REGISTO PREDIAL
PRÉDIO MISTO
INTERPRETAÇÃO DO PEDIDO DE REGISTO
DEVER DE COOPERAÇÃO
DESPACHO DE RECUSA DO REGISTO
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE DA DECISÃO
Sumário

I – O registo predial tem essencialmente por escopo dar publicidade aos direitos reais inerentes às coisas imóveis: pretende-se patentear a história da situação jurídica da coisa, desde a data da descrição até á actualidade, pelo que se exige um nexo ininterrupto entre os vários sujeitos que aparecem investidos de poderes sobre o prédio; trata-se do princípio do trato sucessivo que, a par dos princípios da instância, da legalidade, da obrigatoriedade e da prioridade, constitui um dos elementos estruturantes do instituto.
II – O sistema de registo predial português é de base real, sendo o seu ponto de partida, sempre, a descrição de um prédio que visa a identificação física, económica e fiscal desse mesmo prédio, descrição que, embora esteja na base do registo, ocorre na dependência de uma inscrição ou averbamento, dado que, por força do princípio da instância e das regras sobre a legitimidade, não é admissível a descrição de um prédio ad nutum, i.e., sem lhe associar a inscrição de um facto.
III – Sob pena de desconformidade flagrante entre a descrição e a realidade material subjacente, a cada prédio correspondente uma só descrição e cada descrição deve referir-se também a um só prédio.
IV – O Código de Registo Predial reconhece expressamente a categoria do prédio misto que trata de modo unitário e não como mera soma ou justaposição de dois prédios – um urbano e outro rústico – resultantes da fraccionamento ou fragmentação de um outro.
V – Á interpretação dos actos das partes do processo de registo são aplicáveis os critérios definidos para a declaração negocial, pelo que na actividade de interpretação do pedido de registo das partes, deve ser considerada a respectiva fundamentação e, bem assim, os documentos que, necessariamente, lhe servem de suporte, maxime os que, substantivamente, titulam o facto aquisitivo que se quer inscrever no registo.
VI – Os requerentes do registo e o conservador estão reciprocamente vinculados ao um dever de cooperação intersubjectiva, ordenado para transformar o processo de registo numa comunidade de trabalho, dever que, no tocante ao conservador, se desdobra num dever de auxílio e num dever de prevenção.
VII – O despacho do conservador de recusa do registo deve, pois, ser fundamentado, fundamentação que aqui deve ser entendida não só como motivação, traduzida na indicação, ainda que sucinta, das razões pelas quais o registo é recusado, mas também como justificação, traduzida na exposição, mesmo que breve, dos pressupostos de facto e de direito que conduziram à decisão de recusar a realização do registo.
VIII – A finalidade do dever de fundamentação exige a sua contextualização, que, assim, deve ser parte do despacho do conservador – e não elaborada a posteriori – e deve ser notificada juntamente com ele, independentemente de pedido do interessado.
IX – Além da finalidade de protecção subjectiva dos interessados no registo, o dever de fundamentação é também norma de acção registral, que visa assegurar uma correcta e ponderada realização dos interesses públicos que o registo predial também prossegue – legalidade, justiça, eficiência, certeza jurídica e segurança do comércio jurídico imobiliário – e contribui, do mesmo passo, para a legitimação da decisão do conservador através da informação.
X – A violação, pelo conservador, do dever de fundamentação, considerados, além do mais, os interesses públicos que também a justificam, importa a nulidade da respectiva decisão.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Relator: Henrique Antunes
Adjuntos: Sílvia Pires
Pires Robalo

                Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:  

1. Relatório.

                O Sr. Notário, Dr. AA requereu, por via electrónica, no dia 27 de Maio de 2022, ao Sr. Conservador da Conservatória do Registo Predial e Comercial ..., o registo de aquisição do prédio de ... (...)/..., prédio n.º ...36 – apresentação que que coube o n.º 6339 -  mas não indicou os sujeitos activos nem a quota ou proporção do direito a que refere o facto aquisitivo. 

O Sr. Conservador notificou o Sr. Notário de que o pedido de registo requisitado através da apresentação ...39, de 27 de Maio de 2022, estava em suprimento pelas razões seguintes:

a) Nos documentos apresentados a registo verifica-se que o imposto de selo referente à autora da transmissão BB, não foram relacionados os artigos 195, secção L rústico e artigo ...45 urbano, ambos da Freguesia ... (...), que fazem parte da descrição n.º ...36 – ..., objecto do pedido de registo;

b) Não indica a proporção do prédio que pretende registar.

Por pedidos de apresentação complementar, o Sr. Notário apresentou cópia da escritura pública, outorgada no dia ../../2020, na qual BB declarou que, no dia ../../2020, faleceu CC, tendo deixado como único herdeiro, o cônjuge, BB, não havendo outras pessoas que, segundo a lei possam concorrer com a indicada herdeira nesta sucessão, cópia da escritura pública, celebrada no dia ../../2021, na qual DD, EE e FF, declararam que, no dia ../../2021, faleceu BB, que não deixou ascendentes nem descendentes, tendo feito testamento público, na qual fez legados a GG, aos filhos do falecido HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN e OO, e instituiu herdeiros do remanescente dos seus bens NN e OO, e documentos do serviço de finanças e certidão fiscal emitida por estes serviços.

O registo foi, porém, recusado pelo Sr. Conservador nos termos dos art.ºs 68, 69.º, n.º 2 e 71.º, n.º 1 do Código de Registo Predial.

A Sra. PP notificou, por carta registada o Sr. Notário de que o seguinte registo de averbamento à descrição foi recusado nos termos do despacho que junto se envia: requisição on line, nº ...22 – Ap. ...39 de 27 de Maio de 2022, Prédio descrito sob o n.º ...36 da Freguesia ... (...), Concelho ....

                O Sr. Notário impugnou judicialmente a recusa, pedindo a anulação do respectivo despacho e a sua substituição por decisão que ordene a conversão do registo em definitivo.

                Fundamentou a impugnação no facto de o despacho padecer de fundamentação legal e de facto, sendo totalmente nulo por falta de fundamentação e um despacho surpresa.

                A Sra. Conservadora em substituição legal, por despacho de 9 de Fevereiro de 2023, sustentou o despacho de recusa, nestes termos: o acto requerido pela apresentação ...39 de 2022-05-27 foi recusado por despacho de 28.12.2022, e por lapso dos serviços a nível interno não ficou a constar do referido despacho a fundamentação o despacho foi confirmado sem o conteúdo da fundamentação; o acto requerido não pode ser lavrado porquanto o Sr. Apresentante não indica a favor de quem é requerido o registo e não indica qual a proporção do prédio que pretende registar; nos docs. apresentados a registo no imposto de selo, por óbito de BB, os artigos não são os constantes no prédio objecto do pedido de registo. Não foi junto ao processo o modelo 1 do IS, referente a CC.

                Remetida a impugnação para o ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., o Sr. Juiz de Direito – ouvido o Ministério Público, que foi do parecer de que a decisão de recusa devia ser mantida – com fundamento em que pela natureza do acto transmissivo (mortis causa), certamente que a questão do sujeito activo não se colocaria, ou não haveria margem para dúvidas, posto que não deixariam de ser o  herdeiros do remanescente da herança, os sobreditos NN e OO (…) que também a proporção do prédio a registar não deixaria de sobrevir – como sobrevém - da relação de bens junta com o comprovativo de participação, às finanças, de transmissões gratuitas: no caso a quota de 4/657 do prédio rústico também acima Identificado, e que ainda que o prédio objecto da pretendida inscrição esteja descrito, na respectiva ficha predial, como misto, isto é, composto de um prédio urbano e um outro rústico, tal ‘realidade’ apenas tem relevância ou operatividade em sede tributária e registral, e/mas porque no âmbito das relações jurídico-patrimoniais civis os prédios ou são urbanos ou são rústicos, não se observa impedimento (jurídico-normativo) a que alguém seja titular de uma quota num prédio (urbano ou rústico) que esteja registralmente associado a um outro prédio (rústico ou urbano), e não seja titular de qualquer quota neste/nesse segundo prédio, que embora tal circunstância possa não ser comum, de todo o modo com alguma facilidade se intui possível quando um determinado prédio (como o rústico descrito no artigo ...95 [secção L]) esteja ‘repartido’ por uma miríade de quotas, elucidativa de uma gestão fundiária particularmente duvidosa, mas cujas reservas não cabem no âmbito da presente decisão, que  nesse sentido, constando que a transmitente, relativamente ao prédio misto C, composto do urbano A e do rústico B, apenas é titular de uma quota sobre o B, então a inscrição de aquisição em benefício – no caso – dos herdeiros não pode deixar de reflectir essa realidade  e que nada impõe que seja pressuposto ou necessária a titularidade sobre os prédios A e B, e nada impede o registo da aquisição em conformidade com a realidade, ou seja, de molde a que a realidade registral coincida com a realidade substantiva, e que  por aplicação do poder-dever prevenido no artº 73º, nº 1 do CRP, e porque os documentos são, per si, bastantes a colmatar as informações omitidas no requerimento para registo - concedeu provimento à impugnação em apreço (ainda que motivos diversos e não apontados pelo impugnante) e, em consequência, determinou a efectivação da inscrição de aquisição pretendida registar, sendo titulares activos, em partes iguais, NN e OO, a quota adquirida aquela de 4/657 avos do prédio inscrito na matriz rústica da freguesia ... sob o artigo ...95 (secção L), do Concelho ..., prédio esse como parte do descrito na CRP daquela freguesia sob a ficha ...36.

                É esta sentença que a Sra. Presidente do Conselho Directivo do Instituto dos Registos e Notariado, IP, impugna no recurso – no qual pede a sua substituição da decisão por outra que determine que o pedido de registo formulado sob a apresentação n.º ...39 do dia 27/5/2022 tem por objeto a propriedade exclusiva da totalidade do prédio descrito sob o n.º ...36 da Freguesia ... (...), e que esse registo deve efetuar-se como provisório por dúvidas quanto a 656/657 com fundamento em violação, nessa medida, da regra do trato sucessivo (art. 34.º/4 CRP), ou, subsidiariamente, por outra que determine que o pedido de registo formulado sob a apresentação n.º ...39 do dia 27/5/2022, ainda que tenha por objeto 4/657 da totalidade do prédio descrito sob o n.º ...36 da Freguesia ... (...), tem de ser efetuado como provisório por dúvidas quanto a 3/657 com fundamento em violação, nessa medida, da regra do trato sucessivo (art. 34.º/4 CRP) - tendo rematado o sua alegação com as conclusões seguintes:

                (…).

                Não foi oferecida resposta.

                O relator determinou a devolução do processo á 1.ª instância para que o Sr. Juiz de Direito suprisse a omissão de fixação do valor processual da causa.

                2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

                Para além dos factos relativos ás vicissitudes procedimentais do processo do registo, ao conteúdo da decisão do conservador do registo impugnada, da impugnação e da sentença recorrida, estão provados, por virtude da prova documental adquirida para o processo do registo, que não foi objecto de qualquer impugnação, os factos seguintes:

 1. Na Conservatório do Registo Predial, Comercial e Automóveis ... em encontra-se descrito sob o n.º ...36, o prédio misto, situado em ..., matricialmente inscrito sob o art.º ...95, Secção L, rústica, e sob o art.º n.º ...45, urbano, composto de pinhal e mato, com 219 000 m2, onde em parte foi construído um edifício de ..., com 4 assoalhadas, cozinha, 2 casas de banho, sótão com 2 assoalhadas e casa de banho – 132 m2 – e logradouro com 868 m2, confrontante do norte, sul e nascente com QQ e RR  de SS e do poente com estrada, encontrando-se registada, desde ../../1981,  a aquisição, por compra, da quota de 1/219, a favor de CC, casado com BB, TT, casado com UU, e CC, casado com VV.

                2. BB declarou, por escritura pública, outorgada no dia ../../2020 que, no dia ../../2020, faleceu CC, tendo deixado como único herdeiro, o cônjuge, BB, não havendo outras pessoas que, segundo a lei, possam concorrer com a indicada herdeira nesta sucessão.

                3. BB, declarou, em testamento público, no dia 6 de Abril de 2021, designadamente, fazer legados de bens diversos dos prédios referidos em 1. e instituir herdeiros do remanescente dos seus bens, em partes iguais, os seus sobrinhos NN e OO.

                4. DD, EE e FF, declararam, por escritura pública, no dia ../../2021 que, no dia ../../2021, faleceu BB, que não deixou ascendentes nem descendentes, tendo feito testamento público na qual fez legados a GG, aos filhos do falecido HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN e OO, e instituiu herdeiros do remanescente dos seus bens NN e OO.

                5. Por morte de BB foi declarado, à administração fiscal, para efeitos de imposto de selo, comprovativo de transmissões gratuitas, sob as verbas n.ºs 12, 13, 14 e 15, 1/657, respectivamente, do prédio matricialmente inscrito sob o art.º ...95, rústico, Secção L, da Freguesia ... (...).

                3. Fundamentos.

                3.1. Delimitação do objecto do âmbito objectivo do recurso.

                O âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados na instância de que provém, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação (art.º 635.º n.ºs 2, 1.ª parte, e 3 a 5, do CPC).

                Considerando a competência decisória ou funcional desta Relação, tal como é recortada por estes parâmetros, a questão concreta controversa, é a de saber se a sentença impugnada no recurso deve ser revogada e substituída por acórdão que decida que o pedido de registo tem por objecto a totalidade do prédio descrito sob o n.º ...36 da Freguesia ... (...) e que o registo deve ser lavrado como provisório por dúvidas do conservador quanto a 656/657 avos, por violação do princípio do trato sucessivo, ou subsidiariamente, que declare que aquele pedido tem por objecto 4/657 avos, devendo ser efectuado provisoriamente por dúvidas do conservador quanto a 3/657 avos, por ofensa ao princípio do trato sucessivo.

                A resolução desta questão importa a ponderação, leve, mas minimamente estruturada, dos fundamentos finais e os princípios estruturantes do registo predial, a técnica em que assenta ou a que obedece a realização dos actos de registo e, por último, do dever de fundamentação, designadamente do despacho de recusa do registo, a que o conservador do registo está adstrito.

                Os elementos assim obtidos permitirão depois, regressados à questão concreta objecto da controvérsia, aferir da correcção ou incorrecção da sentença impugnada no recurso.

                3.2. Fundamentos finais e princípios estruturantes do registo predial e técnica do registo.

                A função do registo predial é enunciada pela própria lei: o registo predial destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (art.º 1.º do CR Predial).

Este enunciado da função assinalada ao registo predial deixa antever o programa do respectivo sistema, os seus fundamentos finais e os princípios que lhe são estruturantes.

O registo público – categoria de que o registo predial indubitavelmente partilha – bem pode definir-se como o assento, efectuado por um oficial público, e constante de livros públicos, de livre conhecimento, directo ou indirecto, por todos os interessados, no qual se atestam factos jurídicos conformes com a lei e respeitantes a uma pessoa ou coisa, factos entre si conectados pela referência a um assento considerado principal, de modo a assegurar o conhecimento por terceiros da respectiva situação jurídica, e da qual a lei faz derivar, como efeitos mínimos, a presunção do seu conhecimento e a capacidade probatória[1].

O registo predial constitui, portanto, um registo público, que tem for finalidade a segurança do tráfico jurídico sobre imóveis, que é assegurada através da publicidade registral imobiliária relativamente a uma série de factos especificamente enumerados na lei – os factos e as acções sujeitas a registo (art.ºs 2.º e 3.º do CR Predial).

O registo predial prossegue, a um tempo, fins de natureza privada e fins de natureza caracteristicamente pública. Prossegue fins de natureza privada, dado que garante a segurança no domínio dos direitos privados, especificamente no plano dos direitos com eficácia real – segurança do comércio jurídico imobiliário, globalmente considerado – facilita o tráfico e o intercâmbio de bens, e assegura o cumprimento da função social dos direitos reais[2]; prossegue finalidades de interesse público, enquanto instrumento da certeza do direito, da tutela de terceiros e da segurança do comércio jurídico e de garante da actualização do registo face ao facto publicitado[3].

O registo predial tem essencialmente por escopo dar publicidade aos direitos reais inerentes às coisas imóveis: pretende-se patentear a história da situação jurídica da coisa, desde a data da descrição até á actualidade (art.º 1.º do CR Predial)[4]. Exige-se, por isso, um nexo ininterrupto entre os vários sujeitos que aparecem investidos de poderes sobre o prédio. Trata-se do princípio do trato sucessivo que, a par dos princípios da instância, da legalidade, da obrigatoriedade e da prioridade, constitui um dos elementos estruturantes do instituto (art.ºs 4.º, 67.º, n.º 1, 34.º, n.º 1 e 6.º, n.º 1 do CR Predial)[5].

O registo predial, assegurado por serviços públicos, transcende, em muito, os meros interesses particulares. Apesar disso, o seu funcionamento é, por regra, deixado na dependência de uma iniciativa particular. A prática de actos de registo apenas ocorre quando as conservatórias – repartições do serviço do serviço público registo predial, actualmente sem competência territorial específica – são instadas a fazê-lo: é justamente esta realidade ou característica que se visa por em relevo com o princípio da instância.

 Este princípio situa-se, justamente, no cruzamento entre os interesses públicos e os interesses públicos que se devem assinalar ao instituto e autoriza mesmo a que se possa falar em administração privada de interesses públicos. O registo predial prossegue, indubitavelmente, interesses públicos eminentes. Todavia, ressalvados os casos especialmente previstos na lei, o registo não se efectua oficiosamente – mas a pedido dos interessados. A iniciativa de harmonizar a realidade registral ou tabular com a realidade material subjacente está subtraída aos órgãos públicos do registo: a iniciativa dos particulares interessados fia, no ver do legislador, na generalidade dos casos, a realização ou a promoção das finalidades do instituto.

Apesar das sucessivas alterações sistemáticas e de redacção que o princípio sofreu nos Códigos do Registo Predial de 1967, 1983 e 1984, do esforço de simplificação e normalização do pedido de registo e do alargamento das situações em que, por oposição à instância, o registo é feito oficiosamente, o núcleo constante daquele princípio, é o mesmo: a iniciativa da prática dos actos registais pertence aos interessados; o conservador não lavra registos oficiosamente.

Um sistema tabular organizado sob o signo do princípio da instância pode, porém, construir-se como um sistema de registo obrigatório ou de registo simplesmente facultativo: o impulso que promove o funcionamento do mecanismo do registo, sendo embora privado, pode ser deixado ao critério dos interessados ou ser tornado obrigatório por lei.

O Código do Registo Predial de 1967 consagrava o princípio da obrigatoriedade do registo (art.º 14.º).

O sistema era, nos seus traços mais largos, o seguinte: considerava obrigatório submeter a registo todos os factos a ele sujeitos e requerer os respectivos cancelamentos, sempre que respeitassem a prédios situados em concelhos onde estivesse em vigor o cadastro geométrico da propriedade rústica: essa obrigatoriedade só se tornava efectiva, em cada Concelho, rectius, Município, a partir da data fixada por despacho do Ministro da Justiça, publicado no jornal oficial. Deste sistema derivava esta consequência: havia Municípios nos quais o registo era obrigatório, outros nos quais o registo era facultativo, dependendo apenas da vontade dos interessados.

Nos casos em que o registo era obrigatório, a não realização do registo, fazia incorrer os responsáveis em várias sanções: deviam pagar uma multa e requerer o registo; se não o fizessem era instaurado procedimento criminal, fixando o juiz um prazo para que o registo fosse efectuado; se o registo não se mostrasse efectivado dentro desse prazo, o responsável ficava incurso nas penas correspondentes ao crime de desobediência qualificada (art.ºs 15.º e 16.º do CR Predial de 1967). Em qualquer caso, a validade e a subsistência dos actos jurídicos não registados ficavam assegurados.

O sistema da obrigatoriedade do registo, tal como o Código do Registo Predial de 1967 o configurava, era notoriamente desadequado. Por estar dependente – numa conexão desnecessária - do cadastro geométrico da propriedade rústica, a obrigatoriedade do registo não vigorava em mais de metade do território nacional, facto de que decorria, nos espaços de registo não obrigatório, o desfasamento total entre o registo e as situações jurídicas prediais, o que, evidentemente, punha em causa o prestigio da instituição tabular e, sobretudo, a sua utilidade; nas zonas de registo obrigatório era também frequente o desacatamento do dever de registar: as sanções não eram automáticas e a sua actuação partilhava dos problemas que têm dificultado o desenvolvimento da função jurisdicional.

Para estimular a realização do registo, o Código de Registo Predial de 1983, encontrou uma outra fórmula que, com alterações, transitou para o Código de Registo Predial de 1984: a proibição de titulação de factos de que resulte a transmissão de direitos ou a constituição de encargos sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire ou contra a qual se constitui o encargo (art.º 9.º, n.º 1). Solução que, devidamente reconformada, é depois estendida ao registo das acções (art.º 3.º, n.º 2).

Eliminou-se, assim, uma referência expressa à obrigatoriedade do registo e, em sua substituição, adoptou-se um esquema indirecto, através da introdução do ónus ou do encargo do registo. Na prática, sem o registo, os bens ficam numa situação de inalienabilidade, forçando todos os titulares a ter o maior interesse na sua realização. Este esquema – que corporiza um verdadeiro princípio de legitimação registral – levantava o problema delicado da validade do negócio titulado em violação dele, sustentando alguma doutrina a invalidade, por vício de forma[6], desse negócio, e outra – que se tem por preferível – a sua validade, dado que no caso se trata de uma legitimação formal, não estando em causa a legitimação substantiva, restringindo, assim, o valor do princípio da legitimação ao domínio específico do registo[7].

Neste contexto, perguntava-se se, realmente, ainda podia falar-se de um princípio da obrigatoriedade do registo e de um consequente dever de registar. A resposta exacta parecia ser a da caracterização do sistema como de obrigatoriedade indirecta, concretizada, segundo alguma doutrina, através de um ónus em sentido técnico[8], e segundo outra, através figura do encargo[9]. Não haveria, portanto, um dever, em sentido estrito e próprio, de registar: a adstrição servia um conjunto de interesses que transcende largamente os do onerado – com o ónus ou com o encargo – mas o registo não podia ser exigido por terceiros ou pelo Estado. Na sua falta, porém, os interessados ficavam sujeitos a desvantagens: a restrição ao exercício do poder ou da faculdade de disposição do seu direito.

Este estado de coisas sofreu uma alteração profunda com a superveniência do Decreto Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho que trouxe consigo o princípio da obrigatoriedade do registo: apesar de o registo, na lógica do princípio da instância, continuar a depender de pedido dos interessados, esse pedido é agora de dedução vinculada (art.ºs 8-A a 8-D do CR Predial).

Assim, é obrigatório submeter a registo, os factos a que o registo visa dar publicidade e as acções, decisões, os procedimentos e as providências (art.ºs 2.º, 3.º e 8.º-A, n.º 1, do CR Predial). Essa obrigação de promover o registo vincula um conjunto vasto de sujeitos. Assim, estão adstritas ao dever de promover o registo (artº 8.-B n.ºs 1 e 3 do CR Predial):

a) As entidades que celebrem escritura pública, autentiquem os documentos particulares ou reconheçam as assinaturas neles apostas ou, quando tais entidades não intervenham, os sujeitos activos do facto sujeito a registo;

b) Os tribunais, relativamente às acções, decisões e outros procedimentos e providências ou actos judiciais;

f) O Ministério Público no tocante às apreensões em processo penal que tenha autorizado e quando, em processo de inventário, for adjudicado a incapaz ou ausente em parte incerta qualquer direito sobre imóveis;

g) Os agentes da execução, ou o oficial de justiça que aja como tal, quanto ao registo de penhoras, e os administradores da insolvência relativamente ao registo da respectiva declaração.

                A adopção do princípio da obrigatoriedade do registo repercutiu-se, inevitável e necessariamente, na legitimidade para registar. Originariamente, a legitimação registral radicava apenas nos sujeitos, activos e passivos da respectiva relação jurídica e, em geral, em todas as pessoas que nele tivessem interesse (art.º 36.º do CR Predial).

A legitimidade para registar pertencia, em primeiro lugar, às partes do negócio jurídico. Assim, numa compra e venda, tinham legitimidade para promover o registo tanto o comprador como o vendedor, o mesmo ocorrendo com os herdeiros de qualquer deles. A legitimidade para registar não se confinava, porém, às partes a que respeita o facto a registar, antes se estendia também aos interessados, devendo entender-se como tal, não toda e qualquer pessoa – mas apenas aquela cuja posição jurídica pode ser afectada pela falta do registo. Estão nessas condições, por exemplo, os credores do adquirente, na medida em que o direito a que se reporta o facto registado integra o património afectado à satisfação do crédito ou qualquer pessoa que, para registar o facto que a ela diga respeito, tenha de fazer uma inscrição prévia de um facto de que depende o seu registo.

                Os únicos legitimados registralmente eram, portanto, apenas as partes no negócio jurídico – ou os seus herdeiros – ou a pessoa cuja situação jurídica pudesse ser afectada pela omissão do registo. Com a introdução do princípio da obrigatoriedade do registo, a legitimação registral estendeu-se às pessoas que estejam obrigadas à sua promoção (art.º 36.º do CR Predial).

Hoje são, portanto, dotados de legitimidade registral pessoas que não são partes no acto ou negócio jurídico nem interessados – no sentido juridicamente relevante apontado – na realização do registo, mas apenas sujeitos da obrigação de registar.

                O caso mais evidente é o das entidades que celebrem escrituras públicas, autentiquem documentos particulares ou reconheçam as assinaturas nele apostas: qualquer dessas entidades não é parte – nem sucessor da parte – do negócio ou acto jurídico nem terceiro interessado na realização do registo, mas simplesmente sujeito da obrigação de registar (art.º 8.º-B, n.º 1, do CR Predial). Coerentemente, é reconhecido a estes legitimados para pedir o registo também legitimidade para impugnar, tanto por recurso hierárquico como judicialmente, a decisão do conservador de recusa da prática do acto de registo nos termos requeridos (art.º 140.º, n.º 1, e 141.º, n.º 4, do CR Predial).

                O pedido de registo, que pode ser feito eletronicamente, deve conter, além da identidade do apresentante, a indicação dos factos e dos prédios a que respeita, bem como a relação dos documentos que o instruem (art.º 42.º do CR Predial). O pedido do registo deve, portanto, identificar, com precisão o facto jurídico que se pretende registar – e que constitui o objecto imediato do pedido – e individualizar, com rigor, o prédio a que refere o facto jurídico para o qual se pretende obter publicidade tabular e os respectivos sujeitos activos, i.e., as pessoas a favor das quais o registo deve ser lavrado.

                Como qualquer acto jurídico, o pedido de registo está sujeito a interpretação: o significado que pela interpretação e só pela interpretação se alcança, é mesmo um elemento essencial daquele pedido, enquanto acto performativo, i.e., com acto de linguagem, apto para produzir eventos ou efeitos extra-linguísticos, no caso, efeitos jurídicos, conformes ao seu significado.

                Na interpretação dos actos das partes do processo de registo são aplicáveis os critérios definidos para a declaração negocial (art.º 236.º do Código Civil, aplicável aos actos não negociais, ex-vi art.º 295.º do mesmo Código). Na interpretação dos pedidos de registo das partes, há, evidentemente, que considerar a respectiva fundamentação e, bem assim, os documentos que, necessariamente, lhe servem de suporte. Assim, lembrando que o acto da parte do processo do registo tem por destinatário o conservador do registo, aquele acto deve ser interpretado com sentido que um destinatário normal, colocado na posição do real declaratário – o conservador – possa deduzir do comportamento da parte; na interpretação do pedido desta, importa entrar em linha de conta com a respectiva fundamentação e com os documentos que titulam o facto, aquisitivo ou outro, que se quer inscrever no registo (art.º 236, n.º 1, do Código Civil). Subsistindo dúvida sobre o sentido do pedido do registo, considera-se – pelas razões que adiante melhor se detalharão - que o conservador tem o dever de convidar o requerente a fornecer os necessários esclarecimentos.

                Como se notou, o registo predial deve patentear a história da situação jurídica da coisa, desde a data da descrição até á actualidade, pelo que se exige, de harmonia com o princípio do trato sucessivo, um nexo ininterrupto entre os vários sujeitos que aparecem investidos de poderes sobre o prédio – embora no rigor das coisas, o princípio do trato sucessivo seja apenas uma concretização relevante do princípio – contestado – da legalidade, designadamente do segmento em que este princípio vincula o conservador a aferir a viabilidade do registo em face de registos anteriores (art.º 68.º do CR Predial).

                A publicidade dada pelo registo às situações jurídicas dos prédios é feita, em princípio, de um modo indirecto: publicita, através do mecanismo da inscrição, os actos que, tendo eficácia real, ditam a configuração daquelas situações. Não raro, os actos visados têm natureza contratual, i.e., implicam a manifestação de vontade de dois ou mais intervenientes. A necessidade de confirmação do panorama tabular com as vicissitudes jurídicas dos prédios dita a lógica do trato sucessivo: o registo só é possível quando o disponente surja, á face do registo, como titular da situação jurídica que publicita. Só assim, o registo representará uma sucessão de actos ligados pelos intervenientes. O registo lavrado em violação do trato sucessivo é nulo (art.º 16, e), in fine, do CR Predial).

                A publicidade assegurada pelo registo predial não visa escopos de mero conhecimento dentro do espaço jurídico: ela repercute-se no nível substantivo das situações jurídicas em jogo. Os reflexos materiais do registo implicam, pela sua própria existência, a definição prévia de quais as situações dotadas, efectivamente, de publicidade tabular. O problema põe-se quando situações jurídicas incompatíveis apresentem ou pretendam apresentar publicidades incompatíveis. A resposta é dada pelo princípio da prioridade (art.º 6.º n.º 1, do CR Predial).

                As realidades tabulares repercutem-se nas situações jurídicas privadas subjacentes, ou, dito de outro modo, o registo produz efeitos substantivos. O primeiro desses efeitos é presuntivo: o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos termos em que o registo o define (art.º 7.º do CR Predial). Quem tem a seu favor um registo determinado escusa de provar: que o direito existe; que é titular dele; que ele tem a configuração dada pelo registo. Quem assim não entenda terá que provar a inexactidão do registo: a presunção é simplesmente iuris tantum (art.º 350.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil)[10]. A prova em contrário, destruidora da presunção tabular, pode derivar de um deste dois factos: ou da demonstração de o registo ser inexistente ou nulo, por alguma das causas referidas no Código de Registo Predial (art.ºs 14.º e 16.º); ou da demonstração de o registo, válido em si, se reportar a factos substancialmente inválidos, o que implica o seu cancelamento (art.º 13.º do CR Predial). No primeiro caso há inexistência ou nulidade do registo ou invalidade extrínseca; no segundo invalidade substantiva ou extrínseca. Os vícios do registo não esgotam, pois, a delimitação negativa da eficácia tabular presuntiva: o registo perde os seus efeitos quando, se reportar a factos substancialmente inválidos, seja pedido o seu cancelamento. Mas não basta a mera existência do vício; exige-se, em qualquer caso, uma decisão judicial que o reconheça (art.º 17.º, n.º 1, do CR Predial).

                O registo e os seus efeitos podem, pois, ser destruídos por invalidade intrínseca ou extrínseca, como sucede nos casos de nulidade do registo. Pode, contudo, suceder que, antes da declaração de tal nulidade por sentença transitada em julgado, alguém, fiado no registo, adquira uma qualquer posição jurídica.       Se houver registo nulo, se alguém, com base nesse registo, adquirir uma posição substantiva, a título oneroso e de boa fé, e registar a aquisição antes de regista a acção de nulidade, gera-se uma situação, por força do registo, que não pode ser impugnada. A presunção derivada do registo torna-se inilidível ou volve-se em iuris et de iure (art.º 17.º, n.º 2, do CR Predial). Fala-se, a este propósito, em aquisição tabular, que traduz a projecção substantiva mais relevante do registo predial, derivada da fé pública de que é dotado. Abstraindo do caso em que ao registo se deve assinalar uma eficácia constitutiva, o instituto tem simplesmente por finalidade conspícua dar publicidade às situações jurídicas prediais, através da inscrição dos factos que lhes tenham dado origem. Face à fé pública de que é dotado, o registo permite presumir que o direito pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o define (art.º 7.º do CR Predial).

                Adquiridos os princípios do registo, importa considerar, em síntese apertada, a sua técnica.

                A técnica do registo pode ordenar-se segundo um de dois modelos: o de base real; o de base pessoal. A primeira técnica assenta ou parte do prédio: descreve-se o prédio e, de seguida, inscrevem-se factos a eles relativos, dos quais resultam direitos subjectivos sobre eles; o registo de harmonia com a técnica de base pessoal, assenta nas pessoas, físicas ou meramente jurídicas: na base do seu nome, anotam-se os factos relevantes. Comprovadamente, o sistema de registo predial português é de base real.

                O ponto de partida do registo é, sempre, a descrição de um prédio, descrição que visa a identificação física, económica e fiscal desse mesmo prédio (art.º 79.º, n.º 1, do CR Predial). De cada prédio é feita uma descrição distinta (art.º 79.º, n.º 2, do CR Predial). Embora esteja na base do registo, a descrição ocorre na dependência de uma inscrição ou averbamento (art.º 80.º, n.º 1, do CR Predial), dado que, por força do princípio da instância e das regras sobre a legitimidade, não é admissível a descrição de um prédio ad nutum, i.e., sem lhe associar a inscrição de um facto. As descrições podem ser principais ou subordinadas (art.º 81.º, n.º 1, do CR Predial).

                Como decorre destas considerações, e como bem se compreende, sob pena de desconformidade flagrante entre a descrição e a realidade material subjacente, a cada prédio correspondente uma só descrição; mas o inverso também é verdadeiro: cada descrição deve referir-se também a um só prédio. Vale, portanto, no tocante à descrição e relativamente à realidade predial subjacente que constitui o seu objecto, um princípio de correspondência unitária ou singular recíproca: um prédio, uma descrição; uma descrição um prédio.

                Uma subclassificação particularmente relevante das coisas imóveis é a que os separa em prédios rústicos e urbanos, entendendo-se por prédio rústico, segundo o Código Civil, uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenha autonomia económica e, por prédio urbano, qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro (art.º 204.º, n.º 2). Se um imóvel não tem qualquer construção, é indubitável a sua qualificação como rústico; inversamente se o solo se encontra totalmente ocupado por um edifício, seja qual for a sua destinação económica, o prédio tem-se por urbano, mesmo que tenha, como parte sobrante, terreno para um logradouro.

                A qualificação concreta de um prédio como rústico ou urbano reveste-se, em muitos casos, de particular dificuldade. Dificuldade que se agrava consideravelmente dado que o Código Civil não consagra o conceito de prédio misto, caracterização relevante sobretudo para fins ou efeitos fiscais: aquele Código assenta na dicotomia fechada alternativa prédio rústico/prédio urbano (art.ºs 5.º. n.º, 2, 7.º, n.º 3, e 84.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, na sua redacção actual). Dentro dos termos da classificação legal, um prédio ou é rústico ou é urbano; não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo.

                Vários são os critérios propostos para qualificar um prédio como rústico ou urbano – critério do valor, da afectação económica, do fraccionamento ou da consideração social[11].

                Para evitar o impasse a que a lei conduz fatalmente nos casos em que o prédio tem simultaneamente um edifício implantado e uma parte rústica – que não seja um mero logradouro – e cada uma das partes não apresenta um fim comum, alguma doutrina[12] sustenta que se alguém é titular de um terreno e de uma habitação, mas o terreno não serve de logradouro à habitação e esta não serve de apoio à agricultura, há uma pluralidade de prédios e não um prédio único, porque ambos têm autonomia económica. De acordo com este entendimento, um prédio com uma parte rústica e outra urbana, dividir-se-ia em dois prédios, cada um com a sua natureza específica. Este ponto de vista conflitua, desde logo, com a técnica do registo: um prédio, com aquela composição a que corresponda uma descrição predial, continua a ser apenas um prédio, não se desmembrando ou fragmentando em resultado da coexistência de duas partes com componentes que apontam para os termos opostos da classificação legal – desmembramento ou fragmentação que, aliás, em muitos casos é proibida e noutros carece de actos autorizativos da administração.

                Como quer que seja, é indubitável que Código Civil não dá uma resposta satisfatória para o caso de um prédio composto de um edifício e de uma parte rústica que não seja um logradouro. O exemplo clássico é o de uma herdade constituída por uma casa de habitação, eventualmente com outras estruturas de apoio à agricultura ou criação de gado, e por um terreno, mais ou menos extenso. Outro exemplo, é o do complexo hoteleiro com um campo de golfe e uma quinta para turismo de habitação, caso em que se verifica uma autonomia da parte edificada face ao solo remanescente. Nestes casos, a qualificação correcta seria a de prédio misto, dada a existência evidente de uma parte urbana e de uma parte rústica, que não constitui um logradouro de edifício construído. A verdade, porém, é que o Código Civil não admite um tertium genus, impondo injuntivamente uma qualificação ou opção entre dois termos. A solução, engenhosa, de considerar, no caso apontado, a existência de dois prédios, embora seja um modo hábil de contornar a dificuldade, não representa uma alternativa viável, na medida em que o prédio não se divide somente porque há uma parte urbana e uma parte rústica, continuando a ser uma única coisa. Isto é irrecusavelmente assim, face ao registo predial e à sua técnica, de harmonia com a qual, a cada prédio corresponde uma só descrição e a cada descrição corresponde um só prédio.

                Simplesmente, a tessitura, cada vez mais complexa e intrincada, do ordenamento jurídico não se resume à que tem por fonte o Código Civil e, consequentemente, há que considerar outros enunciados normativos que rompem com a dicotomia prédio rústico/prédio urbano, e tornam admissível a categoria jurídica do prédio misto. Está nessas condições, para além da lei fiscal, o Código do Registo Predial, que é terminante, ao regular as menções gerais das descrições, em determinar que o extracto da descrição deve conter, a natureza rústica, urbana ou mista do prédio (art.º 82.º, n.º 1 b)). Prédio misto que, como resulta da enumeração das diversas naturezas juridicamente possíveis do prédio – rústica, urbana ou mista – é encarado, quer com alteralidade relativamente às duas outras categorias possíveis, quer como uma unidade, e não como como soma ou justaposição de dois prédios – um urbano e outro rústico – resultantes da fraccionamento ou fragmentação de um outro. O prédio misto é, assim, uma categoria de prédios a se, incontornável ao menos tocante aos factos sujeitos a registo e a todos os relevantíssimos efeitos jurídicos que derivam da publicidade tabular.

                 Descrito o prédio, seguem-se as inscrições, que visam definir a sua situação jurídica, por extracto dos factos a ele referidos (art.º 91.º, n.º 1, do CR Predial). As inscrições podem ser provisórias ou definitivas; as provisórias são-no por natureza quando respeitam a factos transitórios, v.g., acções; as inscrições são provisórias por dúvidas quando haja uma qualquer deficiência no processo de registo e as dúvidas não sejam fundamento de recusa (art.ºs 69.º e 70.º do CR Predial).

                O âmbito do registo é dado pelo universo dos factos e ele sujeitos, o que, de harmonia com a técnica tabular, determina a inscrição de factos e não de direitos: estes deduzem-se dos factos que os constituam, modiquem ou extingam (art.º 2.º do CR Predial).

                3.3. Vinculação do conservador do registo ao dever de fundamentação.

                Os requerentes do registo e o conservador estão reciprocamente vinculados ao um dever de cooperação intersubjectiva, ordenado para transformar o processo de registo numa comunidade de trabalho, dever que, no tocante ao conservador, se desdobra num dever de auxílio e num dever de prevenção. Efectivamente, o conservador deve auxiliar o requerente do registo no suprimento das deficiências do processo de registo, procedendo, mesmo oficiosamente a esse suprimento, ou se não lhe possível suprir, ex-offício, essas deficiências, deve, se a deficiência não envolver novo pedido de registo, prevenir o interessado da sua existência e notificá-lo para proceder ao seu suprimento (art.º 73.º n.ºs 1 e 2, do CR Predial).

                Assim, o conservador, de harmonia com o princípio da legalidade, deve, no caso de deficiência do processo de registo, fazer o registo provisoriamente por dúvidas, se depois de actuado o seu dever de auxílio do requerente no suprimento das deficiências ou o seu dever de prevenção do interessado dessas mesmas deficiências e da notificação deste para as suprir, desde que as dúvidas não sejam motivo de recusa (art.ºs 68.º, 70.º e 73.º, nºs 1 e 2, do CR Predial). O registo deve ser recusado quando for manifesto que o facto não está titulado nos documentos apresentados; quando o facto constante do documento já se mostrar registado ou não está sujeito a registo; quando for manifesta a nulidade do acto; quando o registo for lavrado provisoriamente por dúvidas e estas não forem removidas; quando o preparo não tiver sido completado (art.º 69.º, n.º 1, b), c), e) e g), do CR Predial). Porém, o registo só pode ser recusado se, por falta de elementos ou pela natureza do acto, não puder ser feito como provisório por dúvidas (art.º 69.º, n.º 2, do CR Predial).

                Tem-se por axiomático que o despacho de recusa do registo deve ser fundamentado.

                Dos princípios constitucionais da fundamentação das decisões dos tribunais e dos actos da administração, extrai-se, sem dificuldade, como principio fundamental do Estado de Direito um dever de fundamentação de toda e qualquer decisão heterónoma tomada por entidade que exerce poderes e competências públicas (art. 205.º, n.º 1, e 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa)

                Ainda que os actos do conservador não sejam assimiláveis a actos jurisdicionais nem a actos da administração, seria realmente singular concluir pela desvinculação das suas decisões, maxime no tocante à decisão grave de recusa do registo, a um dever de fundamentação expressa e acessível.

                Uma das funções essenciais de toda e qualquer acto decisório é convencer os interessados do seu bom fundamento. A exigência de motivação da decisão destina-se a permitir que o decisor convença os destinatários da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o decisor deve passar de convencido a convincente. A fundamentação da decisão é, pois, essencial para o controlo da sua racionalidade, sendo exigida para controlar a coerência interna e a correção externa dessa mesma decisão. Pode mesmo dizer-se que esta racionalidade é uma função daquela fundamentação. E como a racionalidade da decisão só pode ser aferida pela sua fundamentação, esta fundamentação é constitutiva dessa mesma racionalidade. Além disso, um despacho de recusa do registo – como qualquer acto decisório – escreve-se para ser lido. Em primeiro lugar, lido pelas requerentes do pedido do registo

Exige-se, pois, que seja compreensível pelos destinatários, tanto no que respeita às decisões como em relação aos argumentos em que as decisões se baseiam. Para alcançar tal objectivo, a decisão deve ser clara e adaptada aos presumíveis conhecimentos dos destinatários. A clareza e o rigor são também os ingredientes essenciais para que o despacho cumpra a sua função retórica de persuasão. Ainda que não obedeça a uma forma rígida, deve obedecer ás regras próprias do discurso persuasivo, pelo que deve respeitar três princípios essenciais: o princípio da suficiência, devendo estender-se a todos os elementos de modo a poder reconstituir-se iter lógico do procedimento que terminou com a decisão; princípio da clareza, de modo a que a fundamentação seja inteligível, sem ambiguidades nem obscuridades, tendo em conta a figura do destinatário normal ou razoável que, na situação concreta, tenha de compreender as razões decisivas e justificativas da decisão; princípio da congruência, de modo a que exista uma relação de adequação e consonância entre os pressupostos normativos da decisão – de facto e de direito – e os seus motivos devendo, por isso, considerar-se equivalente à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por contradição, não esclareçam concretamente a motivação do acto. A finalidade do dever de fundamentação aponta inequivocamente para a contextualização da fundamentação: ela deve ser parte do despacho do conservador – e não elaborada a posteriori – e deve ser notificada juntamente com ele, independentemente de pedido do interessado.

                O despacho do conservador de recusa do registo deve, pois, ser fundamentado, fundamentação que aqui deve ser entendida não só como motivação, traduzida na indicação, ainda que sucinta, das razões pelas quais o registo é recusado, mas também como justificação, traduzida na exposição, mesmo que breve, dos pressupostos de facto e de direito que conduziram à decisão de recusar a realização do registo. Dever de fundamentação que é ainda mais instante ou exigível no tocante ao despacho de recusa relativamente a qual a decisão do conservador se mova num espaço de discricionariedade, ainda que relativa – como sucede no caso de recusa do registo por não remoção das dúvidas que determinaram que o registo fosse lavrado provisoriamente – visto que sem a fundamentação ficaria substancialmente frustrada a possibilidade de impugnar, hierarquicamente ou judicialmente, os seus vícios mais típicos. Neste sentido, a fundamentação é uma garantia do próprio direito à impugnação.

 Note-se que além de protecção subjectiva dos interessados no registo, o dever de fundamentação é também norma de acção registral, que visa assegurar uma correcta e ponderada realização dos interesses públicos que o registo predial também prossegue – legalidade, justiça, eficiência, certeza jurídica e segurança do comércio jurídico imobiliário. Nesta perspectiva, a fundamentação contribui para a legitimação da decisão do conservador através da informação.

                A violação, pelo conservador, do dever de fundamentação, considerados, além do mais, os interesses públicos que também a justificam, importa a nulidade da respectiva decisão (art.º 220.º do Código Civil).

                Este viaticum habilita, com suficiência, a resolução da questão concreta controversa objecto do recurso.

                3.3 Concretização.

                O primeiro aspecto que fere a atenção é manifesta deficiência, senão mesmo ineptidão, do pedido registo formulado pelo Sr. Notário, dado que não continha a indicação, deveras significante, nem dos sujeitos activos, nem do direito ou da quota ou proporção do direito a que refere o facto aquisitivo para o qual se pretendia obter a publicidade tabular. De harmonia com o princípio da instância, não é, de todo, suficiente para que o registo seja lavrado a dedução do pedido correspondente: este pedido deve identificar, com precisão, o facto jurídico que se pretende registar – e que constitui o objecto imediato do pedido – e individualizar, com rigor, o prédio a que refere o facto jurídico para o qual se pretende obter publicidade tabular e os respectivos sujeitos activos, i.e., as pessoas a favor das quais o registo deve ser lavrado. A este propósito, convém notar que o Sr. Notário apenas é dotado de legitimidade registral – não sendo, patentemente, sujeito activo ou passivo da relação jurídica que compreende os factos relativamente aos quais se pretende obter a publicidade tabular, mas apenas sujeito da obrigação de promover o registo.

                A correcção da decisão do Sr. Conservador de, na actuação do dever de cooperação intersubjectiva que o vincula, na vertente do dever de prevenção, de alertar o Sr. Notário para aquelas deficiências do processo de registo e de o instar a supri-las, é, pois, indiscutível.

                No contexto desse suprimento, foram juntos os documentos que permitem suprir as deficiências congénitas ou constitucionais do pedido de registo: os sujeitos activos; a quota do direito real a que se refere o facto aquisitivo, aqui representado pela sucessão mortis causa. Mas para isso é necessário proceder à interpretação – de harmonia com o critério e com base nos elementos apontados – do pedido do registo.

                E, se bem se vê, é na falta de especificação suficiente ou adequada do pedido de registo, tanto no tocante aos sujeitos activos desse registo, como sobretudo relativamente ao facto jurídico para o qual foi solicitado o pedido de registo e na necessidade de proceder à sua concretização, por via de interpretação, que radica, na sua essência, a controvérsia objecto da causa. Face à falta de concretização desses elementos, o Sr. Juiz de Direito concluiu que o facto que se pretende registar é a aquisição de 4/657 do prédio rústico – e só deste - objecto da descrição n.º ...36 da Freguesia ..., do Município ...; diversamente a Recorrente entende que o pedido de registo deve ser interpretado como pedido de registo de aquisição (em comum e sem determinação de parte ou direito) do prédio descrito na ficha ...36 da Freguesia ... (...) a favor dos herdeiros da BB, ou na hipótese mais benigna, como pedido de registo da quota de 4/657, a favor dos mesmos sujeitos, sendo que, em qualquer dos casos, por exceder a quota que se encontra inscrita a favor do sujeito passivo o registo, sob pena de violação da regra do trato sucessivo, apenas pode ser lavrado como provisório por dúvidas.

                A sucessão por morte pode operar a título universal, ou a título singular ou particular. Na terminologia legal e doutrinal, no primeiro caso fala-se de herança e, no segundo, de legado (art.º 2030.º. n.º 2, do Código Civil). O critério legal pode enunciar-se deste modo: legatário é quem sucede em bens determinados – especificados ou não -, i.e., quem sucede apenas em certos bens, com exclusão dos restantes do autor da herança; herdeiro é quem não é chamado a suceder em bens determinados, i.e., somente em certos bens e não noutros, mas cujo direito se estende, real ou ao menos virtualmente, à totalidade da herança ou duma quota-parte dela. Assim, é herdeiro o beneficiário de uma deixa testamentária da totalidade ou de uma quota – alíquota ou não alíquota – da herança ou o remanescente da herança ou de quota desta, não havendo especificação de bens (art.º 2030, n.ºs 2 e 3, do Código Civil). Em qualquer destes casos, a deixa testamentária é feita a título de herança.

Maneira que, no caso do recurso, os sujeitos activos do facto aquisitivo para o qual o registo foi pedido são, indubitavelmente, os interessados NN e OO, beneficiários de deixa testamentária, a título de herança, de um dos co-titulares da quota de 1/657 do direito real de propriedade sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial, Comercial e Automóveis ... sob o n.º ...36: BB, autora da herança. Pela mesma razão, i.e., em face dos documentos com o pedido de registo terminou por ser instruído, deve entender-se – como entendeu o Sr. Conservador e a decisão impugnada no recurso – que o objecto mediato do pedido de registo não é o direito real de propriedade sobre aquele prédio – mas apenas uma quota ideal desse mesmo direito. Realmente, em face daqueles documentos – maxime em face da multiplicidade de factos aquisitivos e de sujeitos activos que o registo patenteia -  não se julga razoável imprimir ao pedido de registo o sentido de pretender o registo da aquisição direito real de propriedade, da totalidade deste real de gozo, mas apenas uma quota desse mesmo direito (art.º 236.º do Código Civil, aplicável aos actos não negociais, ex-vi art.º 295.º do mesmo Código).

Assente que o pedido do registo deve ser interpretado, no tocante ao seu objecto, como referido a apenas uma quota do direito real de propriedade sobre o prédio – sobre a totalidade do prédio - descrito sob art.º ...36 da Freguesia ... (...), logo que se coloca o problema de saber qual é, em concreto, no caso, a fracção ou quota desse mesmo direito real de gozo que constitui o objecto daquele mesmo pedido.

Por morte de BB foi declarado, à administração fiscal, para efeitos de imposto de selo, comprovativo de transmissões gratuitas, sob as verbas n.ºs 12, 13, 14 e 15, 1/657, respectivamente, do prédio matricialmente inscrito sob o art.º ...95, rústico, Secção L, da Freguesia ... (...), o que perfaz 4/657 do todo. E foi, patentemente, com base na declaração da transmissão feita à administração fiscal para efeitos do imposto de selo, comprovativo das transmissões gratuitas que a sentença impugnada concluiu que o objecto do registo é a aquisição, mortis causa, da quota de 4/657 sobre o prédio rústico, Secção L, da Freguesia ... (...), descrito sob o n.º ...36 da Freguesia ... (...).

                Porém, considerando, de um aspecto, a circunstância de o registo patentear, relativamente ao prédio descrito sob o n.º ...36 da Freguesia ... (...) a titularidade pelo sujeito passivo – a autora da herança, BB – de apenas 1/657 e, de outro, o facto transmissivo – sucessão hereditária – julga-se que a quota adquirida pelos sujeitos passivos, herdeiros, a título de herança, daquela, é apenas, por aplicação do princípio do que sucessor não pode adquirir mais do aquilo que se inscrevia na esfera jurídica do autor da herança no momento da abertura da sucessão – nemo plus iuris in alium transfer quam ipse habet -  é a de 1/657 e não a de 4/657, pelo que a declaração feita pelos interessados à administração fiscal não é correcta.  Dito doutro modo: face à descrição do prédio e ao facto aquisitivo nele inscrito a favor da autora da herança e aos documentos que titulam a transmissão a favor dos sujeitos activos do registo, deve entender-se que o pedido de registo tem por objecto a aquisição por aqueles, pese embora a declaração diversa que fizeram à administração fiscal, apenas a quota do direito real de propriedade sobre o prédio inscrita a favor da sua antecessora no direito e no registo - ...57.

Se o despacho do Sr. Conservador ordenado para suprir as evidentes deficiências do registo se tem por exacto, em contrapartida, o despacho de recusa desse mesmo registo, esse, tem-se inteiramente por incorrecto, quando considerado no plano da fundamentação ou da motivação. Realmente, naquele despacho o Sr. Conservador violou, irrecusavelmente, o dever de fundamentação que o vincula, dado que aquele despacho não contém um elemento essencial: a fundamentação. Patentemente, o despacho não elucida, desde logo o apresentante, dos motivos da decisão de recusa, não produziu as razões em que o Sr. Conservador se apoiou para recusar a lavrar o registo. Omissão de fundamentação que não pode, evidentemente, considerar-se suprida com o despacho de sustentação da recusa do registo por força da apontada contextualização da fundamentação, de harmonia com a qual ela deve ser parte integrante do despacho do conservador e não produzida em momento posterior, devendo ser notificada conjuntamente com aquele despacho.

 E a falta de fundamentação constituía, precisamente, o fundamento conspícuo ou mesmo único da impugnação deduzida pelo Sr. Notário contra o despacho de recusa do registo. Estranha e surpreendentemente a sentença impugnada guardou relativamente aquele fundamento da impugnação um silêncio absoluto, não tendo gasto a seu propósito uma só palavra, tendo-se limitado a observar que, em face dos documentos adquiridos para o processo, as respectivas deficiências deveriam considerar-se supridas, terminando por ordenar o registo definitivo, favor dos herdeiros NN e OO, da aquisição de uma quota 4/657 avos do prédio inscrito na matriz rústica da freguesia ... sob o artigo ...95 (secção L), do Concelho ..., prédio esse que surge como parte do descrito na CRP daquela freguesia sob a ficha ...36, decisão que tem implícita a qualificação do prédio exclusivamente como rústico – ainda que não especifique o critério utilizado em concreto para essa qualificação - obliterando a realidade material subjacente relativa à existência, naquele prédio, de uma outra realidade predial que, comprovadamente, tem natureza urbana.

Seja como for, o Sr. Notário, a sentença impugnada e a Recorrente são acordes num ponto: que o despacho de recusa é incorrecto e que o registo deve ser lavrado, pelo que o separa o impugnante e a sentença recorrida, por um lado, e a recorrente, por outro, é a questão de saber se o registo do referido facto aquisitivo, a favor dos apontados sujeitos activos deve ser lavrado definitivamente ou antes, provisoriamente por dúvidas do conservador.

Cremos que a razão estaria, por inteiro, do lado da Sra. Presidente do Conselho Directivo do IRN, IP se se devesse entender que o pedido do registo tem por objecto a aquisição do direito real de propriedade sobre o prédio ou, mais limitadamente, da quota de 4/657 sobre esse mesmo prédio. Nesta hipótese, o registo da aquisição, por sucessão hereditária, a favor dos apontados herdeiros, da quota do direito real de propriedade deveria ser lavrado provisoriamente no tocante à parte que excede aquela que se encontra inscrita a favor do respectivo sujeito passivo – a autora da herança, BB, que se resume à quota de 1/657. É o que, decisivamente, imporia o princípio do trato sucessivo. Na verdade, de harmonia com o facto aquisitivo que se encontra inscrito no registo a favor da autora da herança – compra e venda - esta era apenas titular da quota de 1/657 do prédio descrito, scilicet, do direito real de propriedade sobre esse bem imóvel, o que resulta da circunstância de a aquisição, da quota de 1/219 se mostrar inscrita a favor de dois outros interessados. Ergo, o registo, a favor dos sujeitos activos, de uma quota superior àquela de era titular o sujeito passivo – 4/657 - violaria, patentemente, o trato sucessivo, violação que é sancionada com o vício grave da nulidade do registo. Note-se que mesmo neste caso, sempre se imporia – como, aliás, a impugnante faz notar nas conclusões com que condensou a sua alegação - que o registo fosse lavrado definitivamente quanto à quota de 1/657, sendo lavrado como provisório, por dúvidas, apenas quanto avos excedentes dessa quota.

Simplesmente, como se observou, por aplicação das regras apontadas de interpretação dos actos da parte do processo de registo e do respectivo pedido, deve entender-se – de harmonia com a descrição do prédio, da quota dele – 1/657 - que nela mostra inscrita a favor do sujeito passivo da transmissão -  BB – do título aquisitivo – a sucessão mortis causa – e dos documentos adquiridos para o processo do registo, que o pedido deste registo tem apenas por objecto aquela quota e não as quotas, ou a totalidade da quota, cuja transmissão foi declarada, para efeitos tributários, à administração fiscal. Realmente, na divergência entre os documentos que titulam a transmissão, por morte, do direito do sujeito passivo para o sujeito activo e os produzidos para efeitos estritamente fiscais, deve, evidentemente, dar-se prevalência aos primeiros, dado que só estes, e não também a declaração fiscal, produzem efeitos substantivos reais: a transmissão ou translação do direito real – ou de quota dele - da esfera jurídica do de cujus para a os seus herdeiros.

                A decisão impugnada no recurso é, pois, incorrecta quando determina que seja lavrado registo definitivo, da aquisição da quota de 4/657; e é-o também, como salienta a recorrente, no segmento em que determina que seja lavrado registo da aquisição daquela quota do prédio inscrito na matriz rústica da freguesia ... sob o artigo ...95 (secção L), do Concelho ..., prédio esse como parte do descrito na CRP daquela freguesia sob a ficha ...36: a quota transmitida – porque era também a quota que se mostrava inscrita a favor do sujeito passivo - refere-se à totalidade do prédio objecto da descrição n.º ...36 e não apenas à parte do imóvel que se mostra inscrita na matriz predial rústica.

                Nestas condições, importa revogar, em parte, a decisão impugnada e logo a substituir por outra que determine que seja lavrado o registo e o registo definitivo da aquisição a favor dos sujeitos activos de 1/657 do prédio descrito na Conservatório do Registo Predial, Comercial e Automóveis ... sob o nº ...36, registo que, por um lado, respeita, por inteiro, o princípio do trato sucessivo e, por, outro assegura a conformidade do registo com a realidade material e jurídica subjacente, constituída por um prédio a que o registo assinala e publicita uma natureza mista e não, exclusivamente, rústica.

                Para terminar importa deixar uma última observação: a Impugnante pedia, no recurso, tanto principal como subsidiariamente, que o registo fosse lavrado provisoriamente, por dúvidas, no tocante à quota que excede aquela cuja aquisição se mostra inscrita no registo a favor do sujeito passivo. Mas um tal pedido não impede que esta Relação conclua que o registo deve ser lavrado definitivamente no tocante à quota do prédio cuja aquisição de mostra inscrita a favor do sujeito passivo da transmissão. Desde logo, como, aliás, a Recorrente reconhece, mesmo que o registo, sob pena de violação da regra do trato sucessivo, devesse ser lavrado quanto a quota que excede a que se mostra inscrita a favor do sujeito passivo provisoriamente por dúvidas, isso não obstava – parece -  a que o registo fosse lavrado de modo definitivo relativamente à quota cuja aquisição se encontra inscrita a favor do sujeito, passivo, autor da herança; depois, porque ao determinar a realização do registo de modo definitivo no tocante àquela quota, esta Relação não condena, nem num aliud – i.e., em objecto diverso do pedido – nem num plus – em quantidade superior ao pedido – mas antes num minus, quer dizer: em menos do que a recorrente pedia no recurso.

                De todos os argumentos expostos extraem-se, como proposições conclusivas mais salientes, as seguintes:

                (…).

A Apelante e o Apelado sucumbem, recíproca e qualitativamente, no recurso. Essa sucumbência torna os sujeitos do recurso objectivamente responsáveis pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Julga-se adequada fixar essa sucumbência qualitativa em 60% para o Apelado e 40% para a Recorrente.

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, julga-se o recurso parcialmente procedente e, consequentemente, revoga-se, em parte, a decisão nele impugnada, e determina-se a inscrição definitiva a favor de NN e OO da aquisição, em partes iguais, por sucessão mortis causa, da quota de 1/657 do prédio misto, situado em ..., descrito na Conservatório do Registo Predial, Comercial e Automóveis ... sob o n.º ...36, matricialmente inscrito sob o art.º ...95, Secção L, rústica, e sob o art.º n.º ...45, urbano.

Custas pela Apelante e pelo Apelado na proporção de 40% e 60%, respectivamente.

                                                                                                                              2024.03.19

               


[1] Carlos Ferreira de Almeida, Publicidade e Teoria dos Registos, Coimbra, 1966, pág. 97.
[2] José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, 5ª edição, 1993, pág. 335, e Isabel Pereira Mendes, Enunciação Esquemática dos Fins e Princípios Registais, in, Regesta, Revista de Direito Registral, Ano XII, nº 4, Outubro-Dezembro de 1991, pág. 19 e ss.
[3] J. A. Mouteira Guerreiro, Noções de Direito Registral (Predial e Comercial), 2ª edição, 1994, pág. 73.
[4] Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 4º ed. refundida, Coimbra Editora, 1983, pág. 337.
[5] Cfr., sobre os princípios do registo predial e os seus efeitos substantivos, Parecer do Conselho Consultivo da PGR de 19.05.00, www.dgsi.pt. Adicionando aos princípios enunciados, também os da especialidade e da legitimação, cfr., Isabel Pereira Mendes, locs. cit.
[6] António Menezes Cordeiro, “Evolução juscientífica e direitos reais”, in Estudos de Direito Civil, volume I, Almedina, Coimbra, 1987, pág. 233 e nota 84. O autor, porém, reponderou, ulteriormente o seu pensamento: cfr. Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, Introdução. Doutrina Geral. Negócio Jurídico, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 871. A nulidade do negócio concluído nas condições apontadas é, porém, sustentada por Gabriel Órfão Gonçalves, Aquisição Tabular, AAFDL, Lisboa, 2004, pág. 40.
[7] Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, cit. pág. 349, Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2ª edição, Quid Iuris, Lisboa, 1997, pág. 116, José Alberto Vieira e Cunha, Direitos Reais, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 272, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direitos Reais, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 276.
[8] Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, Principia, Cascais, 2002, pág. 123, José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, cit., pág. 274 e Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, cit. pág. 337.
[9] António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Sumários, Lisboa, 2000, pág. 84.
[10] Convém, contudo, precisar o âmbito da presunção: esta não abrange os factores descritivos, com as confrontações ou áreas, dada a impossibilidade de assegurar a fidedignidade das declarações dos interessados. Trata-se de jurisprudência firme. Cfr., v.g., Acs. do STJ de 17.06.1997, 29.10.1992, 27.01.1993, 11.05.1993, 11.05.1995, da RC 02.022.1993 e da RP 16.01.1995, CJ, 97, II, 126, BMJ n.º 420, pág. 590, CJ 93, I, págs 100 e 137, CJ 93, II, pág. 95, CJ 93, I, pág. 28, e BMJ n.º 431, pág. 582, respectivamente.
[11] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, XIII, Direitos Reais (1.ª Parte), Almedina, 2022, págs. 459 e ss.; segundo a orientação consolidada do Supremo, a distinção deve assentar numa avaliação casuística, tendo subjacente o critério base da destinação ou afectação económica: Ac. 14.01.2021 (892/18).
[12] Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, volume I, pág. 361.