DEPOSITÁRIO DE BENS PENHORADOS
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO DOS BENS
COISA MÓVEL DETERMINADA
LUGAR DA RESTITUIÇÃO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Sumário

I – Ao depositário dos bens penhorados são impostos os deveres gerais de qualquer depositário: o dever de guardar a coisa depositada, o dever de avisar imediatamente o depositante – o tribunal – quando saiba que algum perigo ameaça a coisa ou terceiros se arrogam direitos sobre ela e o de restituir essa coisa com os seus frutos.
II – A entrega dos bens ao depositário é, em regra simbólica, mas a esta entrega simbólica, pode seguir-se a entrega efectiva e real, dado que àquele assiste o direito a ser investido na posse efectiva dos bens, o que significa que é um possuidor em nome alheio, dado que após a penhora, a posse do executado se transfere para o tribunal da execução; a restituição da coisa pode também ser meramente simbólica, não tendo, necessariamente de ser efectiva e real.
III – Tendo a prestação por objecto uma coisa móvel determinada, a obrigação de restituição ou de entrega – ainda que puramente simbólica – deve ser cumprida no lugar onde o depositário tiver de a guardar.
IV – O depositário que não actue com o grau de diligência do bonus pater familias, no cumprimento das obrigações a que está adstrito, torna-se responsável pelos prejuízos que cause ao exequente, a qualquer credor graduado – ou ao executado, responsabilidade que é necessariamente uma responsabilidade subjectiva por factos ilícitos, dita também, responsabilidade delitual – descendente directa da lex aquilia - dado que assenta na violação ilícita e culposa de direitos subjectivos ou de normas destinadas a proteger interesses alheios, competindo, por isso, ao lesado o ónus da prova da violação, pelo depositário, de qualquer daquelas obrigações e, bem assim, do carácter ilícito e culposo dessa violação.
V – No tocante a prestações de facto a sanção pecuniária compulsória apenas é admissível no tocante ás que sejam infungíveis, i.e., relativamente às prestações que, por razões jurídicas ou económicas, o interesse do credor impõe a sua realização pelo devedor e só por este.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Relator: Henrique Antunes
Adjuntos: Pires Robalo
Cristina Neves

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

AA pediu à Sra. Juíza de Direito do Juízo Local Cível ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., que condenasse, solidariamente, A..., SA, e BB:

a) A entregar-lhe o veículo automóvel da sua propriedade de matricula ..-..-BQ em perfeitas condições de funcionamento e manutenção, tal como quando foi apreendido;

b) A pagar à autora, a título de indemnização pecuniária compulsória (art.º 829-A do CC), o pagamento da quantia diária de € 20,00 por cada dia de atraso no cumprimento dessa obrigação de entrega, até à sua verificação;

c) A pagar à autora uma indemnização diária referente à privação forçada do uso do veículo ajuizado no equivalente ao quantitativo diário de € 20,00, desde o dia ../../2020 e até à data da propositura, o que, considerados os dias de descanso semanal, feriados e férias, se estima em 730 dias, ascendendo o pedido de reparação por danos patrimoniais ao quantitativo de € 15.000,00;

d) Na atribuição de uma compensação a título de danos morais de € 5 000,00.

Fundamentou esta pretensão no facto de na execução que correu termos no Juízo de Execução ..., na qual era exequente a ré A..., SA, e executados a autora e o seu cônjuge, e a ré BB foi nomeada agente de execução, ter sido penhorado o seu veículo automóvel ..-..-BQ, de na acção insolvência que correu termos no Juízo de Comércio ..., proposta pela ré A..., SA, contra si e contra o seu cônjuge, ter sido lavrada transacção, judicialmente homologada, na qual se acordou o cancelamento da penhora dos bens móveis feita na execução, tendo a ré BB, declarado, no dia 30 de Julho de 2020, que os bens penhorados seriam postos à disposição dos executados, de o seu mandatário ter requerido, no dia 2 de Março de 2022, que a viatura lhe fosse entregue o que, até hoje, não aconteceu, veículo que, avaliado em € 2 500,00 estava perfeitamente funcional e era utilizado nas suas deslocações de e para o seu local de  trabalho, e cuja privação alterou radicalmente toda a sua vivência, passando a sujeitar-se ao horário laboral do seu cônjuge, que se traduziu, nos dias úteis, numa espera de quatro horas sem que pudesse desenvolver trabalho útil, com repercussão na vida doméstica que era forçada a prolongar para satisfazer as necessidades diárias da casa e dos seus familiares.

A ré BB defendeu-se por excepção dilatória invocando a nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir, e por impugnação, afirmando que o veículo está disponível para levantamento no local onde se informou que ficaria e que a autora já esteve no local para o levantar e não o fez por sua livre vontade. Por sua vez, a ré A..., SA, afirmou, na contestação, que o veículo automóvel está à disposição da autora desde 2020, e opôs as excepções peremptórias da retenção, da compensação, do não cumprimento e do abuso do direito.

Na resposta, a autora afirmou, designadamente, que até é verdade que se deslocou ao local do depósito do automóvel não aceitando que aquele lhe fosse entregue em lugar diverso daquele onde tinha ocorrido a apreensão (na sua residência), uma vez que era sua pretensão submetê-lo à apreciação de um mecânico para conhecer do seu estado de funcionamento, já que em termos de conservação se encontrava muito degradado e com falta de peças, competindo aos réus assegurar essas qualidades do veículo.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, a sentença final da causa - com fundamento em que a 1ª Ré na referida transação não se obrigou a proceder ao levantamento do veículo, do local onde se encontra depositado, e transporte para o local onde se encontrava quando foi penhorado, mas apenas a providenciar pelo cancelamento da penhora, o que foi feito, que quanto à 2ª Ré, tal trabalho não cabe nas suas funções de Agente de Execução, que assim, à A. (ou ao co-executado) competia (e compete) providenciar pelos levantamento do veículo do local onde se encontra depositado e eventual porte, pois foi para ali levado em reboque, e que por não se verificar conduta das Rés que integre responsabilidade civil contratual ou extracontratual, importa concluir no sentido da improcedência dos pedidos da A. – julgou a acção improcedente a absolveu as rés dos pedido.

É, precisamente, esta sentença que a autora impugna no recurso – no qual pede a sua revogação e substituição por outra mais consentânea com os factos constantes dos autos e com o direito aplicável – tendo rematado a sua alegação com estas conclusões:

(…).

Não foi oferecida resposta.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

O Tribunal de que provém o recurso decidiu a matéria de facto nestes termos:

2.1. Factos provados.

1. Por injunção com o número 12795/17...., à qual foi aposta fórmula executória em 09-05-2017, a A. e o seu cônjuge, CC, eram devedores da 1ª Ré da quantia de €9.588,41.

2. Com base naquela injunção a 1ª R instaurou contra a A. e marido o Proc. de Execução nº 2830/17...., do Juízo de Execução ..., Juiz ... sendo o valor da execução de € 10.801,08.

3. A 2ª R é agente de execução e no âmbito dessa atividade recebeu, através do sistema informático aquela execução, tendo em 13-09-2019, no âmbito da mesma e no exercício das suas competências funcionais procedido à diligência de penhora.

4. Na referida data a 2ª Ré na qualidade de agente de execução deslocou-se à Rua ..., ..., ... e no âmbito da diligência penhorou “uma máquina de georreferenciação e tripé Laserplane 125, em estado de usado” e um “veículo automóvel da marca ..., com a matrícula ..-..-BQ, a gasolina, cor encarnado, em estado de usado”, sendo-lhe atribuído o valor de € 500,00 (quinhentos euros).

5. No referido auto de penhora no campo das observações foi escrito pela 1ª Ré o seguinte: “Neste acto procedi à penhora dos bens supra descritos, tendo procedido à remoção dos mesmos, perante a Executada Sra. AA à qual informei o motivo da diligência. (…) O bem descrito na verba nº. 1 foi removido para o armazém sito na Rua ... cave, .... O bem descrito na verba nº. 2 foi removido para as instalações sitas na Zona Industrial ..., ..., armazém ..., ..., ..., passando a ficar como fiel depositário do mesmo o Dr. DD, Mandatário da Exequente”, encontrando-se tal auto assinado pela Executada – aqui A. – pela AE – aqui 2.ª R. e por EE, coadjuvante na diligência de penhora.

6. O veículo automóvel foi removido sendo utilizado para o efeito um reboque.

7. O registo de penhora foi efetuado na competente Conservatória.

8. Ambos os executados foram citados da referida penhora, tendo a executada sido citada na data da diligência, ou seja, em 13/09/2017, não tendo havido contestação por parte da executada ora A.

9. O processo executivo prosseguiu os seus normais trâmites.

10. A A. foi notificada por carta de 12/12/2017 para indicar a modalidade da venda.

11. E foi notificada por carta de 17/04/2018 da decisão da venda, onde consta que se pretende vender o veículo automóvel pelo valor base de € 500,00 e nada disse.

12. Por carta de 04/11/2019 foi a A. notificada que se encontrava agendado o dia 25/11/2019 para a venda do referido veículo.

13. Conforme ata de venda por negociação particular não compareceram quaisquer compradores interessados.

14. No processo que correu trâmites no Tribunal do Comércio ... J-... do Tribunal Judicial da Comarca ... com o nº 509/20...., a 1.ª ré A..., SA instaurou contra a ora autora e seu marido, CC, acção de insolvência e na audiência de julgamento, designada para o dia 14/07/2020, foi lavrada transação entre as partes.

15. Consta da respetiva ata o seguinte:

“PRESENTES:

Requerente: A..., S.A.

Mandatária: Dra. FF (procuração com poderes especiais)

Devedor/Requerido: CC

Mandatários dos Devedores/Requeridos: Dr. GG (com

procuração com poderes especiais)

Testemunha: HH (Apresentada pelo Requerente)

NÃO PRESENTES:

Legal Representante da Requerente: II

Devedora/Requerida: AA

Declarada aberta a presente audiência quando eram 14:10 horas, foi tentada a conciliação entre as partes, o que se logrou alcançar nos seguintes termos:

A Requerente reduz a quantia peticionada ao montante de €6.000,00 (seis mil euros)

O Requerido reconhece dever essa quantia e compromete-se a pagar do modo seguinte:

2.1- a quantia de € 200,00 mensais durante 30 prestações, vencendo-se a 1ª no dia 15-08-2020;

As demais em igual dia dos meses subsequente até à 30ª;

2.2 -Em caso de incumprimento de uma das prestações vencem-se todas as outras sem necessidade de interpelação dos requeridos;

2.3 - Em caso de incumprimento fixa-se a título de cláusula penal o montante de € 5.000,00 (cinco mil euros);

Com o presente acordo a Requerente nada mais tem a exigir dos requeridos, seja a que título for.

A Requerente requer desde já o cancelamento da penhora de bens móveis, feita nos termos do processo de execução n.º 2830/17...., que corre termos no Juízo de Execução ... - Juiz ....

O pagamento das prestações ora acordado deverá ser feito por transferência bancária para o IBAN  ...94 com o envio do comprovativo de pagamento para o e-mail ...;

Custas por ambas as partes, em partes iguais.

*

De seguida pela Mmª foi proferida a seguinte:

SENTENÇA

Nos presentes autos de acção especial de insolvência, em que é requerente A..., S.A., e requeridos CC e AA, examinado o objeto e a qualidade dos intervenientes na transação, julgo a mesma válida, pelo que a homologo por sentença, condenado e absolvendo as partes nos seus preciso termos (arts 283º nº2, 284º, 289º nº1 – a contrario – e 1248º do C Civil.

Custas nos termos acordados (art. 537º, nº2 do CPC”

16. Esta sentença transitou em julgado a 30/07/2020.

17. A 2ª ré, no dia 30/07/2020, fez consignar no referido processo de execução a seguinte decisão: “BB, Agente de Execução em epígrafe, tendo sido informada dos termos acordados entre as partes acerca do pagamento da quantia em dívida, declara que os bens penhorados serão postos à disposição dos Executados” e, posteriormente, procedeu ao cancelamento da penhora do automóvel junto da Conservatória do Registo Automóvel.

18. Não foi paga qualquer quantia por conta da transação referida em II. 1 A) 15.

19. À data da penhora o automóvel ..-..-BQ era utilizado pela A. nas deslocações da sua residência, em ..., para o seu local de trabalho, em ... e vice-versa.

20. A referida viatura esteve Desde ../../2020 e ainda está à disposição da A., em instalações sitas em ..., referidas no auto de penhora, não lhe tendo sido impedido o acesso à mesma por parte da 1ª R.

21. Em data não concretamente apurada (entre o acordo efetuado no processo de insolvência e a instauração da presente ação) o cônjuge da A. – CC – foi acompanhado de um individuo, às instalações sitas em ... onde se encontra o veículo ..-..-BQ, para o trazer, tendo-lhe sido concedido acesso ao mesmo, no entanto, deixou-o lá, sendo que ninguém impediu de o trazer.

22. Por email de 22/09/2022 o Mandatário da A. pediu à 2ª Ré a entrega do veículo ..-..-BQ no local de onde o removera aquando da penhora.

2.2. Factos não provados.

1. O Mandatário da autora requereu no dia 02/03/2022 (ref.ª 41486676) à 2ª Ré que a viatura ..-..-BQ lhe fosse entregue.

2. Entretanto, a execução nº 2830/17.... viria a ser declarada extinta por notificação de 14/02/2022 (ref.ª 99373287).

3. O automóvel com matrícula ..-..-BQ à data da penhora tinha valor de mercado €2.500,00€ estava perfeitamente funcional e em condições de total segurança, era objeto de manutenção contínua.

4. À data da penhora a A. trabalhava para Sociedade G..., Lda., com sede em Av.ª ..., ....

5. As deslocações da autora nesse veículo, em circunstâncias normais, eram efetuadas, todos os dias, às 07H30 horas, no percurso de ida para o trabalho e às 17H00 horas, no trajeto de volta (uma vez que trabalha entre as 08H00 e as 17H00, com o intervalo de 1 hora para o almoço), deslocações que tinham a duração de 15 a 20 minutos, permitindo-lhe uma rotina previsível e o consequente equilíbrio entre a sua vida laboral, doméstica e familiar.

6. Com a forçada privação do uso do seu veículo a partir de 30/07/2020, data em que a 1.ª ré estava obrigada não só a requerer o cancelamento formal da penhora do veículo, mas também a entregá-lo fisicamente à sua proprietária toda a vivência da A. se alterou radicalmente.

7. Tendo de sujeitar-se ao horário laboral de seu marido, que é operário da construção civil e que inicia o dia de trabalho às 07H00 horas e termina, em média, por volta da 19H00.

8. O que significa que, na parte da manhã, tinha de chegar ao local de trabalho por volta das 06H30, aguardando por um período de 1,30 noras até à abertura do estabelecimento da empregadora, tendo, depois, de aguardar, no final do dia, cerca de 2,30 horas pelo transporte no veículo usado por seu marido para a levar de regresso à sua residência, que traduziu, diariamente (nos dias úteis), uma espera na ordem de 4 horas sem que pudesse desenvolver qualquer trabalho útil que tinha, depois, repercussão na lide doméstica que era forçada a prolongar para satisfazer as necessidades diárias da casa e dos seus familiares, lides domésticas que a esgotavam fisicamente e a arrasavam em termos nervosos.

9. Desde ../../2020 a indisponibilidade forçada do automóvel tornava a A. dependente do transporte de terceiras pessoas ou do serviço de automóveis de aluguer para as suas deslocações não rotineiras.

10. Os factos descritos em II. 1 B) 7. a 9. mantiveram-se até à propositura da presente ação.

11. A A. já esteve no local onde está o veículo automóvel para levantar o mesmo e não o fez, não aceitando que lhe fosse entregue em lugar diverso daquele onde tinha ocorrido a apreensão (na sua residência) uma vez que era sua pretensão submetê-lo à apreciação de um mecânico para conhecer do seu estado de funcionamento, já que em termos de conservação se encontrava muito degradado e com falta de peças.

12. Os factos descritos em II. 1 A) 21. ocorreram em 2020.

2.3. A Sra. Juíza de Direito adiantou, para justificar o julgamento referido em 2.1. e 2.2 esta motivação:

(…).

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito subjectivo e objectivo do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos casos julgados formados na instância recorrida, o âmbito objectivo e subjectivo do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente, tanto no requerimento de interposição do recurso, como nas conclusões da sua alegação (art.ºs 635.º, n.ºs 1 a 4, do CPC). Assim, no caso de pluralidade de vencedores que não sejam litisconsortes necessários, ao recorrente é lícito excluir do recurso, algum ou alguns deles.

No caso, a sentença apelada absolveu ambas as rés, A..., SA, e BB, do pedido, mas a apelante declarou, expressamente, na sua alegação – declaração que reiterou nas conclusões com que a encerrou - restringir o âmbito do presente recurso à 1ª ré, desistindo do pedido formulado contra a 2ª ré por entender que lhe não cabe qualquer responsabilidade na ofensa aos seus direitos. Maneira que subjectivamente, o recurso se restringe à apelada A..., SA, e objectivamente, à questão de saber, se diferentemente do que decidiu a sentença apelada, aquela demandada deve ser vinculada, com fundamento numa responsabilidade de delitual ou extracontratual, designadamente ao dever de indemnizar os danos, patrimoniais e não patrimoniais, alegados pela recorrente.

A impugnação tem por objecto, desde logo, o error in iudicando, por erro na avaliação ou apreciação das provas em, segundo a apelante a Sra. Juíza incorreu no tocante aos pontos de facto julgados provados com os n.ºs 21 e 20 e julgados não provados com os algarismos 1 a 3 e 9, devendo ainda aditar-se, aos factos provados, este enunciado: desde o dia ../../2020, data da apreensão e remoção do veículo para ... e, pelo menos até à data da propositura (em 18/07/2022), sempre esteve recolhida a céu aberto e sujeita aos fenómenos naturais. A resolução deste problema vincula, evidentemente, ao exame dos poderes de controlo e correcção desta Relação relativamente à decisão da matéria de facto do tribunal de que provém o recurso.

Segundo a apelante, a constituição da apelada no dever de prestar, objecto do pedido, assenta na violação ilícita e culposa pela apelada A..., SA, das obrigações de guarda e custódia e de restituição do seu veículo automóvel, atingido pela diligência executiva de penhora, que para aquela resultam das funções de depositária desse mesmo bem. Justifica-se, por isso, metodologicamente que a exposição subsequente se abra com a individualização das obrigações a que o depositário de bem penhorado fica adstrito e das consequências jurídicas da sua violação.

3.2. Obrigações do depositário dos bens penhorados e consequência jurídica da sua violação.

A penhora de automóveis – e, portanto, a constituição da garantia patrimonial sobre esse bem móvel – é efectivada através de comunicação à Conservatória do Registo Automóvel, podendo ser precedida da imobilização do veículo, designadamente através da imposição de selos ou de imobilizadores (art.ºs 768, n.º 2, 1.ª parte, 22.º, n.º 1 da Portaria n.º 99/2008, de 31 de Janeiro, e 1.º, c), da Portaria n.º 700/2003, de 31 de Julho). Após a penhora deve proceder-se:  à apreensão do documento de identificação do veículo, se necessário por autoridade administrativa ou policial, embora só por ordem do tribunal e não directamente pelo agente de execução (art.ºs 768.º, n.º 3, a), do CPC, e 17.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro); à remoção do veículo, salvo se o agente de execução entender que a remoção e desnecessária, para a salvaguarda do bem ou é manifestamente onerosa em relação ao crédito exequendo (art.ºs 768.º, n.º 3, b), do CPC e 17.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro).

Em regra, é constituído depositário dos bens penhorados o agente de execução, salvo se o exequente consentir que seja depositário o próprio executado ou pessoa designada por aquele agente (art.º 756.º, n.º 1, do CPC). A entrega dos bens ao depositário é, em regra simbólica, mas a esta entrega simbólica, pode seguir-se a entrega efectiva e real, dado que àquele assiste o direito a ser investido na posse efectiva dos bens, o que significa que é um possuidor em nome alheio, dado que após a penhora, a posse do executado se transfere para o tribunal da execução (art.ºs 757.º, n.º 1, 772.º e 783.º do CPC). Portanto, a constituição da situação jurídica de depósito não exige, necessariamente, a traditio – e a acceptio – da coisa a guardar, sendo suficiente, a tradição meramente simbólica ou mesmo uma traditio brevi manu.

As funções do depositário devem, evidentemente, ser as adequadas à finalidade do depósito, que é a conservação física dos bens até à sua entrega ao adquirente, no caso de execução da garantia patrimonial, ou ao executado se, por qualquer motivo, a penhora for objecto de levantamento. Esta conservação não é compatível com uma função de mera guarda ou vigilância dos bens penhorados, exigindo, pelo menos, a sua administração, pelo que as funções do depositário se distribuem pelas áreas da conservação dos bens penhorados e pela sua administração. O cargo de depositário deve ser exercido até ao levantamento da penhora.

Ao depositário dos bens penhorados são impostos os deveres gerais de qualquer depositário (art.º 760.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPC). São eles: o dever de guardar a coisa depositada, o dever de avisar imediatamente o depositante – o tribunal – quando saiba que algum perigo ameaça a coisa ou terceiros se arrogam direitos sobre ela e o de restituir essa coisa com os seus frutos (art.º 1197.º, b) e c), do Código Civil). As obrigações características do depositário são, pois, a de guarda e custódia da coisa corpórea depositada e de restituição dela. O conteúdo desta obrigação de restituição varia consoante a natureza do depósito. Se o depósito for regular, o depositário terá de restituir exactamente as mesmas coisas entregues, que não são fungíveis. Cessando o depósito, consubstancia-se a obrigação – decisiva - de entrega, a cargo do depositário.

A coisa deve ser restituída no preciso estado em que se encontrava, aquando da constituição do depósito. Se, porém, a coisa depositada for sensível ao mero decurso do tempo, a boa fé, impõe que possa comportar alterações. Assim, por exemplo, dado, de um aspecto, que o valor de um veículo automóvel se deprecia pelo simples decurso do tempo e, de outro, que a sua imobilização importa, inexoravelmente, a degradação acelerada dos seus vários componentes, não é exigível ao depositário, sem violação da boa fé, que a restitua tal como se apresentava no momento da constituição do depósito. Aquela restituição pode, também, ser meramente simbólica, não tendo, necessariamente, de ser efectiva e real: é suficiente, assim, uma entrega da coisa depositada meramente simbólica. Tendo a prestação por objecto uma coisa móvel determinada, a obrigação de restituição ou de entrega – ainda que puramente simbólica – deve ser cumprida no lugar onde depositário tiver de a guardar (art.º 1195.º do Código Civil).

Relativamente à diligência com que o depositário deve actuar no cumprimento dos seus deveres o padrão de aferição – aliás em inteira harmonia com a regra geral – é o de um bom pai de família, conforme as circunstâncias do caso (art.ºs 487.º, n.º 2, do Código Civil, e 760.º do CPC). Entre essas circunstâncias do caso, conta-se, seguramente o facto de se tratar de um depositário profissional, situação em que o grau de diligência exigível será superior. Na concretização do grau de cuidado exigível deve, por isso, recorrer-se aos costumes profissionais comuns ao profissional prudente, ao profissional-padrão e, ainda, na sua falta, à diligência objectivamente imposta pelo concreto comportamento socialmente adequado – o recurso directo à figura-padrão do depositário cabida ao caso.

O depositário que não actue com esse grau de diligência, torna-se responsável pelos prejuízos que cause ao exequente, a qualquer credor graduado – ou ao executado. Dado que entre o depositário e, por exemplo, o executado se não surpreende um qualquer vínculo contratual, essa responsabilidade é necessariamente uma responsabilidade subjectiva por factos ilícitos, dita também, responsabilidade delitual – descendente directa da lex aquilia [1]- dado que assenta na violação ilícita e culposa de direitos subjectivos ou de normas destinadas a proteger interesses alheios (art.ºs  483.º, n.º 1, do Código Civil).

A generalidade da doutrina – e, correntemente, também a jurisprudência – individualiza como pressupostos da responsabilidade civil subjectiva, o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e a causalidade.

A imputação delitual, quer dizer, o esquema pela qual é possível assacar a uma pessoa um dano para efeitos de indemnização, reclama, desde logo, uma conduta ilícita e culposa do infractor (art.º 483.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

Se o quadro dos elementos em que decompõe a responsabilidade delitual – ilicitude e culpa – é relativamente estável o mesmo não sucede, porém, com o conteúdo específico de cada um desses elementos.

A discussão gravita em torno da relação entre a ilicitude e o dolo ou a negligência e, consequentemente, à volta do conteúdo material e da função que deve ser assinalada à culpa.

Tradicionalmente, o dolo e a negligência são integrados na culpa. Nesta concepção, para que haja ilicitude, basta que o acto seja causa adequada de um resultado antijurídico; desde que da conduta decorra um resultado contrário ao direito, existe ilicitude; esta reclama apenas o desvalor do resultado, sendo-lhe indiferente as características intrínsecas da conduta. A doutrina mais moderna, sob o signo declarado da teoria finalista da acção, desloca o dolo e a negligência da culpa para a ilicitude, subjectivizando-a. Nesta concepção subjectiva da ilicitude não é, portanto, suficiente que o resultado da conduta seja contrário ao direito; para que haja licitude, a conduta deve ser dolosa ou negligente. Ao lado do desvalor do resultado exige-se o desvalor da própria acção.

O que daqui decorre para a caracterização da culpa é meramente consequencial: incluído o dolo e a negligência na ilicitude, não é possível continuar a valorar a culpa pela relação psicológica da conduta com o seu autor: a aferição da culpa passa a depender de critérios estritamente normativos, reconduzindo-se a um juízo de censura ético-jurídica da conduta. A culpa decorre de um juízo de censurabilidade ou de reprovação do comportamento do agente, um juízo de desvalor assente na constatação de que esse agente, nas circunstâncias específicas em que actuou poderia ter conformado a sua conduta – dolosa ou negligente e, portanto, ilícita - de modo a assegurar o dever cujo cumprimento, nessas mesmas condições, lhe era exigível. Resta dizer que a censurabilidade do comportamento do agente é um juízo feito pelo tribunal sobre a sua atitude ou motivação, tal como pode deduzir-se dos factos provados; na formulação desse juízo de reprovação, o tribunal socorre-se, naturalmente, de regras de experiência e critérios sociais.

Na imputação delitual, seja dolosa ou simplesmente negligente, o ónus da prova dos factos que fundamentam o juízo de censura ético-social do agente – e não do juízo de censurabilidade em si mesmo - onera o lesado; o não cumprimento desse ónus de prova comporta uma vantagem relevante para o lesante, uma vez que impõe ao tribunal que decida contra quem aquele ónus onera (art.ºs 342.º, n.º 1,  346.º, in fine, e 487.º, n.º 1, do Código Civil, e 414.º do CPC). A prova dos factos que fundamentam o juízo de reprovação da conduta do lesado, cabe ao lesante, mas este está dispensado de os invocar visto que incumbe ao tribunal conhecer deles oficiosamente (art.º 572.º do Código Civil).

Assim, se a coisa depositada não for restituída, v.g., ao executado, ou não o for no tempo devido, ou se deteriorar e, portanto, se não puder ser devolvida aquele sujeito processual, ou se o for com atraso ou o não puder ser incólume, o depositário só se constitui no dever de indemnizar se a pessoa com direito a obter a restituição caso esta demonstre que o atraso na restituição ou que a depreciação do valor da coisa depositada ou a sua deterioração, procede do não cumprimento ou de um mau cumprimento do dever de restituir ou da má administração, imputáveis a uma ilicitude e a uma culpa do depositário.

A regra geral no tocante à determinação da indemnização é a da equivalência ao montante do dano imputado (art.º 562.º, 564.º e 566.º do Código Civil). Existem, porém, diversas excepções a este princípio que, operando como autênticas delimitações àquele princípio fundamental, que importam uma indemnização inferior ao do dano verificado.

Assim, aponta-se como factor limitativo da indemnização o concurso com a eventual culpa do lesado:  quando um facto culposo do lesado tiver contribuído para a produção ou agravamento dos danos, o tribunal pode face ao caso concreto decidir se a indemnização deve ser concedida, reduzida ou excluída (art.º 570.º do Código Civil). A expressão culpa deve aqui ser muito amplamente entendida: a indemnização é reduzida ou excluída sempre que os danos sejam provocados pelo lesado e na medida em que o sejam, ainda que não voluntariamente ou ainda que licitamente, pelo que não há, verdadeiramente, uma limitação da indemnização – mas apenas uma delimitação dos danos que ao lesante devem ser imputados.

3.3. Error in iudicando por erro em matéria de provas.

3.3.1. Finalidades e parâmetros sob cujo signo são actuados os poderes desta Relação de correcção e de controlo da decisão da matéria de facto.

O controlo da Relação relativamente à decisão da matéria de facto pode ter, entre outras, como finalidade, a reponderação da decisão proferida. A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e substituir – a decisão da 1ª instância, designadamente se a prova produzida – designadamente a prova pessoal produzida na audiência final, desde que tenha sido objecto de registo – impuser decisão diversa (art.ºs 666,º, nº 1, e 640.º, n.º 1, do CPC).

Todavia, os poderes de correção da decisão da matéria de facto são actuados na ausência de dois princípios que contribuem decisivamente para a boa decisão a questão de facto: o da oralidade e da imediação - a decisão da Relação não é atingida por forma oral – mas através da audição de registos fonográficos ou da leitura, fria e inexpressiva de transcrições – e sem uma relação de proximidade comunicante com os participantes processuais, de modo a obter uma percepção própria do material que há-de ter como base dessa mesma decisão.

Além disso, esse poder de correcção da decisão da matéria de facto orienta-se pelos parâmetros seguintes:

a) Do exercício da prova – que visa a demonstração da realidade dos factos – apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática e não uma verdade, absoluta ou ontológica, matemática ou científica (art.º 341.º do Código Civil);

b) A livre apreciação da prova assenta na prudente convicção – i.e., na faculdade de decidir de forma correcta - que o tribunal adquirir das provas que foram produzidas (art.º 607.º, nº 5, do CPC).

c) A prudente obtenção da convicção deve respeitar as leis da ciência, da lógica e as regras da experiência - entendidas como os juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência, mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos – e que constituem as premissas maiores de facto às quais são subsumíveis factos concretos;

d) A convicção formada pelo juiz sobre a realidade dos factos deve ser uma convicção subjectiva fundada numa convicção objectiva, assente nas regras da ciência e da lógica e da experiência comum ou de normalidade maioritária, e portanto, uma convicção cognitiva e não volitiva, voluntarista, subjectiva ou emocional.

e) A convicção objectiva é uma convicção argumentativa, i.e., demonstrável através de um ou mais argumentos capazes de se impor aos outros;

f) A apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis: os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[2].

Note-se – de harmonia com a doutrina que se tem por preferível – que se a Relação tem o dever de proceder ao exame crítico das provas - novas ou mesmo só renovadas – que sejam produzidas perante ela e de formar, relativamente às provas submetidas à sua livre apreciação, uma convicção prudente sobre essas provas – não há razão bastante – legal ou sequer epistemológica - para que não proceda àquele exame e à formulação desta convicção - e à sua objectivação - no caso de reapreciação das provas já examinadas pela 1ª instância (art.º 607.º, nº 5, ex-vi art.º 663.º,  nº 2, do CPC). O controlo da correcção da decisão da matéria de facto da 1ª instância exige, realmente, que a Relação construa – autonomamente, embora com os limites decorrentes da sua vinculação à impugnação do recorrente - não só a sua própria convicção sobre as provas produzidas, mas igualmente que a fundamente[3].

A conclusão da correcção ou da incorrecção da decisão da questão de facto do tribunal da 1ª instância exige um juízo de relação ou de comparação entre a convicção que o decisor de facto daquela instância extrai dos elementos de prova que apreciou e a convicção que a Relação adquire da reapreciação dessas mesmas provas. Se a convicção do juiz da 1.ª instância e da Relação forem coincidentes, a decisão da matéria de facto daquele tribunal deve ter-se por correcta, com a consequente improcedência da impugnação deduzida contra ela; se a convicção do decisor da 1.ª instância e da Relação forem divergentes, a Relação deve fazer prevalecer a sua convicção sobre o convencimento do juiz da 1ª instância e, correspondentemente, revogar a decisão deste último e logo a substituir por outra conforme aquela mesma convicção[4].

A Relação deve, pois, formar uma convicção verdadeira – e fundamentada - sobre a prova produzida na 1.ª instância, independente ou autónoma da convicção do juiz a quo, que pode ou não ser coincidente com a deste último – não se limitando a controlar a legalidade da produção da prova realizada naquela instância e a aceitar o resultado do exercício da prova - salvo casos em que esse julgamento seja ilógico, irracional, arbitrário, incongruente ou absurdo[5].

Resta dizer, que o exercício pela Relação dos poderes de correcção sobre a decisão da matéria de facto e de controlo sobre os meios de prova só deve incidir sobre os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito. Se o facto ou factos que se reputam de mal julgados não se mostrarem relevantes segundo os vários enquadramentos jurídicos possíveis do objecto da acção, a reponderação deve ter-se - por aplicação do princípio da utilidade a que deve subordinar-se toda a actividade jurisdicional - mesmo por proibida (art.º 130.º do CPC)[6].

3.3.2. Reponderação das provas.

A recorrente reputa, desde logo, de mal julgados os pontos de facto n.ºs 20 - A referida viatura esteve Desde ../../2020 e ainda está à disposição da A., em instalações sitas em ..., referidas no auto de penhora, não lhe tendo sido impedido o acesso à mesma por parte da 1ª R - e 21 -  Em data não concretamente apurada (entre o acordo efetuado no processo de insolvência e a instauração da presente ação) o cônjuge da A. – CC– foi, acompanhado de um individuo, às instalações sitas em ... onde se encontra o veículo ..-..-BQ, para o trazer, tendo-lhe sido concedido acesso ao mesmo, no entanto, deixou-o lá, sendo que ninguém impediu de o trazer. No seu ver, numa sã e prudente avaliação da prova deve, antes, julgar-se provado: n.º 20 - no dia 30/07/2020, e mesmo depois dessa data, a viatura apreendida estava em instalações sitas em ... na disponibilidade da 1ª ré, onde permanece; n.º 21 - Em data não concretamente apurada, entre o acordo efetuado no processo de insolvência e a instauração da presente ação, o cônjuge da autora, CC, foi, acompanhado de um indivíduo, às instalações sitas em ... onde se encontra o veículo ..-..-BQ, para o trazer, tendo-lhe sido concedido o acesso ao mesmo, no entanto, não procedeu à sua remoção porque não lhe deram a chave de ignição para experimentar o carro que tinha partidas uma roda e a porta do lado do condutor, o interior danificado e duas rodas não tinham ar. Segundo a impugnante deve ainda aditar-se aos factos provados o enunciado seguinte: desde o dia ../../2020, data da apreensão e remoção do veículo para ... e, pelo menos até à data da propositura (em 18/07/2022), sempre esteve recolhida a céu aberto e sujeita aos fenómenos naturais.

No tocante a esta última afirmação de facto e relativamente à afirmação, da mesma índole, que a impugnante pretende ver aditada – e em parte substituir - ao enunciado contido no art.º 21 dos factos julgados provados, a primeira dificuldade que a este propósito se coloca não respeita ao problema do erro na apreciação ou avaliação das provas – mas ao seu objecto.

Consabidamente, a causa de pedir é constituída, apenas, pelos factos necessários para a individualização a pretensão material alegada pelo autor e, portanto, não é integrada por todos os factos de que depende, de harmonia com a norma substantiva aplicável, a procedência da acção. Dito doutro modo: a causa petendi não é integrada pelos factos complementares, i.e., por aqueles factos que se limitam a concretizar ou a complementar aquela causa de pedir (art.º 5.º, n.ºs 1 e 2, b), do CPC).

Apesar de não participarem na causa de pedir, o autor não está dispensado do ónus de os alegar, dado que, sem a sua alegação – e prova – a acção não pode ser julgada procedente, embora a omissão da sua alegação não tenha um efeito preclusivo, porque tais factos podem ser adquiridos durante a instrução e a discussão da causa (art.º 5.º, n.º 2, b), do CPC).

Assim, uma de duas: ou o facto deve ter-se por essencial e, portanto, só pode ser considerado se tiver sido alegado; ou o facto é meramente complementar ou probatório – e pode ser adquirido para o processo no decurso da instrução e julgamento da causa, por iniciativa da parte ou mesmo oficiosamente, sendo que, neste último caso, o juiz deve advertir as partes da sua intenção de o considerar, sob pena de proferir uma decisão-surpresa; em qualquer dos casos, á parte beneficiada com o facto complementar e à contraparte assiste o direito de produzir novos meios de prova para fazer a prova ou a contraprova dos novos factos.

 Simplesmente, há que conjugar este efeito não preclusivo da omissão de invocação de factos complementares com as regras a que obedece a alegação, no tribunal de recurso, de factos novos, considerando que a atribuição à Relação de poderes de julgamento da matéria de facto deve, sempre, ser vista no enquadramento geral dos recursos: o que se visa não é criar uma nova instância de julgamento da matéria de facto – mas limitadamente instituir uma instância de controlo sobre o julgamento dessa matéria pela 1.ª instância. Do modo como se mostram construídas as suas competências relativamente à matéria de facto, a Relação, no tocante a esse objecto, não é uma 2.ª 1.ª instância.

Na verdade, considerados a partir da finalidade da impugnação, os recursos ordinários podem ser configurados como um meio de apreciação e de julgamento da acção por um tribunal superior ou como meio de controlo da decisão recorrida. No primeiro caso, o objecto do recurso coincide com o objecto da instância recorrida, dado que o tribunal superior é chamado a apreciar e a julgar de novo a acção: o recurso pertence então à categoria do recurso de reexame; no segundo caso, o objecto do recurso é a decisão recorrida, dado que o tribunal ad quem só pode controlar se, em função dos elementos apurados na instância recorrida, essa acção foi correctamente decidida, ou seja é conforme com esses elementos: nesta hipótese, o recurso integra-se no modelo de recurso de reponderação[7].

No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento, o que significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não hajam sido formulados: os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas[8].

Excluída está, portanto, a possibilidade de alegação de factos novos - ius novarum nova – na instância de recurso. Em qualquer das situações, salvaguarda-se, naturalmente, a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, da matéria de conhecimento oficioso[9].

Maneira que se a parte não tiver promovido, na 1.ª instância a ampliação do objecto do processo e da prova no tocante aos factos complementares nem o juiz os tiver considerado, dá-se a irremediável preclusão da sua consideração na instância de recurso, incorrendo o acórdão, de harmonia com uma certa orientação, num excesso de pronúncia ou de acordo com outra, num erro de julgamento. Note-se, ainda, que a competência desta Relação de ordenar a ampliação da matéria de facto tem por limite os factos oportunamente alegados pelas partes, não constituindo um sucedâneo do mecanismo de aquisição dos factos complementares pelo modo indicado ou de suprimento do seu julgamento pelo tribunal da 1.ª instância (art.º 662.º, n.º 3, c), do CPC).

Serve isto para dizer que, no caso, está inteiramente excluída a possibilidade de considerar na decisão do recurso – como pretende a recorrente –  que desde o dia ../../2020, data da apreensão e remoção do veículo para ... e, pelo menos até à data da propositura (em 18/07/2022), sempre esteve recolhida a céu aberto e sujeita aos fenómenos naturais e que não procedeu à sua remoção porque não lhe deram a chave de ignição para experimentar o carro que tinha partidas uma roda e a porta do lado do condutor, o interior danificado e duas rodas não tinham ar, dado que não foram alegados na instância recorrida e, mais do que isso - nem sequer foram julgados nessa instância.  Este recurso tem apenas por finalidade controlar a decisão impugnada, nas exactas condições que foi proferida, pelo que é inadmissível a invocação de factos novos que podiam e deviam – em cumprimento pontual do ónus de alegação que vincula as partes - ter sido invocados na instância recorrida e nela sido julgados.

De outro aspecto, a decisão de julgar provados os factos contidos nos n.ºs 20 e 21, tal como surgem concretamente enunciados na sentença impugnada, julga-se correcta em face das declarações de parte da ré BB  - conjugadas com a declaração que produziu, no dia 30 de Julho de 2020 na acção executiva e com o cancelamento do registo da penhora que promoveu – e dos depoimentos das testemunhas JJ – proprietária do local em que o automóvel foi depositado, e de CC, dos quais decorre, sem dúvida que se deva ter por razoável, que o automóvel estava disponível para levantamento e que ninguém impediu esse levantamento. De resto, a este propósito convém fazer notar à apelante que, ao contrário do que pressupõe a sua alegação, o levantamento da viatura através da sua movimentação pelos seus próprios meios – o que a simples imobilização do veículo desde ../../2017, como é da experiência comum, tornaria altamente improvável sem uma qualquer intervenção nesse mesmo veículo – podendo esse levantamento ser levado a cabo pelo mesmo meio com que foi removido: por reboque ou, ainda, por transporte em reboque.

Como a apelante expressamente reconhece, os factos julgados não provados sob os n.ºs 1 e 2 - 1. O Mandatário da autora requereu no dia 02/03/2022 (ref.ª 41486676) à 2ª Ré que a viatura ..-..-BQ lhe fosse entregue; 2. Entretanto, a execução nº 2830/17.... viria a ser declarada extinta por notificação de 14/02/2022 (ref.ª 99373287) são pouco – ou mesmo nada - relevantes para a decisão conscienciosa da causa, mas não se julga que tinham sido julgados em erro, dado que os documentos invocados pela recorrente para demonstrar o desacerto do seu julgamento não inculcam a sua veracidade. Realmente, o documento n.º 4 a única coisa que demonstra é que o executado KK requereu, na execução, a entrega do automóvel – não que tenha pedido essa entrega à ré BB e, por sua vez, o que o documento n.º 5 mostra é que o oficial de justiça notificou aquela ré, na qualidade de agente de execução, de que deveria declarar extinta a execução e juntar aos autos o comprovativo da notificação - e não que aquele órgão da execução tenha efectivamente declarado essa extinção.

Segundo a impugnante os factos, declarados não provados – identificados com os algarismos 3 - O automóvel com matrícula ..-..-BQ à data da penhora tinha valor de mercado € 2.500,00€ estava perfeitamente funcional e em condições de total segurança, era objeto de manutenção contínua – e 9 - Desde ../../2020 a indisponibilidade forçada do automóvel tornava a A. dependente do transporte de terceiras pessoas ou do serviço de automóveis de aluguer para as suas deslocações não rotineiras – foram também erroneamente julgados. Fundamento: estes enunciados estão em contradição com o item 19 dos factos julgados provados que tem este conteúdo: À data da penhora o automóvel ..-..-BQ era utilizado pela A. nas deslocações da sua residência, em ..., para o seu local de trabalho, em ... e vice-versa. Em face deste facto - diz a apelante -  não pode deixar de reconhecer-se que o mesmo veículo estava “perfeitamente funcional e em condições de total segurança ” porquanto, se esse automóvel não estivesse funcional e com condições de segurança, não podia ser utilizado pela autora nas suas deslocações e se autora, utilizando o automóvel ajuizado, se deslocava da sua residência em ... para o seu local de trabalho em ... é apenas incontornável e lógico que, sem esse veículo, estivesse dependente do transporte de terceiras pessoas ou do serviço de automóveis de aluguer.

O fundamento da impugnação é aqui constituído pela violação, pela decisora da 1.ª instância, das regras da lógica e da experiência e, portanto, pelo – não – uso, incorrecto, de presunções judiciais – também designadas por presunções naturais ou presunções hominis ou facti, ou, numa outra formulação legal, as ilações tiradas dos factos instrumentais ou as presunções impostas por regras de experiência (art.ºs 349.º do Código Civil e 607.º n.º 4, do CPC). A presunção situa-se no âmbito da chamada prova complexa, i.e., da prova através da qual o facto probando é inferido de um facto probatório, ou na designação legal, de um facto instrumental, permitindo a inferência de um facto desconhecido de um facto conhecido, relação que é estabelecida através de regras ou máximas de experiência (art.º 5.º, n.º 2, b), do CPC). Mas para que essa inferência seja correcta é indispensável que o facto conhecido seja inequívoco, i.e., que faça aparecer como necessária a existência do facto desconhecido, que exista uma relação entre o facto probatório e o facto probando de harmonia com a inferência para a melhor explicação, i.e., sempre que o primeiro constitui a melhor explicação do segundo[10].

Em primeiro lugar, deve notar-se que a utilização de um automóvel não impõe, como corolário que não possa ser recusado, a conclusão do seu perfeito estado de funcionamento e de segurança, como aliás, decorre do franco envelhecimento e degradação do parque automóvel português. Do mesmo modo da privação do uso de uma viatura não decorre, irremissivelmente, a dependência do seu utilizador do transporte de terceiros ou de serviço de automóveis de aluguer, porque, por exemplo, se dispõe de outro veículo ou estão disponíveis transportes públicos colectivos de passageiros, aptos ou adequados a satisfazer as necessidades de mobilidade anteriormente satisfeitas pelo automóvel de cuja utilização se foi privado.

Depois, se nada obsta a que esta Relação, independentemente de qualquer controlo, possa, através de presunções judiciais, baseadas nos factos apurados na 1.ª instância, deduzir outros factos, a verdade é que lhe não é lícito, excepto no caso de erro de julgamento, por recurso a essas presunções, dar como provado um facto que a 1ª instância julgou não provado[11] (artºs 349.º e 351.º do Código Civil).

Todas as contas feitas, temos por correcta a decisão da matéria de facto da 1.ª instância, dado que a convicção sobre a realidade, ou a falta dela, sobre os factos não é, de todo, uma convicção irracional e anímica – ex setentia animi – mas antes uma convicção alcançada com o uso da prudência, i.e., da faculdade de decidir de forma correcta, uma convicção que, sendo subjectiva é também objectiva já que assenta num conjunto de razões que permitem afirmar que os factos cujo correcção do julgamento o apelante controverte no recurso, se verificaram ou não verificaram, conforme o caso.

Os factos sobre os quais deve ser aferida a correcção da decisão de direito contida na sentença impugnada são, pois, os que nela foram julgados provados – inteiramente suficientes para a boa decisão do recurso e para o ter por improcedente.

3.4. Concretização.

Em primeiro lugar, julga-se claro que as normas que permitem o proferimento de uma decisão de procedência ou de improcedência da acção do recurso são as reguladoras das obrigações do depositário judicial e da sua responsabilidade – extracontratual ou delitual – pela violação, ilícita e culposa, dessas mesmas obrigações. No plano estritamente jurídico, o único enquadramento correcto do objecto da causa é que decorre da responsabilidade aquiliana do depositário judicial. Patentemente, não há qualquer lacuna, i.e., a inexistência de uma regra para regular um caso jurídico – o objecto do processo – dado que há caso e há regra, nem há que convocar, para regular esse mesmo caso, o instituto do enriquecimento sine causa, quer pela falta evidente dos seus pressupostos, quer força da feição subsidiária da obrigação de restituir (art.ºs 473.º e 474.º do Código Civil).

E o primeiro problema que neste plano se coloca é o de saber quem é que, realmente foi, no caso, investido no cargo de depositário judicial. Dúvida que não passou despercebida á apelante, como inequivocamente decorre deste passo da sua alegação: a recorrente sabe perfeitamente que não há coincidência entre o fiel depositário Dr. DD e a 1ª ré, de que é mandatário judicial. Esta nomeação, como se presume, insere-se nos atos que o mandatário está obrigado a praticar no âmbito das instruções do mandante (alínea a) do artigo 1161º do CC).

Decorre literalmente do auto de penhora que – do bem penhorado - passou a ficar como fiel depositário do mesmo o Dr. DD, Mandatário da Exequente. A recorrente conclui a partir deste enunciado textual que o depositário não é aquele Sr. Advogado – mas a apelada A..., SA, conclusão que seria imposta pelo contrato de mandato, em que os efeitos do acto jurídico praticado pelo mandatário quando o mandato seja representativo, se repercutem na esfera jurídica do mandante nos mesmos termos em que os actos praticados pelo representante se repercutem directamente na esfera do representado; com poderes de representação, o mandatário actua contemplatio domini, em nome do mandante (art.º 1180.º do Código Civil). Não se tem por certo que assim seja, uma vez que daquele segmento do auto de penhora não decorre que o Dr. LL tenha assumido o cargo de depositário na execução do mandato emitido a seu favor emitido pela, então exequente, apelada, A..., SA, antes parecendo mais exacto, que a referência aquela qualidade serve apenas como elemento de identificação do depositário.

O patrocínio judiciário é a representação das partes por profissionais do foro – v.g., advogados – na condução e orientação técnico-jurídica do processo mediante a prática de actos processuais. São duas as razoes justificativas da necessidade de representação por parte de um profissional forense. De um lado, uma razão técnica: a não ser quando elas próprias sejam licenciadas em Direito e práticas em assuntos forenses, as partes carecem de preparação e de conhecimento para saberem conduzir a prossecução dos seus interesses em juízo; por outro lado, uma razão psicológica: as partes não têm em regra, a serenidade suficiente para ajuizarem objectivamente das situações e ponderarem com inteira racionalidade os seus direitos e deveres. Por esses motivos se permite – e nalguns casos se impõe – o patrocínio judiciário que a Constituição qualifica como um elemento essencial à administração da justiça (art.º 208.º. n.º 1, da Constituição, e 12.º, n.º 1, da LOSJ).

O patrocínio judiciário representa o exercício de poderes de representação em qualquer tribunal – os chamados poderes forenses – ao conjunto dos quais se chama mandato judicial, espécie do mais vasto mandato forense (art.º 67.º, n.º 1, a), do EOA). O mandato judicial é sempre um mandato com representação - i.e., com contemplatio domini. Na grande maioria dos casos, o patrocínio judiciário é uma representação voluntária que deriva, portanto, de um contrato, que se pode igualmente denominar de mandato judicial (art.º 1157.º do Código Civil). É, porém, no sentido do conjunto de poderes de representação em tribunal que importa analisar o mandato judicial. Ora, não parece que o mandato judicial comporte a faculdade de exercer, por conta do mandatário, as funções de depositário judicial que, comprovadamente nem sequer constituem actos próprios dos advogados e que não é comum que, em simples execução do mandato forense, sejam assumidas por estes (art.º 1.º da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto). Em qualquer caso, importaria demonstrar que o mandato forense conferido ao Dr. LL compreendia a concessão de poderes representativos para assumir, em nome e por conta daquela apelada, o cargo de depositário do veículo automóvel penhorado à apelante o que a assunção daquelas funções tenha ocorrido na execução da execução do mandato judicial.

Seja como for, assentando-se que o cargo de depositário judicial é titulado pela recorrida A..., SA, ainda assim o recurso sempre se deverá ter por improcedente. É que a matéria de facto que se deve ter por – definitivamente – adquirida para o processo não objectiva a violação pelo depositário de qualquer obrigação inerente ao cargo, maxime, a de restituir a coisa depositada. Inversamente, o que aqueles factos inculcam indelevelmente é que desde 30 de Julho de 2020 – data em que a penhora do automóvel se deve por levantada e em que, consequentemente, cessaram as funções do depositário – aquele bem foi tornado disponível à apelante e que esta só não procedeu ao seu apossamento porque não quis, ninguém se tendo oposto – muito menos a apelada A..., SA – a esse levantamento.

A apelante sustenta, por um lado, que a obrigação de restituição só se considera cumprida com um acto material de entrega e, por outro, que aquela restituição deve ser realizada no lugar no qual em que ocorreu o facto da penhora. Nem uma nem outra das proposições se têm por exactas: tal como a constituição do depósito não exige um acto material de entrega, podendo consistir numa traditio meramente simbólica, o mesmo sucede com a restituição da coisa depositada; a restituição não tem que ocorrer no lugar da penhora – mas no lugar em que o depositário a tiver de guardar. Restituição não é aqui equivalente de entrega efectiva – mas, simplesmente, sinónimo de tornar disponível o bem depositado permitindo àquele que a ele tem direito retomar a sua posse sobre ele. A matéria de facto disponível também não mostra que o depositário tenha violado a obrigação de custódia que a vincula, na vertente de assegurar a indemnidade ou incolumidade da coisa – ressalvadas, evidentemente, as deteriorações que decorrem do simples decurso do tempo, considerada a susceptibilidade ou a sensibilidade daquele bem à usura do tempo - dado que para isso seria necessário conhecer, com precisão, o estado do automóvel no momento da execução da diligência executiva de penhora esse mesmo estado no momento em que se procedeu ao levantamento dessa mesma penhora o que, de todo, a matéria facto adquirida para o processo não objectiva.

Em absoluto remate: a requerente não demonstrou, como lhe competia, a violação, ilícita e culposa, pelo depositário, de direitos absolutos seus: o direito real de propriedade; os direitos ou bens de personalidade (art.º 483.º n.ºs 1 e 2 do Código Civil). Assim, dado que não estão adquiridos para o processo os factos que conduzem à aplicação da norma jurídica aplicável, há que proferir uma decisão contra a parte onerada com a sua prova: a apelante (art.ºs 342.º, n.º 1, do Código Civil, e 414.º do CPC). Aliás, o que a factualidade adquirida para o processo evidencia é, antes, uma culpa da apelante – no sentido atrás assinalado - o que sempre excluiria a constituição do depositário no dever de indemnizar, objecto do pedido ou, na hipótese mais benigna, a redução do seu valor.

Note-se, enfim, que ainda que o pedido da apelante de condenação da apelada A..., SA, de entrega do automóvel devesse proceder, o pedido de condenação a título de indemnização pecuniária compulsória (art.º 829-A do CC),  da quantia diária de € 20,00 por cada dia de atraso no cumprimento dessa obrigação de entrega, até à sua verificação, esse sempre deveria ter-se por improcedente.

Realmente, a lei prevê duas espécies de sanção pecuniária compulsória: uma, de natureza subsidiária, ordenada para compelir o devedor à execução especifica de prestações de facto infungíveis; outra destina a pressionar o devedor de obrigações pecuniárias ao seu cumprimento pontual – consistente nos juros à taxa anual de 5%, desde a data do trânsito da sentença condenatória, que somam aos juros moratórios e à indemnização que se mostrar devida (art.º 829-A, n.ºs 1 e 4).

O mecanismo legal consente conclusões extremamente precisas quanto à razão de ser da sanção, o seu sentido e o seu alcance.

A sanção surge, desde logo, como um meio de constrangimento destinado a pressionar o obrigado recalcitrante, de modo a acatar a decisão do juiz e a cumprir a sua obrigação, sob pena de lhe serem infligidos determinados prejuízos. De acordo com o preambulo do diploma legal que a inseriu no Código Civil – o Decreto-Lei n.º 263/83, de 16 de Junho – ela tem uma dupla finalidade de moralidade e eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto, por outro se favorece a execução específica das obrigações de facto ou de abstenção infungíveis. Razão pela qual a nossa literatura jurídica vê nela um instrumento coercitivo, não hesitando, alguns autores e jurisprudência estrangeira, em considerar estar-se aqui perante um meio de constrangimento não patrimonial – mas sim pessoal.

Como o seu fim não é reparar danos causados pela falta de cumprimento pontual, mas o de dobrar ou vergar a vontade do devedor rebelde, o seu montante será fixado sem relação com o dano sofrido pelo credor. A sanção pecuniária compulsória é absolutamente independente da indemnização eventualmente fixada em resultado do incumprimento da obrigação; não possui carácter ou natureza reparatória, sendo independente da existência ou da extensão do dano sofrido – ou a sofrer – em consequência do não cumprimento pontual da obrigação, não apresentando com ele qualquer relação. Igualmente, por isso, a sanção deve ser decretada mesmo que o devedor faça prova da ausência de dano, actual ou futuro, não sendo o seu montante fixado em função do prejuízo eventualmente emergente do não cumprimento da obrigação - autonomia e independência sem qual seria o próprio carácter cominatório a ficar em causa. A sanção não gera qualquer obrigação alternativa ou com faculdade alternativa – antes faz nascer uma nova obrigação para o devedor.

Uma vez decretada e fixada, a sanção pecuniária compulsória torna-se definitiva, sendo insusceptível de revisão, oficiosamente ou a requerimento das partes: perante ela, ao devedor só resta uma alternativa: submeter-se ou sofrer as consequências da sanção, vedada que está a eventual moderação ou supressão do montante fixado pelo juiz.

A cominação da sanção pecuniária compulsória depende inteiramente de requerimento do credor, embora deva ser decretada pelo juiz de harmonia com critérios de razoabilidade (art.º 829.º-A nº 1 do Código Civil). Contudo, uma vez requerido o cumprimento sob cominação da sanção pecuniária compulsória, o tribunal tem o dever – e não, simplesmente, o poder de a decretar. Significa isto que o tribunal não julga soberanamente a oportunidade de impor ou não a sanção pecuniária compulsória pedida pelo credor. Mas o juiz já é soberano na escolha tanto da modalidade como do valor que for mais conveniente às circunstâncias do caso, podendo – sem violar o princípio do pedido - condenar por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, quer dizer, por unidade de tempo de atraso no cumprimento ou por cada futura infracção à obrigação e pelo valor que achar adequado[12].

Sem pretensão à formulação de uma regra de valor universal, a fixação da sanção pecuniária compulsória por unidade de tempo de atraso será a modalidade mais adequada nas prestações de facto positivo, ao passo que fixação por cada infracção ou contravenção ulterior à obrigação, será a mais adequada nas prestações de facto negativo.

Tem-se, por certo, que a sanção pecuniária – sob pena de ficar votada ao insucesso - não deve ser puramente simbólica, antes se lhe deve fixar um valor que, definitiva e decididamente desmotive a violação, pelo devedor, da obrigação a que judicialmente foi vinculado. Caso contrário, este instrumento de coerção torna-se, ele mesmo, em mais outro motivo de descrédito do tribunal, em vez de constituir um instrumento de celeridade, prestígio e credibilidade do sistema de administração da justiça.

Neste contexto, o critério fundamental da fixação da sanção deve ser, em última análise, a solvabilidade ou a capacidade económica do devedor, já que estando o seu sucesso dependente da vontade do adstringido, a ameaça que explicitamente contém será inane e vã se não estiver em condições de impressionar e de fazer inibir o devedor, do mesmo passo da tentação de violar a obrigação e de desrespeitar a decisão judicial. Mas não deve igualmente deixar se atender às vantagens e ao lucro obtido pelo devedor com o não cumprimento e a conduta anterior desse mesmo devedor – nomeadamente a resistência abusiva ao cumprimento – de modo a que seja possível formular um juízo de prognose sobre a sua conduta futura e a intensidade da sua resiliência ao cumprimento, em ordem a que a sanção seja adequada a vencer essa resistência e levar o devedor a optar, resignado ou não, pelo cumprimento[13].

Simplesmente, há que ponderar o seguinte: nos termos gerais, a obrigação pode ter por objecto uma prestação de facto que pode ser positivo ou negativo, ou seja uma obrigação de facere ou de non facere. Ao contrário do facto negativo que é sempre infungível, o facto positivo pode ser fungível ou infungível (art.º 828.º do Código Civil e 868, n.º 1, 1.ª parte): o facto é fungível quando, para o credor, é jurídica e economicamente irrelevante se ele é realizado pelo devedor ou por terceiro – como, por exemplo, pintar um muro – ou entregar uma coisa; o facto é infungível quando, por razões jurídicas ou económicas, o interesse do credor impõe a sua realização pelo devedor – como por exemplo, pintar um retrato ou emitir uma declaração negocial.

Ora, a obrigação de entregar o automóvel a que a apelada A..., SA, devesse, eventualmente, ser vinculado tem por objecto uma prestação de facto material positivo – fungível. Ergo, face à natureza da prestação, não haveria fundamento para cominar, para o atraso ou a mora no seu cumprimento, a sanção pecuniária compulsória pedida pela apelante.

Dos argumentos expostos extraem-se, como proposições conclusivas mais salientes, as seguintes:

(…).

A apelante sucumbe no recurso. É, por esse motivo, objectivamente responsável pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela apelante.

                                                                                                                                              2024.03.19


[1] Acs. da RP 10.10.2022 (1278/18) e de 21.09.2004 (022211), do STJ de 19.05.2015 (3397/04) e do STA de 05.12.2007 (0491/07).
[2] Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.
[3] João Paulo Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, págs. 638.
[4] Miguel Teixeira de Sousa, “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia – Ac. do STJ de 24.9.2013, Proc. 1965/04, in Cadernos de Direito Privado, nº 44, Outubro/Dezembro 2013, págs. 33 e ss.
[5] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 7ª edição actualizada, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 350.
[6] Acs. do STJ 09.02.2021 (26069/18.3T8PRT.P1.S1), 30.09.2020 (4420/18.6T8GMR.G2.S1) e 14.03.2019 (8765/16.1T8LSB.L1.S2).
[7] Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lex, Lisboa, 1994, págs. 138 e ss., e Freitas do Amaral, Conceito e natureza do recurso hierárquico, Coimbra, 1981, pág. 227 e ss.
[8] A afirmação de que os recursos visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova constitui jurisprudência firme. Cfr., v.g., Acs. do STJ de 14.05.93, CJ, STJ, 93, II, pág. 62, e da RL de 02.11.95, CJ, 95, V, pág. 98.
[9] Ac. do STJ de 23.03.96, CJ, 96, II, pág. 86.
[10] Deve, portanto, existir um enlace preciso e directo entre o facto adquirido e o desconhecido, uma conexão, coerência e congruência entre o primeiro e o segundo, de harmonia com a regra de experiência – mas não é necessário que entre o facto-base e o facto presumido exista um vínculo de absoluta e exclusiva necessidade causal, sendo suficiente uma relação de dependência lógica entre o facto conhecido e o desconhecido. Cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, Almedina, 2012, pág. 48.
[11] Acs. do STJ de 06.04.00, www.dgsi.pt., 25.11.88, BMJ n.º 381, pág. 606, de 8.11.84, BMJ n.º 341, pág. 388, e de 21.05.95, CJ (STJ), III, pág. 15, e Antunes Varela, RLJ Anos 122, pág. 180, e 123, pág. 49.
[12] Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Coimbra, 1987, pág. 432
[13] Ac. da RL de 06.12.2012, www.dgsi.pt.