RECURSO DE REVISTA
EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
CADUCIDADE
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
Sumário


I – A decisão sobre a procedência ou improcedência de uma excepção peremptória constitui conhecimento do mérito da causa para efeitos da previsão do nº 1 do artigo 671º do Código de Processo Civil (independentemente do prosseguimento da lide), habilitando por isso a interposição do recurso de revista.
II – Havendo a A., no âmbito do contrato de compra e venda firmado com a Ré, escolhido uma pedra em granito com a tonalidade amarela, tendo-lhe sido entregue pela Ré vendedora uma com a tonalidade cinzenta, tal significa que esta – segundo o que consta da alegação constante da petição inicial – cumpriu defeituosamente a prestação que assumiu perante a contraparte, face à diversidade de características e qualidades externas entre o objecto encomendado e o fornecido.
III - Não se trata in casu da venda de coisa defeituosa, na medida em que a coisa objecto do negócio não apresentava vício que a desvalorizasse ou que impedisse a realização do fim a que era destinada, nem lhe faltando as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização da sua finalidade própria, nos termos e para os efeitos do artigo 913º do Código Civil, sendo certo que a característica ou qualidade da coisa vendida integrava-se no conteúdo negocial vinculante para o vendedor, ao qual competia, segundo o acordado com o comprador, entregar uma pedra em granito de tonalidade amarela e não de outra tonalidade diversa, não querida nem aceite pelo adquirente, não sendo aplicável portanto à situação sub judice o disposto no artigo 917º do Código Civil e improcedendo por conseguinte a excepção de caducidade que havia sido suscitada pela Ré.

Texto Integral



Revista nº 200/22.2T8MCN.P1. S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção - Cível):

I - Relatório

Instaurou Elisam, SA, a presente acção declarativa comum contra Construções P..., Lda.

Essencialmente alegou:

No âmbito de um contrato realizado entre si e uma empresa luxemburguesa, solicitou à ré, em 7 de maio de 2021, pedras de granito denominado de “...”, regularizando a encomenda com fotos anexas das amostras que a ré entregou e validou.

No acto da entrega dos bens verificou-se que a cor solicitada nas amostras e no acto de aprovação presencial não eram correspondentes com o material rececionado.

A autora contactou a ré no intuito de averiguar o lapso ocorrido, ao qual esta última respondeu no sentido de não reconhecer qualquer desconformidade e acrescentou a impossibilidade de produzir a pedra com a preferência da cor exigida, por a mesma não existir.

Não compreendendo a autora as justificações da ré, optou pelo reembolso da mercadoria desconforme já paga, no montante de € 25.096,80, solicitando ainda o custo de transporte no montante de € 9.069,30, bem como o montante a apurar resultante da evacuação de toda a mercadoria que ocupa o local desde o dia 23 de agosto de 2021 e acrescido ainda do montante das possíveis penalidades por atraso que poderiam ser reivindicas pela cocontratante, mas a ré, até ao momento, não procedeu ao levantamento do material não conforme, nem tão pouco o bem como ao reembolso dos montantes mencionados.

Concluiu pedindo que:

a) Seja a Ré condenada ao pagamento de uma indemnização (cuja determinação do seu valor remete para incidente de liquidação em sede de sentença; todos os danos acrescidos de juros relativamente aos danos patrimoniais e não patrimoniais causados na esfera jurídica da Autora decorrente do cumprimento defeituoso do contrato celebrado com a Ré);

b) Seja a Ré condenada à obrigação de proceder ao levantamento das mercadorias objeto do contrato que fora defeituosamente cumprido, correndo todo e qualquer encargo desse transporte a custas da Ré.

A Ré contestou, invocando a caducidade do direito da autora, nos termos do artigo 917.º e 576.º, n.º 3 do CPC, na medida em que os defeitos nas pedras de granito foram comunicados pela autora a 29 de junho de 2021, tendo a acção sido intentada a 16 de fevereiro de 2022 e, assim não se entendendo, a improcedência da sua pretensão.

A autora respondeu à exceção invocada, sustentando a sua improcedência, porquanto, sustenta, está em causa o incumprimento contratual da demandada, por venda de bens diferentes dos encomendados e não a venda de coisa defeituosa, não tendo aplicação o prazo de caducidade previsto no artigo 917 do Código Civil.

Foi proferido saneador-sentença que julgou procedente a excepção peremptória de caducidade invocada, absolvendo a ré do pedido, ao abrigo do disposto nos artigos 917.º do CC e 576.º n.º 3 do CPC.

Foi interposto pela A. recurso de apelação.

Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de Dezembro de 2023 foi julgada a apelação procedente, revogando-se em conformidade a decisão apelada e determinando-se o prosseguimento dos autos, “salvo se outra razão, que não a caducidade do direito de acção da recorrente, o impedir”.

Veio a Ré interpor recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:

A O Acórdão recorrido qualificou o comportamento da ora Recorrente, como tendo incorrido em cumprimento defeituoso da obrigação, com fundamento em que a Recorrente entregou coisa diversa da encomendada.

B - Contudo, o desacerto do Acórdão em causa parte da premissa errada de que as peças de granito entregues pela Recorrente são de tipo diferente daquele que foi encomendado pela Recorrida, no entanto, a verdade é que as peças fornecidas foram extraídas dos blocos de granito por ela escolhidos e aprovados, sendo a variação da sua tonalidade um efeito da transformação do bloco.

C – Ou seja, à luz dos fundamentos alegados pela Autora na configuração da sua causa de pedir na ação é possível concluir que não existe nenhuma divergência entre o tipo de granito escolhido por si e as peças de granito que lhe foram fornecidas pela Ré, e que a única diferença verificada tem que ver apenas com o resultado da tonalidade do granito que resultou da sua transformação e a qualidade no acabamento de algumas das pedras fornecidas, vícios que denunciou em email de 29 de Junho de 2021.

D - Ora, dispõe o n.º 1 do artigo 913º do Cód. C. que “1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.

E – Assim, dado que a Autora baseia a sua causa de pedir no facto de lhe terem sido entregues algumas peças de granito com desconformidades quanto à sua tonalidade e acabamentos. E não que tenha recebido um granito de tipo diferente, pelo que não estamos perante uma situação de cumprimento defeituoso da prestação, mas sim de um defeito na prestação.

F – Ou seja, se a coisa entregue não apresentar as características – qualidade, quantidade, categoria ou tipo – supostas ou previstas pelas partes, dir-se-á em desconformidade com o contrato e o comprador não obterá a satisfação esperada, mas se a coisa entregue já for diversa da convencionada melhor se falará de aliud pro alio a cair no regime do incumprimento e não do cumprimento defeituoso.

G - Há venda de coisa defeituosa se o vendedor entrega ao comprador a coisa devida, mas a coisa sofre dos vícios catalogados no artigo 913.º do Código Civil, porém, haverá mais do que um cumprimento defeituoso da obrigação, há falta de cumprimento da obrigação quando o devedor não realiza de todo em todo a prestação devida, e esta já não é possível, ou quando o devedor realiza uma prestação objetivamente diferente da devida. Sendo que, ni caso dos autos, não ocorrer esta segunda situação.

H – De acordo com a alegação da Autora na petição inicial e da documentação existente nos autos, a Autora, no dia 29 de Junho de 2021, denunciou os mencionados defeitos – e não outros - por email à Ré.

I –Pelo que, no caso vertente, dúvidasnão restamde que, segundo a causa de pedir formulada pela Autora/Recorrida, parte dos bens em causa não possuíam as qualidades relevantes para efeito da plena satisfação dos interesses do comprador, tratando-se de um vício intrínseco ou orgânico da coisa vendida que a desvaloriza e impede de realizar cabalmente o fim a que se destina, pelo que se enquadra no regime da venda de coisa defeituosa.

J – Ao decidir diferentemente, o Acórdão recorrido errou na aplicação do direito, por errado julgamento na interpretação e aplicação do disposto pelos artigos 913º e 917º do Cód. C., pois que o direito que pela ação a Autora pretendia fazer valer já se encontrava caduco na data da propositura da ação.

Sem prescindir,

L - Se dirá que o prazo de caducidade se aplica, não só à compra e venda defeituosa, mas também a todas as ações conferidas ao comprador, incluindo, o cumprimento defeituoso da obrigação emergente de um contrato de compra e venda,ouseja,oregimedocumprimentodefeituoso, estabelecido nos artigos913º e ss do C.C., vale tanto no caso de ser prestada a coisa devida, mas esta se apresentar com defeito, como também para as hipóteses em que foi prestada coisa diversa da devida (aliud).

M - Não se justifica um tratamento mais severo para as situações de aliud, conferindo ao credor um prazo extenso de vinte anos para exercer o seu direito e invocar a falta de cumprimento, estipulando um prazo mais apertado, de apenas seis meses, para o credor exercer o seu direito nos casos de vício ou a falta de qualidade da coisa.

N - De facto, não se compreenderia que o legislador só tivesse estabelecido um prazo para a anulação do contrato, deixando os outros pedidos sujeitos a prescrição geral de vinte anos (artigo 309.º); por outro lado, tendo a lei estatuído que, em caso de garantia de bom funcionamento, todas as ações derivadas do cumprimento defeituoso caducam em seis meses (artigo 921.º, n.º4), não se entenderia muito bem porque é que, na falta de tal garantia, parte dessas ações prescreveria no prazo de vinte anos; além disso, contando-se o prazo de seis meses a partir da denúncia, e sendo esta necessária em relação a todos os defeitos (artigo 916.º), não parece sustentável que se distingam os prazos para o pedido judicial; por último, se o artigo 917.º não fosse aplicável, por interpretação extensiva, a todos os pedidos derivados do defeito da prestação, estava criado um caminho para iludir os prazos curtos.

O - Donde resulta que, também por esta razão, o Acórdão recorrido efetuou uma errada qualificação do direito, por errada interpretação e aplicação da lei, nomeadamente o disposto pelo art.º 917º do CC., impondo-se a sua modificação no sentido de julgar procedente por provada, a exceção de caducidade, com todas as demais e legais consequências, nomeadamente a absolvição da Ré do pedido, tal como decidido na 1ª instância.

Contra-alegou a A., apresentando as seguintes conclusões:

A) Notificada da prolação do Acórdão do Venerando Tribunal da Relação, veio a Recorrente apresentar Recurso de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, porém o referido acórdão não é passível de recurso de revista nos termos do artigo 671.º do CPC.

B) Nos termos do artigo 671.º do CPC, cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.

C) Analisando o dispositivo do acórdão recorrido verificamos que a Veneranda Relação do Porto decidiu o seguinte: “IV - Dispositivo Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação e, em conformidade, revogando a decisão apelada, determina-seo prosseguimento dos autos, salvo seoutrarazão, que não a caducidade do direito de ação da recorrente, o impedir.”

D) Ou seja, a decisão do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto não conheceu do mérito da causa; não colocou termo ao processo; não absolveu o réu da instância; não absolveu o réu do pedido – apenas veio, através de decisão não merecedoradequalquerreparo ouacerto, corrigir aaplicação do Direito, mais concretamente decidindo que não se verifica no caso concreto dos presentes autos qualquer caducidade do direito de ação da aqui Recorrida.

E) Ora, se o acórdão recorrido não conheceu do mérito da causa; não colocou termo ao processo; não absolveu o réu da instância; não absolveu o réu do pedido, não é uma decisão passível de recurso de revista nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 671.º do CPC – ou seja, não cabe revista deste acórdão.

F) Neste sentido, e num caso TOTALMENTE ANÁLOGO ao dos presentes autos, decidiu já este Supremo Tribunal de Justiça, em Ac. proferido a 29/09/2020, relatado pela Veneranda Conselheira Maria Clara Sottomayor, no âmbito do processo 17289/18.1T8PRT.P1.S1, fez relevar concretamente que na delimitação da revista deve sempre ser considerado o efeito processual que emana do acórdão recorrido, independentemente daquele que tenderia a produzir a decisão de 1 .ª instância, considerando que estão excluídos da revista os acórdãos que determinam o prosseguimento dos autos na 1.ª instância – com a respetiva fundamentação citada supra.

G) No mesmo sentido decidiu novamente este Supremo Tribunal de Justiça, em Ac. proferido a 13/10/2020, relatado pelo Venerando Conselheiro Ricardo Costa, no âmbito do processo 27449/17.7T8PRT.P1.S1, Assim, o conteúdo da decisão da Relação define o prosseguimento dos autos em 1.ª instância, pelo que, em si mesma, não encerra uma completude decisória que permita a revista, tal como exigido pelo filtro delimitado pelo art. 671º, 1, do CPC”.

H) Ainda no mesmo sentido, entre outros, o Ac. deste Supremo Tribunal de Justiça, proc. 26405/09.3YYLSB.L1.L1.S1, de 15/12/2020, relatado pela Veneranda Conselheira Graça Amaral.

I) Assim, é evidente que atento ao teor do Acórdão da Relação recorrido, ao disposto no artigo 671.º do CPC e à posição unânime da jurisprudência é evidente que não é admissível recurso de revista do mesmo, atento ao efeito processual resultante do seu dispositivo – o prosseguimento dos autos, pelo que e sem mais delongas, deverá ser decidido singularmente (art. 652.º, n.º 1, al. h) e 655.º do CPC) a não admissão do recurso de revista apresentado ao abrigo do disposto no artigo 552.º, n.º1 al. h), ex vi, 671.º, n.º 1 do CPC.

DA INADMISSIBILIDADE DO RECURSO APRESENTADO.

J) Pela alegação da Recorrente, nota-se que é sua pretensão que este Supremo Tribunal de Justiça venha “alterar” ou “re-interpretar” a matéria de facto que deu base à decisão recorrida.

K) Em boa análise até se constata que não discorda com a aplicação do direito pela Relação do Porto, porém vem trazer a este Supremo Tribunal de Justiça “factos” – que deverão ser aferidos e comprovados em sede de audiência de discussão e julgamento – e não em sede de recurso, muito menos numa Revista perante o Supremo Tribunal de Justiça, que apenas conhece de matéria de Direito.

L) Aliás, vem até trazer “novos factos” para tentar reverter a respetiva decisão que não ficaram assentes na decisão de 1.ª Instância já revogada, nem sequer na Relação – postura processual esta que lhe está absoluta e totalmente vedada – note-se que a sindicância para este Supremo Tribunal de Justiça, opera apenas quanto a questões de direito e não matéria de facto, motivo pelo qual também lhe deve ser vedada essa possibilidade, por inadmissibilidade legal – artigo 46.º da LOSJ.

M) Desta forma e atento tudo o exposto, deve o recurso de revista interposto pela Recorrente ser julgado improcedente, primeiramente por inadmissibilidade de recurso de revista por falta de verificação dos pressupostos previstos no artigo 671.º, que obsta a que a decisão do Tribunal da Relação seja recorrível mediante recurso de revista e, subsidiariamente, por visar a apreciação de questões de facto (interpretação de facto) e não questões de direito.

Sem prescindir, e por mera cautela de patrocínio, analisemos as alegações da Recorrente,

N) Na esteira de uma postura processual, que haverá de considerar-se menos como coerente do que como obstinada, o recurso interposto pela Recorrente não detém qualquer fundamento que evidencie razão para a interposição do recurso de revista da decisão proferida em segunda instância, pela Veneranda Relação do Porto.

O) Os autos evidenciam à saciedade a falta de razão da Recorrente, quando se denota que os Venerandos Desembargadores julgaram com pleno acerto e perfeita observância da lei aplicável ao presente caso, forma que não pode tal decisão coletiva merecer qualquer reparo e os argumentos do recorrente, que se tratam de uma mera reprodução da sua contestação e o recurso a uma já revogada Sentença de 1.ª Instância que se vislumbrou incorreta, já foram atendidos e tidos em consideração na decisão recorrida não podem, em consciência, conhecer outro desfecho, que não o da sua improcedência.

P) É perentório que não merece o Acórdão Recorrido, que revogou a sentença da primeira instância, qualquer reparo ou censura.

Q) A Recorrente não traz aos presentes autos nenhum elemento novo ou diverso daqueles que invocou em sede Contestação e Contra alegações no recurso de apelação, apenas os renovando.

R) Pelo que, é de fácil constatação, que o Tribunal da Relação do Porto, já se encontrava munido e ciente de todo este argumentário quando, e muito bem, decidiu conceder total procedência ao recurso de apelação, revogado a sentença recorrida e determinando o prosseguimento dos autos.

S) E, salvo o devido respeito pela posição da Recorrente, o Tribunal da Relação do Porto interpretou com total acerto a matéria a apreciar, bem como o direito aplicável à situação dos autos.

T) Veja-se que, a Recorrente sustenta a sua discordância com o acórdão recorrido referindo que as peças fornecidas correspondem a peças extraídas do bloco escolhido alegadamente pela Recorrida, decorrendo uma alegada “transformação natural” das características do mesmo, porém encontra-se totalmente alheado de razão o argumento: primeiramente porque tal já havia sido alegado tendo sido perentoriamente analisado no acórdão e, segundamente, porque mesmo se tal fosse como referido pela Recorrente (o que sempre carecerá de produção de prova em julgamento) não afastava de forma alguma o regime do cumprimento defeituoso conforme determinou o acórdão recorrido.

U) No caso dos autos, a Recorrida, no âmbito da sua atividade comercial, solicitou à Recorrente, em 7 de maio de 2021, pedras de granito denominado de “...” para o estaleiro de construção T..., mediante a realização de um contrato de compra e venda.

V) Porém, tais pedras de granito que foram entregues no âmbito do contrato referido, ao invés de apresentarem a cor amarelo mónica, apresentavam-se totalmente na cor cinzenta – o que motivou a que a ora Recorrida intentasse a presente ação judicial, no seguimento da recusa de grande parte das pedras entregues – ou seja, verificou-se cumprimento defeituoso da obrigação a que a Recorrente, porque entregou um bem diverso daquele que foi contratado.

W)Tratando-se de uma situação de cumprimento defeituoso da obrigação, não tem qualquer aplicabilidade o disposto no artigo 917.º do CC, outrossim a responsabilidade civil obrigacional está sujeita ao prazo ordinário de prescrição, de 20 anos nos termos do artigo 309.º do CC – visto que nestas situações de cumprimento defeituoso da obrigação, é aplicável o regime geral dafaltadecumprimento daobrigação nostermos dos artigos 798.º eseguintes do Código Civil.

X) Neste sentido, e no sentido em que decidiu o Tribunal da Relação do Porto, discorre toda a Doutrina e Jurisprudência que supra se invoca e compila de forma a por termo, derradeiramente, à tentativa infundada da Recorrente em evitar que a causa siga para julgamento.

Y) É evidente que sempre que o vendedor (recorrente) está adstrito a determinada prestação (entrega de granitos amarelos) e entrega coisa diversa (no caso, entrega granitos cinzentos) – INDEPENDENTEMNETE DA JUSTIFICAÇÃO QUE O MESMO ARROGUE PARA TAL FACTO – é evidente que estamos perante um regime de cumprimento defeituoso da obrigação e não venda de coisa defeituosa.

Z) Pois note-se, os granitos em questão não tinham defeito – simplesmente não correspondiam à prestação a que a Recorrente estava obrigada – trata-se de um aliud, ou seja, uma prestação diversa daquela que foi contratada e era devida.

AA) Os argumentos que a Recorrente vem agora alegar, e alegou também já em momentos anteriores, poderão vir ainda a ser analisados não para efeitos de decisão de qual o Direito aplicável ao caso concreto, outrossim para, jusante (em sentença após julgamento), se verificar se estão reunidos ou não os pressupostos da responsabilidade civil obrigacional dos artigos 798.º e seguintes do Código Civil.

BB) Está por demais evidenciada a falta de razão da Recorrente: no caso dos autos, aaqui Recorrida comprou epagou granito amarelo mónica, sendo certo que a Recorrente lhe entregou granito totalmente cinzento, ou seja, foi entregue um granito diverso daquele que foi objeto do contrato o que permite evidenciar que a situação dos autos se trata de um cumprimento defeituoso da obrigação – no caso, com entrega diversa daquela que foi objeto de encomenda.

CC) É óbvio que se verifica um incumprimento defeituoso da obrigação, no âmbito da relação obrigacional que unia/une as partes em decorrência do contrato celebrado e não de uma venda defeituosa, visto também que não se afloraaqui adesconformidadedas características dos bens objetos do contrato em comparação com aquelas que foram asseguradas à Recorrida, outrossim, a entrega de bens diferentes dos que foram encomendados.

DD) Assim, atento tudo isto, é evidente por tudo quanto dito, que a decisão do Tribunal da Relação não é merecedora de qualquer reparo, tendo julgado com pleno acerto o recurso de apelação apresentado.

EE) Não éaplicável ao caso dos presentes autos o curto prazo previsto no artigo 917.º do Código Civil, mas sim o prazo de prescrição ordinário de 20 anos, previsto no artigo 309.º do mesmo diploma

FF) Desta forma e atento tudo o exposto, deve o recurso de revista interposto pela Recorrente ser julgado improcedente, primeiramente por irrecorribilidade da decisão da Veneranda Relação do Porto, segundamente por inadmissibilidade de recurso de revista visto que pretende uma diferente apreciação da matéria dos autos e, subsidiariamente, por falta de fundamento jurídico nos termos supra invocados.

II – FACTOS PROVADOS.

Foi dado como provado:

A Autora é uma sociedade comercial.

A Ré é uma sociedade comercial que se dedica à construção de edifícios e artigos de granito e de rochas.

No âmbito de um contrato realizado entre a autora e uma empresa luxemburguesa “S..., S.A.”, a Autora solicitou à Ré, em 7 de Maio de 2021, pedras de granito para o estaleiro de construção T..., mediante a realização de um contrato de compra e venda.

Os representantes da autora, AA, BB e CC, deslocaram-se em 27 de Maio de 2021 às instalações da Ré, tendo sido recebidos pelo Sr. DD e EE, os quais constataram uma grande quantidade de blocos crus de granito amarelo ariz destinados à produção da encomenda.

A autora aprovou também presencialmente os blocos com a cor pretendida para as restantes transformações.

A autora enviou um email no dia 29 de Junho de 2021 à ré a denunciar os alegados defeitos de que, na sua perspetiva, existiam nas pedras de granito entregues.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.

1 – Admissibilidade do presente recurso de revista (questão suscitada pela A. nas suas contra-alegações). Conhecimento de excepção peremptória no saneador-sentença no sentido da sua improcedência e prosseguimento dos autos para a fase da instrução e julgamento.

2 – Diferença/desconformidade entre tonalidades das pedras em granito acordadas e subsequentemente entregues pela Ré à A. no âmbito do contrato de compra e venda firmado entre as partes. Cumprimento defeituoso e venda de coisa defeituosa. Conhecimento da excepção de caducidade suscitada ao abrigo do disposto no artigo 917º do Código Civil.

Passemos à sua análise:

1 – Admissibilidade do presente recurso de revista (questão suscitada pela A. nas suas contra-alegações). Conhecimento de excepção peremptória no saneador-sentença no sentido da sua improcedência e prosseguimento dos autos para a fase da instrução e julgamento.

Alega a A., ora recorrida, que o presente recurso de revista não é admissível na medida em que não se enquadra na previsão do artigo 671º, nº 1, do Código de Processo Civil (a decisão impugnada não conheceu do mérito da causa, não lhe colocando termos por razões de fundo ou de forma).

Apreciando:

Não assiste razão à A.

A decisão sobre a procedência ou improcedência de uma excepção peremptória constitui conhecimento do mérito da causa para efeitos da previsão do nº 1 do artigo 671º do Código de Processo Civil (independentemente do prosseguimento da lide), habilitando por isso a interposição do recurso de revista contra tal decisão.

Note-se que o regime processual vigente em matéria de recursos anterior à reforma introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, previa especificamente no artigo 691º, nº 2, que “A sentença e o despacho saneador que julguem da procedência ou improcedência de alguma excepção peremptória decidem do mérito da causa”.

(Na versão inicial do Código de Processo Civil de 1939 quando se julgava improcedente uma excepção peremptória, não havendo condenação nem absolvição do réu, não existia conhecimento do mérito, sendo o recurso pertinente o de agravo, situação esta que foi alterada pelo Decreto-lei nº 180/96, de 25 de Setembro, que passou a considerar que “a sentença e o despacho saneador que julguem da procedência ou improcedência de alguma excepção peremptória decidem do mérito da causa”).

Com a dita reforma introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto - que para além do mais introduziu o sistema monista no regime recursório com a eliminação da figura dos agravos -, passou a prever-se como fundamento da interposição de recurso de apelação autónoma, no artigo 644, nº 1, alínea h), o “despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa”.

Ora, na ausência da definição quanto à decisão que conhece do mérito da causa (que nos era dada pelo citado artigo 691º, nº 2), a previsão normativa em referência abrangia a procedência ou improcedência de alguma excepção peremptória, tal como a caducidade, a prescrição, a compensação, a nulidade ou anulabilidade.

(Neste preciso sentido, vide Armindo Ribeiro Mendes in “Recursos em Processo Civil. Reforma de 2007“, Coimbra Editora, 2009, página 126, nota 108).

A Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o actual Código de Processo Civil, aglutinou na alínea b) do nº 1 do artigo 644º a anterior alínea h) do mesmo preceito, introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.

Por sua vez o artigo 671º, nº 1, do Código de Processo Civil, limitou-se a referir que “cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão de 1ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou alguns dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”.

Ora, não se descortina a mais leve intenção legislativa no sentido da modificação do anterior conteúdo do conceito “decisão que conhece do mérito da causa” que contempla a recorribilidade até à última instância de decisão de procedência ou improcedência de excepção peremptória na fase do saneamento dos autos.

Com efeito, trata-se materialmente do conhecimento de uma questão de natureza essencialmente substantiva (e não estritamente processual), o que legitima a sua plena integração no conceito de pronunciamento judicial sobre o mérito da causa, ainda que, por virtude da sua improcedência, o processo tenha de prosseguir para a fase de instrução e julgamento.

Ou seja, existe nestas circunstâncias (decisão de improcedência de uma excepção peremptória) um verdadeiro conhecimento do mérito da causa, não obstante em sentido adverso à solução da absolvição do réu do pedido a que a mesma excepção tenderia.

Este mesmo conceito relativo à decisão que conhece do mérito da causa é assim extensivo, lógica e coerentemente, ao regime de admissibilidade do recurso de revista previsto no artigo 671º, nº 1, do Código de Processo Civil).

(Neste preciso sentido, vide Abrantes Geraldes in “Recursos em Processo Civil”, Almedina 2022, 7ª edição, a páginas 244 e 245 e 400; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa in “Código de Processo Civil Anotado. Volume I. Parte Geral de Processo de Declaração. Artigos 1º a 702º”, Almedina 2020, página 834; na jurisprudência vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Novembro de 2023 (relatora Graça Trigo), proferido no processo nº 696/21.0T8PNF.P1.S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Outubro de 2023 (relator Nuno Ataíde das Neves), proferido no processo nº 9650/21.0T8PRT-B.P1.S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Março de 2023 (relatora Catarina Serra), proferido no processo nº 10480/17.0T8LRS.L1-A.S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Janeiro de 2019 (relator José Rainho), proferido no processo nº 7313/12.7TBMAI-G.P1.S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Março de 2015 (relator Tomé Gomes), proferido no processo nº 1847/08.5TVLSB.L1.S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Novembro de 2022 (relator Ricardo Costa), proferido no processo nº 51/18.9T8BGC-A.G1.S1, todos publicados in www.dgsi.pt).

Acresce que dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça citados pela recorrida em sentido oposto, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Setembro de 2020 (relatora Clara Sottomayor), proferido no processo 17289/18.1T8PRT.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, apreciou um aresto que havia revogado uma decisão de 1ª instância que decretara a absolvição da instância e ordenara o prosseguimento do processo, sem tomar conhecimento de uma excepção peremptória.

Os restantes igualmente não versaram sobre o conhecimento de qualquer excepção peremptória, abordando, ao invés, temáticas completamente diversas, sendo, portanto, totalmente irrelevantes para a análise da concreta questão jurídica em apreço (no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Outubro de 2020 (relator Ricardo Costa), proferido no processo nº 27449/17.7T8PRT.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, estava em causa a decisão do acórdão recorrido que anulara a sentença, ordenando a realização de audiência prévia e tramitação dos autos para a fase de instrução e julgamento; no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Dezembro de 2020 (relatora Graça Amaral), proferido no processo nº 26405/09.3YYLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, o objecto do recurso era uma decisão de natureza interlocutória (e não final) – renovação da instância executiva – sujeita a um regime de recorribilidade para o STJ de natureza especial, competindo-lhe cumprir as exigências definidas no artigo 854º do Código de Processo Civil).

Pelo que entendemos ser a presente revista admissível.

2 – Diferença/desconformidade entre tonalidades das pedras em granito acordadas e subsequentemente entregues pela Ré à A. no âmbito do contrato de compra e venda firmado entre as partes. Cumprimento defeituoso e venda de coisa defeituosa. Conhecimento da excepção de caducidade suscitada ao abrigo do disposto no artigo 917º do Código Civil.

Arguiu a Ré a excepção de caducidade do direito de que a A. se arroga na presente acção com base no decurso do prazo de seis meses previsto no artigo 917º do Código Civil, sem a interposição, durante esse período temporal, da pertinente acção judicial.

Pressupôs assim que nos encontramos – segundo a estrutura da causa de pedir apresentada na petição inicial – perante uma venda de coisa defeituosa.

A sentença de 1ª instância perfilhou esse entendimento e, em consequência, julgou procedente a excepção de caducidade, com a inerente absolvição da Ré do pedido.

Em sentido oposto pronunciou-se o acórdão recorrido, o qual concluiu encontrarmo-nos perante uma situação de incumprimento defeituoso da prestação que impendia sobre a vendedora, mas não face a uma venda defeituosa, não lhe sendo aplicável o regime de caducidade previsto no citado artigo 917º do Código Civil.

Apreciando:

A factualidade que interessa para o conhecimento da excepção peremptória de caducidade em apreço – única questão que constitui o objecto do presente recurso de revista – pode resumir-se nos seguintes termos:

A A. celebrou com a Ré um contrato de compra e venda em virtude do qual lhe encomendou e adquiriu para revenda, mediante a contrapartida monetária acordada, um bloco em granito da cor “...”.

Aquando da entrega do dito bloco de granito verificou-se que o mesmo apresentava a tonalidade cinzenta e não “...”, não satisfazendo assim o interesse contratual da adquirente.

A A. exige agora a devolução do preço pago, pretendendo que a R. seja obrigada a recolher a dita pedra em granito, cuja tonalidade não corresponde àquela que foi concretamente contratualizada.

A invocação da referida desconformidade aconteceu passados mais de seis meses após a entrega da mercadoria.

Vejamos:

A situação sub judice não pode, a nosso ver, ser qualificada juridicamente como uma venda de coisa defeituosa, genericamente prevista nos artigos 913º a 922º do Código Civil.

Com efeito, a coisa que constitui o objecto mediato do negócio e que foi entregue pela Ré vendedora à A. compradora não apresentava qualquer vício que a desvalorizasse ou que impedisse a realização do fim a que era destinada, nem lhe faltavam as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização da sua finalidade própria, nos termos e para os efeitos do artigo 913º do Código Civil.

Trata-se aliás de uma normal pedra em granito apta, à partida, a satisfazer, inteiramente e em abstracto, os fins genéricos a que tipicamente se destinava.

O que sucede é que, segundo o que foi alegado na petição inicial (e que, nesta fase e para estes efeitos, é o que tem de ser tomado em consideração), uma das suas características e qualidades externas – a tonalidade do granito – era desconforme com o que havia sido concretamente contratualizado entre os celebrantes.

A A. escolheu, e indicou à Ré para sua aquisição, uma pedra em granito com a tonalidade amarela e a Ré entregou-lhe uma que ostentava a tonalidade cinzenta.

O que significa que a Ré – seguindo a alegação constante da petição inicial – cumpriu defeituosamente a prestação que assumiu perante a A, contraparte no negócio, entregando-lhe uma coisa que (embora isenta de vícios e inteiramente apta a satisfazer a sua finalidade típica) revelava, não obstante, características externas objectivamente diversas daquelas que haviam sido acordadas entre os celebrantes.

Ou seja, estamos perante um caso de cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda comercial (sobre o conceito, vide, entre outros, Manuel Carneiro da Fraga in “Contrato e Deveres de Protecção”, Almedina 1994, a páginas 31 a 37) - e não face a uma situação de venda de coisa defeituosa.

O que está em discussão é uma característica ou qualidade da coisa vendida que se integrava no conteúdo negocial vinculante para o vendedor, ao qual competia, segundo o acordado com o comprador, entregar-lhe uma pedra em granito de tonalidade amarela e não de outra tonalidade diversa, não querida nem aceite pelo adquirente.

(Sobre esta diferenciação essencial, vide o Parecer de Antunes Varela publicado in Colectânea de Jurisprudência, 1987, tomo IV, a página 30, onde sublinha o autor:

“Há assim venda de coisa defeituosa sempre que no contrato de compra e venda, tendo por objecto a transmissão da propriedade de uma coisa, a coisa sofrer vícios ou carecer das qualidades abrangidas no artigo 913º do Código Civil, quer a coisa corresponda, quer não, à prestação a que o vendedor se encontrava vinculado.

O cumprimento defeituoso verifica-se não apenas em relação à obrigação da entrega da coisa proveniente da compra e venda, mas quanto a toda e qualquer obrigação, proveniente de contrato ou qualquer outra fonte.

E apenas se dá quando a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidades ou requisitos dela, ao objecto da obrigação a que estava adstrito.

Além disso, na base do defeito do cumprimento da obrigação podem estar não apenas a carência de qualidades da coisa, mas a irregularidade de outra natureza, v.g. a entrega aliud pro alio, como no exemplo anteriormente citado da remessa de um vaso de vidro banal em lugar do vaso de cristal escolhido pelo comprador”.

Sobre a temática em apreço vide igualmente António Menezes Cordeio in “Tratado de Direito Civil. XI. Contratos em Especial. Compra e venda. Doação. Sociedade. Locação”, Almedina 2019, a página 259, onde se refere:

“O Código Civil fixa, para a venda de coisas defeituosas, um regime grosso modo restritivo, para o comprador: seja pela limitação, pelo menos aparente, às indemnizações, seja pelos prazos curtos que fixa para o exercício de diversas pretensões reparadoras. Há um desvio que justifica a não recondução do cumprimento com um aliud à “lista” dos “defeitos” elencada no artigo 913º, nº 1. Trata-se de uma postura confirmada na nossa jurisprudência: o vendedor aliena três paletas de “peles mestiço” mas entrega “peles de ovino”: o Supremo decidiu que os artigos 913º e seguintes não tinham aplicação, não havendo qualquer erro; há, sim, um vício na prestação, seguindo-se o regime do não cumprimento”.

Neste mesmo sentido, vide Ana Filipa Morais/Rodrigo Moreira, in “Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Contratos em Especial”, UCP Editora, 2023, a página 181, onde pode ler-se: “(…) o silêncio legislativo quanto aos prazos que o comprador deva observar no exercício dos demais direitos reconhecidos, não tem o alcance de permitir uma tutela ilimitada no tempo. De modo diverso, estando em causa uma perturbação na execução do contrato, que titula um inadmimplemento contratual, o exercício da tutela creditícia tem de ter lugar com respeito pelo prazo prescricional comum (cfr. artigo 309º)”.

Escreve sobre o tema Pedro Romano Martinez, in “Cumprimento Defeituoso. Em especial na Compra e Venda e na Empreitada”, Colecção Teses, Almedina, 1994, a página 246:

“A distinção entre as prestações defeituosa e diversa está, de certa forma, relacionada com a noção objectiva e subjectiva de defeito. Para a concepção objectiva, o defeito é entendido em sentido material, como sinónimo de vício. Daí que a entrega de um automóvel de cor diferente não constitua prestação defeituosa. Em contrapartida, a concepção subjectiva de defeito é bastante mais ampla e nela se englobam casos que seriam considerados aliud numa perspectiva objectiva”.

A este mesmo respeito, pronunciou-se Miguel Teixeira de Sousa in “AB VNO AD OMNES. 75 anos da Coimbra Editora”, Coimbra Editora, 1998, a páginas 569 a 570:

“A regulamentação da venda de coisa defeituosas no direito português acentua a relevância concedida ao comprador (ou eventualmente, pelo comprador e pelo vendedor) à base negocial, em detrimento da importância concedida ao conteúdo específico de qualquer acordo negocial.

Isto implica uma distinção entre o campo de aplicação do regime das coisas defeituosas e do cumprimento defeituoso, o que, segundo o que se julga, nem sempre é difícil: no primeiro caso, o comprador encontra-se em erro sobre as qualidades da coisa que o vendedor está vinculado a prestar por efeito do negócio (por exemplo, o comprador convenciona a aquisição de uma certa coisa, pensando que esta possui certas qualidades, que realmente não possui); no segundo, o comprador tem direito a receber, em cumprimento da estipulação negocial, uma coisa com qualidades diferentes daquelas que possui a coisa efectivamente (mas indevidamente) prestada (por exemplo, o comprador negoceia, com ou sem erro, a aquisição de uma coisa com certas qualidades e o vendedor entrega outra coisa sem essas qualidades). Desta distinção decorre a necessidade de não tratar a venda de coisas defeituosas comum uma situação de cumprimento defeituoso”.

No que respeita à autonomia entre compra e venda de coisa defeituosa e cumprimento vide igualmente Luís Menezes Leitão in “Direito das Obrigações. Volume III. Contratos em especial”, Almedina 2022, 14ª edição, a páginas 120 a 122.

Em termos jurisprudenciais, e sobre a distinção entre venda de coisa defeituosa e cumprimento defeituoso, vide com vincadas similitudes com a situação sub judice:

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Março de 2010 (relator Garcia Calejo), proferido no processo nº 4467/06.5TBVLG.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se salienta que: “Será preciso, porém, distinguir, o cumprimento defeituoso da obrigação (ou falta qualitativa de cumprimento da obrigação) da venda de coisa defeituosa. Naquele, o vendedor não realizou a prestação a que, por força do contrato, estava adstrito. Nesta, a coisa objecto da transacção sofre dos vícios ou carece das qualidades referenciadas no art. 913º, quer a coisa entregue corresponda, ou não, à prestação a que o vendedor se encontrava vinculado. Como refere a este propósito o Prof. Antunes Varela o cumprimento defeituoso “apenas se dá quando a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidades ou requisitos dela, ao objecto da obrigação a que ele estava adstrito”;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Outubro de 2012 (relator Álvaro Rodrigues), proferido no processo nº 3362/05.TBVCT.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se deixou consignado: não estamos, summo rigore, perante defeitos dos coletes vendidos, mas antes perante a discrepância da mercadoria fornecida relativamente à que tinha sido encomendada pela Autora e aceite pela Ré (obrigação contratualmente assumida), que se traduziu na desconformidade dos coletes entregues relativamente às normas comunitárias que haviam sido indicadas.Por outras palavras, o que na verdade aconteceu, foi que a Ré forneceu à Autora coletes diferentes daqueles que lhe haviam sido exigidos por força do contrato celebrado, o que se traduz na expressão latina «aliud pro alio». Verifica-se, pois, com meridiana clareza, que estamos no campo do cumprimento defeituoso da obrigação, e não propriamente da venda de coisa defeituosa, como bem decidiu o Tribunal da Relação, embora aceitando simultaneamente a venda de coisa defeituosa;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Fevereiro de 2014 (relator Salazar Casanova), proferido no processo nº 1115/05.4TCGMR.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se sublinhou: “Pode haver cumprimento defeituoso da obrigação sem, no entanto, haver venda de coisa defeituosa: " o cliente perde na farmácia um laxante de certa marca e o empregado, por lapso, entrega-lhe […] um produto dessa marca, mas que seja uma loção para o cabelo" (Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol II, 4.ª edição, pág. 207). Há casos ainda em que se pode considerar que, mais do que um cumprimento defeituoso da obrigação, há falta de cumprimento da obrigação: "a falta de cumprimento da obrigação dá-se quando o devedor não realiza de todo em todo a prestação devida, e esta já não é possível, ou quando o devedor realiza uma prestação objetivamente diferente da devida (A. comprou uma joia na ourivesaria, com a obrigação de o vendedor a mandar entregar no dia seguinte a casa do cliente, mas o joalheiro mandou entregar joia diferente: aliud pro alio)" (Antunes Varela, R.L.J., loc. cit, pág. 125). Ou, por exemplo, o comprador adquire um relógio de certa marca e o vendedor acondiciona no embrulho da prenda um relógio de marca diferente. Ou ainda o comprador adquire um veículo de determinada gama e cilindrada pagando o respetivo preço e é-lhe entregue um veículo de cilindrada e gama inferior. Pode dar-se inclusivamente o caso de o veículo entregue apresentar defeito, avaria de alguma das suas peças, deficiência nos revestimentos etc. Nos casos em que há falta de cumprimento, ou cumprimento defeituoso da obrigação, padeça ou não padeça de defeito a coisa entregue, assiste ao contraente lesado o direito ao cumprimento coercivo nos termos do artigo 817.º do Código Civil e o direito de indemnização nos termos gerais. Salienta Antunes Varela a este propósito que " é precisamente no âmbito da venda de coisa genérica […] que abundam os casos em que a venda de coisa defeituosa pode constituir simultaneamente um caso de cumprimento defeituoso da obrigação (ou de falta qualitativa do cumprimento da obrigação. Se o fornecedor garante, por exemplo, que o sisal, o chá, o café por ele vendido tem determinadas qualidades, propriedades ou características, e a mercadoria fornecida não possui, nem de perto nem de longe, as qualidades asseguradas, não haverá apenas venda de coisa defeituosa , no sentido que os artigos 913.º e segs atribuem a essa figura; haverá ao mesmo tempo uma vicissitude mais grave, que é o cumprimento defeituoso da obrigação ( ou a falta qualitativa de cumprimento da obrigação), previsto no artigo 799.º do Código Civil (..,)”;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Março de 1998 (relator Silva Paixão), proferido no processo nº 6/98, publicado in Colectânea de Jurisprudência/STJ Ano VI, 1998 – Tomo I, a páginas 107 a 109, onde pode ler-se:

“(…) se as qualidades da coisa vendida fazem parte integrante do conteúdo negocial e se ela não tem as qualidades acordadas, coloca-se um problema de cumprimento parcial ou cumprimento defeituoso.

Se, ao invés, as qualidades da coisa não entram no conteúdo do contrato, isto é, “não fazem parte integrante do conteúdo contratual vinculante para o vendedor” – muito embora tenham motivado e determinado o comprado a adquiri-la – não pode pôr-se um problema de cumprimento defeituoso, mas tão só de erro”).

Pelas razões indicadas, suportadas nas considerações doutrinárias e jurisprudenciais que foram elencadas supra, entendemos não ser aplicável à situação sub judice o regime específico consignado no artigo 917º do Código Civil, não se verificando os pressupostos de procedência da excepção de caducidade, conforme decidiu acertadamente o acórdão recorrido.

Assim sendo, o exercício dos direitos do contraente cumpridor encontra-se à partida sujeito ao prazo geral previsto no artigo 309º do Código Civil.

A manifesta longevidade deste mesmo prazo, podendo porventura, e em abstracto, gerar a hipótese de algum tipo de protelamento excessivo na invocação pelo comprador do cumprimento defeituoso por parte do Réu, que se torne no caso concreto não razoável, será sempre alvo da pertinente moderação através da figura do abuso do direito prevista no artigo 334º do Código Civil, na modalidade de supressio, pressupondo que as circunstâncias que rodearam o não exercício de um direito pelo seu titular, por um período temporal significativo, são susceptíveis de gerar na contraparte a fundada confiança quanto ao seu não exercício futuro, o que merecerá por isso a tutela da ordem jurídica.

(Sobre a figura da supressio vide António Menezes Cordeiro in “Da Boa Fé no Direito Civil”, Volume II, Almedina 1984, a páginas 819 a 821 e “Tratado de Direito Civil. V. Parte Geral. Exercício Jurídico”, Almedina, 2015, 2ª edição, a página 344 a 357.

Versando situações concretas de supressio, vide, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Junho de 2018 (relator Henrique Araújo), proferido no processo nº 10855/15.9T8CBR-A.C1-S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Novembro de 2021 (relator Jorge Dias), proferido no processo nº 17431/19.5T8LSB.L1.S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Abril de 2021 (relator Fernando Samões), proferido no processo nº 7268/18.4T8LSB-A.L1.S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Abril de 2021 (relator Ferreira Lopes), proferido no processo nº 2359.0TBVCD.P2.S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Dezembro de 2013 (relator Fernandes da Silva), proferido no processo nº 629/10.9TTBRG.P2.S1, todos publicado in www.dgsi.pt.).

Donde a inevitável improcedência da excepção de caducidade suscitada.

Pelo que se nega a revista.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção - Cível) negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 10 de Abril de 2024.

Luís Espírito Santo (Relator)

Ricardo Costa

Luís Correia de Mendonça

V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.