PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE REGULARIZAÇÃO DE SITUAÇÕES DE INCUMPRIMENTO (PERSI)
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
ABUSO DO DIREITO
SUPRESSIO
Sumário


I – A circunstância de o cliente bancário e mutuário devedor ter optado pelo regime extraordinário de protecção de devedores de crédito à habitação em situação económica muito difícil aprovado pela Lei n.º 58/2012, de 9 de Novembro, quando foi informado pela instituição financeira credora da possibilidade de beneficiar do PERSI, não lhe retira os direitos resultantes da integração no regime do Decreto-lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, enquanto procedimento extra-judicial prévio à instauração da acção (declarativa ou executiva), na medida em que não se trata de regimes que se substituam entre si (ou um ou o outro), salvaguardando-se a sua autonomia de aplicação e funcionamento.
II – Com efeito, existindo um primeiro procedimento junto da entidade financeira, nos termos do regime extraordinário de protecção de devedores de crédito à habitação em situação económica muito difícil, que se gorou, a lei não impede que os clientes bancários, no que respeita aos contratos tipificados no artigo 2º do Decreto-lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, possam ainda assim beneficiar de nova oportunidade de restruturação da sua dívida no âmbito do PERSI.
IIII - Não o vedando a lei – como efectivamente não veda – não é de considerar manifestamente abusivo, à luz do regime genérico previsto no artigo 334º do Código Civil, que o mutuário/executado procure, nestas circunstâncias, uma nova oportunidade de renegociação da dívida que o sistema lhe confere, acontecendo que na situação sub judice os embargantes não fizeram sequer qualquer referência à sua integração no PERSI (não a invocando como forma de extinção da execução contra si pendente), tendo sido o tribunal de 1ª instância, durante a própria audiência de julgamento e face à imperatividade da aplicação da legislação referente ao PERSI, que decidiu oficiosamente exigir à exequente a demonstração da integração no mesmo, o que esta não realizou.

Texto Integral



Revista nº 10897/18.2T8SNT-A.L1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção - Cível):

I - RELATÓRIO.

Banco Santander Totta, S.A., instaurou acção executiva contra AA, BB e CC.

Fê-lo com vista à efectivação do pagamento da quantia global de €103.345,78, acrescida de juros de mora vincendos, com base em duas escrituras públicas de mútuo com hipoteca outorgadas pelo segundo executado (BB) e outro, na qualidade de mutuários, alegando, para justificar a legitimidade do primeiro e terceiro executados (AA e CC), que o imóvel hipotecado lhes foi, entretanto, doado pelos mutuários.

Por sentença de 15 de Março de 2020, proferida no Apenso B, foi julgada a requerente LC ASSET 1, S.A.R.L. habilitada para prosseguir os termos da execução, em substituição da exequente Banco Santander Totta, S.A.

Os executados CC e BB opuseram-se à execução, por meio de embargos de executado autonomamente deduzidos neste Apenso A e no Apenso C, respectivamente.

Por verificação dos respectivos pressupostos legais, determinou-se a apensação do último ao primeiro, a fim de se proceder ao julgamento conjunto de ambas as acções.

Invocou a embargante CC, em sua defesa, que:

Não sendo parte dos contratos de mútuo que foram dados à execução, a sua responsabilidade está limitada ao imóvel hipotecado a favor da exequente/embargada, de que é actual (com)proprietária;

Foi por culpa da exequente/embargada que os empréstimos titulados nas escrituras públicas dadas à execução deixaram de ser pagos, pois que o co-executado BB, que os contraiu, celebrou um contrato de seguro grupo, que cobria, além do mais, o risco de desemprego involuntário, tendo como tomador e beneficiário o Banco Santander Totta, S.A.;

Ora, esse risco veio a concretizar-se, pois que o referido BB ficou desempregado em 2013, tendo, por isso, solicitado em Novembro desse ano o accionamento do mencionado seguro;

Contudo, o Banco exequente, aproveitando-se do facto de o referido mutuário não ter localizado o original da respectiva apólice, não enviou o documento comprovativo da realização do seguro, com tal cobertura, nem o accionou, o que impediu o referido mutuário de reorganizar a sua situação financeira e pagar as dívidas, entretanto acumuladas, emergentes dos contratos de mútuo dados à execução.

O embargante BB invocou, por sua vez, que foi por culpa da exequente/embargada que os empréstimos titulados nas escrituras públicas dadas à execução deixaram de ser pagos, pois que o co-executado BB, que os contraiu, celebrou um contrato de seguro grupo, que cobria, além do mais, o risco de desemprego involuntário, tendo como tomador e beneficiário o Banco Santander Totta, S.A.

O Banco exequente inviabilizou, por culpa sua, a aplicação do Regime Extraordinário de Protecção de Devedores de Crédito Habitação em Situação Económica Muito Difícil, aprovado pela Lei n.º 58/2012, de 9 de Novembro, pois que injustificadamente provocou atrasos no respectivo procedimento e solicitou, no próprio dia agendado para formalização do acordo de reestruturação da dívida, um documento que há muito sabia ser necessário e que não podia ser entregue no curto prazo fixado por efeito.

A embargada, notificada para o efeito, contestou os embargos, defendendo-se por impugnação.

No decurso da audiência final, durante a sessão que teve lugar no dia 17 de Maio de 2022, por iniciativa do próprio tribunal, foi a embargada notificada para comprovar o cumprimento das obrigações impostas pelo Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro (PERSI).

A mesma juntou, para o efeito, os documentos anexos ao seu requerimento de 24 de Maio de 2022 (comunicação de preferência, pelo mutuário devedor do regime extraordinário de protecção de devedores de crédito habitação em situação económica, aprovado pela Lei n.º 58/2012, de 9 de Novembro, em vez do PERSI, e comunicação efectuada pela entidade financeira credora dos termos que conduziram à extinção desse procedimento).

Foi proferida sentença que julgou procedentes os presentes embargos, fundando-se, para além do mais, em que:

“(…) extinguindo-se o procedimento previsto na Lei n.º 58/2012, de 9 de Novembro, impunha-se a automática integração do executado/embargante no PERSI, nos termos dos artigos 14.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, sendo certo que os contratos de mútuo titulados nas escrituras públicas dadas à execução se integram no âmbito de aplicação deste último diploma legal, (artigo 2.º, nºs. 1, alíneas a) e b), na redacção original, aplicável).

Ora, a exequente foi convidada a comprovar o cumprimento deste último diploma legal, mas apenas juntou, com o seu requerimento de 24/05/2022, o comprovativo de integração do executado/embargante no regime abrangido pela Lei n.º 58/2012, de 9 de Novembro, e da decisão de extinção do respectivo procedimento.

Por isso, também por força do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 18.º do citado Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, o Banco Santander Totta, SA, não podia ter intentado a execução que corre termos nos autos principais, como fez”.

Interpôs o embargado LC ASSET 1, S.A.R.L. recurso de apelação.

Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 14 de Setembro de 2023, foi decidido julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida.

Apresentaram os embargantes recurso de revista donde constam as seguintes conclusões:

O embargado BB:

A. Os presentes autos tiveram início por instauração de execução por parte do Recorrido.

B. A Lei 58/2012, de 09-11, aplica-se ao caso dos autos.

C. Estava o Recorrido impedido de promover a execução da hipoteca que constitui garantia do crédito à habitação até que cessasse a aplicação das medidas de proteção previstas na Lei 58/2012 e comunicasse tal cessação ao Recorrente.

D. Estando num Estado de Direito Democrático, Portugal detém um poder judicial independente, a cujo poder se submetem todas as entidades nacionais, nos termos das leis em vigor, sob a tutela imediata da Constituição da República Portuguesa.

E. Tem competência o Tribunal recorrido para aplicar e avaliar do respeito pela aplicação da Lei 58/2012, de 09-11, no caso concreto.

F. A Lei 58/2012, de 09-11 prescreve uma grande flexibilidade dos Bancos para alterar condições e aplicar o seu regime extraordinário e situações extraordinárias, como o caso dos autos.

G. A Lei 58/2012 define os fundamentos e formas de extinção do REX

H. O Recorrido refere que extinguiu o REX em 14-12-2015.

I. A referida extinção nunca chegou à esfera jurídica do Recorrente, como resulta dos factos provados.

J. Como resulta a decisão recorrida “É certo que, a exequente convidada a comprovar o cumprimento deste último diploma legal, apenas juntou, com o seu requerimento de 24/05/2022, o comprovativo de integração do executado/embargante no regime abrangido pela Lei n.º 58/2012, de 9 de Novembro, e da decisão de extinção do respectivo procedimento.”, NUNCA A COMUNICAÇÃO!

K. Por esta razão, está em contradição com a factualidade dada como provada o que diz o tribunal recorrido a acção foi instaurada após a declaração do Banco de extinção do procedimento REX, por não ter sido apresentada a necessária documentação por parte do embargante.”

L. Nesta medida o REX estava a decorrer no momento do início do processo executivo,

M.Estava o Recorrido impedido de promover a execução da hipoteca, recorrendo a via judicial, como fez

N. O processo executivo é ilícito, devendo se declarar a extinção da execução, confirmando a decisão da 1ª Instância.

O. Deve o Tribunal aplicar o DL 227/2012, de 25-10, ao presente caso.

P. Quando o Banco considerou o REX extinto, ainda que o não tenha comunicado ao Recorrente nos termos legais, deveria automaticamente, ter integrado este no PERSI, por força do art. 39º do DL 227/2012, DE 25-10 e comunicado o Recorrente/Cliente dessa integração nos termos do artigo 14.º, n.º 4, no prazo máximo de cinco dias, em suporte duradouro.

Q. Nunca o Recorrente recusou uma proposta de PERSI.

R. A alienação do imóvel, pelos executados nunca constitui uma causa de extinção imediata do PERSI, não diminuindo a garantia hipotecária do Banco, nos termos do art. 686.º do Código Civil.

S. Nunca o Banco comunicou ao recorrente qualquer extinção do PERSI,

T. A lei não admite a extinção automática do PERSI.

U. O PERSI só se extingue em situações tipificadas na lei (artigo 17.º, n.º 1 e 2, do DL 227/2012, de 25-10) e mediante comunicação aos clientes bancários-devedores, nos termos do artigo 17.º, n.º 3, do diploma que criou o PERSI.

V. O Banco/Recorrido instaurou a execução durante o período de vigência do REX e PERSI (negociação),

W.Verifica-se uma excepção dilatória inominada não sanável (artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, ambos do CPC que determina a extinção da instância), o que se requer.

X. O Recorrente nunca agiu em abuso de Direito porque lhe era legítimo até comunicação de extinção de quaisquer procedimentos, recorrer aos mesmos - no mesmo sentido Acórdão do STJ de 11/6/2021 com a Refª Processo 21827/17.9T8SNT-A.L1.L1.S1 (dgsi.pt).

A embargada CC:

1.Por uma questão de economia processual, adere-se in totum às alegações apresentadas pela ilustre defensora do recorrente BB.

2 . Em relação ao REX, resulta dos factos provados que o recorrente BB sempre colaborou, aceitou e diligenciou a entrega de todos os documentos solicitados pelo recorrido.

3. Havia apenas um documento em falta que se relacionava com a autorização da prática de actos em nome dos menores, cujo mesmo dependia do Tribunal, onde para o efeito teria que se instaurar a competente acção tutelar e aguardar a respectiva decisão judicial.

4. O Recorrido exigiu ao Recorrente BB um prazo de menos de quatro meses!... ou seja, entre 21/08/2015 e 14/12/2015, para juntar a solicitada autorização judicial

5. Essa exigência por parte do Recorrido, foi um acto de má fé, uma vez que, não era expectável que a acção, mesmo que instaurada no dia seguinte (em 22 de Agosto de 2015), fosse decidida num prazo de menos de quatro meses.

6. O princípio da boa-fé impunha que o Recorrido concedesse ao Recorrente o BB um prazo razoável para diligenciar pela obtenção de um documento que, por implicar o recurso aos tribunais, não podia ser entregue no prazo unilateralmente fixado pelo Banco/Recorrido.

7. Mais a mais, sob pena de o acordo de reestruturação da dívida não ser formalizado e o procedimento instaurado ao abrigo da citada Lei n.º 58/2012 cessar, como veio a suceder.

8. Isso sim, consubstancia abuso de Direito nos termos do art. 334.º do Código Civil tendo o Recorrido violado os princípios da boa fé.

9. O Recorrido estava por força da Lei 58/2012 impedido de promover a execução sem que cessassem as medidas de protecção previstas nesse diploma legal.

10.A partir do momento em que o Banco considerou o REX extinto, deveria, por força do art. 39º do DL 227/2012, de 25-10, ter integrado este no PERSI, e comunicar ao Recorrente BB dessa integração nos termos do artigo 14.º, n.º 4, no prazo máximo de cinco dias.

11.Resulta da factualidade provada que, o Recorrente BB negociou, aceitou e diligenciou pela obtenção de todos os documentos que estavam ao seu alcance, e requeridos pelo Banco/Recorrido para conclusão do REX, excepto,

12.A entrega de um documento, cujo mesmo, conforme já se disse, dependia da instauração de uma acção judicial e da correspondente decisão transitada em julgado.

13.Relembra a Recorrente que, o Recorrente BB formulou uma contraproposta à proposta de reestruturação da dívida apresentada em 26/01/2015 pelo Banco, que este não aceitou, o que terá contribuído também para atrasar o termo do procedimento.

14.A Recorrente considera que o executado/apelado BB, nunca negligenciou de observar todas as solicitações do Recorrido e esteve sempre presente na iniciativa dos procedimentos

15.O regime extraordinário de protecção dos devedores de crédito à habitação, que se encontrem em situação económica muito difícil, a que se reporta a Lei nº 58/2012, de 9/11, é imperativo para as entidades mutuantes, no caso, o Recorrido.

16.Não poderia, por força da lei, o Recorrido extinguir, posto não estar aquele isento das obrigações impostas pelo Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro (PERSI).

17.Extinguindo-se o procedimento previsto na Lei n.º 58/2012, de 9 de Novembro, impunha-se a automática integração do Recorrente BB no PERSI, nos termos dos artigos 14.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro.

18.O Recorrido não logrou demonstrar o cumprimento deste último diploma legal, apenas juntou aos autos em 24/05/2022, o comprovativo de integração do Recorrente BB no regime abrangido pela Lei n.º 58/2012, de 9 de Novembro, e da decisão de extinção do respectivo procedimento.

19.Por isso, também por força do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 18.º docitado Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, o Recorrido, não podia ter intentado a execução, como fez.

Nestes termos, nos melhores de Direito, e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas. deverá o presente recurso ser julgado procedente, devendo o Acórdão recorrido ser revogado, mantendo-se na íntegra a decisão do Tribunal de 1.ª instância, nos seus precisos termos.

Contra-alegou o embargado LC ASSET 1, S.A.R.L. pugnando pela improcedência dos recursos.

II – FACTOS PROVADOS.

Foi dado como provado nas instâncias:

1. Por escritura pública outorgada em 2 de Agosto de 2001, o Banco Santander Portugal, S.A., celebrou com o executado/embargante BB e mulher, DD, um acordo, denominado «Compra e Mútuo com Hipoteca e Procuração», pelo qual a primeira declarou conceder aos segundos um empréstimo, no montante de 15.000.000$00 (€74.819,68), para aquisição de habitação própria permanente, quantia que estes se comprometeram restituir ao Banco em trezentas e sessenta prestações mensais e sucessivas de capital e juros.

2. Por escritura pública outorgada na mesma data, o Banco Santander Portugal, SA, celebrou com o executado/embargante BB e mulher, acima identificada, um segundo acordo, denominado «Mútuo com Hipoteca», pelo qual a primeira declarou conceder aos segundos um segundo empréstimo, no montante de 10.000.000$00

(€49.879,79), quantia que estes se comprometeram restituir ao Banco em trezentas prestações mensais e sucessivas de capital e juros.

3. Para garantia do pagamento das quantias emprestadas, respectivos juros e despesas, os embargantes constituíram hipotecas sobre o prédio misto sito em Rua ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 131 daquela freguesia, com a parte urbana inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 997 e a parte rústica inscrita na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 231-secção B.

4. As quantias referidas nos pontos 1. e 2. supra foram creditadas, na data de celebração dos contratos aí mencionados, na conta de depósitos à ordem de que o executado/embargante BB e mulher eram titulares junto do Banco Santander Totta, SA.

5. Em 2013, o executado/embargante BB ficou desempregado involuntariamente.

6. Por carta de 30 de Outubro de 2013, que o Banco Santander Totta, S.A., recebeu, o executado/embargante BB requereu «a activação da protecção desemprego», associada aos empréstimos referidos nos pontos 1. e 2., supra, para pagamento das prestações dos «meses de Julho, Agosto, Setembro e Outubro e seguintes oito meses até Junho de 2014».

7. Por cartas datadas de 31 de Outubro de 2013, o Banco Santander Totta, S.A., remeteu ao executado/embargante as condições particulares dos seguros vida grupo crédito habitação constantes das Apólices nºs. .......0 e .......53, associadas aos empréstimos referidos nos pontos 1. e 2., supra, respectivamente, que aqui se dão por reproduzidas.

8. Por carta de 12 de Novembro de 2013, Santander Seguros comunicou ao executado/embargante o seguinte:

«Assunto: Seguro Vida Crédito Habitação Apólice ......32, ......37

Cobertura complementar Plano Protecção ao Crédito Exmo. Senhor

Vimos pela presente acusar a recepção da sua comunicação entrada no nosso Departamento a 7 de Novembro de 2013 (…).

Na sequência da mesma, informamos que o Seguro de Vida Grupo Génesis, que subscreveu em 12 de Janeiro de 2000, não foi comercializado com a cobertura complementar de Plano de Protecção ao Crédito, que inclui as coberturas de: Incapacidade Temporária Absoluta; Desemprego e Hospitalização. Este produto foi comercializado com as coberturas de Morte e Invalidez Total e Permanente.

Assim, de acordo com o acima descrito, lamentamos informar que não nos será possível proceder em conformidade com a participação que nos foi remetida, em virtude de não existir cobertura que possa ser accionada.

Para melhor esclarecimento, aproveitamos para anexar cópia do Boletim de Adesão, das Condições de Contrato e enviar-lhe os Certificados Individuais das suas apólices».

9. Por carta de 18 de Novembro de 2013, o executado/embargante comunicou a Santander Seguros, em resposta, que as cópias remetidas com a carta de 12 de Novembro de 2013 não correspondiam à apólice a que aderiu em 2001.

10.Por comunicação datada de 19 de Novembro de 2013, o executado/embargante solicitou ao Banco Santander Totta, S.A., que não debitasse na conta as prestações de Outubro, relativas aos dois empréstimos, juntamente com mais três prestações anteriores, por estar pendente a activação da cláusula do seguro de protecção ao desemprego, solicitado por requerimentos de 30 de Outubro de 2013, 5 de Novembro de 2013 e 18 de Novembro de 2013.

11. Por carta de 28 de Novembro de 2013, que aqui se dá por integralmente reproduzida, Santander Seguros, em resposta à carta de 18 de Novembro de 2013, acima referida, voltou a comunicar ao executado/embargante que as coberturas dos contratos de seguro de Vida Crédito Habitação com os Certificados nºs. 062132 e 062137 apenas incluem «Morte e Invalidez Total e Permanente».

12. Durante o período em que o executado/embargante esteve desempregado, o Banco Santander Totta, S.A., continuou a debitar as prestações dos empréstimos.

13. Em 26 de Janeiro de 2014, o Banco Santander Totta, S.A., comunicou ao executado/embargante BB a possibilidade de aderir ao PERSI.

14. Por carta de 29 de Janeiro de 2014, que aqui se dá por integralmente reproduzida, o executado/embargante BB comunicou ao Banco Santander Totta, S.A., o seguinte:

«Assunto: Pedido de integração no Regime Extraordinário de Protecção de Devedores de Crédito Habitação em Situação Económica Muito Difícil (em aditamento ao pedido de integração no PERSI)

Exmos. Senhores,

Conforme a informação recolhida aos V/balcões na sequência do meu pedido de ontem para integração no PERSI, e porque constato agora que cumpro todos os requisitos legais, venho por este meio solicitar o acesso ao Regime Extraordinário de Protecção de Devedores de Crédito Habitação em Situação Económica Muito Difícil, de acordo com a Lei 58/2012 de 9 de Novembro, e por me encontrar em mora relativamente a obrigações decorrentes dos contratos celebrados com o Banco Santander Totta, abrangidos pelo referido diploma.

Para comprovação dos requisitos de acesso ao regime extraordinário, junto anexo a este requerimento os seguintes documentos:

(…).».

15. O embargante remeteu ao Banco Santander Totta, S.A., a carta junta com a PI, datada de 2 de Junho de 2014, que aqui se dá por integralmente reproduzida, invocando, além do mais, que a documentação solicitada pelo Banco, por carta de 20 de Maio de 2014, para acesso ao regime extraordinário de protecção de devedores de crédito habitação em situação económica muito difícil, não era necessária, considerando o regime da Lei n.º 58/2012, de 9 de Novembro, e a Carta Circular n.º .........SC, de 12/12/2013.

16. Por carta de 5 de Junho de 2014, o Banco Santander Totta, S.A., em resposta, comunicou ao embargante BB:

«Acusamos a recepção da sua carta, datada de 02/06/2014, para acesso ao regime extraordinário de protecção de devedores de crédito habitação em situação económica muito difícil, ao abrigo da Lei n.º 58/2012 de 9 de Novembro (…).

Sobre o assunto exposto, reiteramos a informação prestada e os documentos solicitados na nossa carta de 20/05/2014, esclarecendo que para que esta instituição de crédito pudesse dar seguimento ao requerimento em causa deveria o mesmo ser subscrito não apenas por V. Exa. mas igualmente por DD, considerando que é também mutuária, que V. Exa. não demonstrou que a partilha do imóvel se encontra efectuada, e ainda que, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei em causa, é necessária declaração escrita de ambos os mutuários, garantindo o atual cumprimento de todos os requisitos exigidos para aplicação do regime.

(…). Sem prejuízo do que antecede, cumpre-nos informar que, nos termos do Artigo 4.º, alínea c) do referido diploma legal, nos casos em que o imóvel hipotecado tenha coeficiente de localização até 1,4, o valor patrimonial tributário não pode exceder €90.000,00. Uma vez que, de acordo com a caderneta predial do imóvel hipotecado, esse valor patrimonial tributário é de € 94.040,00 e o coeficiente de localização é de 1,2, não se encontra preenchido este requisito e aplicabilidade do regime extraordinário requerido.

(…). Por esses motivos, esta Instituição de Crédito indefere o pedido de acesso ao regime extraordinário de protecção de devedores de crédito habitação em situação económica muito difícil, informando (…) que estaremos disponíveis para efetuar nova análise de enquadramento no referido regime, caso (…) venha a apresentar novo requerimento com junção de novos documentos que permitam ultrapassar os impedimentos agora existentes para o acesso àquele regime».

17. Por carta de 15 de Julho de 2014, Banco Santander Totta, S.A., comunicou ao executado/embargante BB o seguinte:

«(…) Acusamos a recepção da sua carta, datada de 11/07/2014, para acesso ao regime extraordinário de protecção de devedores de crédito habitação em situação económica muito difícil, ao abrigo da Lei n.º 58/2012 de 9 de Novembro (…).

Sobre o assunto exposto, e considerando que V. Exa. demonstrou que a partilha do imóvel se encontra efectuada para que esta instituição possa dar seguimento ao requerimento em causa deve V. Exa. previamente obter junto do Banco autorização para proceder à alteração das condições contratuais dos empréstimos hipotecários em causa, por forma a que contratualmente possamos exonerar da dívida a mutuária DD.

Conforme exposto, o acesso ao regime extraordinário, nas situações em que o(s) contrato(s) de crédito em causa tenha(m) mais do que um mutuário, depende da demonstração, por todos os mutuários, de que preenchem as condições necessárias, pelo que o requerimento de acesso deverá igualmente ser subscrito por todos.

Por este motivo, informamos V. Exa. que efectuaremos nova análise de enquadramento no referido regime, caso o pedido de assunção de dívida venha a ser aceite pelo Banco e formalizado, previamente, através de aditamento contratual. (…)».

18. Em 10 de Dezembro de 2014, o executado/embargante apresenta novo «requerimento de regime extraordinário de protecção de devedores de crédito à habitação em situação económica muito difícil e simultaneamente requer a alteração das condições contratuais dos acordos referidos nos pontos 1. e 2. supra, no sentido indicado pelo Banco na carta acima transcrita.

19. Nesta sequência, em 19 de Dezembro de 2014, os contratos referidos nos pontos 1. e 2. supra foram objecto de aditamento, com efeitos reportados a 1 de Dezembro de 2014, no âmbito do qual Banco Santander Totta, S.A., declarou aceitar a assunção de dívida pelo mutuário BB e a exoneração da dívida de DD.

20. Por carta de 7 de Janeiro de 2015, Banco Santander Totta, S.A., comunicou ao executado/embargante BB o seguinte:

«(…) Acusamos a recepção do novo requerimento e da documentação junta para acesso ao regime extraordinário de protecção de devedores de crédito habitação em situação económica muito difícil, ao abrigo da Lei n.º 58/2012 de 9 de Novembro, alterada pela Lei n.º 58/2014 de 25 de Agosto (…).

Após análise da mesma e tendo o pedido de assunção de dívida aceite pelo Banco e formalizado através de aditamentos contratuais, foi possível concluir pelo preenchimento dos requisitos de aplicabilidade do regime extraordinário estabelecidos no Artigo 4.º da referida Lei, bem como comprovar a situação económica muito difícil em que se encontra V. Exa., situação essa aferida de acordo com os critérios legais que resulta do Artigo 5.º da mencionada Lei.

Encontrando-se preenchidos os requisitos para o acesso ao regime extraordinário, vimos, pela presente comunicação, informar V. Exa. do deferimento do requerimento de acesso, nos termos e para os efeitos dos artigos 8.º e 9.º da Lei 5/2012, de 09 de Novembro, alterada pelo Lei n.º 58/2014 de 25 de Agosto. (…).».

21. Por carta de 26 de Janeiro de 2015, que aqui se dá por integralmente reproduzida, Banco Santander Totta, S.A., propôs ao embargante um plano de reestruturação das dívidas emergentes dos contratos referidos nos pontos 1. e 2., supra.

22. Por carta de 9 de Fevereiro de 2015, que aqui se dá por integralmente reproduzida, o embargante apresentou ao Banco Santander Totta, S.A., uma contraproposta, que o Banco não aceitou, conforme carta de 4 de Março de 2015 remetida àquele, que aqui se dá por integralmente reproduzida.

23. Após novas negociações, o referido Banco, por comunicação electrónica de 21 de Agosto de 2015, informou o embargante que, para avançar com o processo, era necessário, além do mais, «autorização do Tribunal para hipotecar o imóvel pelo novo Empréstimo de 13 500€, devido a um dos filhos ser ainda Menor».

24. Por carta de 11 de Novembro de 2015, Banco Santander Totta, S.A., comunicou ao embargante BB o seguinte:

Assunto: Plano de Reestruturação proposto em 26 de Janeiro de 2015

Exmo. Senhor

Temos presente o Plano de Reestruturação proposto pelo Banco em 26 de Janeiro de 2015, ao abrigo do regime extraordinário de protecção de devedores de crédito habitação em situação económica muito difícil, o qual foi aceite por V. Exa. no passado mês de Abril, após um período negocial, durante o qual realizámos diversas reuniões para prestar os esclarecimentos e as informações relativas à solução encontrada para viabilizar o pagamento dos montantes em dívida, objectivamente adequada à situação financeira do seu agregado familiar.

Sucede que, até ao momento, não foi possível formalizar o Acordo de Reestruturação, uma vez que o mesmo prevê como elemento essencial a constituição de garantia hipotecária e V. Exa não procedeu à entrega dos documentos necessários à outorga da respectiva escritura, impossibilitando dessa forma a concretização do Acordo.

Assim sendo, vimos pela presente conceder a V. Exa. um último prazo, até ao próximo dia 14 de Dezembro, a fim de proceder à junção dos elementos solicitados na comunicação que lhe remetemos no passado dia 21 de Agosto, nomeadamente a autorização do Tribunal para a constituição da hipoteca, a certidão, com trânsito em julgado, da sentença que homologou a transacção judicial efectuada nos autos de inventário e a certidão do Serviço de Finanças que comprove a pendência do pedido de alteração matricial ou que certifique que o mesmo produziu efeitos.

Findo o prazo referido sem que a documentação seja entregue, fica inviabilizada a formalização do Acordo, pelo que V. Exa. perde o direito à aplicação das medidas substitutivas da execução hipotecária, nos termos do n.º 2 do Art.º 16 da Lei 58/2012, o que comunicamos formalmente, para todos os legais efeitos. (…)».

25. Em 26 de Novembro de 2015, o embargante remeteu ao Banco Santander Totta, S.A., por comunicação electrónica, os documentos solicitados, com excepção da autorização judicial para constituição de hipoteca em nome da filha menor do embargante BB, declarando a este respeito o seguinte:

«Como eu tinha previsto, tal não será possível atender dentro dos prazos exigidos. Uma acção tutelar junto do Tribunal de Menores de Sintra (conforme resposta do Tribunal de Castelo Branco) iria demorar vários meses, ou seja, muito para além do prazo disponível que temos para a assinatura do Rex (e que termina em 14 de Dezembro ou, o mais tardar, em 31Dez2015 por imposição do que está estipulado por lei.(…)».

26. Por acordo celebrado em 12 de Junho de 2014, na conferência de interessados realizada no processo de inventário n.º 93/10.2..., homologado por sentença, o embargante BB e DD declararam doar aos filhos do casal, AA e CC, o imóvel descrito no ponto 3. supra, reservando o embargante BB para si o usufruto vitalício desse mesmo imóvel.

Foram considerados como não provados os seguintes factos:

1. Em 2001, foi oferecido ao executado/embargante BB pela seguradora Genesis uma alteração aos contratos de Seguro de Grupo Ramo Vida associados aos empréstimos titulados nas escrituras públicas dadas à execução, que o mesmo aceitou, tendo sido adicionada aos referidos contratos a protecção «desemprego involuntário».

2. Quer o Banco Santander Totta, S.A., quer Santander Totta Seguros - Companhia de Seguros de Vida, SA, sabem que as apólices remetidas ao executado/embargante, na sequência do pedido de accionamento do seguro, não têm qualquer correspondência com a apólice originariamente emitida pela seguradora Genesis, acima referida.

3. Apesar de o executado/embargante ter entregado todos os documentos solicitados, o requerimento de acesso ao Regime Extraordinário de Protecção de Devedores de Crédito Habitação em Situação Económica Muito Difícil que o mesmo apresentou em 29/01/2014 apenas foi deferido em 07/01/2015.

4. A informação constante do ponto 23 dos factos provados foi prestada ao executado/embargante no próprio dia agendado para a celebração do acordo de reestruturação das dívidas.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.

(In)cumprimento pela exequente, enquanto entidade financeira credora, das disposições impostas pelo Decreto-lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, relativo ao Regime Geral de Prevenção e Regularização do Incumprimento de Contratos de Crédito (integração do mutuário devedor no regime do PERSI). Anterior pendência de um procedimento ao abrigo do regime extraordinário de protecção do devedor de crédito habitação em situação económica muito difícil, aprovado pela Lei nº 58/2012, de 9 de Novembro, que se encerrou sem a efectivação de acordo sobre o pagamento da dívida. Funcionamento in casu do instituto do abuso do direito previsto no artigo 334º do Código de Processo Civil.

Passemos à sua análise:

A obrigatoriedade dos procedimentos impostos pelo Decreto-lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, comummente denominado PERSI, enquanto procedimento extra-judicial prévio à instauração da acção (declarativa ou executiva) e que corre no quadro da instituição financeira, pressupõe, necessariamente e desde logo, que estejamos perante uma das situações tipo expressamente previstas no artigo 2º do mesmo diploma legal, na redacção vigente ao tempo da instauração da acção (neste caso a acção executiva que entrou em juízo em 4 de Junho de 2018), a saber:

-contratos de crédito para a aquisição, construção e realização de obras em habitação própria permanente, secundária ou para arrendamento, bem como para a aquisição de terrenos para construção de habitação própria (alínea a);

-contratos de crédito garantidos por hipoteca sobre bem imóvel (alínea b);

-contratos de crédito aos consumidores abrangidos ao abrigo do disposto no Decreto-lei nº 133/2009, de 2 de Junho, alterado pelo Decreto-lei nº 72-A/2010, de 18 de Junho, com excepção dos contratos de locação de bens móveis de consumo duradouro que prevejam o direito ou a obrigação de compra da coisa locada, seja no próprio contrato, seja em documento autónomo (alínea c);

-contratos de crédito ao consumo celebrados ao abrigo do disposto no Decreto-lei nº 359/91, de 21 de Setembro, alterado pelos Decretos-Leis nºs 101/2000, de 2 de Junho, e 82/2006, de 3 de Maio, com excepção dos contratos em que uma das partes se obriga, contra retribuição, a conceder à outra o gozo temporário de uma coisa móvel de consumo duradouro e em que se preveja o direito do locatário a adquirir a coisa locada, num prazo convencionado, eventualmente mediante o pagamento de um preço determinado ou determinável nos termos do próprio contrato (alínea d);

-contratos de crédito sob a forma de facilidades de descoberto que estabeleçam a obrigação de reembolso do crédito no prazo de um mês (alínea e).

(Esta disposição foi, entretanto, alterada pelo Decreto-lei nº 70-B/2021, de 6 de Agosto, que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação nos termos do respectivo artigo 9º, não se aplicando portanto à situação sub judice, havendo sim que atender ao âmbito legal que foi circunscrito pelo artigo 2º, na redacção que existia a 4 de Junho de 2018 – data da instauração da acção executiva).

(Sobre a natureza, desideratos e campo de aplicação do regime instituído pelo Decreto-lei nº 133/2009, de 2 de Junho, alterado pelo Decreto-lei nº 72-A/2010, de 18 de Junho, vide em termos genéricos:

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Fevereiro de 2017 (relatora Fernanda Isabel Pereira), proferido no processo nº 194/13.5TBCMN-A.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Fevereiro de 2023 (relator Fernando Batista), proferido no processo nº 1141/21.6T8LLE-C.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Dezembro de 2021 (relator Ferreira Lopes), proferido no processo nº 4734/18.5MAI-A.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Novembro de 2021 (relatora Clara Sottomayor), proferido no processo nº 21827/17.9T8SNT-A.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Fevereiro de 2023 (relator Aguiar Pereira), proferido no processo nº 7430/19.2T8PRT.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Julho de 2023 (relator Cura Mariano), proferido no processo nº 4354/20.4T8VNF.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Outubro de 2023 (relator Luís Espírito Santo), proferido no processo nº 2419/21.4T8VNF-A.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Janeiro de 2024 (relatora Clara Sottomayor), proferido no processo nº 2764/18.6T8STB-B.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Outubro de 2023 (relator Aguiar Pereira), proferido no processo nº 4984/18.4T8OAZ-A.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt).

Tratando-se na situação sub judice da realização de contrato de mútuo, com hipoteca, para aquisição de habitação, o embargante mutuário beneficia, portanto, do regime resultante do Decreto-lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, denominado PERSI, em conformidade com a previsão das alíneas a) e b) do seu artigo 2º, na versão aplicável.

Assim sendo, as questões essenciais que se colocam no âmbito do conhecimento da presente revista são as seguintes:

- saber se a existência de um procedimento aberto, por escolha dos devedores, ao abrigo no regime previsto na 58/2012, de 9 de Novembro, respeitante ao Regime Extraordinário de Protecção de Devedores de Crédito Habitação em Situação Económica Muito Difícil, e que tenha sido entretanto declarado extinto, dispensa e desobriga nessa medida a exequente, que é a instituição financeira credora, de integrar o devedor no regime do PERSI antes de instaurar a respectiva acção executiva;

- saber se pode considerar-se que os embargantes incorreram em abuso do direito, nos termos gerais do artigo 334º do Código Civil, pelo facto de pretensamente invocarem a sua não integração no PERSI, enquanto excepção dilatória inominada impeditiva da instauração da presente acção executiva, quando anteriormente, uma vez informados pela entidade bancária ora exequente, optaram pela sua integração no Regime Extraordinário de Protecção de Devedores de Crédito Habitação em Situação Económica Muito Difícil, aprovado pela Lei n.º 58/2012, de 9 de Novembro, à luz do qual entabularam, sem êxito, conversações com vista à restruturação da sua dívida durante cerca de um ano.

O acórdão recorrido julgou a procedência da apelação, entendendo que os embargantes incorreram em abuso do direito fundado no seguinte argumentário:

“Conforme se deixou exposto, da factualidade adquirida nos autos resulta que o banco mutuário comunicou aos devedores a possibilidade de aderirem ao PERSI e foram os próprios Recorridos que, em 29/01/2014, solicitaram a sua integração no REX e que em 07/01/2015 foi deferido. No âmbito do REX foram efectuadas propostas e contrapropostas de restruturação entre Janeiro de 2015 e Novembro de 2015. É certo que, a exequente convidada a comprovar o cumprimento deste último diploma legal, apenas juntou, com o seu requerimento de 24/05/2022, o comprovativo de integração do executado/embargante no regime abrangido pela Lei n.º 58/2012, de 9 de Novembro, e da decisão de extinção do respectivo procedimento. Porém, também ficou provado à evidência nos autos, que o procedimento previsto no regime extraordinário da Lei nº 58/72 correu os seus termos quase até final como admitem as partes, ficando o acordo de reestruturação de dívida pendente de um documento que não foi junto.

A circunstância de não terem sido formalmente integrados no PERSI não retirou qualquer direito ao embargante uma vez que a acção executiva só foi instaurada depois de gorada a integração no regime extraordinário. Resulta claro da factualidade provada que a acção só foi instaurada após a declaração do Banco de extinção do procedimento REX, por não ter sido apresentada a necessária documentação por parte do embargante. Como já se decidiu, o embargante para reagir contra a decisão do Banco teria de apresentar reclamação junto do Banco de Portugal o que não fez por razão que só lhe pode ser imputável.

Foi solicitado ao embargante que prestasse informações e juntasse documentos e foi apresentado um plano de restruturação da dívida. Não tendo sido cumprido os prazos concedidos, em 14/12/2015 foi comunicada a cessação do REX e interpelados os Recorridos para procederem ao pagamento dos valores em dívida.

Daqui resulta que entre as partes houve negociações que duraram quase um ano, sem que os Recorridos, cumprissem os pressupostos legalmente exigidos no REX e na proposta de restruturação pelo que veio o apelante a concluir a negociação e a emitir a declaração a cessação do regime do REX.

Considerando o ponto 2 das orientações difundidas na circular do Banco de Portugal acima transcrita e a matéria de facto dada como provada, considerando que o procedimento do regime extraordinário chegou quase até fase final, não se tendo concretizado por facto imputável ao embargante, só após tendo sido instaurada a acção executiva, não faria qualquer sentido iniciar o PERSI. Não se olvide que o Banco mutuário deu essa oportunidade aos Recorridos, não tendo estes anuído e tendo reclamado a aplicação do REX.

Invocar a não aplicação do PERSI para concluir que o Banco estava impedido de intentar acção judicial para satisfação do seu crédito quando foi o próprio embargante quem rejeitou a aplicação do procedimento e após negociações que duraram cerca de um ano ao abrigo do REX, configura um abuso de direito por parte do apelante nos termos do art. 334.º do Código Civil”.

Apreciando:

Constitui facto incontestado que a exequente, convidada pelo tribunal de 1ª instância, oficiosamente, a comprovar o cumprimento da obrigação de integração do seu devedor no PERSI, apenas juntou, com o seu requerimento de 24 de Maio de 2022, o comprovativo de integração do executado/embargante no regime abrangido pela Lei n.º 58/2012, de 9 de Novembro, e a extinção do dito procedimento.

Ou seja, findo o procedimento previsto no regime especial definido na Lei n.º 58/2012, de 9 de Novembro, a exequente instituição financeira não procedeu de facto à integração do seu devedor e ora embargante no regime do PERSI, cujos pressupostos abrangiam, à partida, a situação em que se encontrava o mutuário, tendo não obstante instaurado a correspondente acção executiva.

Ora, a circunstância de, num primeiro momento, o seu cliente e mutuário devedor ter optado pelo regime extraordinário de protecção de devedores de crédito à habitação em situação económica muito difícil definido na Lei n.º 58/2012, de 9 de Novembro, quando foi informado, pela instituição financeira, da possibilidade de beneficiar do PERSI, não lhe retira, desde logo, os direitos resultantes do regime do Decreto-lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, enquanto procedimento extra-judicial prévio à instauração da acção (declarativa ou executiva), na medida em que não se trata de regimes que se substituam entre si (ou um ou o outro), salvaguardando-se a sua autonomia de aplicação e funcionamento, conforme aliás reconhece o acórdão recorrido.

Com efeito, a natureza de cada um dos procedimentos é distinta, sendo um de natureza geral e outro especial, em que predomina a competência do Banco Portugal para o conhecimento das eventuais reclamações, nos termos do artigo 39º, nº 6, da Lei nº 58/2012, de 9 de Novembro, embora tenham em comum algumas das finalidades gerais e próprias que prosseguem e a circunstância essencial de obstarem, sem a sua observância, à instauração da acção judicial respectiva para o reconhecimento ou efectivação do crédito por parte da entidade financeira credora (vide artigo 18º, nº 1, alínea b), do PERSI aprovado pelo Decreto-lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, em confronto com o artigo 17º, alínea b), da Lei nº 58/2012, de 9 de Novembro).

Importa, a este respeito, referir decisivamente que nenhuma disposição legal prevê e determina a exclusão de integração do devedor no PERSI em virtude da prévia pendência e extinção do procedimento previsto no regime especial definido na Lei n.º 58/2012, de 9 de Novembro.

(Neste sentido, nem o próprio acórdão recorrido afirmou a preclusão da aplicação do PERSI pela anterior pendência do procedimento sujeito ao Regime Extraordinário de Protecção de Devedores de Crédito Habitação em Situação Económica Muito Difícil, aprovado pela Lei n.º 58/2012, de 9 de Novembro).

Por outro lado, a figura do abuso do direito, genericamente prevista no artigo 334º do Código Civil pressupõe necessariamente que o seu exercício (neste caso a invocação da excepção dilatória inominada que resulta da não integração do devedor mutuário no PERSI) ofenda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito.

Não é o caso.

Existiu, por iniciativa do devedor mutuário, um procedimento especial junto da entidade financeira, o qual se gorou findo praticamente um ano, nos termos indicados supra (onde releva a não apresentação, no prazo fixado pela instituição de crédito, de um documento de natureza judicial – autorização a dar pelo tribunal para a oneração de imóvel transmitido ao filho do devedor do mutuário – que este não logrou obter no período que lhe foi concedido).

Todavia, a lei não impede, nestas mesmas circunstâncias, que os consumidores clientes/mutuários bancários possam beneficiar de nova oportunidade de restruturação da sua dívida no âmbito do PERSI, cuja aplicação é de natureza imperativa e do conhecimento oficioso por parte do tribunal.

Ou seja, não o vedando a lei – como efectivamente não veda – não é de considerar manifestamente abusivo, à luz do regime previsto no artigo 334º do Código Civil, que o mutuário/executado tente procurar uma nova oportunidade de renegociação da sua dívida no quadro de um regime geral que o sistema lhe confere e que norma legal alguma excluiu.

Neste caso concreto, nos próprios embargos opostos à acção executiva os embargantes nem fizeram qualquer referência à sua integração no PERSI (não a invocando como forma de extinção da execução contra si pendente).

O que diferentemente aconteceu foi que o tribunal de 1ª instância, durante a própria audiência de julgamento que teve lugar no dia 17 de Maio de 2022, face à imperatividade da aplicação da legislação referente ao PERSI, decidiu oficiosamente exigir à exequente a demonstração à exequente da integração do mutuário devedor no mesmo, o que, como resulta do que foi referenciado supra, manifestamente não aconteceu.

Considerando que, como se disse, os regimes previstos no PERSI e na Lei n.º 58/2012, de 9 de Novembro, o primeiro geral e o segundo de natureza especial, são autónomos entre si, não se substituindo ou excluindo reciprocamente (nada na lei o prevê), após a extinção do segundo teria obrigatoriamente a exequente que tomar em consideração o primeiro, procedendo desde logo à integração dos seus clientes bancários nesse mesmo regime, não se compreendendo neste específico contexto a avocação da válvula de seguração do sistema constituída pelo figura do abuso do direito quando a iniciativa no que respeita à necessidade de demonstração formal de tal integração imposta pelo regime do PERSI partiu do próprio tribunal e não dos embargantes.

O que significa que a alteração do decidido na sentença de 1ª instância apenas poderia ter por fundamento a errada valoração do tribunal quanto à necessidade de proceder oficiosamente à dita notificação e suas consequências processuais (o que não se alcança face ao regime legal aplicável e pelas razões aduzidas supra) e nunca a avocação da figura genérica do abuso do direito prevista no artigo 334º do Código Civil, cujos pressupostos de aplicação inexistem in casu manifestamente.

Concede-se assim a revista.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) conceder a revista, revogando o acórdão recorrido e repristinando-se a sentença de 1ª instância.

Custas pela recorrida.

Lisboa, 10 de Abril de 2024.

Luís Espírito Santo (Relator)

Amélia Ribeiro

Luís Correia de Mendonça

V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.