ARTIGO 355º DO CPP
RELATÓRIO SOCIAL
DECISÃO SUMÁRIA
DIREITO AO RECURSO
Sumário

- De acordo com o estabelecido no artigo 355º, do CPP, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência – nº 1 - ressalvando-se as contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes – nº 2.
Como reiteradamente tem decidido o Supremo Tribunal de Justiça, “a exigência do art. 355.º prende-se apenas com a necessidade de evitar que concorram para a formação daquela convicção provas que não tenham sido apresentadas e feitas juntar ao processo pelos intervenientes, com respeito pelo princípio do contraditório, e não que tenham de ser reproduzidas na audiência, isto é, lidas ou apresentadas formalmente aos sujeitos processuais todas as provas documentais dele constantes. Basta que existam no processo com pleno conhecimento dos sujeitos processuais, que puderam inteirar-se da sua natureza, da sua importância e do seu conteúdo, bem como do seu valor probatório, para que qualquer desses sujeitos possa, em audiência, requerer o que se lhe afigurar sobre elas, examiná-las, contraditá-las e realçar o que, do seu ponto de vista, valem em termos probatórios. Neste sentido, tais provas são examinadas em audiência, sob a presidência dos princípios da imediação e do contraditório, podendo concorrer sem reservas para a convicção do tribunal” - Ac. do STJ de 15/02/2007, Proc. nº 06P4092, disponível em www.dgsi.pt.
- Tendo o relatório social sido solicitado por despacho judicial que recebeu a acusação e designou data para a audiência de julgamento( pelo que, obviamente, não podia constar da acusação, mas a sua solicitação está coberta pelo estabelecido no artigo 370º, nº 1, do CPP) e junto aos autos, sendo do seu teor notificada a Ilustre Defensora antes mesmo do início da audiência, foi assegurado o contraditório,
- A apreciação do recurso por decisão sumária não elimina a garantia de recurso que resulta da norma contida no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa. Desde logo, porque os fundamentos vertidos nas conclusões da respectiva motivação foram integral e efectivamente analisados pelo Tribunal da Relação (ainda que por intermédio do Relator), em ordem à demonstração da manifesta inviabilidade da pretensão do recorrente que neles tem alicerce.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o nº 304/22.1GDSTR, do Tribunal Judicial da Comarca de …– Juízo Local Criminal de … – Juiz …, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi o arguido AA condenado, por sentença de 19/10/2023, nos seguintes termos:

Pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, que assentará em plano de reinserção social a elaborar pelos Serviços de Reinserção Social.

Mais foi condenado o arguido na pena acessória de proibição de contactos com BB, incluindo o seu afastamento da residência e do local de trabalho desta, com sujeição a meios de controlo à distância, pelo período de 2 anos e 10 meses.

E também condenado foi a pagar à vítima BB uma compensação no valor de 400,00 euros, a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora a contar da data da sentença, até efectivo e integral pagamento, à taxa legal de 4%.

2. O arguido não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

I -A sentença viola o artigo 125.º do C.P.P.

Do confronto entre o Relatório Social e o teor do facto dado como provado sob o n.º 22 na sentença proferida pelo douto Tribunal - o qual também supra se transcreveu - forçoso é concluir que o artigo 22 dos factos dado como provados é uma reprodução ipsis verbis de parte do Relatório Social.

Tanto mais que não foi, no âmbito dos autos sub Júdice, determinada nem, consequentemente, realizada qualquer perícia sobre a personalidade do arguido (nos termos do artigo 160 do CPP).

Atento o que precede e considerando que o trecho do Relatório Social a que se vem de fazer menção será uma citação de psicóloga que acompanha o Arguido, forçoso é concluir que foi pela mesma psicóloga violado o dever de privacidade e confidencialidade que impende sobre os psicólogos.

Do que resulta que uma sentença que se estribe em tal informação prestada pela psicóloga do arguido é uma prova não admissível, precisamente porque é proibida por lei - cfr. art. 125.º do CPP:

Ou, dito de outra forma: considerando que os psicólogos estão legalmente obrigados - Regulamento n.º 258/2011, de 20 de abril na sua versão actualizada ao dever de privacidade e confidencialidade qualquer informação que prestem com desrespeito por este dever legal será ilegal. Donde o uso de tal informação será inadmissível, porquanto é proibida por lei - cfr. art. 125.º do CPP

II - A sentença viola o artigo 125.º do C.P.P.

Do confronto entre o trecho, que se vem de transcrever, do Relatório Social e o teor do facto dado como provado sob o n.º 22 na sentença proferida pelo douto Tribunal - o qual também supra se transcreveu - forçoso é concluir que o artigo 22 dos factos dado como provados é uma reprodução de parte do Relatório Social.

Tanto mais que não foi, no âmbito dos autos sub Júdice, determinada nem, consequentemente, realizada qualquer perícia sobre a personalidade do arguido (nos termos do artigo 160 do CPP).

Atento o que precede e considerando que o trecho do Relatório Social a que se vem de fazer menção será uma citação de psicóloga que acompanha o Arguido, forçoso é concluir que foi pela mesma psicóloga violado o dever de privacidade e confidencialidade que impende sobre os psicólogos.

Do que resulta que uma sentença que se estribe em tal, alegada, informação prestada pela psicóloga do arguido é uma prova não admissível, precisamente porque é proibida por lei - cfr. art. 125.º do CPP:

Ou, dito de outra forma: considerando que os psicólogos estão legalmente obrigados - Regulamento n.º 258/2011, de 20 de abril na sua versão actualizada ao dever de privacidade e confidencialidade qualquer informação que prestem com desrespeito por este dever legal será ilegal. Donde o uso de tal informação será inadmissível, porquanto é proibida por lei - cfr. art. 125.º do CPP

III - Da contradição insanável da fundamentação - contradição entre o facto dado como provado sob o número 12 e o facto dado como provado sob o n.º 24 na sentença ora em crise

IV- Da violação do artigo do CP - Questão de ser desproporcional a aplicação da pena acessória de proibição de contactos com BB, incluindo o seu afastamento da residência e do local de trabalho desta, com sujeição a meios de controlo à distância atenta a contradição insanável na fundamentação da sentença ora sob censura que se apontou no ponto imediatamente antecedente não é proporcional a aplicação ao arguido da pena acessória da proibição de contactos com BB, incluindo o seu afastamento da residência e do local de trabalho desta

TERMOS EM QUE, nos melhores de direito que V. Exas. Venerandos Desembargadores doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se em consequência o douto acórdão proferido em primeira instância, com a absolvição total do arguido pelo crime pelo qual foi condenado, ou, em alternativa revogando a condenação na pena acessória de afastamento da residência e local de trabalho da Ofendida.

Assim se fazendo a já costumada JUSTIÇA

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

4. A Digna Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta à motivação de recurso, pugnando pelo seu não provimento.

5. Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente.

6. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta pelo arguido.

7. No exame preliminar, o Relator proferiu decisão sumária, aos 18/03/2024, rejeitando o recurso por manifesta improcedência, nos termos dos artigos 417º, nº 6, alínea b) e 420º, nº 1, alínea a), do CPP.

8. Notificado desta decisão sumária, o recorrente/arguido veio reclamar para a conferência, com os fundamentos que se transcrevem:

1.º

A decisão sumária de rejeição de recurso interposto pelo ora Reclamante teve como fundamento o entendimento do Exmo. Relator de que se verifica a manifesta improcedência do recurso.

A verdade, porém, é que,

2.º

Depois de asseverar que o recurso é manifestamente improcedente, o Exmo. Relator debruçando-se sobre as conclusões do mesmo recurso, refere que “as questões que se suscitam são as seguintes:

Verificação do vício elencado no art. 410, n.º 2, alínea b), do CPP;

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento/recurso a prova proibida para formação da convicção do julgador;

Desproporcionalidade da pena acessória aplicada.”

3.º

Após o que apreciou de forma individualizada, ao longo de mais de seis páginas, cada uma das sobreditas questões, decidindo sobre a procedência/improcedência das mesmas.

Ora

4.º

Salvo o devido respeito, a forma como o Exmo. Relator analisa as questões e a pertinência e bondade das mesmas revela de forma elucidativa que o recurso em enfoque não é manifestamente improcedente.

Com efeito,

5.º

Uma coisa é depois de se analisar as questões suscitadas pelo Recorrente e debruçar-se sobre as mesmas se concluir que o recurso não deve ser considerado procedente, outra coisa, totalmente distinta, é considerar que o recurso é manifestamente improcedente.

6.º

Consignou o Exmo. Relator na decisão sumária ora reclamada que: “A lei não define o que seja a manifesta improcedência, mas a jurisprudência dos nossos Tribunais superiores que sobre a questão se tem debruçado, considera que se verifica quando o recurso se mostre desprovido de quando a sua inviabilidade se revele inequívoca.”

Sendo que de acordo com um dos Acordãos do STJ que citou – Ac do STJ de 23/06/2022, Proc. N.º 38/20.1PKSNT.L1.S1 – existirá manifesta improcedência quando seja inequívoco que a argumentação usada para atacar a decisão de que se recorre, de modo algum pode conduzir ao efeito jurídico pretendido pelo recorrente.”

7.º

Citação que aqui se repete precisamente porque, salvo o devido respeito, analisado o teor do recurso interposto pelo ora Reclamante forçoso é concluir que não é verdade que a argumentação usada para atacar a decisão não pudesse conduzir ao feito pretendido pelo recorrente.

Isto dito,

8.º

Importa citar um outro acórdão proferido por aquele mais Alto Tribunal relativamente à questão da manifesta improcedência do recurso, o qual aclara o modo como deve ser interpretado o conceito indeterminado que é precisamente “a manifesta improcedência: “I. A manifesta improcedência constitui um fundamento de rejeição do recurso de natureza substancial, visando os casos em que os termos do recurso não permitem a cognição do tribunal ad quem, ou quando, versando sobre questão de direito, a pretensão não estiver minimamente fundamentada, ou for claro, simples, evidente e de primeira aparência que não pode obter provimento. Será o caso típico de invocação contra a matéria de facto directamente provada, de discussão processualmente inadmissível sobre a decisão em matéria de facto, ou de o recurso respeitar à qualificação e à medida da pena e não ser referida nem existir fundamentação válida para alterar a qualificação acolhida ou a pena que foi fixada pela decisão recorrida.”- Acordão do STJ, proferido no processo 06P40874, disponível in www.dgsi.pt.

Do que decorre que,

9.º

Não é manifesta a improcedência do recurso interposto pelo ora Reclamante, motivo pelo qual o entendimento do Exmo. Relator viola a norma contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 420.º do C.P.P.

10.º

Aplicando-se aqui, salvo o devido respeito, mutatis mutandis, as eloquentes e eruditas palavras vertidas pelo STJ no proc. 238/21.7GATVD.L1.S1, 3.ª Secção, disponível in www.dgsi.pt : “VIII. Por isso, em interpretação conforme à constituição, nomeadamente à garantia de recurso que do artigo 32º, nº 1, da CRP se extrai, não pode, em terreno de tão grande subjetividade, acabar por se eliminar o grau de recurso do arguido.

IX. Assim, na senda quer da jurisprudência constitucional (ac. do TC 107/2012) quer tendo em conta o acórdão do STJ de 09/12/2021, face à intensidade lesiva/ofensiva da decisão recorrida materializada na operatividade do trânsito em julgado da decisão condenatória proferida em primeira instância, se concluirá que “é tão gravosa a decisão condenatória como aquela que não admite o recurso dela interposto”, acabando por afrontar-se de modo desproporcional o direito de defesa do arguido, eliminando o seu direito a um grau de recurso – artº 32º, nº 1 da CRP.

X. Como o TC assinalou, também aqui de um juízo de falta de concisão das conclusões extraiu- se uma consequência drástica: a rejeição de um recurso de uma decisão condenatória, ou seja, a obstaculização de um direito fundamental em matéria criminal, como é o direito de defesa, na sua dimensão de direito ao recurso, tanto mais drástica quanto se mostra apreensível o efeito pretendido, in minime no que toca à visada diminuição da concreta pena aplicada e o decidido se move em área de enorme subjetividade no que toca ao juízo de concisão.”

XI. Assim, se decide conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido revogando o acórdão recorrido e determinando que seja substituído por outro que aprecie o recurso interposto por este arguido no que tange ao objeto extraído da apreensão possível das suas conclusões.”

Nestes termos, nos mais de Direito, com o sempre mui douto suprimento de V. Ex.ªs

Deve ser declarada totalmente procedente a presente Reclamação para a Conferência apresentada pelo arguido AA, revogando-se a decisão sumária proferida pelo Exmo. Relator, sendo, consequentemente, admitido e apreciado o recurso.

9. A reclamação para a conferência foi admitida.

10. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A aludida decisão sumária de 18/03/2024 tem o seguinte teor, na parte relevante (transcrição):

A Decisão Recorrida

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

1. BB e o aqui arguido, AA, casaram um com o outro em …1975, tendo fixado residência Rua …, em …, ….

2. Fruto da referida união vieram a nascer dois filhos, CC e DD, ambos já maiores de idade e autonomizados do agregado familiar dos pais.

3. Em …2019 o casal divorciou-se, sendo que a …2019 casaram novamente um com o outro.

4. Desde a data da sentença referida infra em 26. que o arguido não permite que BB se sirva do micro-ondas nem da máquina de lavar roupa.

5. Em data não concretamente apurada, mas situada entre dezembro de 2022 e março de 2023, o arguido, discutindo com BB, apodou-a de «mentirosa» e «aldrabona».

6. Em data não concretamente apurada, mas situada entre Fevereiro e março de 2023, no exterior da casa de morada de família, e ao se aperceber que BB estava a conversar com a vizinha, EE, o arguido voltou a gritar com aquela, dizendo que não a queria a falar com a vizinha e que já lhe tinha dito que estava proibida de o fazer.

7. Entre dezembro de 2022 e março de 2023, em várias discussões, o arguido disse à sua companheira que a matava e que depois se suicidava, e que assim acabava com esta merda toda, o que disse pelo menos por duas vezes e em dias distintos.

8. Desde a data da primeira condenação infra referida infra em 26. que o arguido pede a BB a devolução da quantia de 500.00€ em que foi condenado a pagar àquela, assim como lhe diz que ela haverá de gastar três vezes mais do que a quantia daquela indemnização em medicamentos para se tratar.

9. Com as condutas descritas, o arguido representou e quis, como fez, molestar psicologicamente BB, sua cônjuge, no domicílio comum do casal, atentando, desta forma, contra a sua saúde psicológica, consideração e dignidade humana, rebaixando-a e humilhando-a, o que fez com o único intuito de diminuir a dignidade desta e causar-lhe sofrimento.

10. Assim como representou e quis causar-lhe receio de vir a atentar contra a sua integridade física e vida, causando-lhe um constante temor;

11. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e tinha capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento;

12. BB pretende manter-se casada com o arguido.

Factos relativos às condições pessoais, económicas e sociais do arguido.

13. O arguido não se relaciona com os filhos devido a conflitos ao longo dos anos.

14. Em termos escolares e profissionais, o arguido depois de concluir o 4.º ano de escolaridade começou a trabalhar no setor rural para ajudar a família de origem, revelando posteriormente um percurso laboral com hábitos de trabalho, desenvolvido no setor da construção, tendo inclusive trabalhado como carpinteiro de cofragem no estrangeiro.

15. Nos últimos anos da sua atividade laboral desempenhou funções de motorista, tendo-se reformado aos 61 anos de idade.

16. Economicamente subsiste com a sua pensão social por velhice no valor mensil de 666,68, sendo as suas despesas a prestação da viatura, a prestação da motorizada, seguro de ambas viaturas e farmácia, cujos valores ascendem a €180,00, €75,44 e €47,56 e €120,00, respetivamente, contando ainda com despesas relativas à alimentação.

17. Socialmente o arguido revela uma presença comunitária discreta.

18. O arguido assume um papel de vítima, remetendo as responsabilidades para fatores externos à sua pessoa, revelando dificuldades de discernimento na compreensão da realidade.

19. É uma pessoa com fraca capacidade de resistir à frustração;

20. No plano da saúde, o arguido tem problemas na coluna (hérnias) que limitam a sua locomoção, deslocando-se com apoio de muletas;

21. Enerva-se com facilidade, tendo tido dois AVC isquémicos em 2010, sendo acompanhado pela sua médica de família;

22. O arguido revela uma perturbação da personalidade narcísica, na qual tem muito potenciada a sua impulsividade e passagem rápida ao acto, sendo inconsequente, não reúne condições de insight para qualquer eficácia de julgamento, tal como não tem capacidade para lidar com as suas frustrações, vitimizando-se pelos atos dos outros, sendo hostil e atribuindo os resultados dos seus actos às atitudes e comportamentos dos outros.

23. O comportamento do arguido é originado por fragilidades relacionadas com as suas competências pessoais.

24. Desde a última condenação infra referida em 26. não tem havido alteração significativa do comportamento do arguido, pelo que a manutenção da coabitação, neste cenário de conflito, constituiu e constitui um fator de risco para BB e para o próprio arguido.

Factos relativos às condições pessoais, económicas e sociais de BB

25. BB recebe mensalmente €400,00 de reforma e cerca de €200,00 pela realização de serviços domésticos.

Factos relativos aos antecedentes criminais do arguido

26. Por sentença proferida a 10.10.2022 e transitada em julgado em 09.11.2022, no âmbito do Processo Comum n.º 30/22.1…, que correu termos no Juízo Local Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de … Juiz …-, o arguido foi condenado em 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de pena de prisão, suspensa na execução por igual período, pela prática, em 20.02.2022, de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo disposto no artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 alínea a) do Código Penal cometido sobre BB.

Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição):

1. Que no mês de dezembro de 2022 o arguido iniciou uma discussão com BB em que lhe transmitiu que esta apenas podia comer os alimentos que tivesse comprado;

2. Que nas circunstâncias referidas em 7. Dos factos provados o arguido afirmava que BB o roubou;

3. Que no período temporal referido em 4. o arguido apodou BB de «intrujona»;

4. Que BB dirige expressões, igualmente ofensivas ao arguido, concretamente «és uma merda, um reles, um ordinário, vai para as putas.»;

Os demais factos alegados e que aqui não se encontram discriminados constituem matéria irrelevante, ou que encerra menções conclusivas ou de direito, motivo pelo qual não recaiu sobre os mesmos qualquer consideração probatória.

Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

As declarações e os depoimentos prestados em audiência de julgamento foram gravados.

O tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos provados na análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, à luz das regras da experiência comum e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º, do Código de Processo Penal), designadamente os depoimentos das testemunhas, bem como o acervo documental junto aos autos.

Importa referir que se segue o entendimento segundo o qual se deve apreciar factos como os não provados que relevância para a boa decisão da causa, sejam carreados para o processo pela defesa em sede de audiência de julgamento, importando a sua consignação e motivação expressa, na esteira dos acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.01.2012 com o n.º de processo 392/10.3PCCBR.C1.

Quanto à prova documental, o Tribunal valorou os documentos constantes dos autos, nos termos consagrados no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 87/99, de 09/02/1998, ou seja, tenham ou não sido expressa e formalmente debatidos em audiência de julgamento, porquanto o seu teor sempre poderia ter sido ter sido questionado e apreciado naquela sede, ficando assegurado o exercício do princípio do contraditório.

Efectivamente não basta a indicação dos meios de prova pré constituídos e produzidos audiência de julgamento que serviram para fundamentar a sentença.

É ainda necessário um exame crítico desses meios, que servirá para convencer os interessados e a comunidade em geral da correcta aplicação da justiça no caso concreto. Trata-se de significativa alteração do regime do Código de Processo Penal de 1929, e mesmo do que, segundo alguma doutrina, anteriormente, vigorava por alterações introduzidas no C.P.P.

Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum), nem os meios de prova (thema probandum), mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.

A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, conforme impõe o art. 410°, n.º 2. Do C. P. P..

E extraprocessualmente a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade.

Concretizando.

Quanto à prova documental o Tribunal ateve-se ao 1 [i.] Auto de notícia (cfr. referência citius n.º …), 2 [ii.] à ficha RVD 2L (cfr. referência citius n.º …), 3 [iii.] ao relatório elaborado pela DGRSP de 04.09.2023 (cfr. referência citius n.º …) e 4 [iv.] ao certificado de registo criminal datado de 07.08.2023 (cfr. referência citius n.º …).

Já quanto à prova pessoal coube atender, primeiramente, às declarações do arguido, às declarações da testemunha BB, casada com o arguido (e devidamente advertida nos termos e para os efeitos do artigo 134.º do Código de Processo Penal), e ainda às declarações da testemunha EE, vizinha de ambos, e que referiu estar de relações cortadas com o arguido.

No que concerne aos factos provados n.ºs 1 a 3 da factualidade mencionada, o Tribunal ateve-se às declarações do arguido e da testemunha BB, porquanto ambos relataram a vivência comum de modo consonante, com espontaneidade e transparência e com referência às datas reputando-se, como tal, credíveis e verdadeiros.

Ora, a mesma análise já não pode ser estendida à matéria discutida nos próximos pontos.

Assim, no que importa aos factos provados n.ºs 4 a 9 a versão do arguido não se mostrou compatível com a versão das testemunhas BB e EE.

Genericamente, quanto a uma parte dos factos de que vem acusado (n.ºs 4, 5, 6 e 7), o arguido não os nega frontalmente, antes admite que possam ter ocorrido numa conjuntura de conflitualidade recíproca.

Quanto à restante parte dos factos (n.ºs 8 e 9), segundo o arguido, não existiram.

Examinando o primeiro bloco de factos provados (n.ºs 4, 5, 6 e 7) o Tribunal ateve-se aos depoimentos das testemunhas em detrimento das declarações do arguido, pelas razões que infra se demonstrarão.

Desde logo importa assinalar que o depoimento da testemunha BB, pese embora tenha manifestado dificuldades em circunstanciar temporalmente os eventos descritos, foi relevado em alto grau, pois com compreensível emotividade mostrou elevada sinceridade e objetividade.

Com efeito, de modo totalmente espontâneo e sem qualquer hesitação, a testemunha acrescentou factos suscetíveis de favorecer o arguido (v.g. o arguido nunca lhe chamou filha da puta, ou porca; que o arguido nunca lhe bateu; e ainda que, por sua vontade, mantinha o casamento com o arguido), como também fazia precisões contrárias ao teor da acusação (v.g. o facto de a divisão dos bens não ter sido motivo de discussão).

Embora os factos provados não o espelhem, pela falta de precisão quanto às concretas datas em que ocorreram os eventos ora descritos, salienta-se que a testemunha relatou vagamente múltiplos episódios em que o arguido andava à volta da mesa a gritar com a mesma, e que «passado um dia ou dois após a sua condenação as discussões e os gritos do arguido voltaram». Evidenciou ainda que por vezes tinha de fugir do arguido porque os seus gritos lhe causavam dor nos ouvidos, versão que se afigurou bastante credível, uma vez que foi dotada de relevantes pormenores.

Já no que concerne aos pontos fundamentais da matéria de facto provada, e concretamente versando sobre os factos n.ºs 4, 5, 6 e 7 a testemunha BB falou com propriedade, relatando a vivência de ambos, concretizando convincente e com assinalável espontaneidade que arguido, por diversas vezes, adquire uma postura litigiosa e confrontativa tendo-lhe chamado já de «mentirosa» e «aldrabona» e que, por vezes, grita-lhe aos ouvidos com as mãos colocadas sobre a sua face, uma em cada lado (tendo a própria testemunha expressado por via de gestos), que tinha de lavar a sua roupa à mão ou a casa de amigas e que o arguido também não deixa usar o micro-ondas, arrancando as suas tomadas.

Igualmente, também a impede de contactar com a sua vizinha, EE, aqui testemunha, designadamente discutindo consigo quando se apercebe da existência de contacto entre ambas.

Por seu turno, o próprio arguido admitiu que era possível ter proferido as referidas expressões.

Reforça ainda a convicção do Tribunal o depoimento prestado pela testemunha EE, a qual asseverou ter ouvido, por diversas vezes, episódios de conflito entre ambos, escutando os gritos do arguido, mormente quando se encontra em chamada telefónica com a testemunha BB, (precisando o modo e frequência), mas também presencialmente.

Por outro lado esta testemunha, EE, afirma que BB coloca o telemóvel escondido enquanto está em chamada com a sua vizinha, e que ouviu «inúmeras» vezes os insultos proferidos de «aldrabona» e «mentirosa», estando o seu depoimento em consonância com as demais regras da lógica, da experiência comum e da normalidade do acontecer sobretudo tendo presente o ambiente que ambas as testemunhas referem existir.

Ademais, a testemunha supramencionada refere ainda que quando se deslocava de carro e de passagem por casa do arguido, assistiu aos gritos daquele num momento em que discutia com BB, impondo-lhe que não contactasse com os seus vizinhos.

Não obstante a testemunha BB mostrar dificuldade em situar temporalmente as aludidas condutas, a testemunha EE mostrou-se de memória mais avivada asseverando convincentemente que ouviu tais expressões e que foram proferidas por referência ao período temporal entre dezembro de 2022 e março de 2023.

No que concerne aos factos provados n.ºs 7 e 8 o Tribunal considerou isoladamente o depoimento da testemunha BB, pois mostrou-se uma testemunha credível e, também quanto a estes pontos, depôs com propriedade, de modo convincente e espontâneo. Saliente-se que a testemunha EE também referiu convincentemente que o arguido ameaçava fazer mal a si e à testemunha BB.

Globalmente, quer a denunciante, quer a sua vizinha, depuseram de modo assertivo, com depoimentos consonantes entre si e que representaram com clareza o ambiente que a companheira do arguido vivencia diariamente, havendo que evidenciar o depoimento da testemunha BB, atento o modo escorreito com que depôs, cujas declarações foram corroboradas e completadas (sobretudo no que tange à aproximação das datas dos eventos) com o depoimento da sua vizinha, EE.

No mais, evidenciaram um depoimento racional e lógico, harmonioso e unânime, com compreensíveis lapsos de memória, sem que tal circunstância se mostrasse suscetível de colocar em crise a sua credibilidade.

Contrastando com tais depoimentos, o arguido manteve uma versão negadora dos factos.

Neste quadro, o arguido assume uma versão circular e vitimizadora, o que a torna pouco convincente. Embora assuma parte dos factos, imputa a sua causa aos comportamentos que a sua companheira adota (embora parcamente, refere que a sua companheira o insulta, que não cuida da sua roupa ou comida e que essas tarefas são realizadas por si próprio), responsabilizando igualmente a testemunha EE por ter, na qualidade de testemunha, deposto contra si.

Refere ainda que está convencido que as testemunhas pretendem colocá-lo na prisão e que por essa razão acrescenta - criam acontecimentos que, na verdade, não ocorreram.

Concretizando.

Por um lado, começou por negar apodava a sua companheira de «aldrabona» e «mentirosa», tendo apenas no decurso das suas declarações admitido que seria possível tê-las proferido, mas apenas em resposta àquelas que a sua companheira, BB, lhe dirigia.

A presente hesitação é, desde logo, reveladora de pouca espontaneidade e assertividade.

Acresce que o arguido não enquadrou nem detalhou minimamente a sua versão, pese embora tenha adiantado outros factos. Neste particular, o arguido socorreu-se de um documento manuscrito que trazia consigo onde constavam escritas as expressões que lhe são dirigidas pela companheira, concretamente: «reles, ordinário, vai para as putas, não vales nada, és um veneno de merda».

Ora abstraindo da circunstância de recorrer a um auxiliar de memória para transmitir tais expressões, o que sempre fere a espontaneidade das suas declarações - não logrou enquadrar minimamente as circunstâncias em foram proferidas, estando totalmente ausentes os detalhes (onde, como, o quando, etc.), assinalando-se o depoimento marcadamente mais detalhado e um discurso mais descritivo das testemunhas.

Atenta a falta de conformidade das aludidas declarações com a demais matéria de facto apreciada à luz das regras da lógica e experiência comuns, resulta clarividente que arguido não se mostrou credível, devendo a sua razão de ciência ser afastada.

Em suma, e considerando globalmente os elementos probatórios, o Tribunal não teve dúvidas em valorar positivamente os depoimentos das testemunhas, os quais se mostraram detalhados, isentos e espontâneos permitindo formular um juízo positivo acerca da ocorrência de tais factos.

Os factos provados n.ºs 9, 10 e 11 alcançam-se por via da análise dos elementos objetivos com recurso às demais elementares regras da experiência, lógica e normalidade do acontecer, uma vez que as condutas adotadas pelo arguido são aptas a revelar uma intenção inequívoca de praticar os factos em questão, como logrou efetivamente fazer, de modo livre e deliberado, com consciência da correspondente ilicitude.

O facto provado n.º 12 assentou no depoimento da testemunha BB, a qual afirmou convincentemente que, apesar dos factos em crise, mantém a intenção ficar casada com o arguido.

Para prova dos factos n.º 13 a 24 o Tribunal estribou-se essencialmente no relatório da elaborado pela DRSP (cfr. Ponto 3 [iii.] da presente fundamentação), complementado com as declarações do arguido.

Os facto provado n.º 25 foi obtido exclusivamente mediante as declarações de BB, o qual se mostrou sincero, espontâneo e, portanto, crível, sendo a sua razão de ciência verossímil à luz das regras da experiência, da lógica e da normalidade do acontecer.

Já a existência de antecedentes criminais do arguido foi alcançada mediante a análise do certificado de registo criminal datado de 07.08.2023 (cfr. referência citius n.º 9911028).

O Tribunal não logrou fundar uma convicção positiva quanto à matéria de facto não provada uma vez que, no que respeita ao facto vertido em 1., não foi produzida prova consistente nesse sentido, antes pelo contrário.

Na verdade, as declarações do arguido e o depoimento de BB foram concordantes quando ambos afirmaram que existe uma divisão em que cada um consome os seus próprios bens alimentares, não consumindo os do outro.

Ademais, a própria testemunha BB acrescentou que a aludida divisão nunca suscitou problemas entre ambos e que foi o arguido quem adotou a iniciativa de cuidar da sua própria alimentação.

Sendo factos favoráveis ao arguido relatados pela própria testemunha BB, foram relevados em alto grau, cabendo lembrar que foram igualmente confirmados pelo arguido.

Quanto à factualidade aludida em 2. e 3., inexiste qualquer prova sustentada nesse sentido.

Já no que toca ao facto aludido em 4., cumpre reter que o arguido não logrou enquadrar minimamente as circunstâncias em tais expressões foram proferidas, estando totalmente ausentes os detalhes (onde, como, o quando, etc.), não sendo, por essa razão, suscetível de qualquer valoração positiva.

Em abono da verdade, diga-se que a testemunha BB reconheceu ter proferido aquelas expressões num momento que logrou circunstanciar com notável clareza, mas que se reporta a factos ocorridos há três anos e que estão inteiramente desfasados do período temporal a que se reportam os factos que o arguido praticou, tendo ainda asseverado que essa foi a única ocasião, e que foi uma situação perfeitamente isolada, uma vez que refere nessa altura descobriu que o arguido manteve relações sexuais com uma terceira pessoa, relatando muito convincentemente o modo como o descobriu.

Ou seja, subsiste por demonstrar que as referidas expressões respeitam à situação actual e ao momento a que se reportam os factos contidos naquele período temporal, pelo que se impõe dar tal facto com não provado.

Apreciemos.

Conforme consignado no artigo 420º, nº 1, do CPP, um dos fundamentos de rejeição do recurso é a sua manifesta improcedência – alínea a).

A lei não define o que seja a manifesta improcedência, mas a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores sobre a questão se tem debruçado, considerando que se verifica quando o recurso se mostre desprovido de fundamento ou quando a sua inviabilidade se revele inequívoca.

Como ajuizado no Ac. do STJ de 16/06/2005, Proc. nº 2104/05-5ª, sumariado por Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal – Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, pág. 975, apresenta-se como manifestamente improcedente o recurso quando é clara a sua inviabilidade, “quando no exame necessariamente perfunctório a que se procede no visto preliminar, se pode concluir, face à alegação do recorrente, à letra da lei e às posições da jurisprudência sobre as questões suscitadas, que aquele recurso está votado ao insucesso”.

Ou, de acordo com as palavras elucidativas derramadas no Ac. do STJ de 23/06/2022, Proc. nº 38/20.1PKSNT.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt, existirá manifesta improcedência quando seja inequívoco que a argumentação usada para atacar a decisão de que se recorre, de modo algum pode conduzir ao efeito jurídico pretendido pelo recorrente.

Tal ocorre no caso sub judice, como passamos a explanar.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Verificação do vício elencado no artigo 410º, nº 2, alínea b), do CPP.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento/recurso a prova proibida para formação da convicção do julgador.

Desproporcionalidade da pena acessória aplicada.

Pois bem.

Verificação do vício elencado no artigo 410º, nº 2, alínea b), do CPP

Conforme estabelecido no artigo 428º, nº 1, do CPP, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, de onde resulta que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respectivos poderes de cognição.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, no que se denomina de “revista alargada”, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento – neste sentido, por todos, Ac. do STJ de 05/06/2008, Proc. nº 06P3649 e Ac. do STJ de 14/05/2009, Proc. nº 1182/06.3PAALM.S1, disponíveis em www.dgsi.pt. - ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal.

Entende o arguido que se verifica contradição insanável da fundamentação, encontrando-a no que considera ser a incompatibilidade entre a factualidade dada como provada sob o ponto 12 e a tida por assente no ponto 24.

O vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), do CPP, como se salienta no Ac. do STJ de 29/10/2015, Proc. nº 230/10.7JAAVR.P1.S1, consultável no referenciado sítio e constitui jurisprudência consolidada, está presente quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto ou contradição entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão – cfr. também, por todos, Ac. do STJ de 23/11/2023, Proc. nº 419/21.3PCLSB.L1.S1, que pode ser lido no mesmo sítio.

Os factos em causa são os seguintes:

BB pretende manter-se casada com o arguido – ponto 12 dos factos provados.

Desde a última condenação infra referida em 26. não tem havido alteração significativa do comportamento do arguido, pelo que a manutenção da coabitação, neste cenário de conflito, constituiu e constitui um fator de risco para BB e para o próprio arguido – ponto 24 dos factos provados.

Ora, da simples leitura da factualidade transcrita, fazendo a sua comparação, resulta límpido que pretender a vítima BB continuar casada com o arguido (por razões que se desconhecem, mas que podem ser de vária natureza, desde a sentimental, a religiosa, a costumeira de seus ancestrais, a meramente patrimonial ou outra) não conflitua com o entendimento de que, continuando a coabitar com o arguido, que adopta comportamentos agressivos e mesmo violentos como os que provados estão e que se desenrolaram já após uma outra condenação pelo crime de violência doméstica praticado sobre a mesma vítima, os venha a repetir e até com mais intensidade.

De onde, não se verifica contradição alguma, muito menos integradora do apontado vício, carecendo de razão o recorrente, pelo que improcede o recurso neste segmento.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento/recurso a prova proibida para formação da convicção do julgador

O recorrente censura a factualidade dada como provada vertida no ponto 22 dos fundamentos de facto da decisão recorrida, mas não fazendo apelo à prova gravada, nem invocando qualquer dos vícios plasmados no artigo 410º, nº 2, do CPP, antes colocando tão só em causa a formação da convicção do julgador, aduzindo que esta se formou com alicerce no Relatório Social junto aos autos, que reproduz informação prestada pela psicóloga do arguido ao arrepio dos deveres de privacidade e confidencialidade impostos pelo Regulamento nº 258/2011, de 20/04, na sua versão actualizada, aos psicólogos, o que integrará prova proibida.

Os factos são os que se transcrevem de seguida:

O arguido revela uma perturbação da personalidade narcísica, na qual tem muito potenciada a sua impulsividade e passagem rápida ao acto, sendo inconsequente, não reúne condições de insight para qualquer eficácia de julgamento, tal como não tem capacidade para lidar com as suas frustrações, vitimizando-se pelos atos dos outros, sendo hostil e atribuindo os resultados dos seus actos às atitudes e comportamentos dos outros.

Conforme se alumia no Acórdão da Relação de Évora de 29/11/2016, Proc. nº 6/15.5GBMRA.E1, consultável em www.dgsi.pt, “em matéria penal, a impugnação em matéria de facto apenas será relevante se da sua procedência resultar alteração da decisão de alguma das questões relativas à culpabilidade a que se reporta o art. 368º do CPP, ou à determinação da sanção, a que se refere o art. 369º, ambos do CPP, sem o que a impugnação será inadmissível por irrelevância, pois a relevância da impugnação não pode deixar de constituir requisito implícito desta em conformidade, aliás, com a exigência geral de que recorrente tenha interesse em agir, imposta pelo nº 2 do art. 401º do CPP”.

Ora, percorrida a sentença revidenda ressalta manifesto que o tribunal a quo não atendeu à factualidade em causa para efeitos de decidir da verificação dos elementos constitutivos do tipo de crime; se o arguido praticou o crime ou nele participou; se o arguido actuou com culpa; se se verificou alguma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa; se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança ou para verificação dos pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil.

Assim como os não considerou para a determinação das penas principal e acessória.

Destarte, a impugnação deste facto dado como provado no ponto 22 é inadmissível, dada a sua irrelevância, porquanto, mesmo que procedesse integralmente a pretensão do arguido, a solução jurídico-penal seguida na sentença recorrida em nada se alteraria – cfr. também o Ac. da Relação de Évora de 07/05/2019, Proc. nº 442/16.0GGSTB.E1, que pode ser lido no referenciado sítio.

Na motivação de recurso (corpo) aduz também o recorrente que a sentença revidenda violou o estabelecido no artigo 355º, do CPP, porquanto valorou como meio de prova para a formação da sua convicção o Relatório Social junto aos autos, sem que este tivesse sido indicado como tal na acusação ou examinado em sede de audiência de julgamento.

No entanto, tal problemática não foi levada às conclusões do recurso, que, como já dito, delimita o objecto deste.

E, porque assim é, tal questão não podia ser conhecida.

Não obstante, para mero sossego das consciências, cumpre se diga não ter o arguido a razão pelo seu lado quanto à obliteração do consagrado no referido artigo.

Com efeito, de acordo com o estabelecido no artigo 355º, do CPP, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência – nº 1 - ressalvando-se as contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes – nº 2.

Como reiteradamente tem decidido o nosso Supremo Tribunal de Justiça, “a exigência do art. 355.º prende-se apenas com a necessidade de evitar que concorram para a formação daquela convicção provas que não tenham sido apresentadas e feitas juntar ao processo pelos intervenientes, com respeito pelo princípio do contraditório, e não que tenham de ser reproduzidas na audiência, isto é, lidas ou apresentadas formalmente aos sujeitos processuais todas as provas documentais dele constantes. Basta que existam no processo com pleno conhecimento dos sujeitos processuais, que puderam inteirar-se da sua natureza, da sua importância e do seu conteúdo, bem como do seu valor probatório, para que qualquer desses sujeitos possa, em audiência, requerer o que se lhe afigurar sobre elas, examiná-las, contraditá-las e realçar o que, do seu ponto de vista, valem em termos probatórios. Neste sentido, tais provas são examinadas em audiência, sob a presidência dos princípios da imediação e do contraditório, podendo concorrer sem reservas para a convicção do tribunal” - Ac. do STJ de 15/02/2007, Proc. nº 06P4092, disponível em www.dgsi.pt.

O Relatório mencionado foi solicitado por despacho judicial de 16/05/2023 (que recebeu a acusação e designou data para a audiência de julgamento, pelo que, obviamente, não podia constar da acusação, mas a sua solicitação está coberta pelo estabelecido no artigo 370º, nº 1, do CPP) e junto aos autos aos 04/09/2023, sendo do seu teor notificada a Ilustre Defensora antes mesmo do início da audiência, pelo que assegurado foi o contraditório, nos termos retro definidos. E, diga-se que, quanto a ele, nada foi requerido pelo arguido.

Desproporcionalidade da pena acessória aplicada

O arguido foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea a), do Código Penal.

Analisada a matéria de facto provada, preenchidos se mostram os elementos objectivos e subjectivos desse tipo criminal.

Considera o recorrente que “atenta a contradição insanável na fundamentação da sentença ora sob censura que se apontou no ponto imediatamente antecedente não é proporcional a aplicação ao arguido da pena acessória da proibição de contactos com BB, incluindo o seu afastamento da residência e do local de trabalho desta”.

Só que, como já se deixou expresso, inexiste a apontada contradição insanável, o que deixa sem suporte de fundamento esta crítica.

Ainda assim, analisemos.

O tribunal recorrido condenou o arguido na pena acessória de proibição de contactos com BB, incluindo o seu afastamento da residência e do local de trabalho desta, com sujeição a meios de controlo à distância, pelo período de 2 anos e 10 meses, ao abrigo do estabelecido no artigo 152º, nº 5, do Código Penal e artigos 35º e 36º, da Lei nº 112/2009, de 16/09.

Quanto a esta pena acessória, estabelece-se no referido artigo 152º:

“4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.”

Seguindo a lição de Figueiredo Dias em Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág. 96, as penas acessórias desempenham uma função preventiva adjuvante da pena principal, com sentido e conteúdo não apenas de intimidação da generalidade, mas também de defesa contra a perigosidade individual.

Porque se trata de uma pena, ainda que acessória, deve o julgador, na sua graduação atender, também, ao estabelecido no artigo 71º, do Código Penal, tendo presente que a sua finalidade (ao contrário da pena principal que visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente) assenta na censura da perigosidade.

Há que considerar, pois, a culpa do agente (que estabelece o limite máximo inultrapassável de pena concreta que é possível aplicar) e as exigências de prevenção nos termos referidos.

Cumpre ainda ponderar todas as circunstâncias que depõem a seu favor ou contra.

A propósito da determinação da pena acessória agora criticada, diz-se na decisão recorrida:

Nos presentes autos, resultaram provados os factos que integram a prática pelo arguido, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, tendo já sido o arguido condenado, recentemente, pela prática do mesmo crime.

Ora, atentos os contornos do caso concreto - reveladores de um padrão comportamental generalizado de desrespeito pela dignidade da vítima - considera-se haver razões ponderosas para proteger a vítima mediante a imposição da proibição de contactos entre ambos, devendo o arguido abandonar a residência que partilha com a sua companheira.

Não se olvida que a própria vítima, BB, declarou que pretendia continuar casada com o arguido, mas também é certo a realidade dos factos presentes e passados não se compadece com essa intenção.

Efectivamente o Tribunal não deve ficar indiferente ao facto de o arguido estar a ser julgado e condenado pela segunda vez pela prática de um crime de violência doméstica num período de tempo inferior a um ano e ainda durante o período de suspensão, havendo razões preponderantes que justificam a proteção da vítima.

A não ser assim, uma sanção de conteúdo equivalente àquela que figurou na pretérita sentença consubstanciaria uma intolerável passividade e condescendência perante as condutas do arguido, reforçando esta ideia a circunstância de o mesmo em nada ter alterado o seu comportamento desde a última condenação (cfr. facto n.º 24), a que acrescem os factos constantes destes autos.

Para além do que já ficou exposto, e em face da natureza deste crime, assim como o modo da sua execução, é patente a possibilidade de o arguido poder vir a praticar outros factos suscetíveis de ofender a saúde da ofendida, assim como a honra e bom nome da mesma. Não se pode almejar um resultado diferente com a aplicação de uma pena de conteúdo semelhante à anterior.

Termos em que se mostra justificado na situação vertente aplicar ao arguido a sanção acessória de proibição, por qualquer meio, de contactos com a ofendida, o que incluirá igualmente o afastamento do arguido da residência e do local de trabalho da vítima e com a sujeição a meios de controlo à distância.

Em face do exposto, considera-se necessário, adequado e proporcional aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contacto, por qualquer meio, com a ofendida BB - que incluirá o afastamento do arguido da residência e do local de trabalho desta - durante o período de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses, a contar da data do trânsito em julgado da presente sentença cfr. artigo 152.º, n.º 5 do Cód. Penal e artigos 35.º e 36.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro.

Face a esta exposição é por demais evidente que não se verifica a desproporcionalidade que o recorrente aponta.

Vejamos então.

O reclamante insurge-se quanto ao entendimento do Juiz Relator expresso na decisão sumária de se verificar a manifesta improcedência do recurso.

Para além dos arestos citados na decisão em causa densificando o que se pode entender por “manifesta improcedência” do recurso, importa agora convocar o Ac. da Relação de Évora de 03/03/2015, Proc. nº 115/11.0TAVVC.E1, disponível em www.dgsi.pt, de acordo com o qual “a manifesta improcedência – conceito que a lei não define – nada tem a ver com a extensão da matéria submetida a apreciação, nem com a sua intrínseca complexidade, nem com o maior ou menor gasto de latim na procura de deixar bem claras as razões pelas quais a decisão foi num sentido e não em outro. O que na verdade releva é o bem-fundado, a solidez ou o apoio legal, doutrinário ou jurisprudencial, da argumentação usada para atacar a decisão de que se recorre. Existirá manifesta improcedência sempre que seja inequívoco que essa argumentação de modo nenhum pode conduzir ao efeito jurídico pretendido pelo recorrente” – fim de citação.

Ora, na decisão reclamada se explicita cabalmente o fundamento do ponto de vista seguido, cabalmente apoiado na jurisprudência nacional dos Tribunais Superiores e certo é que a apreciação do recurso por decisão sumária não elimina a garantia de recurso que resulta da norma contida no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa. Desde logo, porque os fundamentos vertidos nas conclusões da respectiva motivação foram integral e efectivamente analisados por este Tribunal (ainda que por intermédio do Relator), em ordem à demonstração da manifesta inviabilidade da pretensão do recorrente que neles tem alicerce.

De onde, se impunha (e impõe) a rejeição do recurso.

III - DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, após conferência, em julgar improvida a presente reclamação, mantendo a decisão de rejeitar o recurso interposto pelo arguido AA, por manifesta improcedência.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.

Évora, 9 de Abril de 2024

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

________________________________________

(Artur Vargues)

_______________________________________

(Margarida Bacelar)

_______________________________________

(Anabela Simões Cardoso