RECLAMAÇÃO CONTRA DESPACHO QUE NÃO ADMITIR OU RETIVER RECURSO
DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE
DIREITO AO RECURSO
Sumário

1 – Constitui despacho de mero expediente aquele que, proferido pelo juiz, não decidindo qualquer questão de forma ou de fundo, se destina principalmente a regular o andamento do processo.
2 – Se os despachos de mero expediente afectarem os direitos dos sujeitos processuais, eles são recorríveis, por força dos artigos 20.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 748/21.6PBSTR-B.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Central de Competência Criminal de Santarém – J4
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I – Relatório:
(…) veio reclamar do despacho de não admissão do recurso por si interposto, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º do Código de Processo Penal.
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Transitou em julgado a decisão proferida em sede de inquérito, que determinou o levantamento da apreensão criminal do veículo pertencente ao arguido e a respectiva entrega ao aqui reclamante, negando a existência de qualquer direito de retenção.
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O arguido (…) procedeu ao levantamento do veículo contra a entrega de um determinado pagamento a favor da entidade depositária.
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Nessa sequência, o arguido (…) requereu que a ESPAP e a Polícia Judiciária fossem notificadas para proceder à restituição da quantia indevidamente cobrada aquando do levantamento do veículo.
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O Ministério Público pronunciou-se dizendo que «o processo penal não é a sede própria para reclamar a respetiva devolução, mas antes uma acção cível autónoma, consubstanciando o requerimento sub judice incidente absolutamente anómalo, que, por conseguinte, se promove que seja indeferido».
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Na resolução da aludida questão, o Meritíssimo Juiz de Direito «considerou que o pedido formulado requerimento é estranho à normal tramitação do processo penal e que o mesmo está enquadrado em lei especial (conferir Decreto-Lei n.º 31/85, de 25 de janeiro), nada cumpre determinar».
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Devidamente notificado, o arguido (…) apresentou recurso da mencionada decisão.
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Após fazer a descrição do historial do processo e da prévia posição assumida pelo Tribunal da Relação de Évora quanto à matéria da entrega da viatura apreendida, o Tribunal a quo lavrou a seguinte posição: «vale isto por dizer que o despacho proferido, e agora recorrido, mais não faz que relembrar as coordenadas processuais a seguir, não tendo a virtualidade de consubstanciar uma decisão recorrível. Com efeito, o despacho mais não manifesta que um caráter meramente ordenador do procedimento, o mesmo é dizer que redunda num despacho de mero expediente, que pela sua natureza é insuscetível de recurso, em conformidade com o disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal».
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Ao ser notificado desta não admissão do recurso interposto, o arguido apresentou reclamação, na qual, em síntese, contesta o entendimento de que se trata de um despacho de mero expediente, afirmando que não estava em causa «a eventual existência de uma indemnização a favor do arguido ou o direito ao ressarcimento de benfeitorias realizadas no veículo», mas antes de uma pressão da PJ para «proceder àquele pagamento», que se traduz numa determinação sobre uma questão de fundo e que incide sobre «uma apreciação concreta dos direitos dos intervenientes processuais, neste caso do arguido».
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II – Dos factos com interesse para a decisão:
Os factos com interesse para a justa decisão do litígio são os que constam do relatório inicial.
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III – Enquadramento jurídico:
Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º[1] do Código de Processo Penal.
É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei, tal como estipula o artigo 399.º[2] do Código de Processo Penal.
As decisões que não admitem recurso estão elencadas no artigo 400.º[3] do Código de Processo Penal e o Tribunal recorrido considerou que se estava perante um acto de mero expediente.
É entendimento jurisprudencial consolidado que constitui despacho de mero expediente aquele que, proferido pelo juiz, não decidindo qualquer questão de forma ou de fundo, se destina principalmente a regular o andamento do processo. Caracteriza-se, assim, pela sua natureza de se limitar a dar cumprimento aos legais trâmites que devem nortear esse andamento do processo, sem envolver uma apreciação concreta que se projecte nos direitos dos intervenientes[4].
Leal Henriques e Simas Santos referem que tais despachos resumem-se, em princípio, aos despachos de carácter meramente interno que dizem respeito às relações hierárquicas administrativas entre o juiz e a secretaria, reportando-se apenas à tramitação do processo, sem tocarem nos direitos ou deveres das partes[5].
Mais recentemente, Paulo Pinto de Albuquerque assumiu que os «despachos de mero expediente são actos processuais do juiz pelos quais ele regula o andamento normal do processo, sem que se pronuncie sobre o mérito da causa ou de quaisquer incidentes ou questões interlocutórias suscitadas pelos outros sujeitos processuais. Contudo, se os despachos de mero expediente afectarem os direitos dos sujeitos processuais, eles são recorríveis, por força dos artigos 20.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, da CRP»[6].
Também Pereira Madeira entende que «os despachos de mero expediente, porque se limitam, em regra, a ordenar os termos do processo, deixando intocados os direitos dos sujeitos processuais a que respeitam, são irrecorríveis: Não faria sentido, e falharia, mesmo, interesse em agir, para poder ser atacada, em recurso, uma decisão inócua para com os direitos dos intervenientes processuais»[7].
De igual modo, recorrendo aos ensinamentos subsidiários do processo civil, também Lebre de Freitas se pronuncia e defende que não são recorríveis os despachos internos proferidos no âmbito das relações hierárquicas estabelecidos com a secretaria e os despachos que digam respeito à mera tramitação do processo[8].
Ressalta igualmente da lição de Castro Mendes que estes despachos «dizem respeito apenas à tramitação do processo, sem tocarem nos direitos ou deveres das partes»[9].
No entanto, como bem adverte Alberto dos Reis, temos de atender à necessidade de não confundir despachos de mero expediente com despachos que se destinam a regular termos do processo, porquanto estes últimos, ao contrário dos primeiros, são susceptíveis de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros[10].
Dito isto, importa aferir se estamos perante um despacho de mero expediente, regulador do processo ou discricionário ou se a decisão proferida é susceptível de afectar direitos das partes ou de terceiros, porquanto, neste campo, este é o critério decisivo em ordem a apurar se a decisão é recorrível.
Vejamos.
Na busca do lugar paralelo, o reclamante funda a sua pretensão no sentido decisório de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 13/01/2010[11] e adianta que o pedido de notificação da PJ e ESPAP para devolução da quantia que lhe foi exigida contra a entrega do veículo, viola «de forma grosseira os direitos do arguido e indo contra a decisão proferida no douto Acórdão proferido pelo venerando Tribunal da relação de Évora».
No precedente acórdão o Tribunal da Relação de Évora asseverou que existiam «três realidades contabilísticas distintas, tendo o proprietário ou legítimo possuidor direito a ver bem quantificada a contabilização das benfeitorias, a desvalorização contabilizada e o direito à indemnização pelo uso».
E, no culminar do seu raciocínio, o Tribunal da Relação de Évora concluiu, nesse douto aresto, que «se a Mmª JIC decide, por despacho transitado, que o bem não é susceptível de ser declarado perdido a favor do Estado, a entrega desse bem tem que ser imediata e isso quer significar que o bem deve ser imediatamente restituído, sem prejuízo de a quantificação dos créditos ficar dependente de petição – por apenso aos autos principais – do proprietário do bem».
O Tribunal da Relação de Évora decidiu que não existia direito de retenção e que devolução teria de ser imediata, mas não se pronuncia sobre as despesas reclamadas a título de depósito, até porque as mesmas não integravam o thema decidendum do pretérito recurso.
Em tese, até se pode admitir que a questão do pedido de devolução das quantias satisfeitas pelo dono veículo para proceder ao levantamento do mesmo possa não ser perfectibilizada em sede de processo penal, mas esta é inequivocamente uma questão relacionada com o mérito.
Aquilo que é seguro é que, numa das leituras possíveis, não se trata de uma decisão com carácter meramente ordenador do procedimento penal acima referenciado e que existem reflexos patrimoniais relacionados com o pagamento exigido pela ESPAP e pela PJ que são susceptíveis de ofender direitos do visado.
Na verdade, a interpretação presente no despacho implica que, ainda que provisoriamente, o património do arguido seja afectado com um pagamento, que pode ou não ser devido, afectando, assim, numa determinada acepção, os hipotéticos direitos do sujeito processual a que respeitam.
Em suma, a não existência de um direito de retenção, em associação com esta possível afectação dos direitos patrimoniais do arguido, transfigura a natureza meramente ordenadora do despacho em discussão, viabilizando assim que se conceda a possibilidade de recorribilidade da decisão, por força dos artigos 20.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, independentemente da razão que possa assistir ao reclamante, que aqui não se discute.
Assim, como forma de maximizar o exercício do duplo grau de jurisdição, admite-se o recurso interposto, sem prejuízo da possibilidade do relator ter entendimento distinto, ao abrigo da norma consignada na 2.ª parte do n.º 4 do artigo 405.º do Código de Processo Penal.
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IV – Sumário: (…)
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção as considerações expendidas e o quadro legal aplicável, concede-se provimento à reclamação, admitindo-se o recurso apresentado.
Sem tributação.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 12/04/2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho


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[1] Artigo 405.º (Reclamação contra despacho que não admitir ou que retiver o recurso):
1 - Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige.
2 - A reclamação é apresentada na secretaria do tribunal recorrido no prazo de 10 dias contados da notificação do despacho que não tiver admitido o recurso ou da data em que o recorrente tiver tido conhecimento da retenção.
3 - No requerimento o reclamante expõe as razões que justificam a admissão ou a subida imediata do recurso e indica os elementos com que pretende instruir a reclamação.
4 - A decisão do presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar o despacho de indeferimento. No caso contrário, não vincula o tribunal de recurso.
[2] Artigo 399.º (Princípio geral):
É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.
[3] Artigo 400.º (Decisões que não admitem recurso):
1 - Não é admissível recurso:
a) De despachos de mero expediente;
b) De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal;
c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º;
d) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, exceto no caso de decisão condenatória em 1.ª instância em pena de prisão superior a 5 anos;
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
g) Nos demais casos previstos na lei.
2 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
3 - Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.
[4] Acórdão do Tribunal de Évora de 02/07/2019, consultável em www.dgsi.pt.
[5] Leal Henriques e Simas Santos, Código de Processo Penal Anotado, 2000, vol. II, pág. 671.
[6] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à Luz da CRP e da CEDH, 3.ª Edição, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, pág. 1013.
[7] Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, pág. 1197.
[8] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 302.
[9] João Castro Mendes, Direito Processual Civil. Recursos, Edição AAFDL, 1980, Lisboa, págs. 39 e 40.
[10] José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra, vol. II, págs. 178-186.
[11] Supremo Tribunal de Justiça datado de 13/01/2010, no âmbito do processo n.º 76/09.5YFLSB, consultável em www.dgsi.pt.