PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
RECURSO DE REVISTA
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REJEIÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário


I- Aplica-se ao processo especial para acordo de pagamento o regime de recursos previsto no artigo 14º do CIRE.

II- A admissibilidade deste recurso depende, em especial, de ser invocada uma oposição de julgados com um outro acórdão do STJ ou das Relações, com vista a inscrever tal conflito jurisprudencial como condição de acesso ao STJ.

III- Concluindo-se que o acórdão recorrido e o indicado acórdão fundamento não se pronunciam sobre a mesma questão normativa, não existe a divergência jurisprudencial exigida pelo referido artigo 14º para que a revista possa ser admitida. 4. Não são inconstitucionais as normas que prevêem a existência de filtros no recurso de revista.

Texto Integral




Processo n.º 6036/23.6T8VNF.G1


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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


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AA instaurou processo especial para acordo de pagamento, alegando o seguinte:


1- A requerente atualmente encontra-se reformada, sendo o seu agregado familiar constituído por si e pelo seu marido.


2- Sucede que, o seu cônjuge exerceu atividade empresarial por conta própria, no ramo da carpintaria e,


3- Em virtude da crise económica que atravessa quer a economia internacional, quer nacional, a requerente viu os rendimentos do agregado familiar sofrerem um duro golpe e consequentemente não conseguiram cumprir atempadamente as suas obrigações.


4- Sendo que, e atento que, contraíram algumas dívidas para fazer face aos seus compromissos.


5- Não obstante as dificuldades económicas que a mesma atravessa, o certo é que o património que a mesma detém, a rentabilidade que poderá auferir do mesmo, está convicta a requerente que conseguirá ultrapassar as graves dificuldades que atravessa atualmente.


6- Não se encontrando numa situação de insolvência, o certo é que a sua real situação económica se afigura difícil.


7- Sendo considerado em situação económica difícil, nos termos do artigo 222º-B do CIRE, “O devedor que enfrente dificuldades sérias para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito.


8- No caso em apreço a requerente apresenta dificuldades sérias de liquidez,


9- E não consegue, a par, aliás, do que é comum à situação atual, obter crédito junto da banca.


10- Aliás, o banco credor daqui requerente, intentou processo de insolvência da qual a mesma se opôs, sendo aquele o maior entrave e intransigência nas negociações.


11- Não cumprindo com a suas obrigações legais, tais como a implementação da requerente no PERSI.


12- Porém, ainda é possível a sua recuperação, caso a presente providência venha a ser decretada, sendo assim possível, na sua sequência, estabelecer negociações com os respetivos credores da requerente de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua recuperação.


13- Por graves dificuldades económicas esta não consegue cumprir pontualmente as suas obrigações, quer por falta de liquidez, quer por não conseguir obter crédito.


14- Por outro lado, o recurso ao mútuo junto de familiares não obteve o efeito pretendido pela requerente, a sua solvabilidade”.


Sugeriu que lhe fosse nomeado como administrador judicial provisório BB. Juntou em anexo à petição inicial:


- Relação de credores – anexo I (“1- Autoridade Tributária e Aduaneira, (…), com um crédito de 668,86 euros, vencido à data de 04 de outubro de 2023; 2- CC, (…), com um crédito no montante de 57.500,00 euros, vencido à data de 4 de maio de 2023; 3- Banco Comercial Português, S.A., (…), com um crédito no valor de 76.340,23 euros, vencido à data de 04 de outubro de 2023”);


- Relação de Ações/execuções – Anexo II (“1- processo de insolvência n.º 5355/21.0... que corre termos no Juiz ...3 de Comércio de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, em que é requerente o Banco Comercial Português e requerida a aqui requerente”);


- Património da Requerente – Anexo III (“1- Prédio urbano inscrito na matriz predial sob o art. 457º extinto 438º da freguesia de ..., com o valor de avaliação de 153.000,00 euros; 2- Prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o art. 996º, fração A, r/c destinado a garagem e arrumos, da freguesia de ..., com o valor de avaliação de 74.000,00 euros; 3- Prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o art. 996º, fração B, r/c destinado a garagem, da freguesia de ..., com o valor da avaliação de 58.500,00 euros; 4- Prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o art. 996º, fração C, andar destinado a habitação tipo T3 da freguesia de ..., com o valor de avaliação de 107.000,00 euros; 5- Prédio urbano descrito na matriz predial urbana sob o art. 996º, fração D destinado a habitação tipo T3 da freguesia de ..., com o valor de avaliação de 107.000,00 euros”);


- Relatório de perícia datado de “novembro de 2022” e subscrito por DD, em que procede à avaliação do património imobiliário da requerente;


- Declaração datada de 04 de maio de 2023, assinada pela requerente e por CC, este na qualidade de credor, em que “declaram e manifestam para efeitos do artigo 222º-C, n.º 1 do CIRE, a sua vontade recíproca de encetarem negociações conducentes à elaboração de acordo de pagamento no âmbito do processo especialmente previsto para esse fim”; e


- Certificado do registo criminal da requerente, em que nada consta.


Conclusos os autos, a 1ª Instância proferiu o seguinte despacho:


“É do meu conhecimento funcional que se encontra pendente neste Juízo 4, o processo n.º 5232/19.5... onde foi declarada a insolvência do marido da devedora, EE.


Naqueles autos e no âmbito do apenso D, na sequência de ação de separação de bens intentada pela aqui devedora, AA, contra EE, sua massa insolvente e credores da mesma foi determinada a separação da massa insolvente da meação pertencente à A. AA relativo aos bens descritos na alínea E) da matéria de facto assente.


Assim, determino que a devedora venha retificar a relação de bens apresentada nos autos, pois que a mesma não é proprietária dos bens ali descritos, mas sim da meação relativa a tais bens”.


Nessa sequência, por requerimento de 10/10/2023, a requerente apresentou nova relação de bens em que relacionou o direito à meação sobre os prédios que antes descreveu no Anexo III junto com a petição inicial.


Por despacho de 12/10/2023, a 1ª Instância indeferiu liminarmente a petição inicial nos seguintes termos:


AA, veio ao abrigo do disposto nos artigos 222.º-A, e ss. do CIRE, intentar o presente Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP), comunicando que pretende dar início às negociações com os respetivos credores de modo a com estes concluir acordo de pagamento.


Para tanto alega que:


(…)


Com o requerimento inicial juntou Relação de credores (3 credores), de onde resulta serem devedores de uma quantia global de 134.509,09€, assim descriminada:


1. Autoridade Tributária e Aduaneira, NIF ... ... .79, com sede na Rua..., com um crédito no valor de 668.86€ (seiscentos e sessenta oito euros e oitenta seis cêntimos), vencido à data de 4 de outubro de 2023.


2. CC, NIF ... ... .04, residente na Rua ..., com crédito no montante de 57.500.00€ (cinquenta e sete mil e quinhentos euros), vencido à data de 4 de maio de 2023.


3. Banco Comercial Português, S.A, com sede na Praça ..., com um crédito no valor de 76.340.23€, vencido à data de 4 de outubro de 2023.


Junta lista das ações contra si pendentes (identificando o Processo de insolvência n.º 5355/21.0... que corre termos no Juiz ... de Comércio de ... do Tribunal Judicial Comarca de Braga, em que é requerente o Banco Comercial Português).


Junta ainda relação de bens, da qual decorre ser titular de cinco prédios urbanos, no valor que estima de 499.500,00€. Convidada a aperfeiçoar o requerimento inicial, retificando a relação de bens apresentada nos autos, pois que a mesma não é proprietária dos bens ali descritos, mas sim da meação relativa a tais bens, a mesma veio indicar ser proprietária da meação sobre os referidos bens.


Vejamos.


Tal como já se deixou dito, urge adicionar à factualidade relevante que se deixou supra exposta, a seguinte:


A aqui devedora é casada com EE, o qual foi declarado insolvente em 19-06-2020, no processo n.º 5232/19.5..., que se encontra pendente neste Juízo, Juiz ..., estando em curso a liquidação do ativo.


Naqueles autos e no âmbito do apenso D, na sequência de ação de separação de bens intentada pela aqui devedora AA contra EE, sua massa insolvente e credores da mesma foi determinada a separação da massa insolvente da meação pertencente à A. AA relativa aos bens elencados pela devedora nestes autos como sendo o seu património.


BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S. A. intentou, em 30-09-2021, contra a aqui requente ação com o n.º 5355/21.0..., que corre termos no Juiz ..., deste Juízo de Comércio, pedindo a insolvência da devedora, alegando ser credor da quantia de € 315.009,52 (trezentos e quinze mil, nove euros e cinquenta e dois cêntimos), sendo o montante de € 274.312,24 (duzentos e setenta e quatro mil, trezentos e doze euros e vinte e quatro cêntimos) decorrente de crédito hipotecário e a importância de € 40.697,28 (quarenta mil, seiscentos e noventa e sete euros e vinte e oito cêntimos) decorrente de livrança, emitida em 30 de 3 Abril de 2012 e vencida em 19 de fevereiro de 2015, subscrita pela Requerida AA e pelo seu marido, EE, a qual titula as responsabilidades decorrentes do contrato de empréstimo.


Ora, considerando o alegado pela requerente no seu requerimento inicial e, bem assim a documentação pela mesma junta, salvo melhor opinião, é a própria requerente, nas suas alegações e através da documentação que junta que dá a conhecer a sua situação de insolvência atual e não iminente. É a própria insolvente quem diz que “Por graves dificuldades financeiras, esta não consegue cumprir pontualmente as suas obrigações, quer por falta de liquidez, quer por não conseguir obter crédito.”


A requerida tem, na sua alegação, créditos vencidos, a três credores distintos, no valor total de € 134.509,09. (Diga-se que se afigura que esse valor poderá vir a ser maior face ao alegado pelo Banco requerente no pedido de insolvência da aqui requerida).


Relativamente ao património que indica, apenas é titular do direito à meação incidente sobre o mesmo, pois que a meação do marido se encontra apreendida nos autos de insolvência daquele.


Créditos vencidos no valor referido que para alguém que se encontra reformada, apesar de não dizer o valor mensal da reforma auferida, desconhecendo-se outros rendimentos ou meios de que dispõe, está integrada num agregado familiar composto por si e pelo seu marido insolvente, não tem crédito, não consegue negociar com o maior credor, não pode levar a outra conclusão senão a de que a requerida se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, tendo ocorrido a falta de cumprimento de pelo menos três obrigações que, pelo seu montante e pelas circunstâncias do incumprimento, revelam a impossibilidade de a devedora satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações. Tais factos, conjugados entre si e ainda associados aos demais que são igualmente alegados relativamente à sua situação patrimonial, permitem, desde já, concluir que a requerente se encontra impossibilitada de cumprir, de forma generalizada, as suas obrigações vencidas. Ou seja, é manifesto que a situação da devedora não é meramente uma situação económica difícil, constituindo antes, verdadeiramente, uma situação de insolvência atual.


A questão que agora se põe é se é admissível a este tribunal apreciar no despacho inicial a referida factualidade e indeferir liminarmente o requerimento de apresentação do PEAP com fundamento em que a requerente se encontra em situação de insolvência atual. Ou seja, a questão que aqui se coloca é a de saber se, nesta análise liminar de recebimento do PEAP, pode/deve o juiz ir mais além, apreciando o pressuposto substantivo do PEAP de existência de uma situação pré-insolvencial.


Com respostas positivas a esta temática podemos ver os acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Coimbra, disponíveis em www.dgsi.pt.: AC. de 13-06-2023 proferido no processo 1365/23.1T8CBR.C1, pela Exma. Desembargadora Maria João Areias; de 01-12-2019, no processo 5494/19.8T8CBR.C1, pelo Exmo. Desembargador Ferreira Lopes.


Assim, face ao que se deixou plasmado, indefiro liminarmente o requerimento de apresentação do PEAP com fundamento em que a requerente se encontra em situação de insolvência atual.


Custas pela requerente».


Inconformada, interpôs a requerente competente recurso para a Relação, a qual julgou improcedente o recurso, e, consequentemente, confirmou a decisão recorrida.


De novo inconformada, interpôs a requerente recurso de revista, cuja minuta concluiu da seguinte forma:


«I. É materialmente inconstitucional o disposto nos artigos 629º n.º 1 e 671º n.º 3 do CPC, por violação das normas constantes do artigo 18º n.º 2 e 20º n.º 1 da CRP, porque estabelecem um limite desproporcional e desnecessário ao direito ao recurso, impedindo que as partes sindiquem de direito as decisões proferidas, sem qualquer razão e/ou alternativa.


II. Mais quando como in casu, fica o interessado na boa decisão da causa, privado de poder ver o Supremo Tribunal aclarar a decisão e/ou revertê-la, no interesse de obter a melhor conformação com o Direito, nomeadamente quanto ao confronto de normas constitucionais com a mesma relevância social e económica.


III. A presente revista, não obstante ser apresentada em sede de um processo com dupla confirmação (em sede de 1ª instância e na Relação), deve ao abrigo do disposto no artigo 672º do CPC ser admitida, pelas seguintes razões:


IV. Em primeiro lugar, haverá que dizer que a presente revista é essencial à aplicação do melhor direito, na medida em que o douto acórdão recorrido se encontra ferido de uma grave contradição entre a matéria de facto e de direito.


V. Contradição que, não fora o caso da presente revista extraordinária, abala os mais basilares princípios do Estado de Direito, como sejam o exercício de uma justiça equitativa e com recurso à verdade material.


VI. Haverá que dizer, igualmente, que a presente revista se mostra essencial, pois o acórdão da Relação do qual se recorre encontra-se em contradição com um outro, já transitado em julgado, proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, .2T8CBR.C1, nº Convencional: JTRC, Relator: MARIA JOÃO AREIAS, data do Acórdão: 03-12-2019, Votação: UNANIMIDADE, Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA, vide in: https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/e5baf732d9508ca2802584ee0053919a?OpenDocument


VII. O acórdão recorrido encontra-se em clara contradição como acórdão-fundamento supramencionado.


VIII. Tanto num acórdão como noutro é discutido o facto de os tribunais de 1ª Instância terem indeferido liminarmente o pedido de PEAP.


IX. Fizeram-no simplesmente pelo facto de os devedores se encontrarem na impossibilidade de cumprirem com as suas obrigações vencidas.


X. Em ambos os casos, não foi tida em consideração no indeferimento liminar o facto dos devedores terem um ativo superior ao seu passivo.


XI. Ao contrário do ocorrido com o acórdão recorrido, o acórdão fundamento acabou por revogar a decisão tomada em 1ª instancia concluindo que a factualidade alegada pela requerente não permitia, por si só, concluir que a devedora se encontrava numa situação de insolvência atual.


XII. Ora, era essa decisão que, igualmente, deveria ter sido tomada nos presentes autos.


XIII. O processo de PEAP pressupõe a existência de uma situação económica que se afigura difícil por parte da requerente/devedora.


XIV. No caso em apreço, efetivamente a requerente apresenta dificuldades sérias de liquidez e não consegue obter crédito junto da banca.


XV. Tal factualidade corresponde a pressupostos que são necessários preencher para que se possa apresentar um pedido de PEAP.


XVI. Na situação económica difícil o devedor não poderá estar impossibilitado de cumprir a generalidade das suas obrigações. Pode cumpri-las, ainda que com sérias dificuldades, designadamente por falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito.


XVII. Será sempre de admitir que o devedor possa recorrer à venda do seu ativo, ainda que abaixo do valor de mercado a fim de obter a liquidez necessária para liquidação das suas obrigações.


XVIII. Não foi dada essa opção à recorrente.


XIX. O estado de insolvência exige um plus em relação ao incumprimento: enquanto este se refere a uma só obrigação individualmente considerada, a insolvência tem em consideração o património do devedor, assumindo um carácter geral.


XX. O incumprimento de uma ou mais obrigações só tem importância na estrita medida em que resulte da situação de insuficiência do ativo para fazer face ao passivo vencido.


XXI. Para ser declarado o estado de insolvência atual não pode só ter-se em conta o incumprimento enquanto uma obrigação individualmente considerada, mas sim tendo em consideração TODO O PATRIMÓNIO do devedor.


XXII. O património da recorrente é considerável e superior ao passivo.


XXIII. Não foi dada qualquer chance à recorrente para negociar com os seus credores.


XXIV. A recorrente é titular de meação dos bens melhor identificados nos autos e devidamente avaliados no valor de 249.750,00€, valor este resultante de relatório de avaliação efetuado no âmbito de processo de insolvência do marido da recorrente.


XXV. A recorrente tem um passivo no montante global de 134.509,09€.


XXVI. O ativo é consideravelmente superior ao passivo.


XXVII. O tribunal recorrido deveria ter decidido do mesmo modo que o tribunal do acórdão-fundamento, não existindo qualquer diferença entre os factos presentes num e noutro caso.


XXVIII. O tribunal recorrido fez uma errada aplicação do direito, pois, desse modo impediu que a recorrente recorre-se ao processo de PEAP de modo a tentar recuperar da sua situação difícil.


XXIX. O tribunal recorrido ter proferido decisão nos termos previstos no nº 4 do artigo 222º-C do CIRE, o que não fez.


Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, deverá ser revogado o acórdão que manteve indeferimento liminar do pedido de processo especial de acordo de pagamento e, consequentemente, deverá ser proferida decisão nos termos previstos no nº 4 do artigo 222º-C do CIRE.


ASSIM DECIDINDO, VOSSAS EXCELÊNCIAS, MUITO ILUSTRES CONSELHEIROS FARÃO, COMO SEMPRE, JUSTIÇA!».


Não foram apresentadas contra-alegações.


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Constituem questões decidendas saber se:


1) É materialmente inconstitucional o disposto nos artigos 629º n.º 1 e 671º n.º 3 do CPC, por violação das normas constantes do artigo 18º n.º 2 e 20º n.º 1 da CRP, com fundamento no estabelecimento de um limite desproporcional e desnecessário ao direito ao recurso de revista.


2) O recurso de revista interposto é admissível.


3) Caso se responda afirmativamente quanto à admissibilidade do recurso, se procedeu bem o segundo grau ao confirmar a decisão do primeiro grau que indeferiu liminarmente o requerimento inicial da recorrente.


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Consubstanciando o objecto de recurso uma mera questão de direito, remete-se para o relatório o enquadramento fáctico-jurídico da deliberação que segue.


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1. Considerando a precedência lógico-argumentativa da segunda questão em relação à primeira comecemos pela análise da questão consistente em saber se o recurso de revista deve ser admitido


Está em causa, no caso sujeito, um recurso interposto de um acórdão que confirmou a decisão de indeferimento liminar de um requerimento inicial de um Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP), regulado nos artigos 222º-A a 222º-J do Código da Insolvência e da recuperação de Empresas (CIRE), aditados a este diploma pelo DL 79/2017, de 30 de Junho, ao qual se aplicam «todas as regras previstas no presente Código que não sejam incompatíveis com a sua natureza» ex art. 222º-A, n. 3, in -fine,.
Aplica-se ao PEAP o regime de recursos previsto no art.14º do CIRE (cfr. desta 6.ª Secção os acórdãos de 9.4.2019, Proc. 118/18.3T8STS.P1.S1, de 11.7.2019, Proc. 1819/17.9T8CHV-A.G1-S2, de 10.05.2021, Proc. 1641/19.8T8BRR.L1.S1:
de 13.12.2022, Proc. 846/21.6T8STS-A.P1.S1, de 3.5.2023, Proc. 170/22.7T8FND.C1.S1, e de 28.9.2023, Proc. 3141/22.0T8GMR.G1.S1, todos em www.dgsi.pt, fonte de todos os restantes acórdãos citados).


Como se afirma no acórdão de 13.12.2022 antes citado, o regime especial de recursos previsto no artigo 14º, 1, do CIRE, «configura uma revista atípica e restrita e, por isso, delimitador da susceptibilidade da revista para o STJ do acórdão recorrido; também aplicável (por extensão) aos processos judiciais pré-insolvenciais (e recuperatórios) de natureza judicial (PER e PEAP/CIRE; PEVE/Lei 75/2020, de 27 de Novembro + DL 92/2021, de 08 de Novembro). Assim, a admissibilidade desta depende, em especial, de ser invocada, como ónus processual do recorrente, e assente uma oposição de julgados com um (e um só) outro acórdão do STJ ou das Relações, com vista a inscrever tal conflito jurisprudencial como condição de acesso ao STJ».


Mais se sustenta no referido aresto que «este regime de revista tem natureza esgotante e excludente no seu âmbito de aplicação, afastando as impugnações recursivas baseadas nas situações de revista extraordinária (art. 629º, 2, CPC) e de revista excepcional (art. 672º, 1, CPC)».


Para que o STJ admita o recurso e se pronuncie sobre o seu mérito é necessária a verificação cumulativa de todos os requisitos enunciados no art.14.º, 1 do CIRE.
Preceitua esta regra: «No processo de insolvência e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme».


Resulta deste artigo, como, aliás, assinala o acórdão desta 6.ª Secção de 28.09.2023, Proc. 3141/22-0T8GMR.G1.S1, «que o recorrente tem o ónus de demonstrar que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, conduzindo a que uma mesma incidência fáctico-jurídica tenha sido decidida em termos contrários, sob pena de não inadmissibilidade do recurso do acórdão recorrido e apreciação do seu mérito».


Antes da verificação dos requisitos de admissibilidade do recurso, cabe referir que perante o teor das alegações, que sustentam com firmeza a admissibilidade do recurso, a ponto de invocarem a inconstitucionalidade de normas que o restringem, não se justificou o convite para a recorrente voltar a pronunciar-se sobre tal ponto, até porque seria um acto inútil e colidiria com o princípio da economia processual.


Isto dito, facilmente se constata que os dois acórdãos alegadamente em oposição foram proferidos no «domínio da mesma legislação», uma vez que respeitam a figuras e institutos jurídicos idênticos.


Na verdade, ambos os acórdãos tratam de um PEAP, regulado nos artigos 222º-A a 222º-J do CIRE, aditados a este diploma pelo DL 79/2017, de 30 de Junho, com vigência a partir de 1 de Julho.


Quanto ao segundo requisito exigido no citado artigo 14.º, importa levar em conta alguns dos arestos que se têm pronunciado sobre o modo como a oposição de acórdãos deve ser apreciada, tal como o fez, de resto, o acórdão desta Secção de 28.9.2023.


- Ac. do STJ, de 16.06.2020, no processo n. 4987/19.1T8SNT.L1.S1:


«(…) A oposição de acórdãos pressupõe, assim, que a decisão e fundamentos do acórdão recorrido se encontrem em contradição com outro relativamente às correspondentes identidades.
Em sentido técnico, a oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando idêntica disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo uma identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação.


Se os Acórdãos em confronto assentarem a decisão jurídica numa apreciação factual completamente distinta, não se poderá concluir pela existência de uma contradição jurisprudencial».


- Ac. do STJ, de 09.03.2021, no processo n. 4359/19.8T8VNF.G1.S1: «(…) Duas decisões só são divergentes quanto à mesma questão fundamental de direito se têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito – são análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, e que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso (isto é, que integre a ratio decidendi dos acórdãos em confronto».


- Ac. do STJ, de 26.05.2021, no processo n. 5483/12.3TBFUN-I.L1.S1: «(…) A oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação».
-Ac. do STJ de 08.02.2022, no processo n. 17412/20.6T8LSB-B.L1.S1: «I- A admissibilidade do recurso de revista, restrita e atípica, previsto no art. 14.º, n.º 1, do CIRE implica que o recorrente tem o ónus de demonstrar que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, conduzindo a que uma mesma incidência fáctico-jurídica tenha sido decidida em termos contrários.
II - As decisões dos acórdãos em confronto entendem-se como divergentes se se baseiam em situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo - tendo em vista os específicos interesses das partes em conflito - são análogas ou equiparáveis, pressupondo a oposição jurisprudencial (frontal e expressa, por regra) uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, sendo que, nesse contexto, a questão fundamental de direito (ou questões fundamentais) em que assenta(m) a alegada divergência sobre a aplicação de determinada solução legal assume(m) um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso (…)».
Dito de outro modo, e em resumo, «a oposição de acórdãos relativamente à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação» (o bold é nosso).


Vejamos então, partindo deste enquadramento, os factos relevantes alegados em cada um dos processos, juntamente com o teor dos documentos juntos aos requerimentos iniciais, quanto à situação económica das requerentes e como a eles foi aplicado o direito.


No caso do processo tramitado em Coimbra, a alegação da requerente traduziu-se nesta factualidade:


- no ano 2000 o falecido decidiu criar uma empresa de construção civil que veio a ser declarada insolvente em 27 de Abril de 2012;


- o falecido e alguns dos seus herdeiros haviam avalizado as dividas de tal empresa;


- a requerente está a ser alvo de accionamento do Banco X... (única dívida à Banca), que contra si instaurou no corrente mês uma acção de insolvência;


- a requerente tem os seguintes credores:


i) autoridade tributária, vencido em 2019, no montante de 15.000,00 €;


ii) X... , vencido em 2018, de cerca de 150.000,00 €;


iii) F..., vencido em 2012, no montante de 30.000,00 €.


- o falecido era casado no regime da comunhão de adquiridos;


- do património comum do dissolvido casal, fazem parte 7 imóveis, no valor global de 922.281,36€;


- um dos imóveis encontra-se arrendado pela renda anual de 12.000,00 €.


No caso sujeito, a requerente alegou (também quanto à sua situação económica actual):


- A requerente atualmente encontra-se reformada, sendo o seu agregado familiar constituído por si e pelo seu marido.


- O seu cônjuge exerceu atividade empresarial por conta própria, no ramo da carpintaria e,


- Em virtude da crise económica que atravessa quer a economia internacional, quer nacional, a requerente viu os rendimentos do agregado familiar sofrerem um duro golpe e consequentemente não conseguiram cumprir atempadamente as suas obrigações.


- Contraíram algumas dívidas para fazer face aos seus compromissos.


- Não obstante as dificuldades económicas que a mesma atravessa, o certo é que com o património que a mesma detém e a rentabilidade que poderá auferir do mesmo, conseguirá ultrapassar as graves dificuldades que atravessa atualmente.


- Apresenta dificuldades sérias de liquidez e não consegue obter crédito junto da banca.


- O banco credor da requerente, intentou processo de insolvência da qual a mesma se opôs.


- O recurso ao mútuo junto de familiares não obteve o efeito pretendido pela requerente, a sua solvabilidade.


A requerente juntou Relação de credores, dela constando:


1- Autoridade Tributária e Aduaneira, (…), com um crédito de 668,86 euros, vencido à data de 04 de Outubro de 2023


2- CC, (…), com um crédito no montante de 57.500,00 euros, vencido à data de 4 de Maio de 2023;


3- Banco Comercial Português, S.A., (…), com um crédito no valor de 76.340,23 euros, vencido à data de 04 de Outubro de 2023”);


E a seguinte Relação de Património:


1- Prédio urbano inscrito na matriz predial sob o art. 457º extinto 438º da freguesia de ..., com o valor de avaliação de 153.000,00 euros;


2- Prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o art. 996º, fração A, r/c destinado a garagem e arrumos, da freguesia de ..., com o valor de avaliação de 74.000,00 euros;


3- Prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o art. 996º, fração B, r/c destinado a garagem, da freguesia de ..., com o valor da avaliação de 58.500,00 euros;


4- Prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o art. 996º, fração C, andar destinado a habitação tipo T3 da freguesia de ..., com o valor de avaliação de 107.000,00 euros;


5- Prédio urbano descrito na matriz predial urbana sob o art. 996º, fração D destinado a habitação tipo T3 da freguesia de ..., com o valor de avaliação de 107.000,00 euros”).


O acórdão da Relação de Coimbra argumentou que «apreciado o património da herança de um ponto de vista mais realista do que o da Requerente – das certidões matriciais que acompanham o requerimento inicial resulta um valor patrimonial dos imóveis no montante global de 580.980,62€; tratando-se de bens comuns do dissolvido casal, a herança será constituída unicamente pela meação no património comum (correspondente a metade daquele valor) –, ainda assim o valor do ativo, no montante de 290.980,62€ (acrescido de um rendimento anual de 12.000,00€, resultando do arrendamento de um dos imóveis) permaneceria superior ao valor do passivo alegadamente existente no montante global de 195.000,00€.


Constituindo a herança um património autónomo destinado a extinguir-se com a partilha, mais sentido faz fazer coincidir a sua situação de insolvência com a mera superioridade do passivo sobre o ativo.


Concluindo, a factualidade alegada pela Requerente (e neste momento só a esta nos podemos ater, não se exigindo a alegação da recuperabilidade do devedor nem comprovação da sua situação de pré-insolvência, para além da junção do atestado referido no nº 2 do art. 222º-A e dos doc. previstos no nº 3 do art. 222º-C) não nos permite, por si só, concluir que a herança se encontre numa situação de insolvência atual.


Não se confirmando o fundamento de rejeição do requerimento inicial, a Apelação é de proceder».


Por sua vez, o acórdão recorrido discorreu: «Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, compulsada a petição inicial, a situação que nela vem descrita, tal como foi ponderado pela 1ª Instância, não é de “situação económica difícil”, nem de “insolvência iminente”, mas antes uma situação de insolvência atual da apelante.


Com efeito, na petição inicial é a própria apelante que alega que, “em virtude da crise económica que atravessa quer a economia internacional, quer a nacional, a requerente viu os rendimentos do agregado familiar sofrerem um duro golpe e, consequentemente, não conseguiram (ela e o marido) cumprir atempadamente as suas obrigações”, confessando, pois, que está sem liquidez que lhe permita cumprir com as suas obrigações já vencidas.


Acresce que a apelante alega que, apesar dela e o marido terem contraído “algumas dívidas para fazer face aos seus compromissos”, “o recurso ao mútuo junto de familiares não obteve o efeito pretendido pela requerente, a sua solvabilidade”, confessando, por isso, que não dispõe de solvabilidade, ou seja, de liquidez que lhe permita não só liquidar as obrigações que já se venceram, como aquelas que se venham a vencer proximamente.


Reiterando nessa confissão, a apelante alega que “não consegue obter crédito junto da banca” e que o banco credor daquela, inclusivamente, já “intentou processo de insolvência da qual a mesma se opôs”.


Ou seja, não só a apelante confessa não ter conseguido cumprir com as suas obrigações vencidas, por falta de liquidez, como confessa já não conseguir obter crédito junto da banca ou de familiares, não conseguindo, pois, “cumprir pontualmente as suas obrigações, quer por falta de liquidez, quer por não conseguir obter crédito”, quer as que já se venceram, em relação às quais está em incumprimento (mora), como as que se venham ainda a vencer.


Ademais, no anexo I – Relação de credores -, que a apelante juntou em anexo à petição inicial, verifica-se que esta confessa dever: à Autoridade Tributária o montante de 668,68 euros, que se venceu em 04/10/2023; a CC o montante de 57.500,00 euros, que se venceu em 04/05/2023; e ao Banco Comercial Português, S.A. o montante de 76.340,23 euros, que se venceu em 04/10/2023. A magnitude e o longo período de tempo em que já perdura o incumprimento só por si são evidenciadoras de um estado de impotência daquela de poder cumprir com a generalidade dos seus compromissos vencidos, ou seja, os que já se venceram e os que se vierem a vencer futuramente, isto é, que se encontra num estado de insolvência atual, tal como definido no art. 3º, n.º 1 do CIRE.


Insiste a apelante que apesar da confessada situação de falta de liquidez em que se encontra (impeditiva de poder liquidar os consideráveis compromissos já vencidos, bem como os que se vierem a vencer futuramente) não se encontra numa situação de insolvência atual, mas tão-só de “situação económica difícil”, porquanto, liquidado/vendido “o património que detém” obterá meios financeiros suficientes que permitirão “ultrapassar as graves dificuldades que atravessa atualmente”. Mas sem razão, confundindo indiscutivelmente a apelante ativo líquido e disponível para satisfazer o passivo exigível (ou seja, já vencido) - que é o que releva para a caraterização da situação de insolvência atual - com património imobiliário ou mobiliário, que poderá ser superior ao seu passivo mas que, porque não equivale a liquidez (posto que é necessário que seja vendido para que se obtenha liquidez para satisfazer a generalidade das obrigações já vencidas ), naturalmente não impede que se encontre em situação de insolvência atual.


(…)


Ora, conforme antedito, não só é a própria apelante que confessa não dispor de liquidez que lhe permita cumprir atempadamente com as suas obrigações já vencidas, nem ter acesso ao crédito, de modo que, “por graves dificuldades financeiras, não consegue cumprir pontualmente as suas obrigações, quer por falta de liquidez, quer por não conseguir crédito”, como o montante considerável das obrigações já vencidas que se encontram refletivas no anexo I junto com a petição inicial, e o período significativo em que perdura o incumprimento dessas obrigações, é revelador do estado de penúria generalizada em que se encontra: por falta de liquidez, encontra-se impossibilitada de cumprir com a generalidade das suas obrigações já vencidas, bem como com os compromissos financeiros que assumiu e se venham a vencer futuramente à medida que estes se forem vencendo, o que é típico da situação de insolvência atual em que se encontra.


Ora, o «PEAP não é meio idóneo para ultrapassar uma situação económica em que o devedor já atingiu um estádio de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas, pelo que, não é possível ficcionar uma solvabilidade do requerente em face dos rendimentos e património que lhe são atribuídos».


Decorre do excurso antecedente que, ao rejeitar liminarmente a petição inicial, por manifesta inviabilidade da pretensão formulada pela apelante, dado encontrar-se já num estado de insolvência atual, a 1ª Instância não incorreu em nenhum dos erros de direito que são assacados pela apelante à decisão recorrida, impondo-se julgar improcedente a presente apelação e, em consequência, confirmar essa decisão».


Confrontando ambos os acórdãos, o recorrido e o fundamento, estava em causa saber se para efeitos de despacho de indeferimento liminar, a situação alegada nos requerimentos inicias, permitiam configurar não uma situação económica difícil ou de insolvência meramente iminente, tal como exigido pelo artigo 222.º-A, 1 do CIRE, mas de insolvência actual.


No acórdão fundamento deu-se uma resposta negativa a este quesito, na base da consideração de que:


i) Constituindo a herança um património autónomo destinado a extinguir-se com a partilha, faz sentido fazer coincidir a sua situação de insolvência com a mera superioridade do passivo sobre o ativo.


ii) O valor patrimonial do activo da herança, acrescido do rendimento anual do arrendamento de um dos imóveis, é superior ao valor do passivo alegado.


Concluiu-se que, sendo assim as coisas, não é possível deduzir-se que a herança se encontre numa situação de insolvência atual.


No caso do acórdão recorrido, deu-se ao invés, uma resposta afirmativa, na base dos seguintes considerandos:


i) A requerente confessa que está sem liquidez que lhe permita cumprir não só as suas obrigações já vencidas, como aquelas que se venham a vencer proximamente.


ii) A requerente confessa já não conseguir obter crédito junto da banca ou de familiares, não conseguindo.


iii) O banco credor já instaurou contra ela uma acção de insolvência.


iv) O montante considerável das obrigações já vencidas que se encontram refletivas no anexo I junto com a petição inicial, e o período significativo em que perdura o incumprimento dessas obrigações, é revelador do estado de penúria generalizada em que se encontra: por falta de liquidez.


v) O património imobiliário ou mobiliário da requerente, mesmo que superior ao seu passivo, não equivale a liquidez, não obstando à situação de insolvência atual.


Confrontando os fundamentos de ambos os acórdãos, verifica-se facilmente que inexiste identidade da questão que neles foi objecto de apreciação, só circunscrita a um ponto, a saber a relevância a dar à superioridade do activo patrimonial sobre o passivo.


A subsunção jurídica efectuada por cada uma dessas decisões não decorre verdadeiramente mesmo núcleo central factual.


Conclui-se, pois, pela inadmissibilidade do recurso.


***


2. Das invocadas inconstitucionalidades


A conclusão que acabamos de retirar no número anterior, pressupõe, bem entendido, a existência de filtros à interposição de recursos, tal como aliás os existentes nos artigos 629º n.º 1 e 671º n.º 3 do CPC.


Ao contrário do que é sustentado pela recorrente tal não enferma de qualquer violação das regras e princípios constitucionais, e designadamente das proposições dos artigos 18º, 2 e 20.º, 1 da CRP.


O direito de acesso aos tribunais significa antes de mais garantia da via judiciária ou, dito de outro modo, direito à protecção jurídica através dos tribunais, mediante um processo equitativo (J.J.Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 1998:459 ss).


A plenitude do acesso aos tribunais postula um direito de recurso.


No entanto, é jurisprudência firme do Tribunal Constitucional que o direito de acesso aos tribunais, não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos (Pareceres da Comissão Constitucional nºs. 8/78 (5º vol.) e 9/82 (19º vol.) e o Acórdãos TC 72/99 e 431/02).


Na verdade, na interpretação do disposto no artigo 20º, 1 CRP, o Tribunal Constitucional vem reiteradamente entendendo que a Constituição não consagra um direito geral de recurso das decisões judiciais, salvo ex artigo 32.º,1, daquelas de natureza criminal condenatória, respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição de liberdade ou a quaisquer outros direitos fundamentais (Acórdãos TC n.ªs 265/94 e 390/04.), mas não já relativamente a determinadas normas processuais que denegam a possibilidade de o arguido recorrer de determinados despachos ou decisões proferidas na pendência do processo (Acórdãos TC n.ºs 259/88, n.º 118/90, n.º 353/91, 673/95, 149/99. 30/01).


Tem-se também entendido que o estabelecimento de alçadas e a existência de outros filtros limitadores da recorribilidade das decisões judiciais, não ofendem o artigo 18.º da CRP nem o princípio constitucional de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no citado artigo 20º.


Fora do domínio penal, o princípio da efectividade do direito ao recurso, a implicar duplo grau de recurso, não constitui garantia constitucional, tendo esta apenas «o alcance de uma proibição ao legislador de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso ou de a inviabilizar na prática» (Acórdão TC nº 310/94) ou de vedar às partes uma completa percepção do conteúdo das sentenças judiciais e a possibilidade de reacção contra determinados vícios da decisão (Acórdão TC 485/00).


Como se lê no Acórdão do TC n.º 77/01 «havendo de reconhecer-se ao legislador uma ampla margem de liberdade no exercício da sua actividade de emissão normativa, também haverá de aceitar que possa o mesmo emitir normação diversa reguladora quanto ao modo ou possibilidade de impugnação de decisões judiciais consoante, nomeadamente, o tipo e objectivo de acções, também elas diversas».


Sendo assim as coisas, nada na constituição torna obrigatório a existência de um recurso de revista (ou de apelação) nem nada também impede que a estes sejam levantados filtros que funcionem como mecanismos de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas (ou da esmagadora maioria) das acções aos diversos «patamares» de recurso.


***


Pelo exposto, acordamos em:


i) Não admitir o recurso de revista interposto;


ii) Não julgar inconstitucional as normas dos artigos 629.º 1 e 671º n.º 3 do CPC.


Custas pela recorrente.


***


11.04.2024


Luís Correia de Mendonça (Relator)


Luís Espírito Santo


Rui Gonçalves