AÇÃO EXECUTIVA
HABILITAÇÃO DE SUCESSORES
MASSA INSOLVENTE
ENCERRAMENTO DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
Sumário

I – A massa insolvente é, um património autónomo cuja gestão compete a um terceiro que não o seu titular a que, apesar da determinação do seu titular – o devedor – a lei reconhece personalidade judiciária.
II – A autonomia patrimonial da massa insolvente não importa o aparecimento de uma nova subjectividade jurídica, distinta do devedor insolvente que lhe deu origem: trata-se apenas de um conjunto de bens pertencentes à pessoa insolvente que, porém, não os poderá administrar ou alienar, por se encontrarem afectos à satisfação dos interesses dos seus credores.
III – O encerramento do processo de insolvência determina a caducidade de todos os efeitos, substantivos e processuais, produzidos com a declaração da insolvência, com excepção, no caso da insolvência de pessoas singulares, dos que decorrem do despacho inicial da exoneração do passivo restante.
IV – A aquisição, pelo devedor, de bens ou direitos susceptíveis de execução, durante o período de cessão de rendimentos, e a sua apreensão, pelo fiduciário, para o processo de insolvência, determina a constituição de um acervo ou massa patrimonial, dotado de autonomia, a que devem associar-se alguns dos efeitos, substantivos e processuais, inerentes à constituição, na sequência da declaração de insolvência, da massa insolvente.
V – No caso de morte, quem dispõe de título – a qualidade de herdeira – que legitima a sua admissão a ocupar a posição processual da parte falecida na pendência do processo é quem foi chamado à respectiva sucessão, ainda que se encontre insolvente, e não a respectiva massa insolvente.
VI – Dado que a execução da garantia patrimonial representada pelo activo patrimonial superveniente ao encerramento do processo de insolvência, apreendido para este processo, deve ter lugar, necessariamente, nesse mesmo processo, a instância da acção executiva singular em que tenham sido penhorados esses mesmos bens deve ser suspensa, recaindo sobre o exequente e os credores reclamantes o ónus de, sob pena de insatisfação dos respectivos créditos, os reclamarem no processo de insolvência.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Relator: Henrique Antunes
Adjuntos: Cristina Neves
Falcão de Magalhães

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

Na acção executiva que corre termos no Juízo de Execução ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., os exequentes, AA e BB, requereram, contra incertos, a habilitação dos sucessores da executada CC.

Fundamentaram esta pretensão no facto de a executada ter falecido no dia ../../2021 e de não terem forma de identificar os seus herdeiros.

Após vicissitudes processuais várias, a Sra. Juíza de Direito, ordenou a citação de CC, na pessoa do seu administrador de insolvência, DD para, querendo, contestar a habilitação.

Massa Insolvente de CC, representada por DD, administrador judicial da massa insolvente de CC, atravessou, a dado passo, um articulado, que denominou de resposta, requerendo a habilitação de herdeiros da insolvente CC, actualmente denominada Massa Insolvente de CC, como sendo a única herdeira de sua irmã pré-falecida, sendo esta herdeira representada pelo Sr. Administrador, Dr. DD.

Baseou este pedido no facto de os ascendentes e descendentes de CC terem repudiado a herança daquela, só restando a sua irmã, CC, que foi declarada insolvente no processo n.º 748/20...., do Juízo de Comércio ..., no qual o Dr. DD foi nomeado administrador da insolvência.

Finalmente a Sra. Juíza de Direito, após ter solicitado autorização para acompanhar o processo de insolvência, depois de declarar que as partes são dotadas de personalidade judiciária, decidiu:

a)  Declarar CC, representada pelo Administrador de Insolvência DD, habilitada para prosseguir nos autos de execução, como Executado em lugar do falecido CC, e,

b) Transitada em julgado a presente sentença, prossiga a execução com os ulteriores termos legais, uma vez que é aqui que cabe proceder à venda dos bens penhorados propriedade da falecida executada.

É esta sentença que a massa insolvente de CC impugna no recurso – no qual pede que seja alterada parcialmente no sentido de ser declarada a aqui habilitada Massa Insolvente de CC suspendendo-se a referida execução prosseguindo os autos no processo de insolvência de CC, e que seja proferido douto acórdão a anular parcialmente a douta sentença sub judice de forma e que ordene a suspensão da execução em relação à habilitada/executada Massa Insolvente, cabendo aos exequentes e todos os credores querendo, reclamar os seus créditos no Processo de Insolvência da ora habilitada Massa Insolvente, ainda que esta Massa só possa responder pelos bens ou direitos que a habilitada venha a receber da herança por partilha de bens em inventário, visto que só pela partilha se determina a quota parte ou quinhão que a habilitada recebe de herança da de cujos – tendo rematado a sua alegação com estas conclusões:

(…).

O credor reclamante Banco Bic Português, SA – única parte que respondeu ao recurso – depois de observar que na sequência do encerramento do processo de insolvência de CC, por insuficiência da massa, deixou de existir massa insolvente que, por isso, não tem personalidade judiciária – sustenta que o presente recurso, não (deve) admitido em virtude de ter sido deduzido por quem lhe falta personalidade judiciária, ou caso assim não se entenda deverá o recurso ser julgado improcedente por não provado, devendo manter-se na integra a decisão recorrida, ponto de vista que fez assentar nas conclusões seguintes:

(…).

Ouvida, sobre a questão da falta personalidade judiciária – e a consequente inadmissibilidade do recurso – a recorrente referiu que a executada CC, irmã da aqui recorrente, ainda tem bens na esfera da sua massa insolvente no respetivo processo de execução, por isso, a recorrente ao ser habilitada como sua herdeira, adquiriu bens patrimoniais supervenientes que eram da sua irmã e que agora se vão integrar na sua massa insolvente após a partilha dos bens da herança da sua irmã; em resposta o credor reclamante reiterou que com o encerramento do processo de insolvência deixou de existir massa insolvente e, consequentemente, que a apelante é destituída de personalidade judiciária.

2. Factos provados.

2.1. A Sra. Juíza de Direito, apesar de ter sido autorizada a aceder ao processo de insolvência de CC que correu termos no Juízo do Comércio ..., do Tribunal Judicial da Comarca ... com o n.º 748/20.... – podendo, portanto, verificar que nele tinha sido proferido despacho de encerramento daquele processo no despacho inicial de exoneração do passivo restante e realizada a apreensão do quinhão hereditário da insolvente no único bem conhecido da herança jacente da sua irmã, CC - declarou provados apenas os factos seguintes:

1. Em ../../2021 faleceu CC no estado de divorciada de EE, sem descendentes.

2. CC era filha de FF e de GG, ambos casados no regime da comunhão geral de bens.

3. Deste casamento, nasceram três filhos, a saber:

- HH;

- CC, e;

- CC.

4. FF e de GG repudiaram à herança da sua filha CC, conforme consta da escritura pública de repúdio de herança outorgada no dia 5/11/2021, exarada a fls 109 e 110 do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº ...8... do cartório Notarial denominado por II, Notária, S.... Unipessoal, Lda., sito na Avenida ..., Edifício ..., ..., ....

5. Na escritura descrita em 4, declararam repudiar à herança aberta por óbito de CC ainda HH, irmã da de cujos e JJ, sobrinho do de cujos.

6. Purificação Pereira dos Reis é casada no regime da comunhão de adquiridos com KK que autorizou a prática do ato do seu cônjuge.

7. LL, solteira, maior e de MM, solteira, maior, filhas de Purificação Pereira dos Reis, também declararam repudiar à herança aberta por óbito da sua tia CC, conforme consta da escritura pública de repúdios de herança, outorgada no dia 20 de Dezembro de 2021 no Cartório Notarial denominado por NN, Notária, S.... Unipessoal, Lda., sito na Avenida ..., Edifício ..., ..., ..., exarada a fls. 45 a 45 verso do Livro de Notas para Escrituras Diversas número ...9.... 8. CC por escritura de habilitação de herdeiros datada de 03.10.2022, outorgada no Cartório Notarial ..., sito em ... foi declarada habilitada a suceder à sua irmã.

2.2. Aos factos referidos em 2.1. devem adicionar-se, por se mostrarem documentalmente provados, os seguintes:

1. CC foi declarada insolvente por sentença proferida em 20 de Março de 2020 no âmbito do processo que corre termos, com o n.º 748/20...., no Juízo de Comércio ..., do Tribunal Judicial da Comarca ....

2. Por despacho proferido, no dia 25 de Junho de 2020, no processo referido em 1., transitado em julgado, admitiu-se o pedido de exoneração do passivo restante da insolvente, CC, e atribuiu-se ao Sr. Fiduciário a tarefa de fiscalizar o cumprimento pela devedora das respectivas obrigações e, sob requerimento do Sr. Administrador da Insolvência, julgou-se extinta a verificação de créditos e declarou-se encerrado, por insuficiência da massa, o processo de insolvência e cessados todos os efeitos da declaração de insolvência, designadamente recuperando o devedor a livre disposição dos seus bens e livre gestão dos seus negócios, salvaguardadas as obrigações decorrentes do despacho inicial da exoneração do passivo, e as atribuições do Sr. Administrador Judicial, excepto as que lhe são cometidas enquanto fiduciário.

3. O Sr. Fiduciário informou, por requerimento atravessado no processo referido em 1. que apreendeu o quinhão hereditário da insolvente no único bem conhecido da herança jacente da sua irmã, CC.

4. O Sr. Fiduciário requereu o registo do quinhão hereditário do prédio urbano, matricialmente inscrito sob o art.º ...00, da freguesia ... e ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...00, cuja aquisição, por compra, se mostra inscrita a favor de CC, e sobre o qual se mostra inscrita, designadamente, hipoteca voluntária a favor do Banco BIC Português, SA, para garantia do capital de € 358 830,72.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso e identificação das questões concretas controversas.

O âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados na instância de que provém, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação (art.º 635.º n.ºs 2, 1.ª parte, 3 a 5 do CPC).

Quem na 1.ª instância se apresentou a pedir a sua habilitação, para contra ela, em substituição da executada falecida, prosseguir a execução, foi a massa insolvente de CC – mas quem a sentença impugnada habilitou para a instância executiva em substituição da executada extinta, foi a herdeira, declarada insolvente, CC, representada pelo Administrador da Insolvência.

A sentença impugnada é, assim, a que julgou habilitada - para contra ela, em substituição da executada, CC, falecida na sua pendência, prosseguir a execução - CC, representada pelo Administrador de Insolvência, Dr. DD, e a impugnante é, indiscutivelmente, a massa insolvente de CC que pede, no recurso, como já tinha pedido na 1.ª instância, que seja ela – a massa insolvente - habilitada para, contra ela, em substituição da primitiva executada, prosseguir a execução e que esta seja suspensa, no tocante à recorrente, para que os exequentes e os credores reclamantes reclamem os seus créditos no processo de insolvência.

O credor reclamante que respondeu ao recurso, acha, porém, com fundamento no encerramento do processo de insolvência e na inexistência de massa insolvente, que a apelante nem sequer é dotada de personalidade judiciária, pelo que o recurso não deve, desde logo, ser admitido e, caso o seja, deve ser julgado improcedente, dado que, por força da inexistência daquela massa, está vedada a reclamação de créditos no processo de insolvência, nada obstando a que a venda executiva do imóvel penhorado seja feita nesta execução.

Portanto, as questões concretas controversas que importa resolver são as de saber se o recurso deve ou não ser admitido e, caso o deva ser, se a decisão impugnada deve ser revogada e substituída por outra que julgue habilitada, para em substituição da executada falecida, contra ela prosseguir a execução, a massa insolvente de CC e, finalmente, se a instância da acção executiva deve ser suspensa, competindo aos exequentes e ao credor reclamante, se assim o entenderem, reclamar, no processo de insolvência, os respectivos créditos, objecto da acção executiva singular.

O problema da admissibilidade do recurso vincula, naturalmente, ao exame do pressuposto processual positivo representado pela personalidade judiciária; a questão de saber quem deve ser habilitado para ocupar a posição processual da primitiva executada falecida reclama a determinação de quem dispõe de título para intervir na execução em substituição da executada falecida na sua pendência; por último, a controvérsia sobre a questão da suspensão da instância executiva – com a consequente necessidade – scilicet, ónus - de os credores reclamarem os seus créditos no processo de insolvência, exige a ponderação dos efeitos substantivos e processuais da apreensão e liquidação de bens supervenientes, i.e., posteriores á declaração de encerramento do processo de insolvência, neste mesmo processo.

3.2. Personalidade judiciária da apelante, pessoa ou entidade dotada de título para ocupar a posição processual da primitiva executada falecida e efeitos substantivos e processuais da apreensão e liquidação de bens supervenientes.

Se a falta de personalidade judiciária for insuprível e manifesta logo na petição inicial, esta deve, quando há despacho liminar, ser liminarmente indeferida; se o não for, o réu ou requerido deve ser absolvido da instância, ex-offício iudicis, ou por arguição da parte, ou mais, rigorosamente deve ser absolvido da aparência de instância – dado que só por força do princípio da auto-suficiência do processo se pode, neste caso, falar de absolvição da instância e de parte (art.ºs 264.º, 278.º. n.º 1, c), 577, c) e 578.º do CPC). A falta deste pressuposto processual subjectivo referido à instância de recurso, importa, naturalmente – dado que obsta ao conhecimento do seu objecto – a rejeição, liminar ou não, desse mesmo recurso (art.ºs 652.º, n.º 1, b) e 655.º. n.º 1, do CPC).

Diz-se habilitação a prova da aquisição, designadamente por sucessão, da titularidade de um direito ou complexo de direitos ou de outra situação jurídica ou complexo de situações jurídicas, habilitação que permite a mudança da parte inicial por uma parte subsequente ou de uma parte subsequente por outra parte subsequente.

Em caso de morte a lei pretende que o processo não continue nem finde sem que se dê a habilitação, condição da admissibilidade desse mesmo processo (art.ºs 269.º, n.º 1, 270.º, n.º 1, e 276.º. n.º 1, do CPC).

Se a qualidade de herdeiro ou aquela que legitimar o habilitando a substituir a parte falecida estiver reconhecida em habilitação notarial, a habilitação demonstra-se ou tem por base certidão da escritura (art.º 353.º, n.º 1, do CPC). A habilitação notarial outra coisa não é que a declaração, feita em escritura pública, por três pessoas que o notário considere dignas de crédito, de que os habilitandos são herdeiros do falecido e não há quem lhes prefira na sucessão ou quem concorra com eles; a habilitação notarial tem os mesmos efeitos da habilitação judicial, i.e., daquela que é realizada em processo, naturalmente não vinculante para aqueles que a não promoveram ou a não aceitaram (artºs 82.º a 85.º e 86.º, n.º 1, do Código do  Notariado). Aquela declaração pode, de modo alternativo, ser feita por quem desempenhar o cargo de cabeça-de-casal (art.º 83.º n.º 2, do Código do Notariado).

Note-se que a habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência, v.g., da execução, se destina apenas a que com eles possam prosseguir os termos da acção executiva: a habilitação não pressupõe ou determina uma qualquer sucessão dos habilitados em qualquer titularidade do direito patrimonial em discussão na acção: o que conta, como título que legitima o habilitado a substituir a parte falecida, é a qualidade de herdeiro da última – e não a qualidade de herdeiro do objecto do processo; a sucessão ocorre apenas quanto à posição processual da parte falecida e, portanto, num âmbito exclusivamente processual e não no plano substantivo, i.e., quanto ao objecto do processo (art.º 353.º, n.º 1, do CPC).

Como é axiomático, a substituição de uma parte por outra reclama que a última seja susceptível de adquirir essa qualidade. Parte é aquele que pede em juízo uma determinada forma de tutela jurisdicional e aquele contra quem essa forma de tutela é pedida. A personalidade judiciária consiste, precisamente, na susceptibilidade de ser parte (art.º 11.º, n.º 1, do CPC).

De harmonia com o princípio da coincidência, a regra, que não admite excepção, é a de que tem tiver personalidade jurídica tem personalidade judiciária (art.º 11.º, n.º 2, do CPC). Mas aquele princípio abrange ainda estoutra regra: só aquele que tem personalidade jurídica tem personalidade judiciária, regra que, porém, já admite excepções, dado que há entidades desprovidas de personalidade jurídica a quem a lei, orientando-se, ora por um critério de diferenciação patrimonial, ora por um critério de afectação do acto, atribuiu personalidade judiciária (art.ºs 12.º e 13.º do CPC). Abstraindo dos casos em que a lei atribui, avulsa, mas expressamente personalidade judiciária a determinadas entidades, outros há em que, por força de regras, tanto de direito substantivo como de direito adjectivo, se impõe concluir que uma dada entidade, não obstante não ser uma pessoa jurídica, ainda assim se lhe deve reconhecer personalidade judiciária.

Uma vez declarada a insolvência, são apreendidos todos os bens do devedor à data, assim como todos os bens e direitos que venha a adquirir na pendência do processo, ainda que se mostrem arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for (art.º 46.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE). Comprovadamente, ponderou-se que a maneira mais eficaz de satisfazer os direitos dos credores requer a constituição de um património separado, composto pelos bens do devedor, susceptíveis de penhora, permitindo, assim, que respondam pelas suas dívidas. A separação dos bens que compõem a massa insolvente do restante património do devedor conduz, indubitavelmente, à criação de um património autónomo (art.º 601.º, 2.ª parte, do Código Civil).

Efectivamente, a massa insolvente constitui um património autónomo que incluiu os direitos patrimoniais penhoráveis do insolvente, caracterizando-se por um regime especial de responsabilidade por dívidas. De acordo com uma orientação doutrinária maioritária, os patrimónios autónomos caracterizam-se por responderem por dívidas próprias - distribuído por duas vertentes complementares: só o património autónomo responde pelas suas dívidas e o património autónomo só responde pelas suas dívidas – e por se distinguirem do património geral, o que implica a impossibilidade de extinção, por confusão, dos créditos e dívidas do seu titular no âmbito desse património. Porém, a constituição de um património autónomo não acarreta o aparecimento de uma nova subjectividade jurídica, distinta do devedor insolvente que lhe deu origem: muito simplesmente, a massa insolvente consiste num conjunto de bens pertencentes à pessoa insolvente que, porém, não os poderá administrar ou alienar, por se encontrarem afectos à satisfação dos interesses dos seus credores. A massa insolvente é, pois, um património autónomo cuja gestão compete a um terceiro que não o seu titular.

A lei de processo só atribui personalidade judiciária aos patrimónios autónomos sem titular determinado, dado que não se justifica a atribuição dessa personalidade ao património que, ainda que dotado de autonomia, tenha um titular determinado. É o que sucede com a massa insolvente, ou seja, com a massa constituída pelo património do devedor à data da declaração de insolvência e pelos bens, e direitos que ele adquira na pendência do processo (art.º 46.º, n.º 1, do CIRE). Mas não é essa, parece, a orientação da lei da insolvência, que é clara em admitir que as acções para a verificação ulterior de créditos e para a separação ou restituição de bens sejam propostas contra a massa insolvente e em reconhecer ao administrador competência para, com a concordância da comissão de credores, desistir, confessar e transigir, em qualquer processo judicial em que a massa seja parte (art.ºs, 55.º, n.º 8, in fine, e 146.º, n.º 1, do CIRE)[1]. Estas previsões inculcam que a massa insolvente é susceptível de adquirir a qualidade de parte e, consequentemente, que tem personalidade judiciária.

A declaração de insolvência priva, em regra, o insolvente, por si, e nos casos em que ocupa uma posição activa[2], dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente -  que, como se viu, abrange todo o património do devedor á data da declaração de insolvência, bem como os direitos que ele adquira na pendência do processo, com vista à satisfação dos credores da insolvência, depois de satisfeitas as suas dívidas – que se transferem para o administrador da insolvência (art.º 81.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE). O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos e carácter patrimonial que interessam à insolvência, embora não abranja a intervenção do próprio devedor no processo de insolvência, seus incidentes e apensos, mas essas excepções respeitam à defesa dos interesses pessoais do insolvente e não de interesses de carácter patrimonial (art.º 81.º, n.ºs 4 e 5 do CIRE).

O caso é, assim, nitidamente, de substituição processual, dado que, nesta situação a parte legitimada não é, comprovadamente, o titular do objecto do processo, dado que, nesta hipótese, o administrador faz valer em juízo, em nome próprio, um direito alheio (art.º 30.º, n.º 3, do CPC). Por força daquela previsão legal, o administrador da insolvência substitui-se processualmente ao devedor, dado que dispõe de poderes de administração e de disposição relativamente a bens pertencentes àquele, compreendidos na massa insolvente.

Para além dos efeitos substantivos – sobre o devedor e terceiros – a declaração de insolvência produz efeitos processuais, i.e., sobre as acções pendentes: uma vez declarada a insolvência, devem ser apensadas ao processo de insolvência designadamente as acções que, nesse momento, se encontrem pendentes, em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor ou contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa (art.º 85.º, n.º 1, do CIRE). No tocante às acções executivas que atinjam bens integrantes da massa insolvente, a declaração de insolvência determina a imediata suspensão de quaisquer diligências executivas e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva proposta pelos credores da insolvência, pelo que serão nulas todas as diligências executivas realizadas após aquela declaração, v.g., a venda executiva ou quaisquer pagamentos, dado que está em causa a prática de actos que a lei não admite e que, necessariamente, terá influência, tanto no desfecho do processo executivo, como no processo de insolvência (art.ºs 88.º, n.º 1, do CIRE, e 195, n.º 1, do CPC).

Este regime compreende-se em face, por um lado, da circunstância de o processo de insolvência ser uma execução colectiva ou universal e, por outro – e sobretudo – do princípio par conditio creditorum.

Na acção executiva promove-se, em geral, a realização coactiva de uma única prestação contra um único devedor e, em observância de um princípio de proporcionalidade, apenas são penhorados e excutidos os bens do devedor que sejam suficientes para liquidar a dívida exequenda (art.º 735.º, n.º 2, do CPC). Esta execução distingue-se do processo de insolvência que é uma execução universal, tanto porque nela intervêm todos os credores do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (art.ºs 1.º, 47.º, nºs 1 a 3, 128 nºs 1 e 3, e 149.º, n.ºs 1 e 2 do CIRE). Como o devedor solvendo non esse, quer dizer, está impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (art.º 3.º, n.º 1, do CIRE).

Na execução singular, um credor pretende ver satisfeito o seu direito a uma prestação; esse credor necessita de uma legitimação formal, que é um título executivo e se o devedor for solvente obtém na acção executiva a satisfação do seu crédito; no processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores do insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente. O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores. Admite-se, por isso, a par das reclamações preferenciais, a reclamação dos créditos comuns. Mas à igualdade dos credores na admissão ao concurso não corresponde necessariamente uma igualdade na satisfação dos créditos reclamados, em razão de uma diferente ponderação pelo legislador dos interesses da generalidade dos credores e dos titulares de direitos preferenciais de pagamento.

Abstraindo de soluções intermédias, a posição relativa recíproca dos credores em processos concursais, pode organizar-se de harmonia com dois sistemas: um deles fundamenta-se no princípio da prioridade e expressa-se na máxima prior tempore, prior iure, dado que atribui ao credor que primeiro obteve a penhora, ou acto equivalente, de bens do devedor uma preferência em relação aos demais credores que não sejam titulares de quaisquer garantias reais sobre esses mesmos bens; outro sistema possível é o da igualdade ou da par conditio (omnium) creditorum, que não concede ao exequente qualquer preferência resultante da penhora, ou acto executivo equivalente, em relação aos demais credores comuns do executado[3].

Todavia, a diferença entre o sistema da par conditio creditorum e o sistema da prioridade não corresponde, verdadeiramente, a qualquer contraposição entre igualdade e a desigualdade dos credores. Qualquer dos sistemas baseia-se num pressuposto de igualdade entre os credores: o que é diferente é a igualdade que está subjacente a qualquer dos sistemas. No sistema da par conditio, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor impedir a satisfação integral dos créditos dos outros credores; no sistema da prioridade, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor conseguir a satisfação integral do seu crédito. Um sistema prejudica, de forma igual, todos os credores; o outro pode beneficiar, também de forma igual, qualquer credor[4]. É a esta luz que deve ser lido o princípio da igualdade dos credores que, por exemplo, o plano de insolvência deve acatar, princípio que a norma que o proclama, de resto, logo admite que seja objecto de restrição, desde que a diferenciação se justifique por razões objectivas (art.º 194.º, nºs 1 e 2, do CIRE). Os credores da insolvência são tratados de forma igual – mas segundo a qualidade dos seus créditos. Nestas condições, em vez de par conditio creditorum talvez se devesse falar, com maior propriedade, de par aut conditio creditorum[5].

Quando o juiz de aperceba, logo na sentença de declaração da insolvência, que a massa insolvente não é presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis daquela massa, deve, naquela sentença, mencionar esse facto e, caso não seja pedido o complemento da sentença, o processo de insolvência é declarado findo, logo que se verifique o seu trânsito em julgado (art.º 39.º, n.ºs 1 e 7, b), do CIRE). Pode suceder, porém, que essa insuficiência da massa insolvente só seja detectada em momento ulterior. Como não é, evidentemente, conveniente que o processo de insolvência se mantenha pendente apenas para se alimentar a si próprio, é ainda possível encerrá-lo, por aquele fundamento, em momento posterior (art.º 232.º, n.º 1, do CIRE). Assim, quando o não tenha sido em momento anterior, o encerramento do processo de insolvência é declarado no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante (art.º 230.º, n.º 1, e), do CIRE).

O encerramento do procedimento de insolvência, necessariamente declarado por decisão judicial, produz, naturalmente, este fundamental efeito: a cessação – caducidade – de todos os efeitos declaração de insolvência, com a recuperação pelo devedor, designadamente, do direito de disposição dos seus bens e livre gestão dos seus negócios, das atribuições da comissão de credores e das funções do administrador de insolvência, com excepção das referentes ao seu dever de apresentar as contas da sua administração, podendo os credores da insolvência, em regra, exercer sem quaisquer restrições,  os seus direitos contra o devedor  (art.º 233.º, n.º 1, a) a c), do CIRE). Resumindo de outro modo: com o encerramento do processo de insolvência deixa de existir massa insolvente com a consequente caducidade de todos os efeitos, resultantes da declaração de insolvência e que, necessariamente, pressupõem a existência daquela massa, designadamente, a cessação de funções do administrador, com a conatural extinção da competência de se substituir processualmente ao devedor. E não havendo massa insolvente, deixa, evidentemente, de existir o património autónomo correspondente, extinguindo-se, inexorável e irremissivelmente a personalidade judiciária que a lei lhe reconhece.

Porém, tratando-se de processo de insolvência de pessoa singular, esta pode pedir a exoneração do passivo restante, requerimento sobre o qual o juiz de insolvência, caso não exista motivo para o seu indeferimento in limine, profere um despacho, designado por despacho inicial – no qual declara  encerrado o processo de insolvência e que a exoneração será concedida desde que observe certas condições durante os – actualmente - três anos subsequentes ao processo de insolvência, designadas por período de cessão (art.ºs 237.º b),  238.º e 239.º do CIRE). Durante esse período, o rendimento disponível do devedor – caso o haja – é cedido á pessoa que exercer as funções de fiduciário, que é escolhido pelo juiz da insolvência de entre as entidades inscritas na lista oficial de administrador da insolvência e que, entre outras, exerce as funções de fiscalização pelo devedor das obrigações que sobre ele impedem, não sendo admitidas, durante esse mesmo período, por força do princípio da igualdade dos credores, quaisquer execuções sobre os bens do devedor destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência  (art.º 241.º, n.º 3, e 242.º, n.º 1,  do CIRE)[6]. Simplesmente, as funções do fiduciário são, em princípio, inteiramente distintas das do administrador da insolvência – que deixa de existir – o que bem se compreende dado que com o encerramento o processo de insolvência deixou de existir, igualmente, massa insolvente e o devedor recuperou a livre disposição e gestão dos seus bens – embora com as restrições que decorrem do despacho inicial de exoneração do passivo restante.

Pode suceder, porém, que após a liquidação do activo e a declaração de encerramento do processo de insolvência no despacho inicial de exoneração do passivo restante, e durante o período de cessão de rendimentos, tenham ingressado no património do devedor bens ou direitos susceptíveis de alienação. Nesta hipótese – com o intuito evidente de impedir o enriquecimento indevido do devedor e de satisfazer, na maior extensão possível, os créditos sobre a insolvência - o fiduciário deve promover a liquidação superveniente, procedendo, com prontidão á apreensão e venda dos bens ou direitos ingressados, também supervenientemente, na esfera jurídico-patrimonial do devedor[7] (art.º 241.º-A, n.º 1, do CIRE)[8].  Quando isso suceda, aqueles bens ou direitos são apreendidos, ainda que se mostrem arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for (art.º 149.º, n.º 1, ex-vi art.º 234-A, n.º 1, in fine, do CIRE). Por força daquela apreensão, constitui-se, necessariamente, um acervo patrimonial ao qual, ainda que não deve designar-se por massa insolvente – como a remissão do art.º 241.º-A, n.º 1, para o art.º 149.º n.º 1, do CIRE indelevelmente inculca – se deve reconhecer uma natureza equiparada, e a cuja constituição devem associar-se – seja directamente, seja por analogia ou interpretação extensiva das normas correspondentes – efeitos fundamentalmente homótropos aos da constituição da massa insolvente, imediatamente consequente à declaração de insolvência. Assim, por exemplo, aquele acervo patrimonial exige um administrador, que o devedor seja, com a apreensão, imediatamente privado dos poderes de gestão e disposição dos bens apreendidos que passam a competir ao fiduciário, que este assuma a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem àqueles bens, que todas as acções em que se apreciem questões relativas àqueles bens, intentadas contra o devedor, devam ser apensadas ao processo de insolvência, se essa apensação for requerida pelo fiduciário, devendo o juiz requisitar para efeitos de apensação ao processo de insolvência, todos os processos nos quais se tenha efectuado um acto de apreensão ou detenção de bens compreendidos naquele acervo patrimonial e que o fiduciário substitua o insolvente em todas estas acções, com inteira independência do acordo da parte contrária e da sua apensação ao processo de insolvência (art.ºs 81.º, n.ºs 1 a 4, e 85.º nºs 1 a 3, do CIRE).  Decerto que se não dá uma abertura irrestrita do processo de insolvência, mas seria, realmente, sistematicamente inexplicável e de todo contrário às finalidades da apreensão e da liquidação supervenientes, que o devedor conservasse as faculdades de administração e de disposição dos bens apreendidos, que os actos do devedor de disposição desses bens fosse oponíveis à insolvência, que esses bens fossem afectados à satisfação de créditos diversos das dívidas do insolvente ou que as acções executivas singulares em que tenha sido penhorados devessem prosseguir para a fase de liquidação da garantia patrimonial, apesar da sua apreensão para o processo de insolvência. Como, do mesmo modo, há que admitir os meios de reacção contra uma apreensão indevida e, bem assim, a reclamação e a verificação ulterior de créditos que disponham de uma garantia real sobre os bens apreendidos (art.º 141.º e 146.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE).

Quer dizer: constatando-se a aquisição pelo devedor, posteriormente ao encerramento da liquidação e da declaração de encerramento do processo de insolvência, de bens ou direitos susceptíveis de execução que devam ser liquidados, também necessariamente supervenientemente, no processo de insolvência, devem produzir-se, com a apreensão desses bens ou direitos pelo fiduciário, efeitos em tudo homótropos, ou ao menos, similares aos que resultam da constituição da massa insolvente, imediatamente consequente à declaração de insolvência,  dando-se, por assim dizer, a repristinação de todos esses mesmos efeitos, restrita ao activo superveniente, de que avultam a constituição, com aqueles bens, de um acervo insolvente, dotado de autonomia, a privação do devedor das faculdades de disposição e de administração desses bens, e a sua transferência para o fiduciário que adquire a qualidade de administrador deles, a inoponibilidade ou ineficácia dos actos de disposição e de administração desses bens praticados pelo devedor, a assunção pelo fiduciário dos poderes de representação do devedor e a substituição processual do último pelo fiduciário em todos os processos em que debatam questões relativas aos bens apreendidos no processo de insolvência ou em que se tenha procedido à apreensão desses mesmos bens.

E tendo esses bens sido apreendidos para o processo de insolvência, é claro que a execução da garantia patrimonial, através da sua venda executiva deve ser feita pelo fiduciário no âmbito desse processo, preferencialmente por leilão electrónico, ou justificadamente, por qualquer das modalidades admitidas no processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente (art.º 164.º, n.º 1, do CIRE).

E devendo a venda executiva dos bens apreendidos supervenientemente para a insolvência ocorrer, necessariamente, no contexto do processo de insolvência – dada a injuntiva suspensão da execução em que tais bens tenham sido penhorados – tem-se por axiomático, que os credores, mesmo aqueles de execuções – ou reclamações deduzidas nessas execuções – pendentes, devem procurar e obter a satisfação dos seus créditos no processo de insolvência. Porquê? Por esta razão simples, mas sólida: o produto da venda dos bens ou direitos objecto de liquidação superveniente é afectado à satisfação dos credores da insolvência, cujos créditos se mostrem verificados ou graduados por sentença, nos termos determinados para o pagamento aos credores no processo de insolvência (art.º 241.º, n.º 1, d), ex-vi art.º 241.º-A, n.º 3, in fine, do CIRE). Quer dizer: pelo produto da venda executiva dos bens ou direitos apreendidos e objecto de liquidação superveniente apenas são satisfeitos os créditos que tenha sido verificados e graduados no processo de insolvência, pelo que qualquer credor da insolvência apenas poderá obter, eventualmente, pagamento do seu crédito, se intervir no concurso de credores da insolvência e, claro está, se o crédito for verificado e graduado naquele processo; no caso de não de não se ter procedido, seja qual for o motivo, àquela verificação e graduação, por força daquela liquidação superveniente dos bens ou direitos apreendidos, há, injuntivamente, que realizar o acto de verificação e de graduação desses créditos.

É claro que os credores – exequentes ou reclamantes – de execução em que tenham sido penhorados bens apreendidos supervenientemente para o processo de insolvência, poderão não reclamar os respectivos créditos no processo de insolvência, mas nesse caso ficam inevitavelmente sujeitos às consequências que decorrem do efeito extintivo da venda executiva concluída no processo de insolvência: a extinção dos direitos reais de garantia e da penhora. Realmente, como os bens são transmitidos livres de direitos de garantia que os oneram, se os bens penhorados e vendidos estiverem onerados, v.g., com uma hipoteca, o comprador adquire os bens sem essas garantas reais que, portanto, se extinguem, extinção que atinge tanto aquelas que são anteriores a penhora como aquelas que lhe são posteriores (art.º 824.º, n.º 1, do Código Civil). Apesar de a penhora não ser uma garantia real, também ela se extingue com a venda executiva concluída no processo de insolvência.

Este viaticum habilita, com suficiência, à resolução das questões concretas controversas objecto do recurso.

3.3. Concretização.

Indiscutivelmente a recorrente é a massa insolvente de CC. Mas também é irrecusável que, com a decisão judicial de encerramento do processo de insolvência, por insuficiência patrimonial, em que CC ocupava a posição de devedor cessaram, por caducidade, todos os efeitos da declaração de insolvência, de que se destacam a extinção da autonomia patrimonial, a recuperação pelo devedor do direito à administração e disposição dos seus bens, a cessão das funções do administrador da insolvência – dado que nada há a administrar – e a extinção da personalidade judiciária daquela massa patrimonial autónoma.

Do mesmo modo, em face dos elementos disponibilizados pelo recurso, decorre que os bens que a insolvente adquiriu, hereditatis ou mortis causa, da primitiva executada, nunca chegaram sequer a integrar a massa insolvente, proprio sensu, i.e., a eventualmente constituída na imediata sequência da declaração de insolvência.

Como se observou, a massa insolvente é constituída pelo património do devedor à data da declaração de insolvência e, bem assim, pelos bens e direitos que aquele adquira na pendência do processo (art.º 46.º, n.º 1, do CIRE)

 Com a morte da primitiva executada deu-se a abertura da respectiva sucessão que é um efeito jurídico que se produz num momento determinado. Este momento é o da morte do autor da sucessão: esta abre-se, diz a lei, no momento da morte do seu autor (art.º 2031.º do Código Civil). Tem muito interesse, para variados efeitos, saber qual é o momento da abertura da sucessão, e fazê-lo coincidir com o momento da morte, podendo dizer-se que é um princípio geral do nosso direito sucessório, revelado em muitas das suas disposições, o princípio de que o momento fundamental do fenómeno sucessório é o momento da abertura da sucessão, a este momento devendo ser referidos ou reportados os vários actos ou operações a que no decurso desse fenómeno houver de proceder-se. Assim, por exemplo, feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos desde a abertura da sucessão, portanto, desde o momento da morte do autor da herança, e os efeitos do repúdio da herança retrotraem-se também ao momento daquela abertura da sucessão, consideram-se o repudiante como não chamado (art.ºs 2062.º e 2119.º do Código Civil).

Pois bem: no caso, a abertura da herança da primitiva executada deu-se no dia ../../2021 e o processo de insolvência foi declarado encerrado em 25 de Junho de 2020. Quer dizer: a aquisição pela insolvente do direito de suceder nos bens que integram o relictum da executada falecida deu-se, necessariamente, em momento posterior ao do encerramento do processo de insolvência, i.e., num momento em que a respectiva instância se restringia à exoneração do passivo não satisfeito, através da cessão de rendimentos do devedor. Ergo, os bens que a insolvente adquiriu, por via sucessória, da primitiva executada não chegaram sequer a integrar a massa insolvente daquela, constituída na imediata sequência da declaração da sua insolvência.

Simplesmente, por força da aquisição superveniente pela insolvente de activo patrimonial e da sua apreensão, também superveniente, para o processo de insolvência, e a cuja execução há que proceder nesse processo em momento ulterior, deu-se a constituição de uma massa ou acervo patrimonial insolvente, com a produção de todos os efeitos jurídicos inerentes a essa constituição de que se destaca, para o problema da personalidade judiciária da apelante, o surgimento de um património autónomo que – talvez com pouca justificação – é susceptível de adquirir a qualidade de parte e, consequentemente, personalidade judiciária.

Sendo isto exacto, não falta, no caso, o pressuposto processual representado pela personalidade judiciária da impugnante e, consequentemente, o recurso deve ser julgado admissível.

Mas uma coisa é aquele acervo patrimonial insolvente ser dotado de personalidade judiciária outra, bem diversa, é a apelante dispor de um título que legitime aquela massa de bens a intervir na acção executiva em substituição da executada falecida, i.e., a sua habilitação para contra ela prosseguir a execução.

Como se observou, a constituição de um património autónomo não acarreta o aparecimento de uma nova subjectividade jurídica, distinta do devedor insolvente que lhe deu origem: muito simplesmente, tanto a massa insolvente, proprio sensu, como o activo patrimonial superveniente, consiste num conjunto de bens pertencentes à pessoa insolvente que, porém, não os poderá administrar ou alienar, por se encontrarem afectos à satisfação dos interesses dos seus credores. Tanto a massa insolvente como o acervo patrimonial superveniente são, pois, patrimónios autónomos cuja gestão compete a um terceiro que não o seu titular.

A habilitação – notou-se já - consiste na prova da aquisição, designadamente por sucessão, da titularidade de um direito ou complexo de direitos, ou de outra situação jurídica ou complexo de situações jurídicas e a necessidade da habilitação resulta de uma eventualidade referida ao objecto do processo – a sucessão ou transmissão. A habilitação-incidente, que determina a modificação subjectiva da instância, destina-se a permitir a substituição de uma parte falecida pelos seus sucessores – não a transferir, a título sucessório, o objecto do processo para os sucessores (art.º 262.º, b), do CPC).

Quem por último - i.e., em consequência dos sucessivos actos unilaterais, não receptícios, de repúdio da herança, através dos quais, vários chamados responderam negativamente ao chamamento sucessório - foi chamada a suceder, na qualidade de herdeira, da executada falecida foi CC e não, comprovadamente, a acervo de bens insolvente constituído na sequência da superveniência patrimonial.

Quem dispõe de uma vocação sucessória, i.e., a quem foi feito o chamamento ou uma chamada à sucessão, operada pela lei, para suceder nas relações jurídicas que integram a sucessão – foi CC e não aquele acervo ou massa patrimonial. É certo que, com a declaração da insolvência, a insolvente ficou privada do exercício do direito fundamental, conteúdo da sua vocação, de aceitar ou repudiar a herança - direito potestativo cujo exercício se considerada transferido para o administrador da insolvência – e bem, assim, do poderes de administração dos bens em que sucedeu (art.ºs 2047.º, n.º 1, e 2050 do Código Civil, e 81.º, n.ºs 1 e 4, do CIRE). Mas, mesmo neste caso, exercido aquele direito pelo administrador da insolvência, em representação do herdeiro devedor, com a aceitação, o beneficiário da aquisição sucessória, por força do mecanismo da representação legal, é o herdeiro, quem adquire os bens é o sucessível - aquisição que retrotrai os seus efeitos à data da abertura da sucessão – e não, no caso da sua insolvência, a massa insolvente, ainda que os bens adquiridos a devam integrar.

A massa insolvente e, por maioria de razão, o acervo patrimonial superveniente ainda que possa dispor de personalidade judiciária, não dispõe, em caso algum, de personalidade jurídica. Trata-se, pura e simplesmente, de um património autónomo, constituído pelos direitos, de carácter patrimonial – do devedor; este é que, por dispor de personalidade jurídica, pode, por via sucessória, adquirir bens, embora, por força da sua integração na massa insolvente, fique privado das faculdades de administração e de disposição deles, e passe a ser representado, para todos os efeitos de carácter patrimonial, pelo administrador da insolvência ou pelo fiduciário, conforme o caso.

De resto, no momento em que se deu a abertura da sucessão e a constituição na esfera jurídica da insolvente da vocação sucessória, o processo de insolvência mostrava-se encerrado, com a consequente cessação das funções, representativas – do devedor - e de administração – do administrador da insolvência, pelo que aquela podia exercer, por si, o acto individual, pessoal, irrevogável, puro e simples e indivisível em que a aceitação se traduz (art.ºs 2051.º, 2061.º, 2054.º, n.ºs 1 e 2, e 2055.º do Código Civil). Quem adquiriu os bens foi a insolvente e só em momento muito posterior com a apreensão deles pelo fiduciário para o processo de insolvência é que se deu a sua integração num acervo patrimonial insolvente, materialmente equivalente a uma massa insolvente, com todas as consequências jurídicas, materiais e processuais, que dessa integração decorrem.

Estas considerações, são suficientes para recusar à apelante, massa insolvente de CC a produção de um dos efeitos jurídicos que visa com o recurso: a sua habilitação como sucessora daquela, para contra ela prosseguir a execução. Quem dispõe de título – a qualidade de herdeira - que legitima que seja admitida a ocupar a posição processual da executada na execução, falecida na sua pendência, é – unicamente – a insolvente.

Em contrapartida, há que dar razão à recorrente quanto ao pedido de revogação da decisão impugnada, no segmento em que esta determinou – aliás, sem a fundamentação ou motivação exigível - o prosseguimento a execução com os ulteriores termos legais, uma vez que é aqui que cabe proceder à venda dos bens penhorados propriedade da falecida executada.

Pela pluralidade de razões já apontadas esta decisão é desacertada: com a apreensão dos bens penhorados para o processo de insolvência – para mais durante o chamado período de cessão – e da necessária execução da garantia patrimonial nesse mesmo processo, através da venda executiva, a acção executiva singular não pode prosseguir e a satisfação dos créditos dela objecto  - por força carácter universal da insolvência  e do princípio estruturante da igualdade dos credores – tem, injuntivamente, de ocorrer no processo de insolvência, dado que apenas são satisfeitos, pelo produto da venda executiva dos bens apreendidos e liquidados supervenientemente – repete-se – os créditos que se mostrem verificados ou graduados por sentença, nos termos determinados para o pagamento aos credores no processo de insolvência.

O recurso deverá, pois, proceder – mas apenas quanto a este último ponto.

Do percurso argumentativo percorrido extraem-se, como proposições conclusivas mais salientes, as seguintes:

(…).

A recorrente e o credor reclamante, Banco Bic Português, SA, que respondeu ao recurso, deverão suportar, porque nele sucumbem recíprocamente, as respectivas custas. Dada a diferente sucumbência, puramente qualitativa, da apelante e daquele credor, julga-se proporcional, fixar a responsabilidade de um e de outro pela satisfação das custas em 70% e 30%, respectivamente (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, julga-se o recurso, além de admissível, parcialmente procedente e, consequentemente:

1. Revoga-se a decisão impugnada no segmento em que determinou o prosseguimento da acção executiva e declara-se a suspensão da respectiva instância;

2. Mantêm-se, no mais, a decisão recorrida.

Custas pela recorrente e pelo credor reclamante, Banco Bic Português, SA, na proporção de 70% e 30%, respectivamente.

                                                                                                                              2024.03.19


[1] Soveral Martins/Maria José Capelo, RLJ, Ano 148 (2019), págs. 374 e ss., e Pedro Barrambana Santos, A pessoa insolvencial no processo de insolvência – um contribuo para o enquadramento dogmático do plano de insolvência, Vi Congresso Internacional de Ciências Jurídico-Empresariais, disponível em https://iconline.ipleiria.pt/bistream/10400.8/1460/1/artigo7.pdf.
[2] Privação que deve ser entendida, não como uma manifestação de incapacidade ou de ilegitimidade – mas como um uma indisponibilidade. Tal privação não consubstancia, assim, uma incapacidade judiciária do insolvente – antes implica a uma substituição na sua representação processual pelo administrador da insolvência: Ac. do STJ de 10.12.2019 (5324/07);
[3] Catarina Serra, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, págs. 150 e ss.
[4] Miguel Teixeira de Sousa, A Reforma da Acção Executiva, Lisboa, Lex, 2004, págs. 40 e 41.
[5] Note-se que a igualdade dos credores estatuída no Código Civil não é inteiramente coincidente com a disposta no CIRE: este último assenta numa dimensão material do princípio da igualdade, abrindo espaço para diferenciações, desde que se revelem materialmente fundadas: Cfr. Carolina Cunha, A Par Conditio Creditorum como Igualdade Formal dos Credores, Expectativa vs. Realidade – Do Cumprimento Voluntário à Insolvência-Liquidação, Almedina, pág. 177.
[6] Segundo se julga, se houver lugar ao proferimento do despacho inicial de exoneração do passivo restante, a instância da reclamação e verificação dos créditos não deve ser julgada extinta, por inutilidade, dado que, caso o devedor adquira rendimentos na pendência do período de cessão, o fiduciário deve proceder à sua distribuição pelos credores da insolvência cujos créditos tenham sido verificados e graduados, de harmonia com a sua posição relativa na escala de graduação. Caso o tenha sido, e o devedor venha a auferir rendimentos ou adquirir bens que devam ser excutidos na processo de insolvência, haverá, evidentemente que proceder àquela verificação e graduação, dado que só assim será possível proceder àquela distribuição (art.ºs 239.º, n.º 2, e 241.º, n.º 1, d), do CIRE).
[7] A nossa lei adopta, deste modo, a solução que mais francamente favorece os credores da insolvência, divergindo de outros ordenamentos – como v.g., o norte americano – que se orientam pela regra inversa da exclusão dos bens supervenientes, que continuam na disponibilidade do devedor, com fim de assegurar a sua mais rápida recuperação e reinserção económica (fresh start). Assim, mesmo no tocante a activo patrimonial adquirido pelo insolvente na pendência do processo do processo de insolvência, o Ac. do STJ de 16.01.2024 (4183/16).
[8] Trata-se de solução inovatoriamente introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, justificada, na proposta que lhe deu origem, nestes termos: durante o período de cessão, o fiduciário (pode) apreender e vender bens que ingressem então no património do devedor e, posteriormente, afectar o respectivo produto da venda aos credores, nos mesmos moldes do rendimento disponível, evitando a criação de situações de enriquecimento sem causa daquele. Cfr., por todos, Fernando Tainhas, Liquidação (Velhos e Novos Problemas), Julgar, n.º 48, 2022, págs. 67 e ss.