RECLAMAÇÃO CONTRA DESPACHO QUE NÃO ADMITIR OU RETIVER RECURSO
DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE
CONTUMÁCIA
Sumário

1 – Constitui despacho de mero expediente aquele que, proferido pelo juiz, não decidindo qualquer questão de forma ou de fundo, se destina principalmente a regular o andamento do processo
2 – Na generalidade dos casos, a marcação do julgamento representa um acto de mero expediente.
3 – Na pendência da contumácia, apenas podem ser praticados actos urgentes nos termos do artigo 320.º, ex vi do artigo 335.º, ambos do Código de Processo Civil, onde não está incluído o agendamento do julgamento.
4 – Caso essa data seja designada, ou essa marcação configura um acto inútil ou, ainda que reflexamente, da mesma poderá sobrevir um conflito de interesses com as garantias de defesa do arguido, se vier a ser realizado o julgamento na sua ausência sem estarem reunidos os pressupostos habilitantes para tal, o que afastaria a natureza do mero expediente à decisão proferida.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 602/15.0T9SLV-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Competência Genérica de Silves – J1
*
I – Relatório:
O Ministério Público veio reclamar do despacho de não admissão do recurso por si interposto, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º do Código de Processo Penal.
*
O arguido foi declarado contumaz por despacho datado de 21/06/2016.
*
O arguido não se apresentou em juízo, não foi detido e não foi declarada cessada a sua contumácia.
*
Ao apreciar a aplicação da lei da amnistia (Lei n.º 38-A/2023, de 02/08), em 27/11/2023, na parte pertinente para a justa resolução da questão, o Tribunal a quo designou data para a realização do julgamento, com marcação de dia alternativo, tendo presente «a necessidade de emissão e notificação de carta rogatória para notificação do arguido, com as demoras a tal atinentes».
Após ordenar as apropriadas notificações, está escrito no despacho reclamado que «relativamente ao arguido e por referência à morada indicada na informação com a referência 11854178, elabore e expeça carta rogatória às entidades de Justiça Francesa, solicitando a notificação, ao mesmo, do teor da acusação (bem como da faculdade de requerer a abertura da instrução) e do despacho que a recebeu da possibilidade de contestar tal acusação e das datas designadas para a realização da audiência de julgamento, com informação de que poderá requerer ou consentir que o julgamento tenha lugar na sua ausência».
*
O despacho recorrido mostra-se notificado ao Ministério Público em 15/12/2023 e aos defensores oficiosos/mandatários, por carta expedida em 28/11/2023.
*
O Ministério Público interpôs recurso dessa decisão em 01/02/2024.
*
O recurso não foi admitido. Após a enunciação de normas legais e a transcrição de doutrina pertinente, a Meritíssima Juíza de Direito adiantou que: «no caso, está em causa despacho que designa dia para a realização de audiência de discussão e julgamento, despacho, que salvo melhor entendimento, em nada belisca quaisquer direitos do arguido já que o mesmo se destina unicamente a regular o normal andamento do processo, ou, dito de outro modo, no dizer do n.º 4 do artigo 142.º do Código de Processo Civil, o despacho em causa destina-se a “prover ao andamento regular do processo sem interferir no conflito de interesses entre as partes», pelo que do mesmo não é admissível recurso». *
O despacho reclamado é de 11/02/2024 e foi notificado ao Ministério Público em 29/03/2024 e, na mesma data foi expedida carta, aos defensores oficiosos/mandatários dos restantes sujeitos processuais.
*
O Ministério Público fundamenta a reclamação na circunstância de o arguido estar declarado contumaz, argumentando que a prestação de TIR por arguido contumaz residente no estrangeiro não faz cessar a contumácia, cuja caducidade depende exclusivamente da apresentação ou detenção do acusado.
*
O Ministério Público solicitou a substituição do despacho reclamado por outro que admita o recurso interposto.
*
II – Dos factos com interesse para a decisão:
Os factos com interesse para a justa decisão do litígio são os que constam do relatório inicial.
*
III – Enquadramento jurídico:
Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º[1] do Código de Processo Penal.
É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei, tal como estipula o artigo 399.º[2] do Código de Processo Penal.
As decisões que não admitem recurso estão elencadas no artigo 400.º[3] do Código de Processo Penal e o Tribunal recorrido considerou que se estava perante um acto de mero expediente.
É entendimento jurisprudencial consolidado que constitui despacho de mero expediente aquele que, proferido pelo juiz, não decidindo qualquer questão de forma ou de fundo, se destina principalmente a regular o andamento do processo. Caracteriza-se, assim, pela sua natureza de se limitar a dar cumprimento aos legais trâmites que devem nortear esse andamento do processo, sem envolver uma apreciação concreta que se projecte nos direitos dos intervenientes[4].
Leal Henriques e Simas Santos referem que tais despachos resumem-se, em princípio, aos despachos de carácter meramente interno que dizem respeito às relações hierárquicas administrativas entre o juiz e a secretaria, reportando-se apenas à tramitação do processo, sem tocarem nos direitos ou deveres das partes[5].
Mais recentemente, Paulo Pinto de Albuquerque assumiu que os «despachos de mero expediente são actos processuais do juiz pelos quais ele regula o andamento normal do processo, sem que se pronuncie sobre o mérito da causa ou de quaisquer incidentes ou questões interlocutórias suscitadas pelos outros sujeitos processuais. Contudo, se os despachos de mero expediente afectarem os direitos dos sujeitos processuais, eles são recorríveis, por força dos artigos 20.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, da CRP»[6].
Também Pereira Madeira entende que «os despachos de mero expediente, porque se limitam, em regra, a ordenar os termos do processo, deixando intocados os direitos dos sujeitos processos a que respeitam, são irrecorríveis: Não faria sentido, e falharia, mesmo, interesse em agir, para poder ser atacada, em recurso, uma decisão inócua para com os direitos dos intervenientes processuais»[7].
De igual modo, recorrendo aos ensinamentos subsidiários do processo civil, também Lebre de Freitas se pronuncia e defende que não são recorríveis os despachos internos proferidos no âmbito das relações hierárquicas estabelecidos com a secretaria e os despachos que digam respeito à mera tramitação do processo[8].
Ressalta igualmente da lição de Castro Mendes que estes despachos «dizem respeito apenas à tramitação do processo, sem tocarem nos direitos ou deveres das partes»[9].
No entanto, como bem adverte Alberto dos Reis[10], temos de atender à necessidade de não confundir despachos de mero expediente com despachos que se destinam a regular termos do processo, porquanto estes últimos, ao contrário dos primeiros, são susceptíveis de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros.
Dito isto, importa aferir se estamos perante um despacho de mero expediente, regulador do processo ou discricionário ou se a decisão proferida é susceptível de afectar direitos das partes ou de terceiros, porquanto, neste campo, este é o critério decisivo em ordem a apurar se a decisão é recorrível.
Podemos visualizar jurisprudência que assinala que a matéria do agendamento ou remarcação de audiência de julgamento «não nega ou reconhece qualquer direito que constitua objecto do processo» e «constitui um típico ato de gestão processual, na livre resolução do juiz, no pressuposto de que não viole norma legal expressa»[11].
Porém, o arguido não se apresentou em juízo, não foi detido e não foi declarada caduca a sua contumácia, sendo que, na pendência desta declaração, apenas podem ser praticados actos urgentes nos termos do artigo 320.º[12], ex vi do artigo 335.º, ambos do Código de Processo Civil[13], onde não está incluído o agendamento do julgamento.
Não temos dúvidas que, na generalidade dos casos, a marcação do julgamento representa um acto de mero expediente. Contudo, esta asserção deve ser entendida cum grano salis no caso de marcação de julgamento relativamente a contumaz em que a mesma não tenha caducado[14], dado que, ainda que apenas reflexamente, desta designação poderá sobrevir um conflito de interesses com as garantias de defesa do arguido.
Na realidade, pode-se intuir a preocupação da Meritíssima Senhora Juíza de Direito em dar andamento e celeridade aos autos, projectando a possibilidade de o arguido se apresentar no julgamento e de, assim, por essa via, colocar termo ao processo.
Porém, por força das regras do processo civil[15], aqui aplicáveis subsidiariamente, caso o arguido não compareça voluntariamente nessa audiência, a marcação de julgamento consistirá num acto inútil, dado que a diligência teria de ser adiada.
De outro modo, a não ser assim, ainda que reflexamente, da mesma poderá sobrevir um conflito de interesses com as garantias de defesa do arguido, se viesse a ser realizado o julgamento na sua ausência sem estarem reunidos os pressupostos habilitantes para tal, o que afastaria a natureza do mero expediente à decisão proferida e da irrecorribilidade que lhes é inata.
Sem entrar no conteúdo do objecto do recurso que extravasa o âmbito da presente reclamação, em função da sobredita alternativa, é aqui inteiramente aplicável a lição de Alberto dos Reis quando sublinha que um julgamento indevidamente agendado «deixará de ser de mero expediente, porque ordenou um acto do processo fora do condicionalismo legal, isto é, com infracção manifesta dos termos que a lei prescreve. O despacho proferido em tais circunstâncias ofende os direitos das partes, pelo que não pode negar-se a estas o direito de o impugnar por via de recurso»[16].
Existe jurisprudência deste Tribunal da Relação de Évora que se ancora nesta visão, ao ter decidido que «se o Juiz exceder esses parâmetros a decisão passa a ser recorrível»[17].
Assim, como forma de maximizar o exercício do duplo grau de jurisdição, admite-se o recurso interposto, sem prejuízo da possibilidade do relator ter entendimento distinto, ao abrigo da norma consignada na 2.ª parte do n.º 4 do artigo 405.º do Código de Processo Penal.
*
IV – Sumário: (…)

*
V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção as considerações expendidas e o quadro legal aplicável, concede-se provimento à reclamação, admitindo-se o recurso apresentado.
Sem tributação.
Notifique.
*
Requisite o processo principal ao Tribunal recorrido.
*
Processei e revi.
*
Évora, 10/04/2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho


__________________________________________________
[1] Artigo 405.º (Reclamação contra despacho que não admitir ou que retiver o recurso):
1 - Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige.
2 - A reclamação é apresentada na secretaria do tribunal recorrido no prazo de 10 dias contados da notificação do despacho que não tiver admitido o recurso ou da data em que o recorrente tiver tido conhecimento da retenção.
3 - No requerimento o reclamante expõe as razões que justificam a admissão ou a subida imediata do recurso e indica os elementos com que pretende instruir a reclamação.
4 - A decisão do presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar o despacho de indeferimento. No caso contrário, não vincula o tribunal de recurso.
[2] Artigo 399.º (Princípio geral):
É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.
[3] Artigo 400.º (Decisões que não admitem recurso):
1 - Não é admissível recurso:
a) De despachos de mero expediente;
b) De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal;
c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º;
d) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, exceto no caso de decisão condenatória em 1.ª instância em pena de prisão superior a 5 anos;
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
g) Nos demais casos previstos na lei.
2 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
3 - Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.
[4] Acórdão do Tribunal de Évora de 02/07/2019, consultável em www.dgsi.pt.
[5] Leal Henriques e Simas Santos, Código de Processo Penal Anotado, 2000, vol. II, pág. 671.
[6] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à Luz da CRP e da CEDH, 3.ª Edição, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, pág. 1013.
[7] Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, pág. 1197.
[8] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 302.
[9] João Castro Mendes Direito Processual Civil. Recursos, Edição AAFDL, 1980, Lisboa, págs. 39 e 40.
[10] José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra, vol. II, págs. 178-186.
[11] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06/06/2018, cuja consulta pode ser realizada em www.dgsi.pt.
[12] Artigo 320.º (Realização de actos urgentes):
1 - O presidente, oficiosamente ou a requerimento, procede à realização dos actos urgentes ou cuja demora possa acarretar perigo para a aquisição ou a conservação da prova, ou para a descoberta da verdade, nomeadamente à tomada de declarações nos casos e às pessoas referidas nos artigos 271.º e 294.º.
2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2, 3, 4 e 7 do artigo 318.º.
[13] Artigo 335.º (Declaração de contumácia):
1 - Fora dos casos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo anterior, se, depois de realizadas as diligências necessárias à notificação a que se refere o n.º 1 e primeira parte do n.º 4 do artigo 311.º-A, ou à notificação a que se refere o n.º 1 do artigo 313.º, não for possível notificar o arguido do despacho para apresentação de contestação ou do despacho que designa a data da audiência, ou executar a detenção ou a prisão preventiva referidas no n.º 2 do artigo 116.º e no artigo 254.º, ou consequentes a uma evasão, o arguido é notificado por editais para apresentar contestação ou apresentar-se em juízo, num prazo até 30 dias, sob pena de ser declarado contumaz.
2 - Os editais contêm as indicações tendentes à identificação do arguido, do crime que lhe é imputado e das disposições legais que o punem e a comunicação de que, não se apresentando no prazo assinado, será declarado contumaz.
3 - A declaração de contumácia é da competência do presidente e implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, sem prejuízo do disposto no n.º 4 e da realização de atos urgentes nos termos do artigo 320.º
4 - Em caso de conexão de processos, a declaração de contumácia implica a separação daqueles em que tiver sido proferida.
5 - A declaração de contumácia não impede o prosseguimento do processo para efeitos da declaração da perda de instrumentos, produtos e vantagens a favor do Estado.
6 - Os números anteriores são correspondentemente aplicáveis à pessoa coletiva ou entidade equiparada arguida, sendo a notificação edital feita nos termos do n.º 17 do artigo 113.º.
[14] Artigo 336.º (Caducidade da declaração de contumácia):
1 - A declaração de contumácia caduca logo que o arguido se apresentar ou for detido, sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo anterior.
2 - Logo que se apresente ou for detido, o arguido é sujeito a termo de identidade e residência, sem prejuízo de outras medidas de coação, observando-se o disposto nos n.ºs 2 e 4 a 6 do artigo 58.º.
3 - Se o processo tiver prosseguido nos termos da parte final do n.º 5 do artigo 283.º, o arguido é notificado da acusação, podendo requerer abertura de instrução no prazo a que se refere o artigo 287.º, seguindo-se os demais termos previstos para o processo comum.
[15] Artigo 130.º (Princípio da limitação dos atos):
Não é lícito realizar no processo atos inúteis.
[16] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Coimbra Editora, Vol. V, pág. 250.
[17] Reclamação decidida em 23/06/2006, disponibilizada na plataforma www.dgsi.pt.