RECLAMAÇÃO CONTRA DESPACHO QUE NÃO ADMITIR OU RETIVER RECURSO
EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
DIREITO AO RECURSO
Sumário

1 – O direito ao recurso expressamente referido no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa não exige a possibilidade de impugnação de toda e qualquer decisão proferida ao longo do processo, impondo apenas que necessariamente se assegure um segundo grau de jurisdição, relativamente às decisões condenatórias e àquelas que afetem direitos fundamentais do arguido, designadamente a sua liberdade.
2 – Não há que confundir o estatuto jurídico constitucional do arguido em processo penal e o estatuto jurídico constitucional do condenado, mormente daquele em execução de pena de prisão.
3 – As garantias de defesa do artigo 32.º não são aplicáveis às questões da execução da pena, a não ser nos casos em que se esteja perante uma decisão que afecte de forma grave ou insuportável os direitos fundamentais de um recluso a um tratamento condigno, à luz dos objectivos de reinserção social.
4 – A lei confia ao Ministério Público a legitimidade activa para impugnar a decisão que conceda, recuse ou revogue a licença de saída jurisdicional, enquanto garante da legalidade e detentor de uma posição de equidistância aos interesses em discussão.
5 – O direito de impugnação por via jurisdicional não é suprimido, apenas assume a particularidade de o mesmo estar deferido ao Ministério Público, que, por força do seu estatuto legal, está vinculado a agir em nome do arguido sempre que a natureza e as circunstâncias próprias do caso assim o imponham, a pedido deste ou por iniciativa própria.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 1323/16.2TXLSB-S.E1
Tribunal de Execução de Penas de Évora – J1
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I – Relatório:
(…) veio reclamar do despacho de não admissão do recurso por si interposto, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º do Código de Processo Penal.
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O recluso encontra-se preso desde 23/06/2016 e já usufruiu de 5 (cinco) licenças de saída jurisdicional e de 4 (quatro) saídas de curta duração.
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O recluso cumpre pena em regime aberto ao exterior, depois de ter cumprido pena em regime aberto no interior e em regime comum.
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O arguido requereu a concessão de nova licença de saída jurisdicional.
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Por sentença datada de 04/03/2024 não foi concedida a referida licença de saída jurisdicional, devido a uma avaliação negativa fundada na circunstância de o arguido não ter consciência sobre o seu comportamento criminoso, que não assume.
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Em função disto, o recluso não poderá formular novo pedido de concessão de novo pedido de licença de saída jurisdicional antes de decorridos 4 (quatro) meses a contar da data de conhecimento da decisão aqui em apreciação.
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Inconformado, o arguido apresentou recurso da referida decisão.
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O referido recurso não foi admitido com a seguinte fundamentação:
«(…) no que respeita aos recursos de decisões proferidas pelos tribunais de execução das penas, rege, como princípio geral, o artigo 235.º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12/10).
Deste normativo resulta a regra de que apenas são admissíveis recursos das decisões nos casos expressamente previstos na lei.
Assim, e no Capítulo VI do Código de Execução das Penas reservado à matéria das licenças de saída jurisdicional dispõe especificamente o artigo 196.º, resultando do seu n.º 2 que o recluso apenas pode recorrer da decisão que revogue a licença de saída jurisdicional.
O n.º 2 do citado artigo 235.º prevê ainda de forma especial situações em que o recurso de decisões do Tribunal de Execução das Penas é admissível – mas nas quais a situação dos autos se não enquadra.
Isto posto, temos de concluir que ao recluso não é legalmente permitido recorrer da decisão que aprecia pedido de licença de saída jurisdicional (direito que apenas assiste ao M.º P.º), mas tão só da decisão que venha posteriormente a revogar uma licença de saída jurisdicional antes concedida.
A propósito, não podemos deixar ainda de referir que o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 652/2023 citado pelo recorrente, a nosso ver, aprecia situação diferente daquela que ora nos ocupa, pois que ali sequer houve decisão judicial de mérito a apreciar pedido de licença de saída jurisdicional, decisão que no caso dos autos existiu (ainda que de sentido diferente do expectado pelo recluso).
Assim, e nos termos do disposto no artigo 414.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, ex vi do artigo 239.º do Código de Execução das Penas, não admito o recurso interposto por (…)».
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O arguido fundamenta a reclamação no sentido decisório do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 652/2023, defendendo que devem ser julgados inconstitucionais os artigos 235.º e 196.º do CEPMPL, singularmente ou em conjugação entre si ou com quaisquer outras normas, quando interpretados nos termos, com os fundamentos e alcance resultantes da decisão sob censura, no sentido de considerar irrecorrível o despacho que indefere o pedido de saída jurisdicional, por violação dos artigos 2.º, 9,º, 13.º, 16.º, 20.º, 30.º, 32.º, 202.º, n.º 1 e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Pretende, assim, o arguido que seja dado provimento à reclamação e, em consequência, determinada a admissão do recurso interposto.
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II – Dos factos com interesse para a decisão:
Os factos com interesse para a justa decisão do litígio são os que constam do relatório inicial.
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III – Enquadramento jurídico:
Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º[1] do Código de Processo Penal.
É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei, tal como estipula o artigo 399.º[2] do Código de Processo Penal. E, neste capítulo, existe um regime especial de recursos previsto no Código da Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade (Lei n.º 115/2009, de 12/10).
Das decisões do Tribunal de Execução de Penas apenas cabe recurso para a Relação nos casos expressamente previstos na lei, tal como decorre da leitura do disposto no n.º 1 do artigo 235.º[3] do citado diploma.
O referido diploma não prevê a possibilidade de o recluso poder recorrer da decisão que não lhe concede licença de saída jurisdicional, pois, neste segmento, face ao consignado no n.º 1 do artigo 196.º[4] da referida lei, essa possibilidade apenas é deferida ao Ministério Público.
A licença de saída jurisdicional é uma medida individual de reinserção social exequível em fase de execução da pena de prisão, que visa a manutenção e promoção de laços familiares e sociais e a preparação do recluso para a vida em liberdade.
O ora recluso em cumprimento de pena de prisão apresentou pedido de concessão de licença de saída jurisdicional, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 79.º[5] do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.
Aquilo que se pergunta é se a referida limitação subjectiva de legitimidade para interpor recurso viola a Constituição da República Portuguesa?
O reclamante faz apelo à jurisprudência contida no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 652/2023, de 10/10[6], que julgou inconstitucional a norma contida nos artigos 196.º, n.º 2, e 235.º, n.º 1, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, interpretados no sentido da irrecorribilidade do despacho que indefira liminarmente o pedido de concessão de licença de saída jurisdicional com fundamento na verificação de que a situação jurídico-penal do recluso não se encontra estabilizada.
Assiste razão à Meritíssima Juíza de Direito quando afiança que não existe uma identidade de objecto e que o acórdão supra referenciado se reporta à questão do indeferimento liminar. Na realidade, aquilo que sobressaía neste aresto era um verdadeiro impedimento de acesso ao direito, tornando definitiva a decisão de não apreciação da concessão da licença de saída jurisdicional, enquanto no presente caso emerge uma questão de legitimidade activa para interpor recurso.
No Acórdão n.º 560/2014, decidiu-se não julgar inconstitucional a norma do artigo 196.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12/10, na medida em que confere ao Ministério Público a possibilidade de recorrer da decisão que conceda, recuse ou revogue a licença de saída jurisdicional, enquanto o recluso apenas pode recorrer da decisão que revogue a licença de saída jurisdicional.
Para além disso, o referenciado juízo de não inconstitucionalidade foi retomado no Acórdão n.º 752/2014, que asseverou que estava assegurado o segundo grau de jurisdição, que a licença de saída não constitui um direito fundamental do recluso e esse processo «tal como está desenhado nos artigos 189.º a 193.º do CEPMPL, não é um processo destinado a prevenir ou a compor um conflito entre o recluso e a administração prisional, pois o interesse atuado no processo é um só: a socialização do recluso. A forma desse processo não corresponde ao modelo de um «processo de partes», em que o interesse do recluso se confronta com interesses contrapostos da administração penitenciária». Nesta ordem de ideias, prevaleceu o entendimento que havia fundamento razoável para diferenciar os poderes do Ministério Público dos poderes do recluso quanto à legitimidade para recorrer da decisão judicial que nega a licença de saída.
De igual modo, o Acórdão n.º 848/2013, no qual se decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 235.º do CEPMPL, interpretado com o sentido de que não são recorríveis as decisões proferidas pelo Tribunal de Execução das Penas no âmbito do processo de impugnação das decisões administrativas de manutenção em regime de segurança de recluso que se encontra em situação de prisão preventiva.
E não se vislumbra qualquer razão superveniente ou uma evolução factual, legal ou social que implique a revisão daquele juízo. Porém, a propósito de assunto congénere, ocorreu uma inversão da jurisprudência do Tribunal Constitucional que decidiu julgar inconstitucional a norma contida no artigo 235.º, n.º 1, do CEPMPL, na interpretação segundo a qual não é recorrível a decisão que indefere o pedido de concessão do período de adaptação à liberdade condicional.
No entanto, neste caso, ao nível da densidade dos direitos, é inequívoco que o período de adaptação à liberdade constitucional contende de forma mais activa com a liberdade do que a licença de saída jurisdicional, por se tratar de um estágio mais próximo da libertação do recluso e serem mais prementes as exigências particulares de ressocialização.
Na verdade, é o próprio acórdão convocado pelo arguido que sublinha que a posição adoptada no Acórdão n.º 764/2022 não acarreta que o mesmo juízo de censura jurídico-constitucional nem demanda que o referido juízo seja replicado no que toca à situação da licença de saída jurisdicional, por existir uma diferença de intensidade com o regime da liberdade condicional, que neste caso assume uma maior interferência com o direito à liberdade.
Apesar de ter sido contrariado (Acórdãos n.º 764/2022 e 125/2022) o juízo de não inconstitucionalidade objecto dos Acórdãos n.ºs 150/2013 e 332/2016, a este respeito, foram apresentadas queixas no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), que deram origem a acórdãos datados de 18/10/2022 – caso (…) c. Portugal – e de 30/05/2023 – caso (…) c. Portugal – que não obtiveram resposta positiva, por se entender que, em sede de direito da execução das penas, o legislador ordinário dispõe de liberdade para configurar o sistema de recursos.
Não há que confundir o estatuto jurídico constitucional do arguido em processo penal e o estatuto jurídico constitucional do condenado, mormente daquele em execução de pena de prisão. Partilhamos do prévio entendimento do Tribunal Constitucional quando considera que a licença penal não é um direito reconhecido aos reclusos e avança que no sentido que a apreciação da concessão da licença é casuística e depende do preenchimento dos requisitos previstos no n.º 1 do artigo 78.º Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.
Embora se reconheça que o recluso tem um interesse juridicamente protegido na concessão da licença, o direito ao recurso expressamente referido no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa não exige a possibilidade de impugnação de toda e qualquer decisão proferida ao longo do processo, impondo apenas que necessariamente se assegure um segundo grau de jurisdição, relativamente às decisões condenatórias e àquelas que afetem direitos fundamentais do arguido, designadamente a sua liberdade.
Como refere Inês Horta Pinto «(…) as garantias de defesa do artigo 32.º não são aplicáveis às questões da execução da pena (a não ser naquilo que ainda possa reconduzir-se à interpretação e execução da própria sentença penal). Em abono desta posição, convoca-se a distinção, acima estabelecida, entre execução (da sentença) e cumprimento (da pena).
(…) o que está em causa é, agora, a satisfação das finalidades próprias da execução da pena, previstas no artigo 42.º do Código Penal e no artigo 2.º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade».
Neste enquadramento, a partir do momento que transita em julgado a condenação numa pena ou medida de segurança, existe uma autonomia do regime de execução das penas de prisão e, na nossa perspectiva, com integral respeito por posição diversa, não estamos perante uma decisão que incida directamente sobre direitos fundamentais – rectius, que afecte de forma grave ou intolerável os direitos fundamentais de um recluso a um tratamento condigno –, uma vez que o recluso tem de suportar os efeitos restritivos decorrente do título judiciário de execução de uma pena.
Na situação vertente, o direito de impugnação por via jurisdicional não é suprimido, apenas assume a particularidade de o mesmo estar deferido ao Ministério Público, que, por força do seu estatuto legal, está vinculado a agir em nome do arguido sempre que a natureza e as circunstâncias próprias do caso assim o imponham, a pedido deste ou por iniciativa própria.
Na visão dominante do Tribunal Constitucional – e apesar de se aceitar que se caminha para uma bipolarização decisória neste domínio, encontrando-se o colectivo decisório da primeira secção daquele órgão profundamente dividido –, esta interpretação não atinge o princípio da igualdade nem contende com as exigências de imparcialidade ou significa uma limitação abusiva do acesso ao direito.
Assim, sob pena de descaracterização das medidas típicas de reinserção do sistema prisional e da hipotética implosão do sistema de recursos causada pela extensão da legitimidade para interpor recursos, existe um determinado equilíbrio do aparelho penitenciário e da execução de penas, quando, na dimensão do direito infraconstitucional, é exigido um juízo de prognose favorável à recuperação social do condenado e à sua progressiva reinserção comunitária, confiando ao Ministério Público a legitimidade activa para recorrer de um conjunto de decisões, enquanto garante da legalidade e detentor de uma posição de equidistância aos interesses em discussão.
Deste modo, não se perfilam razões para considerar que a interpretação normativa dos artigos 235.º e 196.º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade em apreciação, viola direitos fundamentais do recluso, mormente o direito a uma tutela jurisdicional efectiva e a um tratamento igualitário, assegurado pelo n.º 2 do artigo 20.º da Lei Fundamental e pelas demais disposições invocadas.
Razões essas que, à luz do texto legal, justificam a manutenção do despacho recorrido.
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IV – Sumário: (…)
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção as considerações expendidas e o quadro legal aplicável, negar provimento à reclamação, mantendo-se o recurso apresentado.
Sem tributação.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 12/04/2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho


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[1] Artigo 405.º (Reclamação contra despacho que não admitir ou que retiver o recurso):
1 - Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige.
2 - A reclamação é apresentada na secretaria do tribunal recorrido no prazo de 10 dias contados da notificação do despacho que não tiver admitido o recurso ou da data em que o recorrente tiver tido conhecimento da retenção.
3 - No requerimento o reclamante expõe as razões que justificam a admissão ou a subida imediata do recurso e indica os elementos com que pretende instruir a reclamação.
4 - A decisão do presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar o despacho de indeferimento. No caso contrário, não vincula o tribunal de recurso.
[2] Artigo 399.º (Princípio geral):
É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.
[3] Artigo 235.º (Decisões recorríveis):
1 - Das decisões do tribunal de execução das penas cabe recurso para a Relação nos casos expressamente previstos na lei.
2 - São ainda recorríveis as seguintes decisões do tribunal de execução das penas:
a) Extinção da pena e da medida de segurança privativas da liberdade;
b) Concessão, recusa e revogação do cancelamento provisório do registo criminal;
c) As proferidas em processo supletivo.
[4] Artigo 196.º (Recurso):
1 - O Ministério Público pode recorrer da decisão que conceda, recuse ou revogue a licença de saída jurisdicional.
2 - O recluso apenas pode recorrer da decisão que revogue a licença de saída jurisdicional.
3 - O recurso interposto da decisão que conceda ou revogue a licença de saída jurisdicional tem efeito suspensivo.
[5] Artigo 79.º (Licenças de saída jurisdicionais):
1 - As licenças de saída jurisdicionais são concedidas e revogadas pelo tribunal de execução das penas.
2 - As licenças de saída jurisdicionais podem ser concedidas quando cumulativamente se verifique:
a) O cumprimento de um sexto da pena e no mínimo seis meses, tratando-se de pena não superior a cinco anos, ou o cumprimento de um quarto da pena, tratando-se de pena superior a cinco anos;
b) A execução da pena em regime comum ou aberto;
c) A inexistência de outro processo pendente em que esteja determinada prisão preventiva;
d) A inexistência de evasão, ausência ilegítima ou revogação da liberdade condicional nos 12 meses que antecederem o pedido.
3 - Nos casos de execução sucessiva de penas de prisão ou de pena relativamente indeterminada, o sexto e o quarto da pena determinam-se, respectivamente, em função da soma das penas ou da pena que concretamente caberia ao crime.
4 - Cada licença de saída não pode ultrapassar o limite máximo de cinco ou sete dias seguidos, consoante a execução da pena decorra em regime comum ou aberto, a gozar de quatro em quatro meses.
5 - As licenças de saída jurisdicionais não são custodiadas.
[6] Todos os acórdãos mencionados na presente decisão são acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt.