente, apenas à disponibilização ao cliente do seu uso. (…)

Mas, conjugando essa alínea com o ponto 3 da cláusula, parece poder deduzir-se que os bens eram entregues ao cliente para ele usar, conservando-se o respetivo direito de propriedade na titularidade da embargada, e, no final do contrato, se este fosse cumprido integralmente, a embargada emitiria a fatura de venda dos mesmos pelo “valor residual”, o qual já se considerava pago, transferindo os bens para a propriedade do embargante.

Sendo assim, como parece ser, então temos de concluir que sendo os bens propriedade da embargada e não se verificando a condição da transferência da respetiva propriedade para o embargante no final do contrato (o seu cumprimento integral), o que a embargante pode exigir do embargado é a restituição das máquinas e equipamentos, em virtude de ser ela a titular daquele direito.

Se essa entrega não for feita, a embargante poderá então pedir a indemnização pela não entrega do equipamento. Mas, enquanto não exercer, se necessário por via judicial, esse direito, a embargante não pode «converter» unilateralmente o seu direito (a uma prestação de facto: a entrega dos bens) noutro direito de diferente natureza (a uma prestação pecuniária por equivalente: a entrega do valor que no contrato é atribuído aos bens).

Logo, estando a autorização de preenchimento da livrança indexada às consequências emergentes do incumprimento do contrato, não às consequências da violação do direito de propriedade da fornecedora de café sobre bens afetos à economia do contrato, a exequente não dispõe de autorização para preencher a letra de câmbio dada à execução com o valor desses bens, devendo a quantia exequenda ser reduzida, com este fundamento, na quantia de €15.676,38.

De referir, se dúvidas houvesse, que na carta de resolução do contrato a embargada afirma precisamente que os bens e equipamentos lhe pertencem e terão de lhe ser entregues.

Não obstante, de imediato considera que os mesmos não lhe foram entregues e declara-se credora do montante que inclui uma parcela correspondente ao valor dos equipamentos, sem previamente ter interpelado o embargado, conforme teria de fazer, para efectuar a sua restituição e lhe ter fixado um prazo para o efeito, sob pena de incorrer em violação do seu direito de propriedade e no dever de indemnizar os danos causados desse modo. (…)”

Tendo-se ainda entendido, no Acórdão recorrido, o seguinte:

“ (…)

O recorrente invoca ainda o instituto do abuso do direito, sustentando que a exigência da exequente é abusiva, que a execução nunca poderia ser pela quantia exequenda.

De novo o recorrente suscita uma questão com inteira pertinência para a sua defesa, mas equivoca-se formulação da questão e na qualificação jurídica dos factos que lhe dão suporte.

O que se deve perguntar é se a quantia exequenda corresponde ao valor que o pacto de preenchimento da letra permitia que fosse colocado nesta, rectius, se a quantia exequenda corresponde ao valor indemnizatório que a exequente pode exigir do executado em virtude do incumprimento do contrato.

Nessa medida, o que é necessário é analisar o contrato, descortinar as consequências do respetivo incumprimento e estabelecer a respetiva relação com o valor com que o título de crédito foi preenchido. Se houver desconformidade, o preenchimento é abusivo e a execução não pode prosseguir em relação à parte em excesso, não por recurso ao instituto do abuso do direito propriamente dito, mas por recurso ao abuso do preenchimento do título.

Como quer que seja, afigura-se-nos que ainda que da forma deficiente assinalada, está colocada a questão da exigibilidade da totalidade da quantia exequenda e, nessa medida, é-nos permitido conhecer da correspondência do preenchimento da letra à autorização dada para o efeito, rectius, se a exequente pode, ao abrigo do contrato, reclamar do executado o valor da indemnização correspondente à quantia exequenda.

(…) vejamos o que diz mesmo o contrato.

(…) A cláusula 6ª é a única que se ocupa das consequências da resolução do contrato por incumprimento.

A sua redação é a seguinte:

«1. Consequência do incumprimento, total ou parcial da presente Parceria, por motivo imputável, objetiva ou subjetivamente à Segunda Outorgante, considera-se perdido o beneficio do prazo concedido para aquisição do café, tendo a Primeira Outorgante o direito a receber de imediato o valor do café em falta, de acordo com os seus extractos de consumos, ao PVP e IVA em vigor, e sem descontos, à data do efectivo pagamento do mesmo.

2. Nesta situação cessa qualquer obrigação da Primeira a qualquer desconto a conceder ou contrapartida que à data do incumprimento não esteja vencida ou estando fica excepcionada.»

Como se vê, esta cláusula apenas estipula que havendo incumprimento total ou parcial do contrato por motivo imputável ao executado este perde o benefício do prazo que o contrato estipula a seu favor para adquirir a quantidade mínima total de café a que se obrigou.

Por outras palavras, conforme o clausulado, havendo incumprimento do contrato (a cláusula não o refere, mas parece dever entender-se: incumprimento definitivo, situação que no caso ocorreu por via da interpelação admonitória, conforme antes assinalado), a exequente passou a poder exigir do cliente que de imediato e a pronto lhe adquira a quantidade de café correspondente à diferença entre o café adquirido e o café que devia ser adquirido, pagando o respetivo preço, a valores correntes e sem qualquer desconto.

Até aí o executado dispunha do prazo de cinco anos para adquirir os 3.600 kg de café; tendo incumprido o contrato esse prazo foi eliminado e a obrigação de compra da totalidade do café passou a ser-lhe exigível de imediato, pela totalidade.

Sendo assim, a exequente equivocou-se no preenchimento do título, pressupondo erradamente que o contrato lhe atribui de imediato o direito a receber o equivalente ao preço corrente do café em falta. (…)

Nessa medida, o valor de € 84.945,53 que faz parte do montante com que a letra foi preenchida não é exigível ao executado porque da cláusula do contrato que prevê as consequências do incumprimento do contrato o que resulta é um dever de prestação distinto e cujo incumprimento, a sobrevir (primeiramente a exequente necessita de reclamar do executado que faça a compra que o contrato estipula, o que na carta de resolução do contrato não fez porque se considerou já credora do preço do café não adquirido mas contratado), gerará um direito de indemnização que não só não equivale nem corresponde àquele montante, como terá de ser demonstrado.

Estamos, pois, perante um preenchimento incorreto do título que consubstancia uma violação dos termos da autorização concedida para esse preenchimento e, nessa medida, se traduz num abuso do direito ao preenchimento, passível de aqui ser conhecido e declarado. (…)”

E, em face de tudo isto, que dizer?

Em 1.º lugar, há que contrariar o que a recorrente começa por referir, ou seja, importa afirmar que o Acórdão recorrido não utilizou – “abordou” na expressão da recorrente – factos não alegados.

Os raciocínios jurídicos do Acórdão recorrido acabados de transcrever e conducentes a concluir pelo preenchimento abusivo/indevido dos montantes de € 15.678,38 e de € 84.945,53 basearam-se na interpretação das cláusulas do contrato celebrado e tais cláusulas, assim como todo o conteúdo contratual, ficou implicitamente alegado com a junção (com a PI da execução) do documento que formaliza o contrato celebrado entre as partes.

Mas, claro, não é por o Acórdão recorrido haver apenas utilizado factos que devem ser considerados como alegados que, sem mais, se pode/deve afirmar que não houve excesso de pronúncia.

No caso, como resulta da descrição sobre os exatos contornos do caso, a dificuldade está em saber/dizer se o Acórdão recorrido ultrapassou (ou não) a “liberdade” de aplicação do direito.

Ao tribunal incumbe, segundo o denominado “princípio de exaustão”, proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas, ao abrigo do disposto no art.º 5.º/3 do CPC, de modo a esgotar as possíveis qualificações dos factos alegados em função do efeito prático-jurídico pretendido, ou seja, não basta uma mera qualificação jurídica dos factos alegados diferente da pretendida pelas partes para se concluir por causa de pedir diferente, porém, há que moderar tal liberdade de qualificação no sentido de não permitir uma convolação qualificativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente da visada e atentatória dos princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa.

A liberdade de apreciação da matéria de direito por parte do juiz – pese embora o modo amplo como, no art. 5.º/3 do CPC, se diz que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” – tem limites, como sejam as que decorrem do princípio do dispositivo (art. 3.º/1 do CPC), do princípio do contraditório (art 3.º do CPC), do princípio da estabilidade da instância (arts. 264.º e 265.º do CPC), das regras da preclusão (art. 573.º do CPC) ou do princípio do pedido (art. 609.º do CPC).

O que, no caso, coloca a seguinte questão: tendo o executado invocado que a letra não devia ter sido preenchida, considerando o tribunal que a letra podia ser preenchida, pode o tribunal – a partir de apreciações/qualificações jurídicas que, embora baseadas nos factos alegados, não correspondem exatamente ao que foi juridicamente invocado pelo executado – pronunciar-se sobre a “bondade” do montante por que a letra foi preenchida?

Temos para nós, respondendo à pergunta, que a compatibilização – entre o princípio do conhecimento oficioso do direito e os limites fixados pelo objeto do processo – não pode deixar de ir no sentido de permitir, em termos processuais, requalificações jurídicas que não operem uma qualquer “transmutação” do objeto do processo.

E propendemos para considerar ser este ainda o caso dos autos.

O efeito prático-jurídico pretendido pelo executado/embargante é a extinção da execução e/ou a redução da quantia exequenda e foi exatamente isto que, no Acórdão recorrido, foi concedido e não uma qualquer pretensão diferente e alternativa; e quanto à causa de pedir que sustentava tal pretensão, consubstanciando-se a mesma na concreta factualidade alegada, havia que ser considerada a relevância de tal factualidade perante o quadro normativo aplicável e em função e tendo em vista a espécie de tutela jurídica pretendida.

Vale pois o princípio jura novit curia, isto é, o princípio da liberdade de julgamento quanto às regras de direito: como refere o Conselheiro Francisco Lucas Ferreira3, “aos factos dados por si como assentes, o juiz aplica o direito, campo em que goza de inteira liberdade, já que, nesse domínio, se não encontra sujeito às alegações e posições das partes (art. 5.º/3), ainda que, se estiver em causa uma relevante divergência de qualificação jurídica (v. g., de natureza contratual), haja que ouvir previamente as partes ao abrigo do art. 3.º/3 (prevenção das decisões-surpresa)”; ou, ainda, como refere Lebre de Freitas4, “contrariamente ao que acontece no campo dos factos da causa, o tribunal não está condicionado pelas alegações das partes no domínio da indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas, o que é uma decorrência do princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão e usa exprimir-se com o brocado latino jura novit curia. (…) Por outro lado, o conhecimento oficioso da norma jurídica está dependente da introdução na causa dos factos aos quais o tribunal a aplica, devendo sempre distinguir-se o plano dos factos, em que vigora, mesmo em matéria de direito processual, o princípio do dispositivo, e o plano do direito, em que a soberania pertence ao juiz, sem prejuízo ainda, no que ao direito material se refere, de o conhecimento oficioso se circunscrever no domínio definido pelo objeto do processo; ou, ainda, como se refere no Ac. STJ de 19/01/2017, P. 873/10, “incumbe ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada (art. 5.º/3) mas dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido, sendo-lhe vedado enveredar por uma medida que extravase aquele limite.

Concluindo pois, quanto à 1.ª questão suscitada, o Acórdão recorrido não é nulo por excesso de pronúncia, ou seja, não conhece de questão de que não podia tomar conhecimento.

Não foi concedida, é certo, a oportunidade de a exequente se defender dos raciocínios jurídicos (supra transcritos) efetuados/baseados na interpretação das cláusulas contratuais e conducentes a concluir pelo preenchimento abusivo/indevido dos montantes de € 15.678,38 e de € 84.945,53, porém, não é esta nulidade (consistente em se haver omitido o cumprimento do art. 3.º/3 do CPC) que é aqui, nesta revista, invocada, mas apenas a nulidade por excesso de pronúncia.

Passando à 2.ª questão (de cariz substantiva), respeitante ao que no Acórdão recorrido se considerou como constituindo preenchimentos abusivos.

Quanto ao preenchimento abusivo/indevido do montante de € 15.678,38:

Embora a exequente/recorrente termine as suas conclusões a pedir a repristinação da decisão proferida em 1ª Instância, o certo é que nada contrapõe, em termos substantivos, aos raciocínios jurídicos expostos no Acórdão recorrido a propósito da indevida inclusão de tal verba no montante global inscrito da letra.

Assim, muito concisamente, dir-se-á tão só que não se vê razão para, neste ponto, divergir do Acórdão recorrido: aliás, cessando (cfr. cláusula 6.ª), em caso de incumprimento, a obrigação de desconto (da cláusula 3.ª) por parte da exequente (em que se incluiu a entrega das máquinas e equipamento), a liquidação contratual, neste ponto, deve fazer-se através da restituição das máquinas e equipamento, não se podendo incluir a restituição do valor que lhes foi atribuído entre as consequências emergentes do incumprimento contratual (e, por conseguinte, no montante por que veio a ser preenchida a letra)5.

Quanto ao preenchimento abusivo/indevido do montante de € 84.945,53:

Aqui, com o todo o respeito, é que não se pode acompanhar a conclusão final do Acórdão recorrido.

Independentemente do nomen iuris a atribuir ao contrato celebrado pelas partes, é seguro que estamos perante um contrato misto criado pela autonomia privada, contrato misto esse a que, quanto ao tipo negocial que gera a presente discussão, é aplicável, para além do que estiver estabelecido no contrato (autonomia privada – art. 405.º do C. Civil), o regime jurídico da compra e venda (está em causa a compra e venda de 3.500 kgs de café).

E, analisando o contrato, é convocável a cláusula 6.ª, que estipula que havendo incumprimento total ou parcial do contrato por motivo imputável ao executado, este perde o benefício do prazo que o contrato estipula a seu favor para adquirir a quantidade mínima total de café a que se obrigou, acrescentando-se que, em tal hipótese, a exequente “tem o direito a receber de imediato o valor do café em falta (…) sem descontos”.

Sendo assim – dizendo a cláusula que a exequente “tem o direito a receber de imediato o valor do café em falta (…) sem descontos” – a teoria da impressão do destinatário, consagrada no art. 236.º/1 do C. Civil, não permite dizer que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, retiraria o sentido que o Acórdão recorrido lhe confere, ou seja, que a exequente apenas “passou a poder exigir do executado que de imediato e a pronto lhe adquira a quantidade de café” correspondente à diferença entre o café adquirido e o café que devia ser adquirido, pagando o respetivo preço, a valores correntes e sem qualquer desconto.

Dizer-se/declarar-se que a contraparte tem o direito a receber de imediato o valor/preço do café em falta é diferente de dizer-se/declarar-se que a contraparte tem o direito a exigir que lhe adquira a quantidade de café em falta: é certo que a cláusula começa por enunciar a perda do benefício do prazo (de 5 anos, do aqui executado, para adquirir a quantidade total de café), porém, não se fica a cláusula por aqui e acrescenta, repete-se, que o aqui exequente tem o direito a receber de imediato o valor do café.

Tal não significa, como é evidente, que o aqui executado não tenha direito à contraprestação (típica da compra e venda) a cargo da exequente e aqui contraparte, ou seja, que não tenha direito à entrega do café em falta; e também não significa que, sem mais, se deva afirmar que as prestações (de pagamento do preço e de entrega do café) passam a ter prazos diferentes (deixando de ter aplicação o art. 428.º do C. Civil), porém, nada disto – desde logo por a exceção de não cumprimento, que não é de conhecimento oficioso, não ter sido invocada – releva para o indevido preenchimento do montante da letra.

Em síntese, a exequente, ao incluir a verba de € 84.945.53 no montante global da letra, não incorreu em indevido/abusivo preenchimento do título.

É quanto basta para, quanto a tal verba de € 84.945,53, conceder procedência à revista.


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III - Decisão

Nos termos expostos, concede-se parcialmente a revista e, revogando-se parcialmente o acórdão recorrido, julgam-se os embargos de executado parcialmente procedentes, reduzindo a quantia exequenda para o capital de € 109.945,53, a que acrescem juros de mora contados sobre tal montante desde a data de vencimento aposta no título.

Custas nas Instâncias e na presente Revista por executado/embargante e exequente/embargado, na proporção de 5/6 e 1/6.


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Lisboa, 04/04/2024

António Barateiro Martins (relator)

Nuno Ataíde

Ferreira Lopes

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1. Não faz pois sentido o que a recorrente invoca na conclusão 20.ª

2. Entrega esta que, refira-se, ficou não provada.

3. Direito Processual Civil, Vol II, 3.ª ed, pág. 430/1.

4. CPC Anotado, 4.ª ed., pág. 40/1.

5. Aliás, como se vê da carta da exequente (reproduzida no ponto 5 dos fatos), esta parece fazer derivar a restituição do valor da “não entrega do material e equipamento”.