CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA
ELEMENTOS DO TIPO DE ILÍCITO
FALTA DE DESCRIÇÃO
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
Sumário

I - O crime de abuso de confiança, tal como o crime de furto, é um crime patrimonial pertencente à subespécie dos crimes contra a propriedade, tem como objeto de ação, tal como o furto, uma coisa móvel alheia, e, ainda como o furto revela-se por um ato que traduz o mesmo conteúdo substancial de ilicitude, uma apropriação”.
II - A consumação deste crime consiste na inversão do título de posse, ou seja, no passar o agente a dispor da coisa “animo domini”.
III - Ora, no que concerne ao elemento subjetivo do crime em causa, o mesmo tem que ser doloso.
IV - No caso em apreço, compulsado o requerimento de abertura de instrução, efetivamente não se vislumbra qualquer facto passível de refletir tal intenção da arguida em se apropriar das quantias monetárias da conta bancária que era co-titular com o assistente.
A ausência da intenção da arguida no acervo factual implica a falta de descrição de um dos elementos do tipo de crime em análise – no caso, o elemento subjetivo.
O requerimento de abertura de instrução em análise não permite, por conseguinte, a imputação à arguida do crime aí descrito, por ser insuficiente a concreta descrição factual da sua conduta.
V - “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal”.
Por esse motivo, e sem necessidade de quaisquer outras considerações, impunha-se, como ocorreu, a não pronúncia da arguida.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
No processo nº409/21.6T9FAR.E1 do Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo de Instrução Criminal de … - Juiz …, o Assistente AA, por não se conformar com o despacho de 16 de Novembro de 2023, de não pronúncia da arguida BB da prática, como autora material de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º do Código Penal, veio interpor recurso do mesmo, formulando, no termo da sua motivação, as seguintes conclusões:

“1. Por decisão datada de 16-11-2023 o tribunal “a quo” decidiu não pronunciar a arguida BB pela prática do crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.º do Código Penal.

2. O ora recorrente não se conforma com a decisão recorrida porquanto andou mal o tribunal “a quo” ao não pronunciar a arguida.

3. A decisão recorrida viola as finalidades da instrução e o artigo 286.º do Código de Processo Penal.

4. No requerimento de abertura de instrução foram expostas as razões de facto e de direito que motivam a discordância relativamente ao arquivamento e bem assim à acusação.

5. Tendo sido apresentado em súmula as razões de facto e de direito pelas quais discorda do despacho de arquivamento, conforme dispõe o artigo 287.º, n.º 2 do CPP, apresentando também a sua versão dos factos.

6. E indicado o elemento subjetivo.

7. Termos em que deverá ser revogada a decisão instrutória.

8. A decisão instrutória é uma evidente expressão de discricionariedade e uma evidente prevalência da forma em detrimento da verdade material pela qual o Processo Penal, para não dizer toda a Justiça, sempre deverá ser norteado.

9. A decisão instrutória de que ora se recorre viola o disposto no artigo 287.º do CPP, bem como todos os direitos constitucionais e garantias do processo criminal previstos na nossa Constituição, uma vez que in casu não estamos perante nenhuma situação que configure uma situação de inadmissibilidade legal da instrução.

10.Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso e em consequência ser proferida outra decisão que pronuncie a arguida nos exatos termos já requeridos em sede de abertura de instrução.

Nestes termos e nos melhores de direito deverá V. Exa. dar provimento ao presente recurso e revogar a decisão instrutória recorrida por violação dos artigos 286.º e 287.º do Código de Processo Penal e bem assim artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, proferindo outra que pronuncie a arguida nos exatos termos requeridos em sede de requerimento de abertura de instrução, assim se fazendo justiça!”

O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência do recurso.

Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta teve Vista dos autos, emitindo parecer no sentido da não procedência do recurso.

O Recorrente, notificado nos termos e para os efeitos previstos no art.º 417º, nº 2 do CPP, quedou-se pelo silêncio, nada tendo vindo alegar.

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência prevista no art.419ºdo CPP, cumpre agora apreciar e decidir.

A DECISÃO RECORRIDA

A decisão instrutória da Mmª Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo de Instrução Criminal de … - Juiz …, objecto do presente recurso é do seguinte teor:

«Por decisão de 08.5.2021, o Digno Magistrado do Ministério Público procedeu ao arquivamento dos presentes autos por entender que não existiam indícios suficientes, susceptíveis de permitir a imputação a BB pela prática pela prática do crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º do Código Penal.

Em consequência, AA, na qualidade de Assistente, requereu a abertura de instrução, pugnando pela pronúncia de BB, CC, DD, EE, FF pela prática em co-autoria do crime de associação criminosa, p.e p. pelo art.º 299º do Código Penal, crime de falsificação de documento, p.e p. pelo art.º 256º do Código Penal e crime de falsas declarações, p.e p. pelo art.º 348º A do Código Penal, pela prática do crime de maus tratos, crime de violência doméstica p. e p. pelo art.º 152º do Código Penal, crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143º do Código Penal e crime de abuso de confiança p. e p. pelo art.º 205º do Código Penal à denunciada BB.

O requerimento de abertura de instrução foi admitido a 26-12-2022.

Por sua vez, a arguida BB interpôs recurso do despacho que admitiu a abertura de instrução, tendo o Venerando Tribunal da Relação de Évora decidido revogar a decisão na parte em que admitiu o RAI quanto aos factos que foram objecto do despacho de arquivamento proferido em 22.02.2021, mantendo-se a instrução apenas quanto aos factos que foram objecto do despacho de arquivamento proferido em 08.05.2021, ou seja, quanto aos factos que poderão integrar um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido, pelo art.º 205.º n.ºs 1 e 4 do Código Penal.

Deste modo, em cumprimento do decidido pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora a presente instrução versou apenas quanto ao facto alegado sob o nº 23º do RAI em que é arguida BB.

Assim, procedeu-se à inquirição das duas testemunhas arroladas pelo assistente seguido da realização do debate instrutório, que decorreu sob observância de todo o formalismo legal, como consta da respectiva acta.

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II – Despacho saneador

O Tribunal é o competente.

Não existem nulidades ou questões prévias que importem conhecer.

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III – Das finalidades da instrução

A instrução, conforme refere o artigo 286.º, n.º 1 e nº 2 do Código de Processo Penal é uma fase facultativa do procedimento criminal que visa a comprovação judicial da decisão do Ministério Público, enquanto titular da acção penal orientado pelo princípio da legalidade ( artigo 219º da Constituição da República Portuguesa) de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

A estrutura acusatória do processo criminal implica que a actividade cognitiva do Tribunal – na fase de instrução ou na fase do julgamento – esteja limitada pelo objecto processual – cfr. art.32º nº5 da Constituição da República Portuguesa. O objecto processual será definitivamente delimitado pela acusação ou, no caso de decisão de arquivamento do Ministério Público, pelo requerimento de abertura de instrução – neste sentido Frederico Isasca em Alteração Substancial dos factos e a sua relevância no processo penal português, Coimbra editora, pág.174 e segs. É a acusação que fixa, perante o Tribunal, o objecto do processo. É ela que delimita e fixa os poderes de cognição do Tribunal e é nela que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade e da conjunção do objecto do processo penal.

Para cumprir o objectivo de controlar, em sede judicial, a decisão que encerrou o inquérito, deve o Juiz de Instrução ordenar e realizar os actos instrutórios que considere necessários, nos termos do artigo 290º, nº1 do Código Processo Penal, existindo apenas uma única diligência obrigatória – o debate instrutório, previsto no artigo 297º do Código Processo Penal.

O Ministério Público, ao proferir o despacho de acusação ou de arquivamento, deve pautar a sua acção pela noção de indícios suficientes, ou seja, deve acusar se encontrar indícios suficientes da verificação do crime e de quem foi o seu agente, ou arquivar o processo se tais indícios não foram recolhidos – artigos 283º, nº 1, e 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

Este juízo que preside ao encerramento do inquérito não está isento de sindicância, quer pelo superior hierárquico do magistrado do Ministério Público que prefere a decisão (artigo 278º do Código de Processo Penal), quer pelo juiz de instrução, através do mecanismo que temos vindo a explanar.

Assim, também em sede de instrução será novamente efectuado o juízo de existência ou não de indícios suficientes de quem cometeu o crime e de quem foi o seu agente.

Deste modo, será necessário trazer à colação, o artigo 308.º, n.º 1 do CPP de acordo com o qual, o juiz deverá pronunciar o arguido se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos dos quais depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Caso não seja possível reunir tal acervo probatório, deverá ser proferido despacho de não pronúncia.

Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito e na instrução (cfr. Acórdão do TRC de 10/09/2008, processo 195/07.2GBCNT.C1, www.dgsi.pt).

Conforme refere Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, 1993, Verbo, Tomo II, págs. 85 e 86, “a prova indiciária (indiciação suficiente) permite a sujeição a julgamento, mas não constitui prova, no significado rigoroso do conceito, pois que aquilo que está provado já não carece de prova e a acusação e a pronúncia tornam apenas legítima a discussão judicial da causa. A natureza indiciária da prova significa que não se exige a prova plena, a «prova», mas apenas a probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança criminal”.

Importa, por conseguinte, determinar se nos presentes autos se mostram preenchidos de forma suficiente tais indícios.

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IV – Dos factos

IV.1 – Dos factos dados como indiciados: inexistem.

IV.2 - Factos Não Indiciados

a) A arguida BB retirou todo o dinheiro do seu pai da conta que possuíam na … e da qual a mesma era co- titular.

b) A arguida agiu de modo voluntário, livre e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.

O Tribunal não se pronunciou sobre factos conclusivos ou de direito.

V- Da fundamentação de facto e de direito:

Para fundamentar a sua convicção, o Tribunal baseou-se nas inquirições de GG e HH que relataram que não tinham qualquer conhecimento directo sobre as contas bancárias do assistente.

É certo que ambas as testemunhas referiram que o assistente não vivia faustosamente, muito pelo contrário, mas também é certo que, desse facto, não se pode culpabilizar a arguida e imputar-lhe determinada conduta, uma vez que inexistiu qualquer prova para o efeito.

Deste modo, e por total ausência de prova, inexistem factos dados como indiciados.

Mas ainda que assim não fosse, verifica-se que o assistente, no seu requerimento de abertura de instrução, omite os elementos típicos subjectivos do crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º do Código Penal.

Dispõe o art.º 283.º, n.º 3, alínea b) do Cód. Proc. Penal o seguinte: “A acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;” Esta exigência legal implica que o assistente proceda em termos idênticos àqueles que caberiam ao Ministério Público, na prolação de uma acusação, e em que a descrição factual dos elementos objectivos e subjectivos do tipo ou tipos, pelos quais o arguido deverá ser pronunciado, funcionam como a fixação do objecto do processo, i.e., do seu thema probandum. Com efeito, “ (…) Integrando o requerimento de instrução razões de perseguilidade penal, aquele requerimento contém um a verdadeira acusação; não há lugar a uma nova acusação; o requerimento funciona como acusação em alternativa, respeitando-se, assim, «formal e materialmente a acusatoriedade do processo», delimitando e condicionado a actividade de investigação do juiz e a decisão de pronúncia ou não pronúncia. (…)” - in Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol III, p. 125, apud Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005, disponível em www.dgsi.pt.

Por seu turno, o art.º 205º nº1 do Cód. Penal, estabelece que: «Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel ou animal que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»

Ora, no que concerne ao elemento subjectivo do crime em causa, o mesmo tem que ser doloso.

No caso em apreço, compulsado o requerimento de abertura de instrução, efectivamente não se vislumbra qualquer facto passível de reflectir tal intenção da arguida em se apropriar das quantias monetárias da conta bancária que era co-titular com o assistente.

A ausência da intenção da arguida no acervo factual implica a falta de descrição de um dos elementos do tipo de crime em análise – no caso, o elemento subjectivo.

O requerimento de abertura de instrução em análise não permite, por conseguinte, a imputação à arguida do crime aí descrito, por ser insuficiente a concreta descrição factual da sua conduta.

No mais, igualmente não se revela possível determinar o aperfeiçoamento do mesmo. De facto, a jurisprudência superior vem seguindo entendimento uniforme nesse sentido.

Neste particular, e a respeito da (não) possibilidade de convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Assistente, , refere o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2005, disponível in www.stj.pt, que, “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”

Segundo o mesmo raciocínio, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015, igualmente disponível in www.stj.pt, determina que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal”.

Por esse motivo, e sem necessidade de quaisquer outras considerações, impõe-se desde já a não pronúncia da arguida.

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VI – Decisão:

Face ao supra exposto, o Tribunal decide não pronunciar a arguida BB pela prática do crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º do Código Penal.”

APRECIANDO:

No caso sub judicio, a questão submetida pelo ora recorrente à apreciação desta Relação é:

a) a de saber se existem ou não, nestes autos, indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação à arguida de uma pena, ponderados, para o efeito, todos elementos de prova dos autos. Mais concretamente, está em causa a questão de saber se estão ou não reunidos no processo, e nos termos da lei, indícios bastantes de que a arguida – BB - cometeu, em autoria material o crime de abuso de confiança, p. e p. nos termos do preceituado no artigo 205º, do Código Penal.

Num primeiro momento, cumpre referir, que o despacho de pronúncia, além de determinar os precisos termos da acusação, com interesse para fixar o âmbito da sentença e determinar o objecto do processo, delimitando, consequentemente, os poderes cognitivos e decisórios do tribunal (cfr. Artºs 309º, n.º 1 e 379º, n.º 1, alínea b) do C. P. Penal) é uma garantia para o próprio arguido de não ser julgado, em processo penal, senão quando haja motivo sério para tal (cfr. Art.º 308º, n.º 1 do C. P. Penal e Eduardo Correia, Processo Criminal, Coimbra 1956, pág. 180).

Deste princípio resulta que ninguém deve ser submetido a julgamento em processo penal, evitando ser-se sujeito a vexames e despesas inúteis, sempre que, no espírito do juiz, surjam dúvidas de que o arguido, face à matéria indiciária constante dos autos, possa vir a ser, efectivamente, condenado. Isto é, o princípio in dubio pro reo deve estar presente não só na fase do julgamento, mas também já na fase da pronúncia.

Também para GERMANO MARQUES DA SILVA (in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 2ª ed., 2000, p. 179), «o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido». Na verdade, «a lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança (art.º 283º, nº 2)» (GERMANO MARQUES DA SILVA (Ibidem ).

Segundo ANTÓNIO TOLDA PINTO (in “A Tramitação Processual Penal”, 2ª. ed., 2001, p. 701), «ao exigir-se a possibilidade razoável de condenação e não uma possibilidade remota, visa-se, por um lado, não sujeitar o arguido a vexames e incómodos inúteis e, por outro lado, não sobrecarregar a máquina judiciária com tramitações inúteis, em obediência, aliás, ao traçado nas als. 1 e 2 da Lei nº 43/86, de 30 de Setembro» (a Lei de autorização legislativa ao abrigo da qual foi publicado o Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, que aprovou o Código de Processo Penal).

Para tanto, «a lei não se basta, porém, com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos» (GERMANO MARQUES DA SILVA ibidem). «Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação» (GERMANO MARQUES DA SILVA ibidem).

Posto isto, fornecerão os autos prova indiciária bastante para ser a arguida BB pronunciada pela prática, de um crime de abuso de confiança, p. e p no artigo 205º do Código Penal, como pretende o assistente AA?

Segundo Luís Osório "devem considerar-se, indícios suficientes, aqueles que, fazem nascer, em quem os aprecia, a convicção, de que o réu, poderá vir a ser condenado" (Comentário ao Código de Processo Penal Português, Vol. IV., Pág. 441).

Por outro lado, também o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Pág. 133, afirmava que "tem, pois, razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida «a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final - só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação»".

Daí que se "tem de considerar que já a simples dedução de acusação representa um ataque ao bom nome e reputação do acusado, o que leva a defender que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição".

Mais actualmente tem-se entendido que «indiciação suficiente é a verificação suficiente de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em audiência de julgamento, se poderão vir a provar em juizo de certeza e não de mera probabilidade, os elementos constitutivos da infracção por que os agentes virão a responder» (cfr. Acórdão do S.T.J. de 10-12-1992, Proc. 427747, citado in Código de Processo Penal Anotado - 1996, de Simas Santos, Leal-Henriques e Borges de Pinho, 2° Vol., Pág. 131).

Ou, na expressão de Germano Marques da Silva, "por indiciação suficiente entende-se a «possibilidade razoável» de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já existentes, uma pena ou uma medida de segurança" (cfr. Curso de Processo Penal, II Vol., Pág. 85).

Revertendo ao caso em apreço, afigura-se-nos que o despacho recorrido espelha, cabal e convenientemente, o circunstancialismo a ponderar para bem apreciar e decidir o presente recurso, sem revelar minimamente, a existência de qualquer violação dos normativos consagrados nos Artºs. 286º e 287º do C.P. Penal.

Por outro lado, quer desse mesmo despacho, quer das respostas do Ministério Público e da arguida à motivação do recurso, surge evidenciada, salvo o muito e devido respeito por diversa opinião, a falta de razão do recorrente.

Na verdade, consoante resulta das mencionadas peças processuais, essa falta de razão estrutura-se, fundamentalmente, na seguinte ordem de considerações, tal como certeiramente notou o Ministério Público na sua resposta junto do Tribunal recorrido:

“… pelo acima exposto, temos de considerar que o requerimento de abertura de instrução apresentado nestes autos não descreve os elementos típicos do crime de abuso de confiança em causa neste momento do processo, o que inviabiliza a pronúncia.

Os elementos descritos no RAI são os seguintes:

“a) A arguida BB retirou todo o dinheiro do seu pai da conta que possuíam na … e da qual a mesma era co-titular.

b) A arguida agiu de modo voluntário, livre e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.”

Com efeito, não se mostra descrita a conduta objectiva. Para tal, seria necessário que, além do descrito em a), que se mostrasse escrito que retirou tal dinheiro contra a vontade de seu pai e que tivesse sido especificado qual a quantia que pertencia exclusivamente ao assistente pois apenas tal maquia poderá ser objecto do crime.

Ademais, é cristalina a falta da descrição do elemento subjectivo consistente na ciência de que uma determinada quantia pertence a uma pessoa e que se age contra a vontade e sem autorização desta se logre fazer sua essa quantia, causando equivalente prejuízo ao ofendido…”

Efectivamente, comete um crime de abuso de confiança "quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade (...)" (artigo 205º, nº 1, do Cód. Penal).

Temos, pois, que, no crime de abuso de confiança, a coisa não é subtraída a outrem pelo agente do crime - como sucede no furto -, mas entra no seu poder validamente, por título não translativo da propriedade, dando-lhe o agente, contudo, um destino diferente daquele para que lhe foi confiada, dispondo dela como se fosse sua, com o propósito de não a restituir. Trata-se, pois, de um crime de realização intencionada, na medida em que um dos seus elementos consiste na intenção de apropriação de coisa alheia.

“O crime de abuso de confiança, tal como o crime de furto, é um crime patrimonial pertencente à subespécie dos crimes contra a propriedade, tem como objecto de acção, tal como o furto, uma coisa móvel alheia, e, ainda como o furto revela-se por um acto que traduz o mesmo conteúdo substancial de ilicitude, uma apropriação”.

Porém, “a consumação deste crime consiste na inversão do título de posse, ou seja, no passar o agente a dispor da coisa “animo domini”. (…) O crime consuma-se quando o agente, que recebe a coisa móvel por título não translativo de propriedade para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir “animo domini”, devendo porém entender-se que a inversão do título de posse carece de ser demonstrada por actos objectivos, reveladores que o agente já está a dispor da coisa como se sua fosse. Isto não significa, porém, que a conduta tenha que ser positiva, já que uma mera omissão pode consubstanciar essa reveladora objectividade”» (Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/01/2014, proferido no Proc. nº1162/09.7TAOER.L1-3 no site htpp//www.dgsi.pt).

Ora, a versão factual apresentada pelo Assistente não é minimamente corroborada pela prova testemunhal carreada para os autos.

Razão pela qual, e na ausência de outra prova, designadamente documental, o Tribunal recorrido consignou:

“Dos factos dados como indiciados: inexistem.

IV.2 - Factos Não Indiciados

a) A arguida BB retirou todo o dinheiro do seu pai da conta que possuíam na Caixa Geral de Depósitos e da qual a mesma era co- titular.

b) A arguida agiu de modo voluntário, livre e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.”

Vale tudo isto por dizer que não existem indícios que permitam imputar à arguida os factos descritos no requerimento de abertura de instrução do assistente os quais, sendo submetidos a julgamento, conduziriam a uma mais provável absolvição da arguida, do que a sua condenação.

Destarte, no caso sub judicio face aos indícios probatórios recolhidos em sede de inquérito, conduzido pelo Ministério Público e durante a instrução que se lhe seguiu, a requerimento do Assistente, entendemos que a decisão recorrida não merece qualquer censura.

Esta Relação não pode senão subscrever as razões aduzidas no despacho recorrido em desabono da tese perfilhada pelo Recorrente.

A esta luz, bem andou a Mª Juiz “a quo” quando não pronunciou a Arguida pela autoria de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo art.º 205º do Código Penal.

E não se diga que tal conclusão é violadora do princípio do art.º 32.º da C.R.P., uma vez que, não havendo indícios da prática pela arguida BB do crime de abuso de confiança, é legalmente admissível e até se impõe a não pronuncia da Arguida.

Razão pela qual, o presente recurso irá improceder.

DECISÃO

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, mantendo, na íntegra, o despacho recorrido.

Fixa-se no mínimo a taxa de justiça devida pelo Recorrente.

Évora, 09 / 04 / 2024