INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
NÃO DEDUÇÃO DE PEDIDO CONTRA O CHAMADO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
OBRIGAÇÃO DO LOCADOR DE FAZER COISAS
RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CONVOLAÇÃO DA RESOLUÇÃO EM DENÚNCIA
Sumário

I – A intervenção principal provocada integra uma forma de litisconsórcio sucessivo, permitindo ao chamado valer um direito próprio, paralelo à parte a que está associado, e, como se preceitua no art. 320º do CPC, a sentença que vier a ser proferida sobre o mérito da causa aprecia sempre a relação jurídica de que o mesmo seja titular, quer este intervenha na ação quer não.
II – O facto de não ter sido deduzido expressa e diretamente contra o chamado qualquer pedido não obsta a que tenha lugar aquela apreciação na sentença.
III – A obrigação de o locador assegurar o gozo da coisa para o fim a que esta se destina (art. 1031º, b) do C, Civil), além de uma sua vertente integrada pela obrigação de o locador se abster de atos que impeçam ou diminuam esse gozo (art. 1037º nº1 do C. Civil), tem uma sua outra vertente integrada pela obrigação de o mesmo fazer as reparações que sejam necessárias e pagar as despesas imprescindíveis à sua boa conservação (art. 1036º do C. Civil).
IV – A violação desta última obrigação em termos subsumíveis à previsão do nº5 do art. 1083º do C. Civil é suscetível de fundamentar a resolução do contrato pelo arrendatário.
V – Concluindo-se pela ilicitude da resolução do contrato, a declaração de cessação dos respetivos efeitos que através dela a autora visou e que corresponde à sua vontade é de convolar em denúncia do contrato, pois esta, sendo própria dos contratos de celebrados por tempo indeterminado e dos contratos com prestações duradouras renováveis, integra uma declaração de cessação do vínculo contratual que não precisa de ter como fundamento qualquer incumprimento contratual da contraparte.
VI – Ocorrendo a denúncia do contrato pela arrendatária antes de ter decorrido um terço do prazo de duração do mesmo e prevendo o próprio contrato que, nesse caso, a arrendatária fica obrigada a pagar à senhoria o valor das rendas vincendas até completar aquele prazo, não ocorre abuso de direito na dedução de tal pedido pela senhoria.

Texto Integral

Processo nº3876/20.1T8PRT.P1

(Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – Juiz 1)

Relator: António Mendes Coelho

1º Adjunto: Jorge Martins Ribeiro

2º Adjunto: Anabela Maria Mendes Morais

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

A..., Lda.” instaurou ação declarativa comum contra “B..., S.A” pedindo a condenação da ré a restituir-lhe as quantias de:

a. 4.500,00€ (quatro mil e quinhentos euros), respeitante ao pagamento do valor mensal da renda relativa ao mês de janeiro de 2020;

b. 4.500,00€ (quatro mil e quinhentos euros), respeitante à caução entregue aquando da celebração do contrato de arrendamento;

c. 6.424,33€ (seis mil quatrocentos e vinte e quatro euros e trinta e três cêntimos), respeitante ao valor gasto com as obras de adaptação realizadas na divisão do R/C;

num total de 15.624,33€ (quinze mil seiscentos e vinte e quatro euros e trinta e três cêntimos), acrescido de juros desde a citação até integral pagamento.

Alegou para tal, em síntese, o seguinte:

- em 25.7.2019, celebrou com a ré um contrato de arrendamento para fim não habitacional com prazo certo de dez anos, com início em 1.11.2019, relativo a prédio urbano em propriedade total com três andares suscetíveis de utilização independente, que identifica;

- era sua intenção explorar atividades comerciais nos diversos pisos do prédio, sendo que na loja existente no rés-do-chão iria ser explorado um bar, em nome próprio, ao passo que o primeiro e segundo andar seria destinado a alojamento local, intenção concretizada com a celebração em 21.11.2019 de um Contrato de Cedência de Espaço para Exploração de Alojamento Local com a C..., Lda, válido por um ano e renovável;

- para adequar os diversos pisos aos fins a que se destinavam, procedeu à realização de obras de adaptação no locado, com vista a afetá-lo aos usos pretendidos (bar no r/c e alojamento local nos demais pisos), tendo para o efeito suportado custos com a elaboração de projeto de arquitetura das obras em causa, no valor de 2.424,33 €, bem como com a realização de obras, no valor de 4.200,00 €;

- na sequência de chuvas intensas ocorridas na semana entre o Natal e a passagem de Ano, em dezembro de 2019, ocorreram infiltrações no locado que tiveram graves consequências para a normal utilização do mesmo, facto que comunicou à ré por mensagens de correio eletrónico enviadas em 30.12.2019 e 3.1.2020;

- as referidas infiltrações resultaram em inundações no locado que danificaram os espaços destinados a alojamento, fazendo com que os tetos falsos ficassem ensopados, o que originou um intenso cheiro a mofo nas unidades de alojamento local e uma sensação geral de humidade extrema que, na época de inverno, aliada ao frio, transformou o locado num espaço insalubre e desconfortável, totalmente inapto para os fins a que se destinava;

- em virtude desses problemas ocorridos no locado, e perante a manifesta ineptidão do locado para funcionar como alojamento local, o cessionário, em 8.1.2020, comunicou-lhe a cessação de efeitos do contrato de cedência de espaço, ficando assim impossibilitada de executar o contrato de cedência que havia celebrado e que lhe permitiria amortizar o investimento feito nas obras;

- as infiltrações que motivaram as inundações e subsequentes prejuízos configuram vícios estruturais do edifício, dado terem ocorridos em paredes exteriores e telhado do mesmo;

- à data da celebração do contrato de arrendamento, em 25.07.2019, não eram minimamente visíveis os referidos defeitos estruturais que originaram a inundação e as infiltrações na divisão do R/C e do segundo andar;

- não foi alertada pela ré para a existência desses defeitos, nem antes da celebração do contrato de arrendamento nem durante a sua execução, apenas tendo tomado conhecimento da mesma após as chuvas ocorridas no final de dezembro;

- como consequência direta das infiltrações ocorridas e das inundações daí resultantes, sofreu os prejuízos diretos supra descritos, que totalizam 6.624,33 € (seis mil seiscentos e vinte e quatro euros e trinta e três cêntimos), valor que se viu impossibilitada de amortizar através do normal exercício das atividades comerciais a desenvolver no locado;

- em virtude dos factos descritos tornou-se a si inexigível dar continuidade à execução do contrato de arrendamento, tendo procedido à resolução do mesmo por carta enviada à ré em 13.01.2020;

- pela impossibilidade de utilização do locado para o fim a que se destinava, deve ser reembolsada da renda do mês de janeiro de 2020, no valor de 4.500,00 €, paga antecipadamente no início do mês de dezembro de 2019, bem como da caução paga com a celebração do contrato de arrendamento, no valor equivalente a uma renda mensal (4.500,00€), já que não deu causa à resolução.

A ré deduziu contestação, impugnando parcialmente os factos alegados pela autora e defendendo a falta de fundamento para a resolução do contrato, alegando quanto a esta, em síntese, o seguinte:

- na semana que ocorreram as infiltrações, entre o Natal e passagem de ano de 2019, Portugal foi assolado por chuvas intensas e ventos fortes, que resultaram na subida do leito dos rios, provocando diversas inundações nos mais variados pontos do país, bem como desalojamentos de habitações e quedas de árvores, tendo sido inclusivamente a este fenómeno dado o nome de depressão Elsa, conforme foi amplamente noticiado pelos jornais e canais nacionais;

- foi face à tempestade que o locado sofreu infiltrações, o que lhe foi comunicado no dia 30 de dezembro de 2019, a par com comunicação de problemas no quadro elétrico e propondo uma redução de renda de € 2000,00 até resolução dos problemas;

- que no dia 3 de janeiro de 2020 confirmou a sua disponibilidade para visitar o imóvel no dia 8 de janeiro e o realojamento dos hóspedes nas unidades de que dispõe, de forma a minorar os prejuízos;

- após a visita a 8 de janeiro, comprometeu-se a fazer as obras necessárias no locado, de forma a eliminar os seus defeitos, o que veio a acontecer na segunda quinzena do mês de janeiro por falta de condições meteorológicas que permitissem que tais obras se realizassem de imediato;

- que até à data do evento que ocasionou as infiltrações que motivaram a resolução do contrato, nunca o imóvel tinha sofrido inundações anteriores, atendendo a que o mesmo se encontrava em bom estado de conservação;

- que a partir do momento em que tomou conhecimento da situação comunicada pela autora nunca tomou uma posição que visasse a não reparação dos danos sofridos no imóvel, sendo que as reparações ocorreram ainda durante o mês de janeiro, logo que as condições meteorológicas permitiram, e além disso disponibilizou-se a realojar os hóspedes que a autora pudesse ter, de forma a minorar os prejuízos;

- que, após a comunicação a denunciar os vícios que o locado tinha e que impediam o gozo do mesmo, a autora só poderia proceder à resolução do contrato nos termos do art.º 1083.º, do Código Civil, se a tivesse interpelado para a realização de obras, concedendo para o efeito um prazo razoável, e as não fizesse;

- todavia, a autora no dia 13 de janeiro comunicou por carta a resolução do contrato por inaptidão do locado, sem conferir prazo razoável ao locador para a eliminação dos defeitos.

Defendeu ainda que deve ser absolvida do pedido de pagamento da quantia de € 6.424,33 referente a obras realizadas pela autora, porque ilegais, e que não deve ser obrigada à restituição do valor da caução de € 4.500,00, porque aquelas obras deixaram a loja do rés do chão destruído, causando danos de montante superior.

Depois deduziu reconvenção, pedindo a condenação da autora, com fundamento em denúncia do contrato sem pré-aviso e ao abrigo do disposto no art. 1098º nº3 do C. Civil, a pagar-lhe a quantia de €166.500,00, e ainda a quantia de € 15.410,00, para recolocação do locado no estado em que se encontrava, ambas acrescidas de juros desde a sua notificação até integral pagamento.

No final do articulado, deduziu a intervenção principal provocada de AA, que figura como fiadora do contrato de arrendamento em causa.

A autora apresentou réplica, pugnando pela improcedência da reconvenção e pela condenação da ré como litigante de má-fé, defendendo, em vista do pedido efetuado pela ré/reconvinte quanto a obras para recolocar o locado no estado em que se encontrava, o seguinte: que a ré sabia perfeitamente que o estado em que entregou a divisão do r/c não tinha condições para acolher o negócio de exploração de bar que a autora nele visava efetuar; que sabendo de antemão o fim a que a autora destinava o r/c do locado, a celebração do contrato de arrendamento configura uma confirmação por escrito da autorização do senhorio prevista no nº 2 do artigo 1084.º do Código Civil; que a autora não concluiu as referidas obras porque se viu impossibilitada de manter a relação contratual com a reconvinte, pelo que se o locado não se encontrava à data da entrega tal como se encontrava antes, tal era exclusivamente imputável à Reconvinte; que a impossibilidade de manter a relação contratual – através de um ajuste temporário na renda, tal como foi proposta pela autora, de modo a mitigar os prejuízos que lhe foram causados e que são imputáveis à senhoria – foi causada pela ré, pelo que o pedido indemnizatório decorrente das obras por concluir configura manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

A intervenção principal provocada de AA foi deferida por despacho de 11/5/2021.

Citada a chamada, esta, por articulado que apresentou em 27/10/2021, veio apresentar a sua defesa relativamente ao pedido reconvencional, pedindo a improcedência deste.

No seu articulado, depois de pugnar pela legitimidade da resolução do contrato operada pela autora e o direito desta às quantias que peticionou, acompanhou o raciocínio de abuso de direito efetuada pela autora na réplica em vista do pedido efetuado pela ré/reconvinte quanto a obras para recolocar o locado no estado em que se encontrava.

Teve lugar audiência prévia, em sede da qual foi proferido despacho saneador e subsequente despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.

Procedeu-se a julgamento, tendo na sua sequência sido proferida sentença em que se proferiu decisão nos seguintes termos:

Pelo exposto, julga-se a presente acção improcedente por não provada e absolve-se a Ré do pedido.

Mais se julga a reconvenção procedente e condena-se a Autora/reconvinda no pedido.

De tal sentença vieram quer a autora quer a a interpor recurso.

A autora terminou as suas alegações com as seguintes conclusões:

I – A Rec.te não se conforma com a sentença que julgou improcedente o pedido por si formulado, e julgou procedente o pedido formulado pela R. / Reconvinte, discordando quer do julgamento da matéria de facto efectuado pelo Tribunal recorrido – impugnando, por conseguinte, a decisão de facto -, quer da matéria de direito.

II – Com relevância para o presente recurso, e que é objecto de impugnação, são os seguintes factos julgados não provados, por referência à sentença, cujo julgamento se pretende ver alterado:

“3. As referidas infiltrações resultaram em inundações no locado que danificaram os espaços destinados a alojamento, fazendo com que os tectos falsos ficassem ensopados, o que originou um intenso cheiro a mofo nas unidades de alojamento local e uma sensação geral de humidade extrema.

4.Que, nesta época de Inverno, aliado ao frio, transformou o locado num espaço insalubre e desconfortável, inapto para os fins a que se destinava.”

III - No que respeita à matéria de facto, a Mma. Juiz a quo não fez correcta apreciação da prova, mostrando-se adequadas as respostas à sentença, quando, em rigor, deveria acontecer exactamente o contrário.

IV – Requerendo-se a renovação da prova considerando-se os depoimentos das testemunhas:

- BB, cujo depoimento se encontra gravado na aplicação informática, com início às 09:48:39, e fim 10:05:28;

- CC, cujo depoimento se encontra gravado no sistema informático, com início às 11:32:06 e fim às 12:14:45;

V - Do depoimento da testemunha BB resulta que desde o início da execução do contrato era perceptível cheiro a mofo e bolor nas áreas destinadas a alojamento local, sendo que, com o advento da chuva caía água em pelo menos um dos quartos, e verificou-se agravamento da humidade, mofo e bolor nos demais, tornando-os inoperacionais para o desenvolvimento da actividade de alojamento local, sendo que, os hóspedes queixavam-se e abandonavam o local;

VI – Acrescentou que também se verificaram infiltrações no rés-do-chão do locado.

VII – O seu depoimento não foi contrariado por nenhum outro, pelo que não se logra descortinar a razão pela qual foram dados como não provados os factos supra enunciados, constantes dos pontos 3 e 4 dos factos julgados não provados.

VIII – Sendo certo que o Juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção, como decorre do n.º 5 do artigo 607.º do Código do Processo Civil, cabe-lhe explicar na sentença a razão pela qual não atenta nas declarações de certa testemunha, e atenta nas de outra, isto é, tem que analisar criticamente cada depoimento, e a sua conjugação com os demais meios de prova e as regras da experiência comum, o que, no caso vertente, não sucedeu.

IX – Assim sendo, não poderá, com o devido respeito, concluir-se senão em sentido contrário à da Mmo. Juiz a quo quanto aos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, a isso obrigando aquelas declarações;

X - A resposta afirmativa a estas questões de facto é essencial para se entender a razão da resolução contratual efectuada pela A., e decisiva para a sorte da causa, porquanto, da procedência de tal impugnação necessariamente decorrerá outra a solução de Direito para presente acção.

XI - Há que atentar que, com consentimento da R., a A. cedeu a utilização dos pisos superiores do prédio à sociedade representada pela referida testemunha para explorar o negócio de alojamento local, apenas tendo reservado para si o rés-do-chão, onde iria explorar um negócio de bar, constituindo os proveitos da aludida cedência parte muito significativa da receita destinada ao pagamento da elevada renda devida à R., facto que não era desconhecido desta.

XII - A desadequação do locado para o exercício da actividade, ainda que, em tese, se considerasse ser superveniente, era patente, e atenta a perspectiva de não resolução das patologias que padecia o locado, aquele contrato de cessão foi denunciado pela cessionária.

XIII – A A. denunciou junto da R. as patologias existentes, quer as advenientes da chuva, quer as do quadro eléctrico, a 30.12 e a 03.01, pedindo a sua reparação e requerendo a redução da renda por impossibilidade de utilização plena do imóvel, e apenas durante o período necessário às obras;

XIV – A R. não apresentou um plano de obras, não definiu as que teriam que ser executadas, tempo e prazo de execução, e também não aceitou a redução temporário do valor da renda;

XV - As comunicações de 30.12 e 03.01 têm que ser consideradas como uma interpelação, sendo que nenhuma resposta afirmativa e clara foi dada mesmo após a reunião de 08.01, e, nessa medida, tem que se interpretar a resolução contratual nessa sequência factual e caracterizá-la como legítima, atento o comportamento não confiável, omissivo e dilatório da R..

XVI – É inquestionável que o comportamento da R. legitimou a resolução operada, atenta a sua natureza e as circunstâncias em que os factos ocorreram, determinando o desaparecimento da confiança da A. no exacto e fiel cumprimento das prestações subsequentes ou das obrigações contratuais, em geral, para o futuro.

XVII – No contrato de arrendamento há obrigação de abstenção de qualquer comportamento que faça desaparecer a relação de confiança e em que, portanto, o incumprimento não é apreciado pelo critério do prejuízo que ele possa causar à contraparte, mas antes como elemento sintomático, como facto idóneo a fazer desaparecer a particular confiança que no cumprimento depositava o outro contraente.

XVIII - Não deve, por isso, causar surpresa que seja precisamente no domínio das relações duradouras – como são as instituídas pelo contrato de arrendamento – que surja como fundamento de resolução a justa causa, entendida como a violação e, portanto, um incumprimento, que dificulta, torna insuportável ou inexigível para a parte fiel a continuação da relação contratual.

XIX - Sabendo-se que o locado, em parte significativa, se destina a sublocação para o exercício da actividade de alojamento local, e mostrando-se o locado, ainda que parcialmente e após circunstâncias meteorológicas mais severas, inapto para o efeito, perdendo, em função desse facto, o arrendatário o contrato de sublocação, sem que o locador apresente solução imediata para a supressão dos danos e minoração dos prejuízos, emerge a perda de confiança entre as partes, e tendo necessariamente que se valorar como grave a violação contratual pelo senhorio e admitir direito de resolução.

XX - O comportamento do senhorio no incumprimento da fundamental obrigação de disponibilização do locado em condições de ser usado plenamente ou parcialmente, ainda que com redução de renda, perturba de forma grave a relação contratual e torna inexigível – ex-vi lege – a manutenção do contrato de arrendamento.

XXI - Ainda que se considerasse inexistir gravidade suficiente para que o contrato fosse resolvido por culpa da R., sempre se mostraria abusivo que a A. tivesse que pagar as rendas devidas até ao cumprimento de 1/3 do contrato, quando estava impedida de usar o locado, e ter perdido, por causa que não lhe é imputável, o contrato de sublocação, que lhe proporcionava cerca de metade do valor da renda.

XXII - Os direitos são limitados, genericamente, pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo seu fim económico-social, realidades que podem, na verdade, ser reconduzidas a uma ideia ampla de função social.

XXIII - Nos presentes autos, a R. potenciou a resolução operada pela A., e, a final, beneficia da sua omissão, constituindo o seu pedido de pagamento das rendas vincendas até ao limite de 1/3 do contrato um caso de abuso do direito - artigo 344.º do Código Civil -

XXIV - A sentença recorrida violou, entre outros normativos que Vossas Excelências doutamente suprirão, o disposto nos artigos 607.º, n.ºs 4 e 5, do Código do Processo Civil, e 792.º, 793.º, n.º 2, 801.º, n.º 2, e 802, n.º 2, a contrario, 1031.º, al. b), 1050.º, al. a), todos do Código Civil.

Por sua vez, a terminou as suas alegações com as seguintes conclusões:

1 – A Apelante na sua contestação, deduziu pedido reconvencional e requereu a intervenção principal provocada, como associada da autora de AA, ao abrigo do disposto no artigo 316.º, n.º 3, alínea a) do Código de Processo Civil.

2 – A intervenção principal provocada de AA foi admitida pelo tribunal a quo, por douto despacho de 11.05.2021, transitado em julgado.

3- A interveniente principal provocada foi citada e apresentou o seu articulado próprio de defesa em 27.10.2021.

4- O tribunal a quo na sua douta sentença julgou a ação improcedente por não provada e absolve a aqui Apelante do pedido, e julga a reconvenção totalmente procedente e condena a Autora/reconvinda no pedido peticionado pela Apelante;

5- O tribunal a quo, não se pronuncia, quer na fundamentação, quer na decisão, apesar da admissão da chamada AA como interveniente principal, nada é mencionado quanto à absolvição ou condenação desta no pedido, o que, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2 e 615.º, n.º 1, alínea d) ambos do CPC, ser objeto de pronúncia e decisão expressa do Tribunal.

6 - A douta sentença é nula por não apreciar questão sobre a qual se deve pronunciar (artigo 615.º, n.º 1, alínea d): a intervenção principal provocada.

7- Admitida a intervenção principal, a sentença final deve apreciar a relação jurídica da titularidade do chamado.

8 – A apelante entende, assim, que existiu errónea interpretação e aplicação do disposto no art.º 608.º, n.º 1 e 320.º do CPC.

9- A douta sentença, deve ser declara nula por omissão de pronúncia, e deve ser substituída por outra que contemple a apreciação da relação jurídica da titularidade da chamada AA, interveniente principal provocada, e a condene nos mesmos termos que a Autora/Reconvinda.

A interveniente, notificada do recurso interposto pela ré/reconvinte, apresentou contra-alegações, terminando estas com as seguintes conclusões:

I – A pretensão da Recorrente é infundamentada, não devendo merecer provimento.

II – A Recorrente não deduziu qualquer pedido contra a Recorrida, tendo-se limitado a requerer a sua intervenção nos autos.

III – O tribunal está vinculado aos pedidos, tal como foram formulados, com o conteúdo delimitado por quem os formulou.

IV - Assim, não tendo sido formulado pedido de condenação da Recorrida, o tribunal não poderia, oficiosamente, condená-la. Fazendo-o, feriria de nulidade a sentença.

V – A sentença recorrida, quanto a esta matéria, não merece censura.

A autora não apresentou contra-alegações ao recurso da ré, nem a ré apresentou contra-alegações ao recurso da autora.

Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir.

Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), são as seguintes, por ordem lógica, as questões a tratar:

a) – da nulidade imputada à sentença recorrida pela ré;

b) – das alterações à matéria de facto da decisão recorrida propugnadas pela autora;

c) – apurar da eventual repercussão da reapreciação da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso, ou se, independentemente de tal repercussão, a decisão recorrida deve ser revogada ou alterada, sendo nesta sede de apurar: da licitude da resolução contratual efetuada pela autora; da procedência do pedido deduzido em sede reconvencional pela ré no sentido da condenação da autora no pagamento da quantia € 166.500,00 (correspondente às rendas que faltaria pagar até atingir um terço de duração do contrato, por via da previsão do art. 1098º nº3 do C. Civil) e se o mesmo integra abuso do direito; da condenação ou não da interveniente principal nos mesmos termos que a autora/reconvinda.


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II – Fundamentação

Vamos ao tratamento da questão enunciada sob a alínea a).

A recorrente ré imputa à sentença recorrida a nulidade prevista na alínea d) do nº1 do art. 615º do CPC, por nela ter ocorrido omissão de pronúncia quanto à condenação ou absolvição da interveniente principal AA.

Analisemos.

Aquela interveniente principal – cujo chamamento foi deduzido pela ré/reconvinte na contestação/reconvenção por a mesma figurar como fiadora no contrato de arrendamento em referência – foi admitida a intervir nos autos nessa qualidade por despacho de 11/5/2021 e, na sequência da sua citação, foi pela mesma, em 27/10/2021, apresentado articulado próprio.

A intervenção principal provocada, como decorre do regime previsto no art. 316º do CPC, integra uma forma de litisconsórcio sucessivo (o chamado passa a figurar como associado da parte inicial a partir de um momento posterior da marcha do processo), permitindo ao chamado valer um direito próprio, paralelo à parte a que está associado, e nessa sequência, como se preceitua no art. 320º do CPC, “[a] sentença que vier a ser proferida sobre o mérito da causa aprecia a relação jurídica de que seja titular o chamado a intervir, constituindo, quanto a ele, caso julgado”.

Aliás, como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[1], “a sentença apreciará sempre a situação jurídica do terceiro, quer intervenha (o que não podia deixar de ser), quer não (o que pressupõe que, com a citação, o terceiro fica, tal como o réu – arts. 219-1 e 259-2 – imediatamente constituído como parte)” (o negrito está assim no texto).

O facto de a ré/reconvinte não ter deduzido expressa e diretamente contra a chamada qualquer pedido não obsta a que tenha lugar aquela apreciação na sentença, pois, como neste sentido se refere no Acórdão desta Relação do Porto de 13/12/2011 (proferido no proc. nº1149/09.0TBMTS.P1, disponível em www.dgsi.pt), referido pela recorrente/ré nas suas alegações de recurso e que se subscreve, há que considerar que por via da intervenção principal da chamada há como que um arrastamento do pedido formulado pela ré/reconvinte contra a autora/reconvinda relativamente a ela própria, passando a estar abrangida por esse mesmo pedido (no mesmo sentido, vide também o Acórdão desta Relação do Porto de 26/5/2009, proferido no proc. nº3178/03.8TJVNF.P1 e também disponível em www.dgsi.pt).

De resto, diga-se, a própria chamada interpretou o pedido deduzido em sede de reconvenção contra si também deduzido, pois o articulado autónomo que apresentou (e que podia não apresentar, dada a faculdade prevista no nº3 do art. 319º do CPC) é exclusivamente veiculado para a sua “Defesa do pedido reconvencional”, conforme epígrafe que apôs após o seu artigo 5º, e nele termina a pugnar pela improcedência do pedido reconvencional e sua absolvição do mesmo.

Aqui chegados, verifica-se da sentença recorrida que nela não houve pronúncia quanto à chamada, quer no sentido da sua condenação quer da sua absolvição, por referência à relação jurídica de que a mesma é titular – como fiadora do contrato, facto que aliás se menciona sob o ponto 20º dos factos provados.

Como assim, é de concluir por omissão de pronúncia quanto à mesma e consequente verificação da nulidade em apreço.

Porém, porque este tribunal, não obstante a ocorrência da mesma, deve conhecer do objeto da apelação, suprindo-a (art. 665º nº1 do CPC), procederemos ao conhecimento de tal questão em sede de tratamento da terceira questão enunciada.

Passemos para a segunda questão enunciada.

A recorrente/autora, com base no depoimento da testemunha BB, cujos excertos que considera pertinentes identifica e transcreve, pretende a alteração da matéria de facto provada da sentença recorrida no sentido de os nºs 3 e 4 dos factos não provados passarem a ser dados como provados (motivação e conclusões V a IX).

Cumpre notar que, nos termos do art. 607º nº5 do CPC, o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (essa livre apreciação só não abrange as situações referidas na segunda parte de tal preceito), não se podendo esquecer que o tribunal, nos termos do art. 413º do CPC, “deve tomar em consideração todas as provas produzidas”.

Ou seja, a prova deve ser apreciada globalmente, sendo de evidenciar em sede de recurso o disposto no art. 662º nºs 1 e 2, alíneas a) e b), do CPC, de onde se conclui que a Relação “tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” (como refere António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, 2018, pág. 287). De referir ainda que além da sua autonomia decisória relativamente à apreciação da matéria de facto nos termos que supra se referiu, a Relação não está limitada à reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes, devendo atender a todos quantos constem do processo, independentemente da sua proveniência (conforme refere aquele autor naquela mesma obra, a págs. 293).

Apreciemos então.

Os pontos dos factos não provados visados pela recorrente têm a seguinte redação:

- “3. As referidas infiltrações resultaram em inundações no locado que danificaram os espaços destinados a alojamento, fazendo com que os tectos falsos ficassem ensopados, o que originou um intenso cheiro a mofo nas unidades de alojamento local e uma sensação geral de humidade extrema”;

- “4. Que, nesta época de Inverno, aliado ao frio, transformou o locado num espaço insalubre e desconfortável, inapto para os fins a que se destinava”.

Desde já se adianta que a matéria que consta referida sob o nº4 destes pontos de facto é claramente conclusiva e envolve até matéria de direito (ao referir-se à inaptidão do locado para os fins a que se destinava, pois tal contende com normas próprias da locação, como, por exemplo, os arts. 1032º e 1083º nº5 do C. Civil, atinentes ao incumprimento e resolução do contrato) e, por isso, contrária à matéria estritamente factual que deve ser selecionada para a fundamentação de facto, que, como se sabe, abrange quer os factos provados quer os não provados, como explicitamente decorre do nº4 do art. 607º do CPC.

Efetivamente, aquele item integra, quando muito, uma conclusão interpretativa ou raciocínio a retirar ou a considerar pelo tribunal perante concretos factos provados e/ou não provados, mas já em sede de fundamentação de direito e não nesta sede puramente factual.

Assim, no que respeita ao item em análise, uma vez que a inclusão nos fundamentos de facto de matéria conclusiva (desde que não se reconduza a juízos periciais de facto) e/ou de direito deve enquadrar-se na alínea c), do nº 2, do artigo 662º, do CPC, considerando-se uma deficiência na decisão da matéria de facto, oficiosamente cognoscível e suprível em segunda instância, há que, ao abrigo daquele mesmo preceito, alterar a matéria de facto da sentença, dela retirando aquela alínea.

Aliás, ainda que não só estritamente ao abrigo daquele art. 662º nº2 c), a expurgação da sentença daquele tipo de factualidade conclusiva também pode ocorrer por via do disposto sobre a orgânica da sentença no art. 607º nº4 do CPC, ex vi do art. 663º nº2 [neste sentido, vide o acórdão do STJ de 29/4/2015 (proc. nº306/12.6TTCVL.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt), onde se dá por sua vez conta de acórdão daquele mesmo STJ de 23/9/2009 (proferido no processo nº 238/06.7TTBRG.S1), em que se concretiza tal tipo de situações como “as quais (…) se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos, objecto de alegação e prova (…)”; no mesmo sentido, vide ainda, por exemplo, o acórdão da Relação de Évora de 28/6/2018, proferido no proc. nº170/16.6T8MMN.E1, onde, na sequência de se referenciar aquele acórdão do STJ de 29/4/2015, se precisa que a intervenção da Relação “(…) não se dá ao nível da (re)apreciação da prova, mas antes na despistagem (identificação/qualificação/expurgação), nos pontos da matéria de facto em causa, das afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito, ao abrigo da previsão constante do nº4 do art. 607º do CPC”].

Assim, no seguimento do que se veio de referir, vai-se eliminar aquele ponto da factualidade da sentença.

Resta apurar da alteração preconizada pela recorrente em relação ao ponto 3.

Ouvido o depoimento da testemunha referida pela recorrente – BB, que referiu ser engenheiro civil de formação e pertencer à empresa “C...”, que tinha celebrado com a autora o contrato de cedência de espaço para exploração de alojamento local dado como provado sob o ponto 3º dos factos provados –, do mesmo, após a inquirição pela mandatário da autora e pela mandatária da ré, extrai-se o seguinte:

- quando alugaram o espaço não havia indícios da sua degradação; com o aumento das chuvadas foi progressiva a degradação;

- havia cheiro a mofo e bolor dentro de alguns apartamentos;

- acha que eram 4 os apartamentos; um estava impossível, pois caía água do teto por haver aí um buraco no pladur; nos outros dava para dormir, mas não tinham condições pois sentia-se imenso cheiro.

A testemunha revelou conhecimento dos factos sobre que depôs e, nessa medida, credibilidade, e o seu depoimento não foi contrariado por nenhuma outra concreta prova em contrário.

Assim, considerando o teor de tal depoimento, e considerando também o já dado como provado e não impugnado sob o ponto 10º dos factos provados (com o teor “O segundo andar sofreu infiltrações, num dos apartamentos T1 e numa das suites da parte da frente”), há que retirar aquele nº3 dos factos não provados e quanto a ele dar como provada, em termos de matéria estritamente factual, o seguinte:

As referidas infiltrações resultaram em inundação num dos apartamentos destinado a alojamento e em cheiro a mofo noutros”.

Tal matéria, porque a ela referenciada, será concatenada com a já dada como provada sob o ponto 10º dos factos provados e inserida neste mesmo ponto.

Passemos agora para as questões enunciadas sob a alínea c).

É a seguinte a matéria de facto a ter em conta [a da sentença recorrida com a alteração supra decidida; usando da competência de conformação da matéria de facto também atribuída à Relação pelos arts. 663º nº2 e 607º nº4 do CPC, corrige-se o ponto 18º dos factos provados, no sentido de ali ficar a constar a autora (é o que decorre do alegado nos artigos 99º e 100º da contestação) e não, como por lapso ali consta, a ré, e faz-se constar sob o ponto 20º da factualidade provada diversas cláusulas do contrato de arrendamento – cuja efetivação e conteúdo se encontra aceite pelas partes – que consideramos com atinência para a apreciação do mérito da causa]:

Factos provados

Em 25.7.2019, Autora e Ré celebraram entre si um contrato de arrendamento para fim não habitacional com prazo certo de dez anos, com início em 1.11.2019, relativo ao prédio urbano em propriedade total com três andares suscetíveis de utilização independente, sito na Rua ..., na união das freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ...-da freguesia ..., e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da união das mesmas freguesias.

2.º

Era intenção da A. explorar atividades comerciais nos diversos pisos do prédio, sendo que na loja existente no rés-do-chão iria ser explorado um bar, em nome próprio.

Ao passo que no primeiro e segundo andar seria destinado a alojamento local, intenção concretizada com a celebração em 21.11.2019 de um Contrato de Cedência de Espaço para Exploração de Alojamento Local com a C..., Lda., válido por um ano e renovável.

Nos termos do contrato mencionado no artigo anterior, a A. receberia como contrapartida a título de comissão mensal fixa, o valor de 2.800,00 € (dois mil e oitocentos euros)

A A. procedeu à realização de obras no locado, com vista a afetá-lo ao uso pretendido (bar no r/c);

Na sequência de chuvas intensas ocorridas na semana entre o Natal e a passagem de ano, em dezembro de 2019, ocorreram infiltrações no locado, facto que a A. comunicou à R. por mensagens de correio eletrónico enviadas em 30.12.2019 e 3.1.2020.

Na semana que ocorreram as infiltrações, entre o Natal e passagem de ano de 2019, Portugal foi assolado por chuvas intensas e ventos fortes.

O locado é constituído pela loja do r/c, e dois andares.

9.º

O 1.º e 2.º andar são compostos por dois apartamentos T1 e 3 suites.

10º

O segundo andar sofreu infiltrações, num dos apartamentos T1 e numa das suítes da parte de frente; tais infiltrações resultaram em inundação num dos apartamentos destinado a alojamento e em cheiro a mofo noutros.

 11º

O que foi comunicado no dia 30 de dezembro de 2019 dando conta, também, de problemas no quadro elétrico e propondo uma redução de renda de € 2000,00 até resolução dos problemas.

12º

No dia 3 de janeiro de 2020, a R. confirmou a sua disponibilidade para visitar o imóvel no dia 08 de janeiro, e o realojamento dos hóspedes nas unidades que a R. dispõe, de forma a minorar os prejuízos e declinou a redução do preço, sem prejuízo de melhor análise.

13º

Após a visita a 8 de janeiro, a R. comprometeu-se a fazer as obras necessárias no locado, de forma a eliminar os seus defeitos.

14º Por mensagem de correio eletrónico enviada pelo cessionário à A. em 8.1.2020, aquele comunicou a cessação de efeitos do contrato de cedência de espaço.

15º

A A. por carta enviada à R. em 13.01.2020 comunicou a resolução do contrato.

16º

À data da celebração do contrato de arrendamento, em 25.07.2019, não eram visíveis defeitos no imóvel.

17º

A ré realizou obras no locado na segunda quinzena do mês de janeiro, por falta de condições meteorológicas que permitissem que a obra se realizasse de imediato.

18º

A A. quando das obras deixou a loja com os revestimentos das paredes, tetos e chão destruídos.

19º

As obras para recolocar a loja no estado em que se encontrava aquando da data da entrega do imóvel ascendem a quantia de € 15.410,00

20º

O contrato de arrendamento em causa nos presentes autos foi celebrado entre A. e R., e ainda com terceira pessoa, AA, que assina na qualidade de fiadora, constando designadamente do mesmo, que aqui se dá por reproduzido, as seguintes cláusulas:

- “Segunda”, com a redação: “O presente contrato é celebrado pelo prazo de 10 (dez) anos, com início em 01 de Novembro de 2019 e termo em 31 de Outubro de 2029, renovando-se automaticamente por sucessivos e iguais períodos de 1 (um) ano, nas mesmas condições estabelecidas neste, se nenhuma das Contraentes impedir a sua renovação automática, no final do período inicial ou de qualquer uma das suas renovações”;

- “Quarta”, com a redação: “1 – Decorrido um terço do prazo de duração inicial do contrato, ou da sua renovação, a Arrendatária pode denunciá-lo a todo o tempo, mediante comunicação à Senhoria, por carta registada com aviso de receção, com a antecedência míniama de 120 (vento e vinte) dias do termos pretendido do contrato, produzindo essa denúncia efeitos no final de um mês do calendário gregoriano, a contar da comunicação. 2 – (…). 3 – Caso a Arrendatária denuncie o contrato de arrendamento, antes de ter decorrido um terço do prazo de duração inicial do mesmo ou da sua renovação, fica desde já obrigada a pagar à Senhoria, o valor das rendas vincendas, até completar aquele prazo”: 

- “Sexta”, com a redação: “1- A renda anual é de € 66.000,00 (sessenta e seis mil euros) a pagar em duodécimos de € 5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros). 2- A Senhoria concede à Arrendatária uma redução no valor das rendas devidas nos primeiros sessenta meses de vigência do contrato, sendo devido no período de 01 de Novembro de 2019 a 31 de Outubro de 2024 a renda mensal de € 4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros). 3 - (…)

- “Décima Terceira”, com a redação: “1 – A Terceira contraente constitui-se fiadora e principal pagadora das obrigações emergentes do presente contrato, relativamente ao período inicial de duração do mesmo e a todos e quaisquer períodos de renovação, sem qualquer limite temporal ou de número de renovações. 2- A Fiadora renuncia ao benefício da excussão prévia, e assume, o cumprimento de todas as cláusulas deste contrato, e seus aditamentos, até efetiva restituição do local arrendado, livre de pessoas e bens, e declara que a fiança que acaba de prestar permanecerá, ainda que se verifiquem alterações da renda agora fixada. 3 – Mais declara que a fiança que acaba de prestar subsistirá após a entrega do local arrendado, no caso de se encontrar em mora o cumprimento de alguma obrigação decorrente do presente contrato de arrendamento.


*

Factos não provados:

1. A A. suportou custos com a elaboração de projeto de arquitetura das obras em causa, no valor de 2.424,33 € (dois mil quatrocentos e vinte e quatro euros e trinta e três cêntimos).

2. Bem como o preço pela realização das obras no locado, no valor de 4.200,00 € (quatro mil e duzentos euros)

3. (eliminado)

4. (eliminado)

5. As mesmas infiltrações levaram também à suspensão da obra em curso no r/c.


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Apuremos da licitude da resolução contratual efetuada pela autora.

A mesma teve lugar pela carta que enviou à ré em 13/1/2020 (ponto 15º dos factos provados) e, como a autora alegou na sua petição inicial, teve como motivação as infiltrações de água que ocorreram no locado na sequência das chuvas intensas ocorridas na semana entre o Natal e a passagem de ano, em dezembro de 2019, que comunicou à ré logo em 30 de dezembro de 2019  (pontos 6º e 11º dos factos provados), infiltrações essas que, como se provou, ocorreram num dos apartamentos e suíte do segundo andar do prédio arrendado e que resultaram em inundação num dos apartamentos e em cheiro a mofo noutros (ponto 10º dos factos provados).

Como decorre do art. 1083º do C. Civil, a resolução do contrato de arrendamento pode ter lugar por qualquer das partes com base em incumprimento da outra (nº1), sendo, designadamente,  fundamentos de resolução pelo senhorio as situações ali previstas sob os nºs 2, 3 e 4  e fundamento da resolução pelo arrendatário, sob o nº5, “a não realização pelo senhorio de obras que a este caibam, quando tal omissão comprometa a habitabilidade do locado e, em geral, a aptidão deste para o uso previsto no contrato”.

Além disso, em sede de disposições específicas do contrato de locação, preceitua-se sob o art. 1032º do C. Civil que “Quando a coisa locada apresentar vício que lhe não permita realizar cabalmente o fim a que é destinada, ou carecer de qualidades necessárias a esse fim ou asseguradas pelo locador, considera-se o contrato não cumprido: a) Se o defeito datar, pelo menos, do momento da entrega e o locador não provar que o desconhecia sem culpa; b) Se o defeito surgir posteriormente à entrega, por culpa do locador.”.

Comecemos por averiguar se ocorre situação subsumível a esta previsão.

Como apurado sob os pontos 1º e 16º dos factos provados, o contrato foi celebrado em 25/7/2019 e iniciou a sua vigência em 1/11/2019 e, à data da sua celebração, não eram visíveis defeitos no imóvel.

Aliás, consta sob o nº3 da cláusula “Primeira” do contrato (que se deu como reproduzido supra sob o ponto 20º dos factos provados) declaração da autora/locadora no sentido de “conhecer o atual estado de conservação do locado, que aceita, considerando-o adequado aos fins do arrendamento”, fins esses que eram, como consta da cláusula “Quinta”, a “habitação e comércio”.

Os eventuais defeitos que terão levado às infiltrações só se manifestaram ou surgiram com as chuvadas intensas ocorridas na semana entre o Natal e a passagem de ano de 2019, altura em que Portugal foi assolado por tal tipo de chuvas e ventos fortes (pontos 6º e 7º dos factos provados), pois nada se apurou no sentido de que os mesmos, ainda que não visíveis, já existissem ou fossem percetíveis aquando da entrega do locado à autora.

Assim sendo, fica desde logo afastada a situação prevista na alínea a).

Por outro lado, porque aqueles defeitos só surgiram por via daquelas condições meteorológicas, que ocorreram naquele exato momento temporal e os desencadearam, é claro de concluir que os mesmos não surgiram – como se exige na alínea b) daquele preceito – por culpa da locadora, do que decorre o afastamento de tal alínea b).

Deste modo, a haver algum incumprimento contratual suscetível de, por causa das referidas infiltrações, levar à resolução do contrato, seria por via do não cumprimento por parte da locadora, logo que por si conhecidas tais infiltrações, da sua obrigação de assegurar o gozo da coisa para o fim a que esta se destina (art. 1031º, b) do C, Civil), a qual, para além de uma sua vertente integrada pela obrigação de o locador se abster de atos que impeçam ou diminuam esse gozo (art. 1037º nº1 do C. Civil), tem uma sua outra vertente integrada pela obrigação de o mesmo fazer as reparações que sejam necessárias e pagar as despesas imprescindíveis à sua boa conservação (art. 1036º do C. Civil)[2].

Efetivamente, é a violação desta última obrigação em termos subsumíveis à previsão do nº5 do art. 1083º do C. Civil, que já supra se referiu, que é suscetível de fundamentar a resolução do contrato pelo arrendatário.

Será que, considerando aquela previsão, ocorreu omissão culposa da obrigação de realização de obras por parte da ré/locadora?

Vejamos.

As infiltrações ocorreram na semana entre o Natal e a passagem de ano, em dezembro de 2019, e foram comunicadas pela autora à ré em 30 de dezembro de 2019 por mensagem de correio eletrónico (ponto 6º dos factos provados).

Esta comunicação traduz o cumprimento pela locatária da sua obrigação de avisar imediatamente o locador sempre que tenha conhecimento de vícios na coisa (art. 1038º h) do C. Civil), e só por via dela, e, portanto, naquela mesma data, terá a locadora sabido de tais infiltrações.

Na sequência de tal comunicação, a ré/locadora, em 3 de janeiro, quarto dia seguinte à mesma, disponibilizou-se para ir ver o imóvel no dia 8 de janeiro e para proceder ao realojamento de hóspedes nas unidades de que dispõe, concretizou naquele dia 8 tal visita e após a mesma comprometeu-se a fazer as obras necessárias a eliminar os defeitos (pontos 11º, 12º e 13º dos factos provados), sendo que tais obras vieram a ser realizadas por si na segunda quinzena daquele mesmo mês de janeiro (ponto 17º dos factos provados).

Dificilmente poderia haver mais rapidez na resposta da ré/locadora às infiltrações comunicadas, quer em termos de visita do prédio para delas se inteirar quer em termos de efetuar as obras necessárias à sua reparação, pois entre a sua comunicação e a efetivação ou começo das obras acabou por decorrer pouco mais de duas semanas e, para as efetivar é, naturalmente, necessário, além de as definir em concreto, contratar profissionais e adquirir os materiais adequados.

Por isso, e porque não se provou que tais obras, ainda assim, pudessem ter sido efetuadas antes – provou-se até que só foram realizadas na segunda quinzena de janeiro por falta de condições meteorológicas que permitissem a sua realização de imediato (ponto 17º dos factos provados) –, não se pode sequer concluir por qualquer mora da locadora em relação à sua obrigação de fazer as reparações (art. 804º nº2 do C. Civil).

De qualquer modo, se a autora/locatária, ainda assim, por um qualquer motivo que não se descortina na factualidade apurada, achava que podia haver mais rapidez na realização das obras, podia ela própria fazê-las e depois pedir o reembolso das respetivas despesas à locadora, como se prevê no art. 1036º nº2 do C. Civil.

Assim, é de concluir que não ocorreu incumprimento por parte da locadora da sua obrigação de proceder às obras de reparação necessárias, do que decorre a falta de fundamento e a consequente ilicitude da resolução efetuada.

E daí a improcedência da ação, como decidido na sentença recorrida.

Passemos agora a averiguar da procedência do pedido deduzido em sede reconvencional pela ré no sentido da condenação da autora no pagamento da quantia € 166.500,00 – por via, como invocou, da previsão do art. 1098º nº3 do C. Civil [“(…) decorrido um terço do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação, o arrendatário pode denunciá-lo a todo o tempo, mediante comunicação ao senhorio com a antecedência mínima seguinte (…)”] – e se o mesmo integra abuso do direito.

Concluindo-se pela ilicitude ou não justificação da resolução do contrato, a declaração de cessação dos respetivos efeitos que através dela a autora visou e que corresponde à sua vontade é de convolar em denúncia do contrato[3], pois esta, sendo própria dos contratos de celebrados por tempo indeterminado e dos contratos com prestações duradouras renováveis[4] (como o é dos autos – vide ponto 20º dos factos provados, cláusulas “Segunda” e “Quarta”), integra uma declaração de cessação do vínculo contratual que não precisa de ter como fundamento qualquer incumprimento contratual da contraparte.

Aquela quantia de 166.500,00 euros é correspondente às rendas que faltaria pagar até atingir um terço de duração do contrato, considerando a renda mensal de 4.500 euros (ponto 2 da cláusula “Sexta” do contrato), que aquele momento temporal se atingiria em 1 de março de 2023 e que tinham sido pagas as rendas de novembro e dezembro de 2019 e janeiro de 2020 [faltaria assim pagar 3 anos e 1 mês de renda, 37 meses, o que dá aquela quantia (37 x 4500 = 166.500)].

Será que ocorre abuso do direito por parte da ré/locadora ao deduzir o pedido de condenação da autora naquela quantia?

Como se dispõe no art. 334º do C.Civil, sobre a figura do abuso do direito, “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económica desse direito”.

A boa fé, referida naquele preceito como limite para a atuação do titular do direito, integra um princípio de atuação e significa que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correto e leal, nomeadamente no exercício de direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros (citamos o acórdão do STJ de 17/5/2017, proferido no proc. nº309/07.2TBMLG.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Ocorrendo a denúncia do contrato pela arrendatária antes de ter decorrido um terço do prazo de duração do mesmo, como foi o caso (a sua duração inicial era de 10 anos – ponto 20º, cláusula “Segunda”), é o próprio contrato que prevê sob o nº3 da sua cláusula “Quarta” – não sendo pois caso sequer de recurso ao critério da exigência do decurso daquele mesmo período de tempo previsto no art. 1098º nº3 do C. Civil – que a mesma fica obrigada a pagar à senhoria o valor das rendas vincendas até completar aquele prazo.

Portanto, com aquele pedido a ré/locadora mais não está a fazer do que a atuar o exercício de um direito previsto no contrato e, porque este foi livremente subscrito por ambas as partes, não podia a autora/locatária deixar de contar com a possibilidade do seu acionamento.

Por outro lado, nada se apurou no sentido de a locadora ter tido algum comportamento anterior que levasse a crer à locatária que não exerceria aquele direito.

Como tal, é de concluir pela não existência de abuso do direito.

Finalmente, averiguemos da condenação ou não da interveniente principal nos mesmos termos que a autora/reconvinda.

O conhecimento desta questão integra o suprimento da nulidade de que enferma a sentença recorrida já objeto de análise em sede de primeira questão enunciada.

A interveniente principal figura no contrato de arrendamento dos autos como fiadora e principal pagadora das obrigações dele emergentes (ponto 20º dos factos provados, cláusula “Décima Terceira).

Como decorre do art. 634º do C.Civil, “A fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor”.

Como tal, aquela fiadora, que até renunciou ao benefício da excussão prévia (nº2 da cláusula “Décima Terceira”), é responsável perante a ré/locadora nos mesmos termos em que o é a autora/locatária.

Nesta linha, não pode minimamente proceder a invocação de abuso do direito que a fiadora faz no articulado que apresentou (acompanhando a argumentação nesse mesmo sentido deduzida pela autora na sua réplica) em relação ao pedido deduzido pela ré no sentido de condenação da autora no custo das obras para recolocar o locado no estado em que se encontrava (no montante de 15.410,00 euros, que logrou procedência na sentença recorrida e cuja condenação em tal sentido ali decidida não foi posta em causa no recurso interposto pela autora).

Na verdade, tendo a autora posto termo ao contrato nos termos que supra se analisou, mediante resolução que se concluiu ser ilícita, o pagamento de tal quantia – correspondente ao custo das obras para recolocar a loja do rés do chão do locado no estado em que se encontrava quando foi entregue à autora (ponto 19º dos factos provados) – não é mais do que a inerência indemnizatória decorrente da violação da obrigação do locatário de restituição da coisa no estado em que a recebeu, prevista nos arts.  1038º i) e 1043º nº1 do C. Civil e que se mostra também perfilhada sob o nº1 da cláusula “Décima Segunda” do contrato dos autos.

Na sequência de tudo quanto se veio de expor, é de julgar improcedente o recurso da autora e procedente o recurso da ré e, suprindo-se a nulidade de omissão de pronúncia que anteriormente se analisou, há que manter a sentença recorrida quanto à ação e à reconvenção e, quanto a esta, condenar também no respetivo pedido a interveniente principal AA.

As custas do recurso da autora ficam a seu cargo e as custas do recurso da ré ficam a cargo da interveniente principal, pois uma e outra, respetivamente, em cada um deles decaiu (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC).


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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):

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III – Decisão

Por tudo o exposto, julga-se improcedente o recurso da autora e procedente o recurso da ré e, suprindo-se a nulidade de omissão de pronúncia que no lugar próprio desta peça se analisou, mantém-se a sentença recorrida quanto à ação e à reconvenção e, quanto a esta, condena-se também no respetivo pedido, a par com a autora, a interveniente principal AA.

Custas do recurso da autora pela autora e custas do recurso da ré pela interveniente principal.


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Porto, 4/3/2024
Mendes Coelho
Jorge Martins Ribeiro
Anabela Morais
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[1] “Código de Processo Civil Anotado”, volume 1º, Almedina, 4ª edição, pág. 640.
[2] Neste sentido, Pedro Romano Martinez, “Direito das Obrigações, Parte Especial (Contratos), Compra e Venda, Locação, Empreitada”, 2ª edição, Almedina, 2001, pág. 190.
[3] Neste sentido, vide Pedro Romano Martinez, “Da Cessação do Contrato”, 2ª edição, Almedina, pág. 221, citado na sentença recorrida e no Acórdão da Relação de Guimarães de 7/12/2017 (proferido no proc. 2227/16.4T8VNF.G1, disponível em www.dgsi.pt), no qual se perfilha igual entendimento; ainda no mesmo sentido, refira-se, por exemplo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 21/2/2013, proferido no proc. nº4706/10.8TBCSC.L1-2 e igualmente disponível em www.dgsi.pt; na doutrina, veja-se também Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Princípios de Direito dos contratos”, Coimbra Editora, 2011, pág. 894: “Quando o autor da declaração de resolução tenha um direito potestativo de denúncia (discricionária) do contrato, a declaração de resolução ilegal, ilegítima ou ilícita de um contrato deverá interpretar-se como uma declaração de denúncia”.
[4] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 4ª edição, Almedina, pág. 269; Baptista Machado, anotação ao Acórdão do STJ de 8/11/1983, in RLJ, ano 118º, pág. 278, nota de rodapé com o nº9.