CONTRAORDENAÇÃO
ERRO DE QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DO ATO
VÍCIO FORMAL DO PROCEDIMENTO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS
INCIDENTE DE SUPRIMENTO
Sumário


I. O regime jurídico do ilícito de mera ordenação social é cerzido pelas garantias do Estado de Direito, sobretudo através dos respetivos princípios e regras procedimentais.
II. A competência para a instrução e decisão dos procedimentos está deferida às autoridades administrativas, mediante um processo célere de estrutura inquisitória, com garantia de recurso para um Tribunal, sendo o direito e o processo penais os seus referenciais normativos subsidiários (artigo 41.º, § 1.º RGC).
II. Não sendo o direito contraordenacional processo penal em sentido estrito – isto é, direito constitucional aplicado - nem por isso prescinde de certas garantias fundamentais a este aplicáveis. Sendo esta a «pedra de toque» que em cada caso permite aferir se a prática de um determinado ato processual, de uma certa maneira (por uma dada «forma»), vulnera (ou não) os valores que ela própria tem por função acautelar.
III. O erro de qualificação jurídica da conduta ilícita imputada ao arguido constitui, indubitavelmente, um vício formal do procedimento.
IV. Na fase de recurso da decisão administrativa esse erro é naturalmente suprível, desde logo por razões de economia, equidade e lealdade processuais, impostas pelo princípio das garantias de defesa do condenado, em termos similares ao que sucederia se de um processo penal se tratara (artigo 358.º, § 3.º e 424.º, § 3.º CPP ex vi artigo 41.º, § 1.º RGC).

Texto Integral

1. Relatório
No âmbito de procedimento contraordenacional n.º …, o Comandante do Comando Territorial da GNR de … aplicou ao município de …, uma coima pela prática da contraordenação prevista no artigo 15.º, § 1.º, al. a), do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de junho (alterado pelos Decretos-Lei n.º 17/2009, de 14 de janeiro e 83/2014, de 23 de maio).

O referido município impugnou judicialmente a referida decisão administrativa, invocando a nulidade da mesma por falta de fundamentação de facto e de direito que permitisse a condenação, para além de arrolar prova.

Remetidos os autos ao Ministério Público, estes fê-los presentes a Juízo, indicando prova para ser apreciada e valorada.

Em sede de audiência de discussão e julgamento, o Tribunal comunicou aos sujeitos processuais que a norma infringida indicada no auto de notícia e na decisão administrativa impugnada se encontra revogada, concedendo-lhes prazo para se pronunciarem, querendo, sobre esse temário.

Após o que foi proferida sentença, que após o competente relatório, tem no essencial o seguinte teor:

«Tratando-se de questão prévia a conhecer, cuja procedência obsta à apreciação do mérito da causa, cumprirá, antes de mais, proceder ao conhecimento nulidade da decisão administrativa, decorrente da aplicação de regime legal revogado, de conhecimento oficioso.

Para fundamentar a condenação da arguida, na decisão administrativa impugnada deram-se como provados os seguintes factos:

“a. O denunciado no auto de notícia n.º …, cujos factos foram verificados e testemunhados pelo elemento da Guarda Nacional Republicana, AA, Guarda-Principal n.º …, à data, pertencente ao efetivo do Núcleo de Proteção Ambiental de ….

b. Tendo por base o Princípio da Livre Apreciação da Prova consignado no art. 127.º do Código de Processo Penal (CPP), aplicável por via do art.s 41.º do RGCO, face aos factos constantes do auto de notícia, relativamente aos quais não tendo sido produzida prova irrefutável em contrário, se reputam como verdadeiros, provou-se que:

(1) A arguida é a responsável pela rede viária existente no local em causa (Estrada Municipal …) e por esse motivo a responsável por efetuar a gestão de combustíveis;

(2) A arguida não procedeu, nem providenciou pela gestão dos combustíveis, conforme os critérios legalmente estabelecidos;

(3) O local está definido como espaço florestal no Plano Municipal de Defesa da Floresta Contra incêndios de …;

(4) Com a conduta descrita a arguida revelou desatenção e irrefletida inobservância das normas no âmbito do Sistema de Defesa da Floresta contra incêndios, atuando com manifesta falta de cuidado e prudência que a defesa da floresta contra incêndios no momento lhe impunha, agindo de forma livre e consciente, não se avistando factos que retirem a censurabilidade à contraordenação realizada;

(5) A contraordenação pela qual a arguida vem acusada é sancionável com coima e aplicação de sanções acessórias, nos termos conjugados da alínea a) do n.º 2 do art.º 38.º e n.º l do art.º 39.º, ambos do Decreto-lei n.º 124/06, de 28 de junho.”

Tendo como pressuposto de facto a decisão ora transcrita, a Recorrente vem condenada pela prática, a título de negligência, de uma contraordenação grave prevista e punida pela alínea a) do n.º 1 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 124/2006 de 28 de junho, alterado pelos Decretos-Lei n.º 17/2009 de 14 de janeiro e 83/2014, de 23 de maio, republicado pela Lei n.º 76/2017, de 17 de agosto e alterado pelos Decreto-Lei n.º 10/2018, de 14 de fevereiro e 14/2O19, de 21 de janeiro, facto que constitui contraordenação prevista pela alínea a), do nº 2, do artigo 38.º, punível nos termos do n.º 1, do artigo 38.º, e, sancionável, no caso de pessoa coletiva, com coima de 800€ a 60 000€.

No que tange os requisitos a que deve obedecer a decisão administrativa, estatui o artigo 58.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações e Coimas (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro), sob a epígrafe “Decisão Condenatória”, que a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:

a) A identificação dos arguidos;

b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas,

c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;

d) A coima e as sanções acessórias.

Como nota inicial, importa referir que no plano da tramitação processual-administrativa do ilícito de ordenação, a Jurisprudência tem vindo a defender uma conceptualização de «aligeiramento das exigências formais de fundamentação», estribando-se tal entendimento na ideia de que, nesta tipologia de processos sancionatórios, as respetivas decisões finais, embora apresentando semelhanças estruturais com a sentença condenatória proferida no âmbito de um processo penal, gozam de maior concisão e menor exigência, atendendo ao menor grau de intrusão que, tendencialmente, implicam na esfera do arguido, (cf., neste sentido vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.12.2006 no proc. 6P3201 e ANTÓNIO DE OLIVEIRA MENDES, JOSÉ DOS SANTOS CABRAL, Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 3.ª Edição, Almedina, p. 194).

Importa, contudo, salientar que o catálogo contraordenacional vai sendo revisto pelo legislador ordinário, constituindo um quadro de direito sancionatório progressivamente mais intrusivo (efeito operado pela maior abrangência de fenómenos sociais e pessoais punidos por ilícitos de ordenação) e, mais violento, (pelo agravamento das molduras sancionatórias por revisão de lei e pela criação de medidas acessórias cerceadoras de liberdades e geradoras de crescentes encargos económicos), para a esfera individual dos cidadãos.

Neste sentido, temos que a argumentação que verte daquela Jurisprudência se dissolve à medida que endurece o corpo normativo contraordenacional (neste mesmo sentido atente-se na argumentação expendida no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05/06/2018, proferido no âmbito do processo n.º 116/17.4T8ABF.E1, disponível em www.dgsi.pt).

Nesse pressuposto, a garantia constitucional de fundamentação dos atos administrativos lesivos de interesses particulares (cf. artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa) impõem inelutavelmente à decisão administrativa condenatória, a concretização, para além do quadro legal, de um quadro factual (expurgado de conclusões ou asserções arbitrárias, vagas e generalistas) de onde, por intermediação da norma sancionatória, se extraia a legitimidade de punição, que a decisão comporta.

Assim, no domínio de uma fase administrativa, o dever de fundamentação pode assumir uma dimensão, qualitativamente, menos intensa em relação à sentença penal (em consonância com as caraterísticas de celeridade e simplicidade processual inerente a estes processos), devendo, contudo, resultar claro para o arguido, quais as razões de facto e direito, que levaram à sua condenação, possibilitando-lhe um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e permitindo ao tribunal, conhecer o processo lógico que presidiu à prolação da decisão administrativa.

Como referem Simas Santos e Lopes de Sousa, in “Contraordenações, Anotações ao Regime Geral”, 3.ª edição, 2006, Vislis Editores, em anotação ao artigo 58.º, «os requisitos previstos neste artigo para a decisão condenatória contraordenacional visam assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efetivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão. Por isso as exigências aqui feitas deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos.».

Do que vem dito se conclui que de acordo com a génese e teleologia do procedimento contraordenacional, a fundamentação (tal como está estabelecida no artigo 58.º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas), se terá por suficiente desde que justifique as razões pelas quais é aplicada esta ou aquela sanção ao arguido, atentos os factos descritos, as provas obtidas e as normas violadas, sendo assim possível ao arguido perceber, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, as razões pelas quais é condenado e, consequentemente, impugnar os fundamentos dessa condenação.

Mas de entre os fundamentos da condenação cumpre necessariamente considerar o fundamento jurídico, ou seja, o arguido tem o direito de saber qual o regime jurídico em que se baseia a punição, com especificação de todas as normas aplicáveis, sejam elas de previsão da conduta contraordenacional típica, punitivas (com a classificação da contraordenação e descrição da moldura abstrata da coima aplicável) ou delimitadora de conceitos essenciais à condenação, devendo todas elas constar da decisão administrativa (neste sentido veja-se o acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2008, consultável em www.dgsi.pt, relativo à aplicação da pena acessória de proibição de conduzir, para a qual se exige que as disposições legais aplicáveis constem da acusação ou da pronúncia).

Como se fundamenta no acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2008, cuja aplicabilidade ao regime contraordenacional temos por inequívoca – e como é jurisprudência constitucional pacífica – o arguido não tem que se defender apenas dos factos que lhe são imputados na acusação. “A vertente jurídica da defesa em processo penal é, em muitos casos, mais importante. E esta para ser eficaz pressupõe que o arguido tenha conhecimento do exato significado jurídico-criminal da acusação, o que implica, evidentemente, lhe seja dado conhecimento preciso das disposições legais que irão ser aplicadas. Por isso, qualquer alteração que se verifique da qualificação jurídica dos factos feita na acusação ou na pronúncia (…) nomeadamente qualquer alteração que importe um agravamento, terá necessariamente de ser dada a conhecer ao arguido para que este dela se possa defender, sob pena de se trair o favor defensionis”.

Volvendo ao caso concreto cumpre desde logo salientar que o quadro legal em que a decisão administrativa se baseia, designadamente o Decreto Lei n.º 124/06 de 28 de junho, se encontra há muito revogado pelo(a) Decreto-Lei n.º 82/2021, de 13 de outubro, diploma este que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2022 e, portanto, em data anterior aos factos em apreço nestes autos (21.08.2022 – data não impugnada pela recorrente).

Mais se diga que, nos termos do artigo 79.º n.º 4, previa-se um regime transitório enquanto se mantivessem em vigor os planos municipais de defesa da floresta contra incêndios, nos termos do qual seriam aplicáveis as disposições do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de junho, na sua redação atual, relativas aos deveres de gestão de combustível na rede secundária de faixas de gestão de combustível e às contraordenações respetivas.

Sucede que, compulsada a documentação remetida ao processo pela recorrente, o Plano Municipal de Defesa da Floresta Contra Incêndios de …, aprovado pela Assembleia Municipal de …, entrou em vigor em 30.12.2021, tendo sido publicado no Diário da República, 2.ª Série, n.º 251, em 29.12.2021, e, em consequência, não lhe é aplicável o regime transitório.

Por seu turno, no que tange à moldura abstrata da coima alegadamente aplicável, consta da decisão administrativa que a mesma se situa entre os € 800,00 e € 60,000,00 quando na realidade, a última versão do diploma ali citado (e já revogado), o Decreto Lei n.º 124/06 de 28 de junho (com a alteração operada pelo Decreto-Lei n.º 14/2019, de 21 de janeiro), previa moldura diversa, a saber, entre 1 500€ e 60 000€.

Encontramos assim na decisão administrativa um conjunto de factos suscetíveis de, eventualmente, integrar um tipo contraordenacional previsto em diploma que, à data dos factos já não se encontrava em vigor, por ter sido revogado por outro, sendo que as molduras das coimas abstratamente aplicáveis, a descrita na decisão e a prevista no referido diploma (revogado), fundamento da condenação, são diversas.

Neste particular parafraseamos integralmente os argumentos vertidos no já citado Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05/06/2018, proferido no âmbito do processo 116/17.4T8ABF.E1, disponível em www.dgsi.pt, onde se lê, além do mais, o seguinte:

“Apesar da crença generalizada de que os princípios constitucionais são aplicáveis a todos os ramos do direito, também se aplica aqui o aforismo de que há uns mais iguais do que outros, sendo o direito contraordenacional na praxis portuguesa alvo de um laxista critério de menosprezo constitucional evidente.

Certo é que não é assim na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o qual define o direito contraordenacional como cabendo no critério de matéria penal para efeitos da previsão do artigo 6.º da dita convenção (“acusação em matéria penal”).

Daí que se entenda que é uma exigência para a magistratura judicial portuguesa ser rigorosa na clara delimitação da matéria imputada na “acusação” contraordenacional e inultrapassável dar a conhecer, com extremo rigor, ao cidadão ou empresa acusados, as normas incriminatórias, não apenas as que preveem o quantum sancionatório mas, antes disso, a clara delimitação da tipicidade da conduta, de forma a impedir abusos policiais e administrativos.

E isto tem que ser feito sob pena de o direito contraordenacional se (estar a) transformar em direito persecutório da administração e de lícito esbulho de cidadãos e empresas.”

Com efeito, não se pode negar o caráter altamente penalizador do quadro contraordenacional para os cidadãos, empresas e entidades coletivas, sendo premente a impressão de rigor na sua interpretação e aplicação, rigor esse que, necessariamente, não podem as autoridades administrativas desconsiderar e a que se encontram adstritas.

Na verdade, temos para nós que uma interpretação diversa redundaria, além do mais, numa violação do conteúdo essencial dos direitos fundamentais vertidos nos artigos 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, porquanto cerceadora do cabal exercício, por parte do arguido, do direito de defesa, atenta a subjetividade e aleatoriedade a que estaria votado.

Assim, cumprirá julgar verificada a nulidade da decisão administrativa (ainda que com fundamentos diversos dos invocados na impugnação judicial pelo recorrente), porquanto ao não enunciar devidamente o quadro contraordenacional que fundamenta a aplicação da coima ao arguido, a decisão administrativa encontra-se ferida de nulidade, de acordo com o disposto no artigo 58.º, n.º 1, alínea c), do Regime Geral das Contraordenações e Coimas e artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, o que se impõe declarar.

Resta dizer que, verificando-se a apontada nulidade da decisão administrativa, ficam prejudicadas as demais questões colocadas em sede de recurso de impugnação judicial e, consequentemente, não cabendo, porque inútil, proceder à sua apreciação (cf. artigo 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal e artigo 41.º, n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações e Coimas).

Nestes termos e com estes fundamentos, julga-se procedente o Recurso Judicial interposto pelo Município de …, declarando-se nula a decisão administrativa proferida pelo Comandante do Comando Territorial da GNR de … e, em consequência, determina-se o arquivamento dos autos.

Notifique.»

Inconformado com tal decisão o Ministério Público interpôs o presente recurso, rematando a respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

(…) A Câmara Municipal de … foi condenada, «a título de negligência, de uma contraordenação grave prevista e punida pela alínea a) do n.º 1 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 124/2006 de 28 de junho, alterado pelos Decretos-Lei n.º 17/2009 de 14 de janeiro e 83/2014, de 23 de maio, republicado pela Lei n.º 76/2017, de 17 de agosto e alterado pelos Decreto-Lei n.º 10/2018, de 14 de fevereiro e 14/2O19, de 21 de janeiro, facto que constitui contraordenação prevista pela alínea a), do nº 2, do artigo 38.º, punindo-a nos termos do n.º 1, do artigo 38.º, e, aplicando a moldura abstrata prevista, no caso de pessoa coletiva, com coima de 800€ a 60 000€.

3. Nesse sentido, deu como provado:

“a. O denunciado no auto de notícia n.º …, cujos factos foram verificados e testemunhados pelo elemento da Guarda Nacional Republicana, AA, Guarda-Principal n.e …, à data, pertencente ao efetivo do Núcleo de Proteção Ambiental de ….

b. Tendo por base o Princípio da Livre Apreciação da Prova consignado no Art.e t27e do Código de Processo Penal (CPP), aplicável por via do Art.s 41e do RGCO, face aos factos constantes do auto de notícia, relativamente aos quais não tendo sido produzida prova irrefutável em contrário, se reputam como verdadeiros, provou-se que:

(1) A arguida é a responsável pela rede viária existente no local em causa (Estrada Municipal …) e por esse motivo a responsável por efetuar a gestão de combustíveis;

(2) A arguida não procedeu, nem providenciou pela gestão dos combustíveis, conforme os critérios legalmente estabelecidos;

(3) O local está definido como espaço florestal no Plano Municipal de Defesa da Floresta Contra incêndios de …;

(4) Com a conduta descrita a arguida revelou desatenção e irrefletida inobservância das normas no âmbito do Sistema de Defesa da Floresta contra incêndios, atuando com manifesta falta de cuidado e prudência que a defesa da floresta contra incêndios no momento lhe impunha, agindo de forma livre e consciente, não se avistando factos que retirem a censurabilidade à contraordenação realizada;

(5) A contraordenação pela qual a arguida vem acusada é sancionável com coima e aplicação de sanções acessórias, nos termos conjugados da alínea a) do n.º 2 do art.º 38.º e n.º l do art.º 39.º, ambos do Decreto-lei n.º 124/06, de 28 de junho.”

4. No entanto, por via da aprovação do DL n.º 82/2021, de 13 de outubro, diploma que cria o Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais (SGIFR) e estabelece as suas regras de funcionamento, sendo aplicável a todo o território nacional continental, foi revogado o enquadramento jurídico anterior fornecido pelo Decreto-Lei n.º 124.º/2006, de 28 de junho.

5. Nesse regime, dispõe o art.º 72.º, n.º 1, al. e) que constitui contraordenação o incumprimento dos deveres de gestão de combustível estabelecidos nos termos do n.º 7 ou do n.º 9 do artigo 49.º, sendo a mesma classificada como “grave” e punida, no caso das pessoas coletivas, com coima entre 2 500€ a 25 000€, nos termos do n.º 2, al. b), ii), sendo que, nos termos do n.º 4, será sempre a negligência punível, sendo os limites mínimos e máximos da coima reduzidos a metade, sem prejuízo das sanções acessórias previstas no n.º 5.

6. Tendo tal regime entrado em vigor a 01.01.2022, não se aplicando o regime transitório previsto no Artigo 79.º n.º 4 relativas aos deveres de gestão de combustível na rede secundária de faixas de gestão de combustível e às contraordenações respetivas, porquanto o Plano Municipal de Defesa da Floresta Contra Incêndios de …, aprovado pela Assembleia Municipal de …, entrou em vigor em 30.12.2021, tendo sido publicado no Diário da República, 2.ª Série, n.º 251 de 29.12.2021.

7. À data em que foi efetuada a inspeção visual por parte da GNR que suscitou o Auto de notícia, a factualidade reportada em auto encontra-se prevista no regime legal previsto DL n.º 82/2021, de 13 de outubro, sendo o incumprimento dos deveres de gestão de combustível por parte da CM de … noticiado, a ser provado, suscetível de constituir contraordenação nos termos supra enunciados e que seguem, de resto, o já anteriormente consignado no regime anterior.

8. E, nesses termos, esta conduta punível não se verifica ex novo, porquanto os termos em que se encontrava prevista vem a beneficiar da continuidade que lhe é conferida pela redação ínsita no regime legal previsto DL n.º 82/2021, de 13 de outubro, não existindo qualquer novidade no que respeita aos direitos de defesa da arguida e do conhecimento dos elementos do art.º 58.º, n.º 1 do RGCO.

9. Não existe qualquer elemento surpresa do arguido porquanto, e desde 2006, a arguida tinha conhecimento da obrigação a que legalmente se encontra adstrito nomeadamente, da obrigação que lhe cabe em termos das operações de gestão de combustível nas faixas de terreno assinaladas, sendo possível a apreensão do exato significado jurídico-criminal da acusação, porquanto lhe foi dado conhecimento dos factos que lhe eram imputados e das disposições legais que iriam ser aplicadas e, tanto assim, que na impugnação efetuada nenhuma nulidade foi suscitada.

10. Nos termos do art.º58.º do RGCO, previsto no DL n.º433/82, de 27 de Outubro, a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: n.º 1 (…) “c) a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;”.

11. Não obstante, não se estabelece na norma, nem em qualquer outra, qualquer consequência para a inobservância, na decisão condenatória da autoridade administrativa, de algum dos requisitos nela impostos, designadamente os que se encontram no n.º 1.

12. Não se aplicando, de imediato e de forma subsidiária, o disposto no art.º 379.º, CPP (nulidade da sentença), porquanto não existe um paralelismo automático entre os institutos e regimes próprios do processo penal e do processo contraordenacional, não sendo, por conseguinte, diretamente aplicáveis a este todos os princípios constitucionais próprios do processo criminal;

13. A decisão administrativa em causa nos autos conterá uma mera irregularidade porquanto não se encontrando prevista expressamente a sua nulidade, para este regime nos remeter o direito subsidiário, já que, nos termos do art.º 118.º, n.º 2 CPP, “o ato ilegal é irregular”, podendo a mesma ser sanada pela intervenção do Tribunal, nomeadamente, alterando a qualificação jurídica a que se subsume a factualidade.

14. Considerando que o regime legal à data dos factos - do DL n.º 82/2021, de 13 de outubro –estabelece continuidade da pretensão punitiva relativamente ao regime anterior representado pelo Decreto-Lei n.º 124.º/2006, de 28 de junho, prevendo como contraordenação a mesma conduta típica que o Auto de Noticia pretendeu relatar deveria a factualidade e respetivo enquadramento jurídico subsumível apreciado no âmbito da discussão sobre o mérito da causa, com a correspondente produção e exame da prova.

15. A continuação da audiência não implicaria qualquer alteração do objeto do processo, não sendo posto em causa o efeito de vinculação temática, porquanto se encontra a matéria de facto perfeitamente delimitada pelo libelo acusatório (quanto ao tipo objetivo e subjetivo) afigurando-se que cominar a decisão com a respetiva nulidade afigura-se desproporcional para o caso em apreço.

16. E, mesmo que tal não fosse, as nulidades de sentença são sanáveis, nos termos do n.º 2 do artigo 379º, não constando, por isso, do elenco taxativo das nulidades insanáveis do artigo 119º do CPP.

17. Configurando o Tribunal a quo a errada qualificação jurídica a que a entidade administrativa subsumiu os factos como nulidade, entende-se que deveria ter sido determinado, ao invés da absolvição da arguida, a devolução dos autos à entidade administrativa para suprir a mesma, porquanto, o art. 122.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art. 41.º, n.º 1, do RGCO, assim o determina.

Por todo o exposto, deve ser a decisão recorrida revogada, e ser designada data para realização de audiência de discussão e julgamento, com a produção da prova indicada pelo Ministério Público e pela arguida no recurso da decisão da entidade administrativa, ou, caso assim não se entenda, o reenvio do processo para a autoridade administrativa, a fim de a decisão administrativa ser expurgada de qualquer nulidade, assim se fazendo justiça.»

Admitido o recurso, respondeu o município arguido pugnando pela sua improcedência, aduzindo, em síntese (transcrição) que:

«C. Salvo o devido respeito que é muito, parece não assistir razão ao recorrente, e no entender do aqui respondente, nenhuma mácula pode ser apontada a tal decisão recorrida.

D. Está em causa a discussão sobre a violação do estatuído no artigo 58.º, n.º 1 RGCO, uma vez que tal norma impõe que a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: (…) c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; (…)

E. Sucede que na decisão administrativa em causa nos autos consta que “5)A contraordenação pela qual a arguida vem acusada é sancionável com coima e aplicação de sanções acessórias, nos termos conjugados da alínea a) do n.º 2 do art.º 38.º e n.º l do art.º 39.º, ambos do Decreto-lei n.º 124/06, de 28 de junho.»

F. E tais normas, à data da prática dos factos, estavam revogadas pelo novo regime contante do DLn.º82/2021, de 13 de outubro.

G. Invoca o recorrente que na nova legislação há uma continuidade de previsão como contraordenação dos factos alegadamente praticados pelo aqui respondente.

H. Todavia, a moldura sancionatória é diversa, sendo o limite mínimo superior ao anteriormente previsto na lei revogada.

I. Face ao princípio da proibição de reformatio in pejus, plasmado no art. 74.º-A RGCO, nunca poderia ser aplicado o novo regime, nem dada a possibilidade de autoridade administrativa refazer a sua decisão.

J. A norma constante do art. 58.º, n.º 1 RGCO, visa proteger o arguido,em razão da garantia constitucional de fundamentação dos actos administrativos lesivos de interesses particulares (art. 268.º, n.º 3 CRP).

K. No procedimento administrativo não sancionatório, o art. 161.º, n.º 2, al. d) CPA dita que são, designadamente, nulos os atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental.

L. Ora, no caso sub judice a decisão declarada nula pelo despacho em crise não cumpre o estatuído no art. 268.º, n.º 3 CRP, uma vez que o dever de fundamentação expressa de actos é uma obrigação legal das entidades administrativas que decidem processos de contraordenação, em virtude da imposição da al. c) do n.º 1 do art. 58.º RGCO.

M.Tal dever de fundamentação é o correlato de um direito fundamental constitucional dos destinatários dessa decisão, conforme consta impresso no já referido art. 268.º, n.º 3 CRP.

N. Em face dos regimes atrás comparados, uma decisão administrativa de um processo de contraordenação que não respeite o direito do arguido à fundamentação dessa mesma decisão, por maioria de razão, uma vez que estamos num campo ainda mais compressor de direitos que o mero direito administrativo tout court, deverá ser fulminada com nulidade ela própria também insanável.

O.De acordo com a doutrina invocada, a falta dos requisitos previstos no n.º 1 do art. 58.º RGCO, constitui uma nulidade da decisão, de harmonia com o preceituado nos arts. 374.°, n.ºs 2 e 3, e 379.°, n.º 1, alínea a), do CPP, tal como decidiu o tribunal a quo.

P. Também a jurisprudência constante do acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2008, impõe que: “o arguido tem o direito de saber qual o regime jurídico em que se baseia a punição, com especificação de todas as normas aplicáveis, sejam elas de previsão da conduta contraordenacional típica, punitivas (com a classificação da contraordenação e descrição da moldura abstrata da coima aplicável) ou delimitadora de conceitos essenciais à condenação, devendo todas elas constar da decisão administrativa”.

Q. O aqui respondente considera que a nulidade declarada pelo despacho recorrido é insanável, na medida em que a mesma é emanação e decorrência do próprio auto de notícia, que tem impressas as mesmas normas revogadas que atrás se referiu e ofende o conteúdo essencial de um direito fundamental.

R. Assim como considera que não é possível determinar quais os atos a praticar para substituir a decisão administrativa declarada nula, uma vez que tal exercício implicaria a repetição de toda a fase administrativa do processo contraordenacional em causa, uma vez que sempre foram as normas revogadas e atrás identificadas que estiveram em causa nos autos e não outras.

S. Donde não pode proceder nem o pedido principal, quando pede que se declare que se trata de uma mera irregularidade; nem o pedido subsidiário do Ministério Público, quando, neste caso, pede o reenvio do processo para a entidade administrativa expurgar uma qualquer nulidade da decisão administrativa que aplicou a coima ao aqui respondente.

Termos em que deve o despacho recorrido ser confirmado e mantido nos seus precisos termos, negando-se provimento ao recurso interposto.»

Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância, na intervenção a que alude o artigo 416.° do CPP, secundou integralmente a posição do recorrente.

No exercício do direito de contraditório o recorrido, por seu turno, apresentou escrito, no qual reiterou as conclusões da sua resposta ao recurso!

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

2. Conhecendo dos fundamentos do recurso O regime dos recursos de decisões proferidas em 1.ª instância relativas a processos de contraordenação, consta dos artigos 73.º a 75.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro – Regime Geral das Contraordenações (RGC). Daí decorre que nos processos de contraordenação o Tribunal da Relação funciona como tribunal de revista ampliada, sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios referidos no artigo 410.º CPP, por força do disposto nos artigos 41.º, § 1.º e 74.º, § 4.º do RGC, e como última instância, conhecendo apenas da matéria de direito, podendo alterar a decisão do Tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido em que foi proferida, ou anulá-la e devolver o processo ao mesmo Tribunal. Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, que delimitam o seu âmbito, verifica-se haver apenas uma questão a conhecer:

i. se decisão administrativa impugnada é inválida (nula) «de acordo com o disposto no artigo 58.º, n.º 1, alínea c), do Regime Geral das Contraordenações e Coimas e artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações e Coimas» - conforme se decidiu na 1.º instância – ou ocorre, antes, mera irregularidade a impor a devolução dos autos à entidade administrativa para esta poder ser suprida, conforme preconiza o recorrente.

2.1 Da invalidade da decisão administrativa impugnada

Comecemos por afirmar que a punição impugnada se firma nas regras de funcionamento do «sistema de gestão integrada de fogos rurais», com escora constitucional no direito fundamental a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, previsto no artigo 66.º, § 1.º e 2.º da Constituição da República, bem assim como nas als. d) e e) do artigo 9.º, onde se enumeram as tarefas fundamentais do Estado, entre as quais está justamente a promoção do bem-estar e da qualidade de vida do povo e a defesa da natureza e do ambiente.

A tutela dos respetivos bens jurídicos é feita pelo Direito Penal, pelo Direito Contraordenacional (direito penal administrativo), pelo Direito Administrativo e ainda por outros ramos do direito.

No concernente ao direito contraordenacional, justamente por ser um dos seus meios de tutela, importa referir que este (ainda novo) ramo do direito surge com o advento e desenvolvimento do Estado Social, que passa pela assunção pelo Estado, que as infrações no âmbito das novas áreas da intervenção pública, deveriam ser resolvidas no âmbito da própria administração, pelo menos numa primeira linha, deixando-se aos Tribunais o foco da criminalidade mais relevante, sem prejuízo da garantia de recurso para estes das decisões daquela nas referidas matérias.

Criou-se assim não apenas uma nova categoria de ilícitos, que a lei (o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro) crismou de «ilícito de mera ordenação social» (IMOS), constituindo as contraordenações, em conformidade com o que dispõe o seu artigo 1.º, os factos ilícitos e censuráveis que preencham um tipo legal no qual se comine uma coima. A autonomia material do IMOS face do direito penal não é incontroversa. Por vezes mesmo os que a afirmam discordam adiante sobre o exato posicionamento da linha de fronteira. Jorge de Figueiredo Dias (1) entende que o critério decisivo para a distinção material entre ilícitos penais e ilícitos de mera ordenação social se deverá fazer entre as condutas (que não entre os ilícitos): as que se mostram com mais amplo desvalor moral, cultural ou social, corresponderão aos crimes. «O que no direito de mera ordenação social é axiológico-socialmente neutro não é o ilícito, mas a conduta em si mesma, divorciada da proibição legal». De modo não muito distinto opina Inês Ferreira Leite quando refere que: «não existe neutralidade ética, per se, mas o desvalor social e ético das condutas proibidas pelo IMOS – por oposição àquelas que têm legítimo cabimento no Direito Penal – no sentido em que tal desvalor deverá associar-se a interesses e valores jurídicos, não decorre imediatamente e sempre da mera descrição, sendo necessária uma contextualização organizacional, mediada pelo conjunto compreendido pelas normas impositivas de regulação da atividade e pela proibição da norma sancionatória...» (2) Acrescenta, quanto à distinção entre a sanção administrativa e a pena criminal, que ambas têm um caráter e função punitiva, diferenciando-se aquela face a esta «na já referida inexistência de uma forte censurabilidade ética. Assim, a coima é uma sanção punitiva – simboliza o castigo (ou consequência intrínseca) pela prática da infração, contribui para o reforço da validade da norma e serve de prevenção no que respeita à prática de novas infrações.» (3) Seguro parece ser que é ao nível da ressonância ética das condutas que se traçará a separação; sendo especial a ressonância ética das condutas criminosas em termos de estas constituírem «comportamentos socialmente insuportáveis».(4) Ora, também o regime jurídico do IMOS é cerzido pelas garantias do Estado de Direito, sobretudo através das regras e garantias procedimentais (a competência para a instrução e decisão dos ilícitos está deferida às autoridades administrativas, mediante um procedimento com estrutura inquisitória e célere) e recurso para um Tribunal, em conformidade com o que dispõem os artigos 33.º e 59.º RGCO, 2.º, 20.º, § 1.º e 32.º, § 10.º da Constituição (e 6.º da CEDH (5) justamente por razão da garantia do recurso judicial) (6), surgindo o direito e processo penais comos seus referenciais subsidiários (artigos 32.º e 41.º RGCO). Relembremos, pois. Não sendo o direito contraordenacional processo penal em sentido estrito – isto é, direito constitucional aplicado -, nem por isso prescinde de certas garantias fundamentais (artigo 32.º, § 10.º da Constituição). E esta é que deve ser a «pedra de toque» para aferir em cada caso se a realização do ato processual de uma dada maneira (por uma dada «forma») vulnera (ou não) o(s) valor(es) que ela própria tem por função acautelar.

Volvendo ao caso concreto.

O erro de qualificação jurídica da conduta ilícita imputada ao arguido constitui, indubitavelmente, um vício formal do procedimento. Pois que a decisão administrativa narra de modo completo a factologia relevante, sendo a mesma suscetível de integração num tipo de ilícito contraordenacional. Mas não o que foi considerado na decisão administrativa (por erro de direito), antes noutro. Temos, pois, uma decisão administrativa que contém um acervo factológico completo, suscetível de integrar um ilícito contraordenacional, mas por erro de direito da autoridade administrativa não se indicam corretamente os normativos contraordenacionais correspetivos. Razões de equidade e de lealdade processual, impostas pelo princípio das garantias de defesa do condenado – na fase impugnatória da decisão administrativa – determinam que a este deva ser comunicada a qualificação jurídica correta, para que dela se possa defender. Pois o que está, deveras, em causa é exatamente a plenitude das garantias de defesa do arguido, tal como prevenida no artigo 32.º, § 1.º da Constituição, no sentido de lhe permitir que se pronuncie não apenas sobre todos os factos, mas também sobre a respetiva qualificação jurídica. E, pelo menos, em termos similares ao que sucederia em processo penal (artigo 358.º, § 3.º e 424.º, § 3.º CPP). Mas contrariamente ao que sustenta a decisão recorrida, a lei não comina aquele erro como nulidade! Importando relembrar que o artigo 118.º, § 1.º e 2.º CPP, aplicável ao procedimento contraordenacional, dispõe que «a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei» Ora, o que a lei prevê como nulidade da decisão recorrida, na al. c) do § 1.º do artigo 58.º do RGC (indicado na decisão recorrida), é a omissão total da indicação da norma segundo a qual se pune – id est a não indicação da norma na qual se fundamenta a decisão. Mas vista a decisão administrativa impugnada logo constatamos que tal omissão não ocorre! O que deveras sucede é que em tal decisão se indica um acervo normativo errado, com referência ao ilícito que se evidencia. Isto é, faz-se uma dada qualificação jurídica dos factos imputados – mas erradamente. Mas logo por isso, por não haver omissão da imputação, não se verifica a nulidade prevista no artigo 374.º, § 2.º e 379.º, § 1.º, al. a) CPP - invocada na decisão recorrida. O que se verifica – isso sim - é um erro de qualificação jurídica dos factos reveladores de um certo ilícito (um erro na indicação correta da norma que prevê o ilícito que se imputa ao município arguido). Sucede que na fase de recurso da decisão administrativa esse erro é naturalmente suprível, nos mesmos termos em que o seria no âmbito de um processo penal - artigo 358.º, § 3.º CPP ex vi artigo 41.º, § 1.º RGC (7) -, desde que a cogitada alteração da qualificação jurídica, com referência ao respetivo recorte factológico, seja comunicado ao arguido e se lhe conceda o direito de sobre a mesma se pronunciar, sempre sem prejuízo da proibição da reformatio in pejus, expressamente previsto no artigo 72.º-A RGC.

Termos em que se deverá revogar a decisão recorrida, determinando-se que o Tribunal a quo, precedida da referida comunicação, aprecie e julgue a causa, conforme for de direito, assim fazendo justiça.

3. Dispositivo Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em:

a) Revogar a decisão recorrida; e,

b) Determinar que o Juízo a quo, depois de tramitar o incidente da alteração da qualificação jurídica, aprecie e julgue a causa, conforme considerar ser de direito.

b) Sem custas (artigos 522.º, § 1.º CPP e 94.º, § 4.º RGC).

Évora, 9 de abril de 2024

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Filomena Soares

Maria Margarida Bacelar

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1 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, parte geral, tomo I, 3.ª Edição, Gestlegal, 2019, pp. 186/187; e O Movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social, Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Centro de Estudos Judiciários, 1983, pp. 317 ss., mormente pp. 323.

2 Inês Ferreira Leite, A autonomização do direito sancionatório administrativo, em especial, o direito contraordenacional, in «Contraordenações e contraordenações administrativas e fiscais», EBook, CEJ, 2015, pp. 38.

3 Inês Ferreira leite, A autonomização do direito sancionatório administrativo, em especial, o direito contraordenacional, in «Contraordenações e contraordenações administrativas e fiscais», EBook, CEJ, 2015, pp. 40/41.

4 Tratado de Derecho Penal, Parte General, 5.ª Ed., Duncker u. Humblot, Berlim, 1996, tradução de Miguel Olmedo Cardenete, Editorial Comares, Granada, 2002, pp. 64 (citado por Inês Ferreira leite, A autonomização do direito sancionatório administrativo, em especial, o direito contraordenacional, in «Contraordenações e contraordenações administrativas e fiscais», EBook, CEJ, 2015, pp. 35).

5 O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem vindo a confirmar a aplicação do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, respeitante ao processo justo e equitativo, em processos contraordenacionais (Cf. Acórdão do TEDH de 27set2011, (Menarini Diagnóstics S.R.L. c. Itália, queixa 43509/08).

6 Sobre a natureza do regime das contraordenações e da sua estrutura procedimental cf. Nuno Brandão, Crimes e Contraordenações: da cisão à convergência material, pp. 19 ss., Coimbra Editora, 2016.

7 No processo penal, mesmo em sede de recurso, se pode/deve enxertar o correspetivo incidente - artigo 424.º, § 3.º CPP.