OBRIGAÇÃO DE COMPARECER A ATO PROCESSUAL
EM QUALQUER FASE DO PROCESSO
CONDIÇÕES ECONÓMICAS INSUFICIENTES
ALEGAÇÃO E PROVA
REGULARIDADE DA CONVOCAÇÃO
FALTA INJUSTIFICADA A ATO PROCESSUAL
MULTA PROCESSUAL
Sumário

I. O princípio constante do artigo 332.º, § 3.º CPP, segundo o qual cabe ao Tribunal proporcionar ao arguido as condições para a sua deslocação a Juízo, quando a sua presença for necessária e aquele não tiver meios económicos bastantes que permitam essa deslocação, é aplicável à fase de instrução, na medida em que isso constitui uma garantia do processo equitativo.
II. O pressuposto expressamente previsto na lei, é que o requerimento do arguido a tal propósito seja fundado, isto é, que a incapacidade económica seja razoável ou minimamente demonstrada.
III. Se o arguido, regularmente convocado para ato processual, não comparece nem justifica (minimamente) a sua falta, deverá ser condenado numa soma entre 2 e 10 UC.

Texto Integral

I – Relatório a. No âmbito dos autos de instrução com o n.º 107/20.8GBGLG, a correrem termos no …º Juízo (1) de Instrução Criminal de …, foi designada data para interrogatório da arguida/requerente da abertura de instrução AA. Nessa sequência veio a arguida informar que tendo dificuldades económicas, isso a impedia de se deslocar o Tribunal, solicitando em conformidade que lhe fossem proporcionadas as condições que permitissem a sua deslocação a ….
O Tribunal considerou que essa pretensão não tinha fundamento legal, informando-a que se a mesma pretendia ser ouvida teria que estar presente na data indicada na notificação para o seu interrogatório.

b. Reiterando a arguida a sua pretensão o Tribunal, no dia 23jan2023, proferiu o seguinte DESPACHO:

«Vi o requerimento apresentado.

Mais uma vez, se afirma que o Tribunal não tem fundamento legal para providenciar pela deslocação da arguida a este Tribunal. Se a mesma pretende ser ouvida, terá que estar presente na data para a qual foi notificada e foi agendado o seu interrogatório.

Quanto à nulidade invocada, obviamente a mesma não se verifica, dado que o acto obrigatório é o interrogatório da arguida, não é o providenciar meios para a sua deslocação ao Tribunal, aliás, requerimento para o qual a arguida não invoca fundamento legal atendível, dado que a norma invocada se reporta à Audiência de Julgamento e não à fase de instrução e a presença da arguida não é obrigatória em fase de instrução, dado o teor do Artigo 300º, nº 1 e 300º, nº 3 do CPP, pelo que tal norma não tem aplicação analógica ou extensiva à fase de instrução, dadas as finalidades da mesma.

Assim sendo, improcedente a nulidade invocada que, como tal se julga e se declara. Notifique e DN.

*

Desde já, nomeie-se defensor à arguida, dada a posição assumida pela sua Il. Advogada, se ausência no debate instrutório e diligências de instrução prévias.

Notifique e DN, incluindo a arguida e sua Il. Advogada, aguardando os autos a data designada para a diligência já agendada.»

E no dia 8fev2022, data para a qual fora marcado o debate instrutório, no âmbito do qual a arguida iria prestar declarações, faltando esta foi proferido o seguinte DESPACHO:

«Até à presente data e hora, notificada que foi para os termos do artigo 117.º do C.P.P., a arguida não veio comunicar a impossibilidade de estar presente nem juntar qualquer comprovativo dessa impossibilidade ou protestar juntar até ao terceiro dia útil seguinte, pelo que, não cumprindo os termos do artigo 117.º do C.P.P., condeno-a por injustificadamente faltosa na multa processual de 2 UCs, não deixando de se frisar que a arguida se encontra representada por defensora oficiosa e que doença por COVID implica conhecimento prévio dessa realidade, mormente por necessidade de realização dos pertinentes exames.

Não obstante, havendo conhecimento informal da doença da arguida, a fazermos fé nas declarações da mesma, não comprovadas, e dado que a arguida requereu o seu próprio interrogatório, entende o Tribunal, a fim de salvaguardar os direitos de defesa e de contraditório da arguida, adiar a presente diligência, designando-se para a sua realização o dia 13 de março, pelas 14:00 horas, data que mereceu a concordância dos presentes.»

A arguida apresentou-se a recorrer dos dois despachos extratados, concluindo nos seguintes termos as respetivas motivações.

c.i Recurso do despacho de 23jan2023

1. Nos termos do art. 399.º do CPP o legislador consagrou um princípio geral de recorribilidade, possibilitando o recurso de todos os acórdãos, sentenças e despachos quando a lei expressamente não disponha em sentido contrário.

2. Como acontece na fase de instrução, em virtude da redação do art. 310.º, n.º 1 do CPP, cuja voluntas legislativa visou limitar única e exclusivamente a possibilidade de recurso das decisões instrutórias, consistindo estas, em conformidade com o art. 307.º, n.º 1 do CPP o despacho proferido após o debate instrutório e que decide pela pronúncia ou não pronúncia do arguido.

3. Pelo que facilmente se depreende que a limitação de recurso apenas impende sobre a decisão que põe termo à fase de instrução, sendo, por via disso, e uma vez que se trata de um despacho intercalar que em nada constitui uma verdadeira decisão instrutória, de admitir o presente recurso, nos termos do art. 399.º do CPP.

4. Após prolação do despacho de acusação, requereu a arguida a abertura de instrução, requerendo, a fim, a sua audição nos termos do art. 292.º, n.º 2 do CPP, ato que foi admitido “por se tratar de acto obrigatório”,

5. Nessa sequência, após agendamento da data para realização do debate instrutório, a arguida requereu a sua inquirição por videoconferência, o que fundamentou nas graves dificuldades financeiras, não dispondo de meios financeiros ou outros para se deslocar de … (onde reside) a ….

6. Nesse ato, reforçou a intenção de ser ouvida em sede de debate instrutório e requereu ainda, a título subsidiário, que não deferindo a audição por videoconferência, o Tribunal disponibilizasse os meios necessários à sua deslocação nos termos do art. 332.º, n.º 2 do CPP.

7. Intenção que restou gorada por não existir “fundamento legal”, afirmando o Tribunal a quo que a arguida poderia prescindir desse interrogatório, o que mereceu, ato contínuo, a arguição da nulidade prevista no art. 120.º, n.º 2, al. d) do CPP.

8. Tendo o Tribunal a quo decidido no seguinte sentido: “Mais uma vez, se afirma que o Tribunal não tem fundamento legal para providenciar pela deslocação da arguida a este Tribunal. Se a mesma pretende ser ouvida, terá que estar presente na data para a qual foi notificada e foi agendado o seu interrogatório.

Quanto à nulidade invocada, obviamente que a mesma não se verifica, dado que o acto obrigatório é o interrogatório da arguida, não é o providenciar meios para a sua deslocação ao Tribunal, aliás, requerimento para o qual a arguida não invoca fundamento legal atendível, dado que a norma invocada se reporta à Audiência de Julgamento e não à fase de instrução e a presença da arguida não é obrigatória em fase de instrução dado o teor do Artigo 300º, nº 1 e 300º, nº 3 do CPP, pelo que tal norma não tem aplicação analógica ou extensiva à fase de instrução, dadas as finalidades da mesma.

Assim sendo, improcedente a nulidade invocada que, como tal se julga e declara”

9. Nessa sequência, não a arguida aceitar que a solução para as dificuldades de deslocação, que se sublinha, se devem sobretudo a uma carência económica profunda, seja simplesmente, sem mais e com tamanha leviandade, abdicar do DIREITO de estar presente no debate instrutório e aí ser ouvida.

10. Diga-se que a sugestão ventilada por aquele que deve ser o administrador da justiça – que o deve fazer em nome do povo e com respeito pelas garantias constitucionalmente protegidas -, e consequente indeferimento do requerido constitui, salvo melhor opinião, um flagrante atentado às garantias de processo criminal previstas pelos arts. 20.º, n.º 1 e 32.º, n.º 5 e 6 da CRP.

11. Colide com a primeira na medida em que apenas concede duas alternativas à arguida: dispor de meios que não tem para se deslocar, ou abdicar de um direito que lhe é legítimo e atribuído por lei, saindo penalizada em virtude da sua carência económica.

12. E colide com a segunda que prevê que o arguido deve, em regra estar presente nos atos judiciais e ser ouvido nos atos processuais que lhe digam respeito, permitindo o exercício ativo do contraditório em igualdade de armas com os demais sujeitos processuais.

13. Nesta senda, considerando o direito imediatamente sobredito e não olvidando que a todos é assegurado o acesso ao direito e à justiça independentemente da situação económico-financeira, consagra o art. 292.º, n.º 2 do CPP sem margem para dúvidas que sempre que o arguido manifeste a intenção de ser ouvido em sede de instrução, está o Tribunal obrigado a ouvi-lo pelo menos uma vez, como aliás é o entendimento perfilhado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08.07.2015.

14 Efetivamente a arguida não detém condições económicas para se fazer transportar para o Tribunal de Instrução Criminal de … (a mais de 200km de distância da sua residência), tendo comunicado ao Tribunal a quo essa mesma impossibilidade.

15. Assim, e tratando-se de uma diligência obrigatória, sempre incumbirá àquele, que se concretiza no administrador da justiça, facilitar por todos os meios à sua disposição a audição da arguida, mais não seja ordenando os órgãos de polícia criminal a transportá-la para o efeito.

16. De facto, e ainda que o Tribunal a quo mencione que a única diligência obrigatória é a audição da arguida e não a disponibilização de meios para a deslocação da mesma ao tribunal, não se pode ignorar que a decisão de não proporcionar os meios imprescindíveis à presença da arguida no debate instrutório, culmina inequivocamente e inevitavelmente na omissão de uma diligência obrigatória, cujo cumprimento depende de uma ação do próprio Tribunal que, ainda que indiretamente, se obsta à realização da mesma.

17. Desta forma, ainda que se considere inexistir fundamento legal para a audição da arguida por videoconferência, o mesmo já não se poderá dizer quanto ao requerido quanto à disponibilização de meios para a deslocação da arguida, nos termos do art. 332.º, n.º 3 do CPP.

18. Efetivamente, no título dedicado à instrução nada consta quanto a este esforço que impende sobre o Tribunal, no entanto, a mera ausência de disposição legal específica que regule situações semelhantes no âmbito da instrução, não pressupõe per si que se possa considerar que inexista fundamento jurídico para o requerido.

19. Não deve, pois, o Tribunal olvidar-se de que o art. 4.º refere que nos casos omissos se deverá dar uma clara preferência pelo uso da analogia.

20. Isto posto, e uma vez tratar-se de uma diligência de caráter obrigatório – a audição da arguida quando por ela solicitada (o que foi) – sempre se dirá justificado o recurso in casu a esta forma de integração de lacunas, aplicando-se analogicamente, sem sede de instrução, a norma que se encontra inserida no título referente à audiência de julgamento, tratando-se de diligências semelhantes – ainda que com intuitos distintos – onde se deve prezar pela audição do arguido e efetivo exercício do contraditório.

21. Até porque a presença do arguido em sede de audiência de julgamento também não é obrigatória em absoluto, podendo decorrer sem a presença deste nos termos dos arts. 333.º e 334.º do CPP.

22. Entendimento que é perfilhado nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.11.2012 e 11.01.2017.

23. Neste sentido, e tomando em consideração que o recurso à analogia apenas reforçaria a posição da arguida e respetivos direitos e garantias, sempre seria de ter deferido o requerido por aquela.

24. Não o fazendo, e considerando que sempre fora pretensão da arguida ser ouvida em sede de instrução, ao não proporcionar os meios adequados à deslocação da arguida, escusando-se do papel de agente facilitador da sua audição, incorreu o Tribunal a quo na nulidade prevista pelo art. 120.º, n.º 2, al. d) do CPP, como aliás é o entendimento perfilhado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11.10.2017.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, concedendo provimento ao presente recurso e, em conformidade, revogando o despacho de que se recorre, far-se-á Inteira e Sã Justiça!

c.ii Recurso do despacho de 8fev2023

«1. Após prolação do despacho de acusação, requereu a arguida a abertura de instrução, requerendo, a fim, a sua audição nos termos do art. 292.º, n.º 2 do CPP, ato que foi admitido “por se tratar de acto obrigatório”,

2. Nessa sequência, após agendamento da data para realização do debate instrutório, a arguida requereu a sua inquirição por videoconferência, o que fundamentou nas graves dificuldades financeiras, não dispondo de meios financeiros ou logísticos para se deslocar de … (onde reside) a ….

3. Nesse ato, reforçou a intenção de ser ouvida em sede de debate instrutório e requereu ainda, a título subsidiário, que não deferindo a audição por videoconferência, o Tribunal disponibilizasse os meios necessários à sua deslocação nos termos do art. 332.º, n.º 2 do CPP.

4. Intenção que restou gorada por não existir “fundamento legal”, afirmando o Tribunal a quo que a arguida poderia prescindir desse interrogatório, o que mereceu, ato contínuo, a arguição da nulidade prevista no art. 120.º, n.º 2, al. d) do CPP.

5. Nulidade que restou indeferida, decisão que não mereceu a concordância da arguida que interpôs recurso.

6. Sucede que, em sede de debate instrutório, e na sequência de a arguida, após contacto telefónico, ter informado que se encontrava com covid foi esta condenada ao pagamento de 2 UCs por ter faltado injustificadamente, já que não havia junto ou protestado juntar qualquer atestado de doença.

7. Decisão que não mereceu o acolhimento da ora recorrente por violadora dos arts. 116.º, n.º 1 e 127.º, n.º 1 e 2 do CPP.

8. Isto porque, do disposto nos sobreditos artigos, a aplicação de sanção legal pelo não comparecimento à diligência apenas se encontrará legitimada quando se trate de uma falta injustificada.

9. Ora, considera a arguida que a sua ausência ao debate instrutório se deveu a facto que não lhe pode ser imputável, tendo, inclusivamente sido comunicado atempadamente ao Tribunal.

10. Efetivamente, contactada pelo Tribunal no dia do debate instrutório, a ora recorrente, informou que havia contraído covid, no entanto, não foi esse facto que impediu a presença desta na diligência agendada,

11. Até porque atualmente, aos olhos da lei, a infeção por covid não confere qualquer certificado de incapacidade temporária, nem é suscetível de justificar qualquer ausência ao trabalho menos ainda a uma diligência judicial.

12. Na verdade, o facto que resultou na impossibilidade de comparecimento da arguida foi, nada mais nada menos, que a sua incapacidade financeira para se deslocar da sua área de residência – … – ao Tribunal de Instrução Criminal de …, localizado a mais de 200 km de distância, facto que comunicou prontamente ao Tribunal.

13. Assim, e ainda que no dia do debate instrutório a arguida se encontrasse doente, não pode o Tribunal ignorar que essa “impossibilidade” de comparecimento resultou numa impossibilidade meramente incidental e, mais importante que isso, cumulativa ao facto que verdadeiramente esteve na base da sua ausência.

14. Facto que o Tribunal a quo foi interpelado a colmatar – disponibilizando os meios necessários à presença da arguida – e que o mesmo simplesmente ignorou.

15. Do exposto, resulta não só indubitável que se o Tribunal a quo tivesse ordenado que os Órgãos de Polícia Criminal da área de residência da arguida diligenciassem por a ir buscar à sua residência – onde se encontra de “licença parental” como, aliás informou o Tribunal – e a transportassem ao Juízo de Instrução Criminal, jamais seria a mesma faltosa na diligência que, diga-se, tão quer comparecer e ser ouvida.

16. Como também resta inequívoco que a arguida comunicou tempestivamente a sua ausência e qual o motivo adjacente à mesma, motivo pelo qual jamais poderia ter sido condenada na sanção legal aplicada.»

d. Respondeu o Ministério Público, dizendo, em suma, que:

1. A primeira questão suscitada pela recorrente assenta em saber se o tribunal “a quo”, ao não providenciar pela deslocação da arguida ao Tribunal de … está a obstaculizar o legítimo exercício do direito de defesa da arguida, impedindo-a de estar presente e de ser ouvida, como havia solicitado no RAI, culminando “inequivocamente e inevitavelmente na omissão de uma diligência obrigatória.”, o que constitui a nulidade insanável, prevista pelo artº 120º, nº 2, al. d) do CPP;

2. A segunda questão suscitada pelo segundo recurso reside em saber se a falta da arguida à diligência designada para o dia 8 de fevereiro de 2023 deveria ser considerada justificada porquanto o Tribunal deveria atender aos requerimentos anteriormente efetuados pela arguida e pelos quais invocou as dificuldades financeiras que atravessava e que a impossibilitavam de estar presente a tal diligência.

3. No que tange à arguida nulidade, pese embora a bondade dos argumentos aduzidos pela recorrente, entendemos que, na nossa modesta opinião, não lhe assiste razão.

4. Em primeiro lugar porque a invocada nulidade reporta-se à omissão de realização de diligência obrigatória – interrogatório da arguida, sendo que o despacho posto em crise não indeferiu a realização de tal diligência, o que foi indeferido foi a realização do interrogatório por videoconferência bem como não diligenciou o Tribunal por assegurar os meios para que a arguida pudesse deslocar-se ao Tribunal de ….

5. Tal despacho não obstaculizou o exercício do direito de defesa da arguida, nomeadamente, o direito de estar presente e de ser ouvida em sede de instrução e debate instrutório;

6. E isto porque, o nº 3 do artº 332º do CPPenal não é de aplicação automática, não bastando a simples invocação da insuficiência económica para fazer recair sobre o tribunal a obrigação de assegurar a comparência do(a) arguido(a).

7. Com efeito, tal como resulta da referida norma, o requerimento deve ser fundamentado, ou seja, devem ser aduzidos “os concretos factos que impossibilitem a deslocação”, sendo que o recurso a tal preceito constitui a exceção “já que, apenas em casos residuais caberá ao tribunal o ónus de diligenciar por aquela ida do arguido tribunal.”.

8. Acontece, porém, que a recorrente limitou-se a alegar genericamente “encontrar-se com graves dificuldades económicas, não detendo meios económicos para fazer face às despesas do seu agregado familiar”, estar desempregada e residir em casa de familiares, não especificando quais os concretos rendimentos que aufere e quais as concretas despesas que suporta, não juntando qualquer prova, nomeadamente documental, que ateste tais dificuldades económicas, nem constando dos autos qualquer elemento de prova que permitisse ao tribunal (ainda que oficiosamente) aferir da alegada insuficiência económica.

9. Acresce que o artº 332º do CPPenal não comina com qualquer sansão a violação do aí consignado, sendo que os artºs 119 e 120º do CPPenal também não cominam com a nulidade o despacho judicial que não acautelou a presença do arguido em tribunal por constatar poder estar comprometido o seu direito de defesa por força da sua precariedade económica.

10. Ao não concordar com tal decisão, deveria a recorrente tê-la impugnado com base numa eventual errónea interpretação do preceito e não através da arguição de uma nulidade cuja verificação, pelas razões aduzidas, nos parece inexistente.

11. Quanto à questão de aferir se a falta de comparência da arguida ao debate instrutório agendado para o dia 8 de fevereiro de 2023 deve ser considerada justificada, importa ter presente que o preceituado no artº 117º do Código de Processo Penal, impondo-se que a “impossibilidade de comparecimento deve ser comunicada” sempre comunicada ao tribunal, diferindo, tão só, os prazos de que dispõe o faltoso para efetuar tal comunicação consoante se esteja perante uma impossibilidade previsível ou imprevisível;

12. No caso dos autos, a arguida não compareceu nem informou o tribunal, no dia e hora agendados para a diligência, tal impossibilidade, tendo sido o tribunal quem tomou a iniciativa de contactar a arguida para apurar dos motivos do seu atraso.

13. A justificação dada pela arguida foi a que estava impossibilitada de comparecer por ter contraído COVID.

14. Ora, admitindo que o motivo alegado foi imprevisível, a arguida deveria ter comunicado ao tribunal tal impedimento.

15. Tendo a arguida faltado à audiência de julgamento, para a qual estava devidamente notificada, “não tendo comunicado ao tribunal, no dia e hora designados para a audiência, a impossibilidade de comparecimento, como se impunha que o fizesse, de harmonia com o disposto no artigo 117º, nº. 2, do C.P.P. (podendo a comunicação ser efetuada pessoalmente ou através de outrem e por qualquer meio, designadamente, por via telefónica, através de fax, correio eletrónico, etc.), para que a falta pudesse vir a ser considerada justificada e não tendo alegado a impossibilidade de ter efetuado tal comunicação, o que só poderia fazer, invocando o justo impedimento, nos termos previstos no artigo 107º, nºs. 2 e 3, do C.P.P. e no artigo 146º do C.P.C.” é manifesto que tal falta só poderia ser (como foi) considerada injustificada.

16. Ademais, independentemente da justeza do despacho proferido em 23.01.2023, perante o indeferimento da sua pretensão, também recaia sobre a arguida o dever de comunicar antecipadamente ao Tribunal que se mantinha a sua situação de carência económica.

17. Assim, a falta da arguida ao debate instrutório agendado para o dia 8 de fevereiro de 2023 deve ser considerada injustificada e mantida a sua condenação em multa conforme decidido no despacho posto em crise com o presente recurso.

Termos em que, deve negar-se provimento ao recurso, mantendo-se os despachos do Mmo JIC proferidos em 23.01.2023 e em 08.02.2023.

e. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância de recurso emitiu parecer no sentido de os recursos não serem merecedores de provimento, por se não verificar a nulidade invocada, designadamente por não se poder fazer a analogia com a norma invocada que se mostra prevista para a fase de julgamento e, no essencial, porque a arguida faltou a ato judicial para o qual estava regularmente convocada, não tendo justificado a sua falta.

Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, a arguida/recorrente nada respondeu. Efetuado exame preliminar e nada obstando ao prosseguimento dos recursos foram os autos aos vistos e depois à conferência.

II – Fundamentação

1.Delimitação do objeto do recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP).2 2 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

Estando suscitada apenas uma questão para conhecimento deste Tribunal:

i) da nulidade do despacho judicial de 23jan2023;

ii) da violação do disposto nos artigos 116.º e 117.º CPP.

2.1 Da nulidade do despacho judicial de 23jan2023 Para bem se compreender a malha de que se tece e reveste o objeto do presente recurso é necessário atentar no concreto teor dos requerimentos apresentados ao Juiz de Instrução Criminal (JIC) e, sobretudo, nos sequentes despachos judiciais, razão pela qual os transcreveremos. Através de despacho judicial de 23jan2023 o JIC decidiu indeferir - pela segunda vez - o requerimento da arguida, pelo qual esta pretendia que o Tribunal providenciasse a sua deslocação a …. Invoca a arguida a nulidade desta decisão por violação do disposto na al. d) do § 2.º do artigo 120.º CPP. Dispõe-se neste retábulo normativo que:

«2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:

(…) d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.»

Esta nulidade tem por referência a omissão da realização de diligência obrigatória, que na circunstância era a audição da arguida, por ela ter sido a requerente (292.º, § 2.º CPP). Sucede que no despacho recorrido (nos mesmos termos já anteriormente decididos – note-se) o Tribunal não indeferiu a realização de nenhuma diligência processual, designadamente da audição da arguida! O que já se havia indeferido (e que no despacho recorrido se reafirmou), foi a realização dessa audição por videoconferência. Bem assim como diligenciar pelos meios que (pelo menos em abstrato) assegurariam que a arguida se pudesse deslocar ao Tribunal de …, por se considerar não haver fundamento legal para isso. De resto os autos mostram que a arguida foi regulamente notificada para as diligências de instrução e debate instrutório, estando por isso ciente da sua realização. Entendemos que o Tribunal errou ao considerar inaplicável o princípio constante do artigo 332.º, § 3.º CPP, por este integrar a garantia do processo equitativo (artigos 20.º, § 4.º e 32.º, § 2.º da Constituição, 6.º da CEDH; 47.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia; e 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, todos inspirados no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem) e, nessa medida, como se mostra óbvio, abrangendo também a fase de instrução. Mas, importa referir, que para tanto a arguida/recorrente sempre teria de ter realizado um qualquer esforço demonstrativo da alegada insuficiência económica - que é um pressuposto exigido expressamente pela lei («… a requerimento fundado do arguido…» - artigo 332.º, § 3.º CPP). O que se não mostra feito de todo, sequer pelo mínimo! Pretende a arguida com o presente recurso que este Tribunal de Relação declare a nulidade do despacho recorrido, por (alegadamente) ter omitido diligência essencial para a descoberta da verdade. Mas isso, evidentemente, não se verifica. Porquanto o Tribunal não omitiu nem indeferiu nenhuma diligência, designadamente a audição da arguida. Pelo contrário. O debate instrutório, com audição da arguida estava já agendado e manteve-se esse agendamento. Termos em que improcede o recurso concernente ao despacho judicial de 23jan2023.

2.1 Da violação do disposto nos artigos 116.º e 117.º CPP. Conforme evidencia a ata do debate instrutório, aberto no dia 8fev2023, pelas 10h, a arguida regularmente convocada não compareceu! E nem justificou (minimamente) a sua falta. Refere a recorrente que:

12. (…) o facto que resultou na impossibilidade de comparecimento da arguida foi, nada mais nada menos, que a sua incapacidade financeira para se deslocar da sua área de residência – … – ao Tribunal de Instrução Criminal de …, localizado a mais de 200 km de distância, facto que comunicou prontamente ao Tribunal.

13. Assim, e ainda que no dia do debate instrutório a arguida se encontrasse doente, não pode o Tribunal ignorar que essa “impossibilidade” de comparecimento resultou numa impossibilidade meramente incidental e, mais importante que isso, cumulativa ao facto que verdadeiramente esteve na base da sua ausência.

14. Facto que o Tribunal a quo foi interpelado a colmatar – disponibilizando os meios necessários à presença da arguida – e que o mesmo simplesmente ignorou.

15. Do exposto, resulta não só indubitável que se o Tribunal a quo tivesse ordenado que os Órgãos de Polícia Criminal da área de residência da arguida diligenciassem por a ir buscar à sua residência – onde se encontra de “licença parental” como, aliás informou o Tribunal – e a transportassem ao Juízo de Instrução Criminal, jamais seria a mesma faltosa na diligência que, diga-se, tão quer comparecer e ser ouvida.

16. Como também resta inequívoco que a arguida comunicou tempestivamente a sua ausência e qual o motivo adjacente à mesma, motivo pelo qual jamais poderia ter sido condenada na sanção legal aplicada.»

A lei é clara. E mais uma vez a arguida/recorrente, muito lesta a exigir de terceiros, não se presta a cumprir os seus próprios deveres. Vejamos quais. Preceitua o artigo 116.º CPP, que:

«1. Em caso de falta injustificada de comparecimento de pessoa regularmente convocada ou notificada, no dia, hora e local designados, o juiz condena o faltoso ao pagamento de uma soma entre 2 UC e 10 UC.» E o artigo 117.º CPP, que

«1 - Considera-se justificada a falta motivada por facto não imputável ao faltoso que o impeça de comparecer no ato processual para que foi convocado ou notificado.

2 - A impossibilidade de comparecimento deve ser comunicada com cinco dias de antecedência, se for previsível, e no dia e hora designados para a prática do ato, se for imprevisível. Da comunicação consta, sob pena de não justificação da falta, a indicação do respetivo motivo, do local onde o faltoso pode ser encontrado e da duração previsível do impedimento.

3 - Os elementos de prova da impossibilidade de comparecimento devem ser apresentados com a comunicação referida no número anterior, salvo tratando-se de impedimento imprevisível comunicado no próprio dia e hora, caso em que, por motivo justificado, podem ser apresentados até ao 3.º dia útil seguinte. Não podem ser indicadas mais de três testemunhas.

4 - Se for alegada doença, o faltoso apresenta atestado médico especificando a impossibilidade ou grave inconveniência no comparecimento e o tempo provável de duração do impedimento. A autoridade judiciária pode ordenar o comparecimento do médico que subscreveu o atestado e fazer verificar por outro médico a veracidade da alegação da doença.

5 - Se for impossível obter atestado médico, é admissível qualquer outro meio de prova.»

Pois bem. Com referência ao ato em causa a arguida, regularmente convocada, não compareceu nem justificou (minimamente) a sua falta. Achando, porventura, que afirmando ruidosamente não ter meios financeiros para se deslocar ao Tribunal (ou que estava com Covid!), os ónus passariam para terceiros! Mas não é assim. Não justificou (por meio nenhum) a impossibilidade de comparecimento, o que era devido. Nem a alegada doença. Pelo que foi bem condenada na sanção legal. Nada havendo, por conseguinte, a censurar ao despacho recorrido.

Tudo razões pelas quais consideramos não serem os recursos merecedores de provimento.

D. Das custas

O decaimento nos recursos determina que a responsabilidade pelas custas respetivas pertença exclusivamente à arguida/recorrente (artigo 513.º CPP).

De acordo com o disposto na Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais, os recursos para a Relação são taxados (apenas) entre 3 a 6 UCs.

Ora as singularidades do caso presente, a que fez alusão nas linhas precedentes, impõem que se aplique a taxa máxima.

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) Negar provimento aos recursos e, em consequência, manter integralmente os mui prudentes e doutos despachos recorridos.

b) Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC’s.

Évora, 9 de abril de 2024

J. F. Moreira das Neves (relator)

António Condesso

Maria Margarida Bacelar

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).