RECLAMAÇÃO CONTRA DESPACHO QUE NÃO ADMITIR OU RETIVER RECURSO
RENÚNCIA AO MANDATO
DEFENSOR OFICIOSO
Sumário

1 – A renúncia de mandatário constituído do arguido, no decurso de prazo para recurso, só suspende a contagem deste com a notificação da renúncia ao arguido, prosseguindo essa contagem com a constituição de novo mandatário.
2 – Após a nomeação de novo defensor, devendo ser somados os períodos de tempo em que o arguido esteve devidamente assistido por defensor, para efeitos de contado do prazo de interposição do recurso.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 353/23.2GABNV-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Local de Competência Criminal de Benavente – J1
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I – Relatório:
(…) veio reclamar do despacho de não admissão do recurso por si interposto, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º do Código de Processo Penal.
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Em 11/07/2023 foi depositada a sentença condenatória aqui em discussão.
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Em 03/08/2023 foi comunicada a renúncia ao mandato, tendo sido enviada em 04/08/2023 carta para notificação do arguido para efeitos da comunicação de tal acto e para, em 20 dias, constituir novo mandatário ou requerer a concessão de apoio judiciário. * Em 14/09/2023 o arguido requereu a concessão de apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono.
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O pedido em causa foi deferido em 29/09/2023.
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Por despacho de 03/10/2023, notificado à patrona nomeada no dia seguinte, que tinha o seguinte conteúdo: «(…) após nomeação e cumprimento integral do despacho, aguardem os autos o prazo de 30 dias, lavrando-se, após, conclusão, sem prejuízo de se abrir conclusão antes caso de sobrevir expediente que o justifique».
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Em 04/10/2023 procedeu-se à nomeação de defensor oficioso.
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O despacho de 03/10/2023 e a nomeação de 04/10/2023 foram notificados à ilustre patrona do arguido em 16/10/2023.
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Em 07/11/2023, o recorrente veio interpor recurso para o Tribunal da Relação de Évora relativamente à supra mencionada sentença.
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Em 06/12/2023 foi notificado o despacho de não admissão do recurso, por extemporaneidade.
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II – Dos factos com interesse para a decisão:
Os factos com interesse para a justa decisão do litígio são os que constam do relatório inicial.
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III – Enquadramento jurídico:
Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º[1] do Código de Processo Penal.
A interposição de recurso depende obrigatoriamente da assistência de um defensor legalmente habilitado para subscrever, seja através da constituição de mandato forense, seja por via do regime do patrocínio oficioso, em nome do arguido, o requerimento de interposição e a respectiva motivação de recurso (alínea d) do n.º 1 do artigo 64.º[2] do Código de Processo Penal).
A questão que se coloca na presente reclamação é a de saber se a renúncia ao mandato ocorrida nos autos teve a virtualidade de fazer interromper o decurso do prazo de interposição de recurso da sentença proferida, reiniciando-se o mesmo, na sua integralidade, após a notificação da nomeação do novo defensor.
O reclamante apoia a sua pretensão no disposto no n.º 5 do artigo 24.º[3] da Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais, por remissão do n.º 2 do artigo 34.º[4], enquanto a decisão recorrida se estriba no disposto no n.º 10 do artigo 39.º[5] do mesmo diploma, amparando-se na decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça de 09/11/2016 (Processo n.º 2356/14.9JAPRT.P1.S1).
Estamos numa área que o Código de Processo Penal é completamente omisso a respeito da questão da renúncia do mandato e, como tal, por força do artigo 4.º[6], impõe-se observar, quanto a esta matéria, as normas do processo civil que se harmonizam com o processo penal e, na falta delas, os princípios gerais do processo penal.
Em sede de direito adjectivo civil, a questão é disciplinada pelo artigo 47.º[7] do Código de Processo Civil, que afirma que os efeitos da revogação e da renúncia se produzem a partir da notificação ao mandante.
Efectivamente, a renúncia ao mandato por parte de advogado constituído pelo arguido não tem como consequência a imediata extinção da relação de mandato e a consequente cessação das obrigações do mandatário para com o seu cliente, mantendo-se o dever de prestar assistência ao mandante até que este seja notificado da declaração de renúncia.
Havendo renúncia ao mandato, por parte de mandatário constituído, quando decorre o prazo para interposição de recurso, impõe-se, na conjugação do artigos 47.º do Código de Processo Civil com o estatuídos nos artigos 64.º, n.º 1, alínea e) e 66.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, notificar o arguido pessoalmente para, querendo em 20 dias, constituir novo mandatário, com a advertência que caso não constituía mandatário, ser-lhe-á nomeado defensor oficioso.
E tal foi perfectibilizado com a notificação ocorrida em 03/08/2023, vindo, após férias judiciais, em 14/09/2023, o arguido requereu a concessão de apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono, pretensão que foi deferida a 29/09/2023. Posteriormente, em 04/10/2023, procedeu-se à nomeação de defensor oficioso, sendo que o despacho de 03/10/2023 e a mencionada nomeação foram notificados à ilustre patrona do arguido em 16/10/2023.
É inegável que a mudança da pessoa do defensor, no decurso do prazo de recurso, é susceptível de causar alguma perturbação ao exercício do respectivo direito, mas tal não significa que, numa visão geral e abstracta, a não interrupção do prazo possa atingir, de modo inadmissível, a possibilidade do arguido recorrer das decisões que o afectam.
Neste parâmetro, é entendimento consolidado na jurisprudência dos Tribunais Superiores e do próprio Tribunal Constitucional que o prazo para a interposição do recurso é atribuído ao arguido e não à pessoa do seu defensor, não exigindo a necessidade de garantia de um efectivo direito ao recurso em processo penal, que se concedam tantos prazos distintos quantos os defensores que se sucedam na assistência ao arguido.
De acordo com o supracitado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, «os prazos em curso no processo penal, nomeadamente o prazo para interposição de recurso não se suspendem nem se interrompem por via da renúncia ao mandato por parte do advogado constituído do arguido».
Não se comunga na sua completude da fundamentação convocada no arresto que fundamenta o indeferimento da admissão do recurso, até porque não existe uma identidade absoluta com a questão que aqui se decide. Na verdade, a dimensão do direito à assistência pelo Advogado, em associação com a garantia de defesa efectiva, não autoriza uma leitura textual do disposto no n.º 10 do artigo 39.º da Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais, no sentido de o requerimento para a concessão de apoio judiciário não afectar a marcha do processo durante o período em que o arguido está efectivamente desprovido de patrocínio judiciário, pois daí resulta a impossibilidade de defesa ou a sua dificuldade excessiva e injustificada.
Nesta esfera, devem considerar-se ilegítimas as normas e as aplicações normativas que impliquem um encurtamento inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável das possibilidades de defesa do arguido.
Recorde-se que, naquele outro caso tratado pelo Supremo Tribunal de Justiça, ao tempo da renúncia, já havia decorrido o prazo para a interposição do recurso, enquanto na situação vertente entre 1 de Setembro de 2023 e a data da notificação da nomeação de patrono, o arguido esteve desprovido de quem o representasse em juízo.
Convém assinalar que, no presente âmbito hermenêutico, nos seus traços fundamentais, o Tribunal Constitucional apreciou a questão aqui colocada nos acórdãos n.ºs 314/2007, 487/2018 e 501/2021, tendo emitido posição no sentido que «a renúncia de mandatário constituído do arguido, no decurso de prazo para recurso, só suspende a contagem deste com a notificação da renúncia ao arguido, prosseguindo essa contagem com a constituição de novo mandatário».
Neste entendimento, deve ser contabilizado o prazo que decorreu entre o depósito da decisão recorrida (a sentença foi proferida e lida em 10/07/2023, mas a acta apenas ficou disponibilizada no sistema Citius no dia seguinte) e o início das férias judiciais de Verão – 12 a 15 de Julho de 2023 – e, posteriormente, após a comunicação à defensora oficiosa da respectiva nomeação (16/10/2023), acrescida da presunção de conhecimento no terceiro dia posterior ao do seu envio (19/10/2023), entre esta última data e o momento da apresentação do recurso.
Nesta matéria, devem ser considerados os dois períodos, somando-os, mas apenas no período em que o arguido esteve devidamente assistido por defensor.
E da conjugação destas datas resulta que o prazo para a apresentação do recurso não se mostrava ultrapassado. E, por isso, o recurso em discussão é tempestivo, alterando-se, assim, a decisão reclamada.
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IV – Sumário: (…)
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção as considerações expendidas e o quadro legal aplicável, concede-se provimento à reclamação, admitindo-se o recurso apresentado.
Sem tributação.
Notifique.
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Requisite o processo principal ao Tribunal recorrido.
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Processei e revi.
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Évora, 03/04/2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho

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[1] Artigo 405.º (Reclamação contra despacho que não admitir ou que retiver o recurso):
1 - Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige.
2 - A reclamação é apresentada na secretaria do tribunal recorrido no prazo de 10 dias contados da notificação do despacho que não tiver admitido o recurso ou da data em que o recorrente tiver tido conhecimento da retenção.
3 - No requerimento o reclamante expõe as razões que justificam a admissão ou a subida imediata do recurso e indica os elementos com que pretende instruir a reclamação.
4 - A decisão do presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar o despacho de indeferimento. No caso contrário, não vincula o tribunal de recurso.
[2] Artigo 64.º (Obrigatoriedade de assistência):
1 - É obrigatória a assistência do defensor:
a) Nos interrogatórios de arguido detido ou preso;
b) Nos interrogatórios feitos por autoridade judiciária;
c) No debate instrutório e na audiência;
d) Em qualquer acto processual, à excepção da constituição de arguido, sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída;
e) Nos recursos ordinários ou extraordinários;
f) Nos casos a que se referem os artigos 271.º e 294.º;
g) Na audiência de julgamento realizada na ausência do arguido;
h) Nos demais casos que a lei determinar.
2 - Fora dos casos previstos no número anterior pode ser nomeado defensor ao arguido, a pedido do tribunal ou do arguido, sempre que as circunstâncias do caso revelarem a necessidade ou a conveniência de o arguido ser assistido.
3 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, se o arguido não tiver advogado constituído nem defensor nomeado, é obrigatória a nomeação de defensor quando contra ele for deduzida a acusação, devendo a identificação do defensor constar do despacho de encerramento do inquérito.
4 - No caso previsto no número anterior, o arguido é informado, no despacho de acusação, de que fica obrigado, caso seja condenado, a pagar os honorários do defensor oficioso, salvo se lhe for concedido apoio judiciário, e que pode proceder à substituição desse defensor mediante a constituição de advogado.
5 - Sendo arguida uma pessoa coletiva ou entidade equiparada é correspondentemente aplicável o disposto nos números anteriores.
[3] Artigo 24.º (Autonomia do procedimento):
1 - O procedimento de protecção jurídica na modalidade de apoio judiciário é autónomo relativamente à causa a que respeite, não tendo qualquer repercussão sobre o andamento desta, com excepção do previsto nos números seguintes.
2 - Nos casos previstos no n.º 4 do artigo 467.º do Código de Processo Civil e, bem assim, naqueles em que, independentemente das circunstâncias aí referidas, esteja pendente impugnação da decisão relativa à concessão de apoio judiciário, o autor que pretenda beneficiar deste para dispensa ou pagamento faseado da taxa de justiça deve juntar à petição inicial documento comprovativo da apresentação do respectivo pedido.
3 - Nos casos previstos no número anterior, o autor deve efectuar o pagamento da taxa de justiça ou da primeira prestação, quando lhe seja concedido apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado de taxa de justiça, no prazo de 10 dias a contar da data da notificação da decisão que indefira, em definitivo, o seu pedido, sob a cominação prevista no n.º 5 do artigo 467.º do Código de Processo Civil.
4 - Quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na pendência de acção judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo.
5 - O prazo interrompido por aplicação do disposto no número anterior inicia-se, conforme os casos:
a) A partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação;
b) A partir da notificação ao requerente da decisão de indeferimento do pedido de nomeação de patrono.
[4] Artigo 34.º (Pedido de escusa):
1 - O patrono nomeado pode pedir escusa, mediante requerimento dirigido à Ordem dos Advogados ou à Câmara dos Solicitadores, alegando os respectivos motivos.
2 - O pedido de escusa, formulado nos termos do número anterior e apresentado na pendência do processo, interrompe o prazo que estiver em curso, com a junção dos respectivos autos de documento comprovativo do referido pedido, aplicando-se o disposto no n.º 5 do artigo 24.º.
3 - O patrono nomeado deve comunicar no processo o facto de ter apresentado um pedido de escusa, para os efeitos previstos no número anterior.
4 - A Ordem dos Advogados ou a Câmara dos Solicitadores aprecia e delibera sobre o pedido de escusa no prazo de 15 dias.
5 - Sendo concedida a escusa, procede-se imediatamente à nomeação e designação de novo patrono, excepto no caso de o fundamento do pedido de escusa ser a inexistência de fundamento legal da pretensão, caso em que pode ser recusada nova nomeação para o mesmo fim.
6 - O disposto nos n.ºs 1 a 4 aplica-se aos casos de escusa por circunstâncias supervenientes.
[5] Artigo 39.º (Nomeação de defensor):
1 - A nomeação de defensor ao arguido, a dispensa de patrocínio e a substituição são feitas nos termos do Código de Processo Penal, do presente capítulo e da portaria referida no n.º 2 do artigo 45.º
2 - A nomeação é antecedida da advertência ao arguido do seu direito a constituir advogado.
3 - Caso não constitua advogado, o arguido deve proceder, no momento em que presta termo de identidade e residência, à emissão de uma declaração relativa ao rendimento, património e despesa permanente do seu agregado familiar.
4 - A secretaria do tribunal deve apreciar a insuficiência económica do arguido em função da declaração emitida e dos critérios estabelecidos na presente lei.
5 - Se a secretaria concluir pela insuficiência económica do arguido, deve ser-lhe nomeado defensor ou, no caso contrário, adverti-lo de que deve constituir advogado.
6 - A nomeação de defensor ao arguido, nos termos do número anterior, tem carácter provisório e depende de concessão de apoio judiciário pelos serviços da segurança social.
7 - Se o arguido não solicitar a concessão de apoio judiciário, é responsável pelo pagamento do triplo do valor estabelecido nos termos do n.º 2 do artigo 36.º.
8 - Se os serviços da segurança social decidirem não conceder o benefício de apoio judiciário ao arguido, este fica sujeito ao pagamento do valor estabelecido nos termos do n.º 2 do artigo 36.º, salvo se se demonstrar que a declaração proferida nos termos do n.º 3 foi manifestamente falsa, caso em que fica sujeito ao pagamento do quíntuplo do valor estabelecido no n.º 2 do artigo 36.º.
9 - Se, no caso previsto na parte final do n.º 5, o arguido não constituir advogado e for obrigatória ou considerada necessária ou conveniente a assistência de defensor, deve este ser nomeado, ficando o arguido responsável pelo pagamento do triplo do valor estabelecido nos termos do n.º 2 do artigo 36.º.
10 - O requerimento para a concessão de apoio judiciário não afecta a marcha do processo.
[6] Artigo 4.º (Integração de lacunas):
Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.
[7] Artigo 47.º (Revogação e renúncia do mandato):
1 - A revogação e a renúncia do mandato devem ter lugar no próprio processo e são notificadas tanto ao mandatário ou ao mandante, como à parte contrária.
2 - Os efeitos da revogação e da renúncia produzem-se a partir da notificação, sem prejuízo do disposto nos números seguintes; a renúncia é pessoalmente notificada ao mandante, com a advertência dos efeitos previstos no número seguinte.
3 - Nos casos em que seja obrigatória a constituição de advogado, se a parte, depois de notificada da renúncia, não constituir novo mandatário no prazo de 20 dias:
a) Suspende-se a instância, se a falta for do autor ou do exequente;
b) O processo segue os seus termos, se a falta for do réu, do executado ou do requerido, aproveitando-se os atos anteriormente praticados;
c) Extingue-se o procedimento ou o incidente inserido na tramitação de qualquer ação, se a falta for do requerente, opoente ou embargante.
4 - Sendo o patrocínio obrigatório, se o réu, o reconvindo, o executado ou o requerido não puderem ser notificados, é nomeado oficiosamente mandatário, nos termos do n.º 3 do artigo 51.º.
5 - O advogado nomeado nos termos do número anterior tem direito a exame do processo, pelo prazo de 10 dias.
6 - Se o réu tiver deduzido reconvenção, esta fica sem efeito quando for dele a falta a que se refere o n.º 3; sendo a falta do autor, segue só o pedido reconvencional, decorridos que sejam 10 dias sobre a suspensão da ação.