DESOBEDIÊNCIA
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PARA A DECISÃO
Sumário

1–O princípio in dubio pro reo apenas será de aplicar quando o julgador, finda a produção de prova, tenha ficado com uma dúvida não ultrapassável relativamente a factos relevantes, devendo, unicamente nesse caso, decidir a favor do arguido.
2–Havendo factos não apurados relevantes para a decisão da causa que o tribunal deixou de investigar, verifica-se uma omissão prejudicial da lógica jurídica subjacente à absolvição, que não se basta na aplicação do princípio in dubio pro reo.
3–É dever do tribunal, em ordem a poder proferir uma decisão justa, apurar/clarificar o real quadro factual, ao abrigo do disposto no art. 340.º do Código de Processo Penal, sob pena de desadequada subsunção jurídica.
(Sumário da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


1.No processo sumário n.º 981/23.6PLLRS.L1do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures – Juiz 2, foi proferida sentença a 30.10.2023, que decidiu absolver o arguido AA, melhor identificado nos autos, da prática, em autoria material, de um crime de desobediência, previsto e punido nos termos dos artigos 348.º, n.º 1, alínea a) e 69.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal, por referência ao artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 do Código da Estrada.
2.Não se conformando com a decisão absolutória, veio o Ministério Público interpor recurso para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes conclusões:
1.Por sentença datada de 30-10-2023, decidiu a Mma. Juiz a quo absolver o arguido AA da prática, como autor material, de um crime de desobediência, previsto e punido pelos artigos 348.º, n.º 1, al. a) e 69.º, n.º 1, al. c) do Código Penal, por referência ao artigo 152.º, ns.º 1, al. a) e 3 do Código da Estrada.
2.Porque entende que a prova produzida foi por demais suficiente para sustentar a condenação do arguido pela prática do crime por que vinha acusado, e porque ademais entende que a decisão sob recurso se mostra ferida do vício do erro notório na apreciação da prova, com o sentido de tal decisão não pode o Ministério Público concordar.
3.–O vício do erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal, verifica-se quando decorre cristalino do texto da sentença que o Tribunal, na leitura e valoração feitas dos meios de prova e na formação da sua livre convicção, atentou diametralmente contra todas as regras da lógica e da experiência, extraindo conclusão inteiramente diversa daquela a que chegaria o homem médio colocado na sua posição.
4.–Cremos, desde logo, pois, que enferma a decisão do Tribunal a quo deste vício, o qual determinou o incorreto julgamento como factos tidos por não provados dos consignados em 1. a 5..
5.–É que, do texto da decisão recorrida resulta, directamente e só dele, que teve o Tribunal a quo por provado que o arguido, nas circunstâncias de tempo e lugar em análise, foi submetido ao teste qualitativo de pesquisa de álcool no ar expirado, tendo acusado uma taxa de álcool de 1,74 gramas por litro de sangue, motivo pelo qual foi conduzido à Esquadra de Trânsito, a fim de realizar teste quantitativo, e que, já aqui, após ter sido informado sobre o modo de realização do teste, encostou os lábios no aparelho, fazendo um sopro mínimo, por menos de um segundo de duração, parando de imediato, o que repetiu por (mais) três vezes.
6.–Que teve igualmente o Tribunal a quo por provado que o arguido, nessa sequência, comunicou aos agentes da PSP que não pode realizar esforços, uma vez que foi sujeito a uma cirurgia há cerca de 6 (seis) meses, tendo uma bala ainda alojada no interior do seu corpo, na zona abdominal, e lhes solicitou que lhe fosse realizado exame de sangue, no hospital.
7.–Por outro lado, teve o Tribunal a quo por não provado que, naquela sequência, o arguido foi indagado pelos agentes da PSP relativamente à possibilidade de possuir alguma doença que o impedisse ou inibisse de efectuar o teste quantitativo, não tendo sido apresentado motivo plausível que justificasse a sua recusa, e, portanto, igualmente os factos que integram o elemento subjectivo do tipo de crime pelo qual vinha o arguido acusado, designadamente que o arguido quis, como fez, desrespeitar a ordem de realizar teste de pesquisa de álcool através do método de ar expirado em alcoolímetro quantitativo.
8.–E, finalmente, que teve o Tribunal a quo por provado que, aquando da entrega dos documentos por parte do aqui arguido, foi notório um forte odor a álcool, motivo pelo qual foi submetido ao teste qualitativo de pesquisa de álcool no ar expirado.
9.–Ancorou-se na prova documental junta aos autos, designadamente nos registos e demais documentação clínica que atesta pela condição de saúde do arguido, e, ademais – mas contra a demais prova carreada aos autos –, nas declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento,
10.–Fundamentando que “[e]mbora as testemunhas de acusação tenham sido peremptórias em afirmar que o arguido não efectuou o teste quantitativo de apuramento de álcool no sangue porque não “gostou” da abordagem dos agentes e porque não quis fazer um sopro suficiente, certo é que, da conjugação da versão dos factos apresentada pelo arguido, com os documentos clínicos por este juntos a fls. 30 verso a 35 dos autos, bem como, dos depoimentos prestados pelas testemunhas de defesa, o tribunal ficou com dúvidas que o arguido tenha de modo livre e voluntário efectuado um sopro insuficiente com intenção de não realizar o dito teste”, isto porque “o arguido logrou fazer prova (documental e testemunhal) de que padece de um problema de saúde que facilmente se compreende que lhe cause limitações na realização de um sopro profundo e contínuo como é exigido para a realização do teste de alcoolímetro”, na medida em que “tem receio de que este se movimente no interior do seu corpo provocando algum dano físico, estando medicamente impedido de efectuar esforços”.
11.–Fundamenta o Tribunal a quo ainda que “[é], pois, conforme às regras da lógica e da experiência comum que o arguido após ter já efectuado um sopro forte que permitiu a realização de um teste de alcoolímetro qualitativo com sucesso, e perante desconforto no abdómen, tenha instintivamente se protegido efectuando sopros mais contidos”, e, por isso, que, “[p]erante esta situação, entendemos ser desconforme à normalidade e como tal pouco crível que, o arguido não tenha comunicado aos agentes da Polícia de Segurança Pública que padecia da limitação supra referida e que após o quarto sopro no aparelho quantitativo (quinto no total) tenha alegado que não soprava mais devido ao modo como tinha sido abordado pelos agentes”.
12.–Sucede que, quanto a nós, desconforme às regras da experiência e do normal acontecer é, com o devido respeito, o entendimento do Tribunal a quo.
13.–Pelo contrário, quanto a nós também, é perfeitamente consentâneo com a normalidade do caso concreto, atentos os demais factos tidos por provados, com especial atenção a um: que, aquando da entrega dos documentos por parte do arguido, foi notório um forte odor a álcool, motivo pelo qual foi submetido ao teste qualitativo de pesquisa de álcool no ar expirado.
14.–Isto porque, tivesse o arguido comunicado tal facto e solicitado ao órgão de polícia criminal ser conduzido a unidade hospitalar para aí realizar análise de sangue, tê-lo-ia sido, ou, pelo menos, assim podia e devia o arguido antecipar o curso dos eventos que se seguiriam.
15.–E, se fosse, teria resultado – antecipou-o o arguido, claro, já que foi o próprio quem “confirmou que havia ingerido bebidas alcoólicas na casa do irmão do seu amigo  e que ainda assim conduziu”, e isto verteu o Tribunal a quo na “Motivação da Decisão de Facto” – daquela análise de sangue que conduzia sob a influência do álcool em taxa superior à legalmente permitida para conduzir.
16.–Fosse esse o caso, estaria hoje o arguido condenado (pela segunda vez) pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, ou, pelo menos, repete-se, assim o antecipou o arguido.
17.–Não se pode admitir é que tenha o Tribunal a quo tido por provado que, (um) aquando da abordagem, foi notório um forte odor a álcool emanado pelo arguido, (dois) o arguido comunicou aos agentes da PSP que não pode realizar esforços e lhes solicitou que lhe fosse realizado exame de sangue, que (três) se fundamente o Tribunal a quo com que o contrário seria desconforme às regras da lógica e da experiência comum e à normalidade, e (quatro) para se motivar, valore, contra a demais prova, as declarações do arguido, de onde se retira, além do mais, que “confirmou que havia ingerido bebidas alcoólicas na casa do irmão do seu amigo  e que ainda assim conduziu”.
18.–O arguido – é notório – arriscou a única possibilidade que efectivamente tinha de não ir condenado por crime nenhum, nem por desobediência, nem por condução de veículo em estado de embriaguez,
19.–Quando a intenção do arguido, ao incorrer na prática do primeiro, foi precisamente eximir-se a sujeitar-se à diligência que fazia prova de estar a incorrer na prática do segundo.
20.–Ao que acresce que, admitindo-se como admissível e razoável o entendimento do Tribunal a quo, certo é que o arguido tem nesta estratégia processual (i.e., de omissão da informação médica até que seja presente ao julgador, simulando soprar quando na presença do órgão de polícia criminal) via para que seja definitivamente absolvido pela prática de idênticos comportamentos, porque, por um lado, se diz razoável que este não pudesse soprar (não obstante o ter alegadamente feito de forma inconseguida, por sua livre tentativa e escolha); e, por outro lado, que, apesar de não poder soprar, o arguido o haja feito múltiplas vezes – quiçá coagido pelo órgão de polícia criminal interveniente –, não obstante se ter por certo que, a dado momento (no primeiro, segundo, terceiro, quarto ou quinto sopro?) tenha esclarecido da sua condição alegadamente impeditiva.
21.–Disto qualquer homem médio se dá conta, e a prova foi, lida a matéria de facto tida por provada e por não provada, e à luz das regras da experiência comum, erroneamente apreciada.
Ainda que assim não se entenda,
22.–Porque se crê que, mesmo em caso de colher provimento a verificação do invocado vício do erro notório na apreciação da prova, é possível decidir da causa o Tribunal ad quem, sem reenvio do processo para novo julgamento (artigo 426.º, n.º 1 do Código de Processo Penal), o Ministério Público recorre da sentença absolutória, porquanto crê também que a prova produzida impõe que deva ter-se por provada a matéria de facto vertida em 1. a 5. dos “Factos Não Provados”.
23.–Partindo da prova documental, retira-se corroborada a versão dos factos descrita na acusação deduzida, desde logo, do teor do Auto de Notícia por Detenção e do(s) talão(ões) dos quatro testes de alcoolémia em aparelho quantitativo.
24.–Dos registos e demais documentação clínica que atesta pela condição de saúde do arguido, retira-se apenas que esteve em situação de incapacidade temporária para o trabalho entre as datas de 19-11-2022 e 17-05-2023, por motivo de doença, incapacitado para a sua actividade profissional, por ter sido sujeito a cirurgia e internamento, lendo-se, do “Plano Seguimento/Recomendações”, que “[d]eve cumprir: - Analgesia em SOS; - Manter seguimento em Consulta de Cirurgia Geral (...); - Explicados sinais e sintomas de alarme que devem motivar a vinda ao Serviço de Urgência”.
25.–E do Certificado do Registo Criminal do arguido, que conta com uma anterior condenação, por decisão transitada em julgado em 13-02-2013, pela prática, em 06-01-2013, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
26.–Tudo a corroborar a versão dos factos descrita na acusação, e a contrariar a versão dos factos trazida pelo arguido,
27.–Já que nem mesmo se pode retirar dos registos e demais documentação clínica que tivesse, efectivamente, impedimento ou condicionante para a realização de teste no ar expirado, nem que devesse temer causar danos à sua saúde com a sua realização, e contra isto nem mesmo o arguido, na sua versão dos factos, atenta.
28.–E se daquela tal não resulta, de nenhum elemento probatório adicional o pôde concluir, como erradamente concluiu, o Tribunal a quo.
29.–Partindo da prova testemunhal, do depoimento – gravado no sistema integrado de gravação digital Citius Media Studio do sistema informático de suporte à actividade dos tribunais Citius (19-10-2023, 14:32:00 a 14:40:35) – de BB, agente da Polícia de Segurança Pública (PSP) autuante, bem como do depoimento – (19-10-2023, 14:40:35 a 14:50:21) – de CC, agente da PSP testemunha, resulta, de novo, corroborada a versão dos factos descrita na acusação deduzida,
30.–Já que são, um e outro, unívocos e peremptórios ao afirmar que diligenciaram por saber se o arguido tinha algum problema de saúde ou limitação de ordem física que o impedisse ou condicionasse na realização do teste em questão, isso mesmo lhe indagando directamente, e que o arguido nunca levantou tal argumento, antes repetindo que se recusava a realizá-lo porquanto “não concordava com abordagem”.
31.–As testemunhas trazidas pelo arguido, DD e EE, não tendo estado presentes na Esquadra de Trânsito, atestam à versão dos factos trazida pelo arguido na parte em que este avança que a abordagem pelo órgão de polícia criminal foi “pouco cortês”, e na parte em que, por causa da sua condição de saúde, “não pode fazer esforços”.
32.–Partindo das declarações do arguido – (19-10-2023, 14:15:24 a 14:32:00) –, resulta, além do mais que se já descreveu exaustivamente, que ingeriu bebidas alcoólicas momentos antes de conduzir,
33.–Que respondeu à abordagem do órgão de polícia criminal dizendo “você ‘tá a falar com uma pessoa, não é, não ‘tá a falar com nenhum animal, percebes?, (imperceptível) imagina eu a falar assim com você, você não ia gostar” (01:28_02:13),
34.–Que, embora tivesse conseguido da primeira vez em que o fez, quando abordado na via pública, “fiz aquele esforço, soprei” (04:26_04:37), tentou, já na Esquadra de Trânsito, efectuar o sopro três vezes, mas que, porque “o médico me disse para eu, para não ‘tar a fazer muito esforço”, “eu tentei soprar mas só que da forma que eles querem p’a soprar eu não ‘tou a conseguir fazer naquela máquina”, para “não ‘tar a fazer mais esforço” (04:50_08:20),
35.–E isto apesar de admitir que os dois analisadores, qualitativo e quantitativo, são iguais (08:21_08:35).
36.–Ora, concatenando a prova testemunhal e a prova por declarações do arguido, no confronto com a demais prova carreada aos autos e que os instrui, não se compreende que tenha o arguido ido absolvido.
37.–É claríssimo que o arguido aventou uma versão dos factos segundo a qual se sentiu incapaz, receoso ou temeroso – ora uma coisa, ora a outra, conforme a forma como e o tom com que lhe era posta a pergunta a que respondia – de repetir eficazmente o teste de pesquisa de álcool, e segundo a qual isso mesmo explicou ao órgão de polícia criminal no momento das sucessivas tentativas – ou, por outra, simulações de tentativa – de realizar tal teste, e lhes pediu que o conduzissem ao hospital, para aí realizar análise de sangue.
38.–Isso não é verdade, nem podia ter sido tido como razoável à luz das regras da experiência comum, nem como crível face à normalidade do caso concreto, de forma suficiente ou adequada a criar na convicção do julgador a dúvida que depois conduziria à absolvição.
39.–Primeiro, porque é contraditada, peremptoriamente, pela prova testemunhal, designadamente pela versão dos factos recontada pelas testemunhas policiais.
40.–Testemunhas que nenhum interesse, nada têm a ganhar ou a perder, na condenação ou na absolvição do arguido.
41.–Segundo, porque nem mesmo o arguido tinha nenhum interesse em comunicar tal coisa ao órgão de polícia criminal e em ser conduzido ao hospital, para aí realizar análise de sangue, precisamente porque corria o risco de ser efectivamente conduzido ao hospital e de ali ser efectivamente sujeito à análise em questão.
42.–Isto porque é o arguido quem confessa ter ingerido bebidas alcoólicas momentos antes de conduzir, e sabia, por isso, ou, pelo menos, configurou tal hipótese como possível, que o resultado de tal análise faria prova de que incorria na prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
43.–Nada comunicou nem nada solicitou, e aventou, depois, a única versão dos factos que configurou lhe permitia, eximindo-se à prova cabal do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tentar a sua absolvição pelo crime de desobediência.
44.–O próprio Tribunal a quo considera o facto de que o arguido confessou ter ingerido bebidas alcoólicas momentos antes de conduzir, mas depois não dá a razoável e normal consequência à sua própria consideração.
45.–Terceiro, no rigor dos termos, aquela documentação clínica não atesta pela impossibilidade ou condicionante de o arguido realizar o (nenhum) esforço de efectuar um sopro de breves segundos para realizar um teste de alcoolémia, tão só e apenas atesta por que o arguido tem um projéctil ainda alojado no interior do seu abdómen, tendo sido sujeito a duas cirurgias, que não lograram retirá-lo.
46.–O “salto” dado pelo Tribunal a quo, da situação clínica do arguido – datada, sensivelmente, de meio ano antes da data da prática dos factos – para que tivesse impedimento ou condicionante ou para que devesse temer o “esforço” de um sopro para a realização do mencionado teste também não se nos afigura razoável.
47.–É, por um lado, irrazoável, porque contraria as mais básicas regras da lógica (o arguido não se encontra acamado, trabalha numa frutaria e, nessa circunstância, seguramente respira, suspira e cumpre esforços físicos, ainda que leves ou medianos), e insustentado, pois que o Tribunal a quo não carreou, nem procurou carrear, quaisquer elementos clínicos que permitissem conexionar o resultado (impossibilidade de soprar) com a causa (bala alojada no abdómen).
48.–Quarto, depois de realizar, sem impedimento ou condicionante, teste em alcoolímetro qualitativo, não se diga que o arguido não soubesse que este primeiro “esforço” de efectuar um sopro seria o único “esforço” que teria de fazer naquela noite.
49.–É que o arguido conta já com uma anterior condenação pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, e conhecia de antemão, por isso, todos os procedimentos legais em causa, e sabia, por isso também, no momento em que decidiu fazer aquele primeiro sopro, que, resultando positivo o teste (o que, outra vez, podia antecipar que acontecesse), seria conduzido à esquadra, para aí realizar teste em alcoolímetro quantitativo.
50.–Nada disse, nem nada pediu, porque, naquele momento, podia configurar e configurou o desfecho que qualquer dos caminhos que resolvesse seguir lhe traria, designadamente, o desfecho de solicitar submeter-se a análise de sangue.
51.–E foi por isso, é evidente, que não o fez.
52.–E quinto, se por algum motivo que não por este o arguido não realizou o teste em questão, não foi pelo que disse em audiência de julgamento, foi pelo que disse na hora, recordam as testemunhas policiais, as testemunhas trazidas pelo arguido, e o próprio arguido: porque “não gostou” da abordagem feita pelo órgão de polícia criminal, pelos termos ou pelo tom que lhe foram dirigidos, e resolveu então recusar-se a fazê-lo.
53.–E isto devia ter sido, aos olhos do Tribunal a quo, suficientemente indiciador do animus que presidiu à conduta do arguido.
54.–Então não se compreende, em vista disto tudo, como se pode ter criado qualquer sombra de dúvida na convicção do Tribunal a quo.
55.–Todas as apreciações aqui por nós feitas decorrem, necessariamente, da prova produzida, à luz das regras da experiência comum e do normal acontecer, e são convincentes por demais da responsabilidade criminal do arguido AA pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelos artigos 348.º, n.º 1, al. a) e 69.º, n.º 1, al. c) do Código Penal, por referência ao artigo 152.º, ns.º 1, al. a) e 3 do Código da Estrada, devendo ter-se tido por provados todos os factos constantes da acusação deduzida, concretamente por provados todos os factos tidos por não provados na decisão absolutória recorrida, em 1. a 5. dos “Factos Não Provados”.
*

Termos em que pugna o Ministério Público pelo provimento do recurso, e, em consequência, sempre com o mui douto suprimento desse Venerando Tribunal ad quem, por que:
1.-se reconheça a existência do vício, da decisão recorrida, do erro notório na apreciação da prova, e por que se declare a nulidade da sentença recorrida – nos exactos termos alegados em II., .i), supra;
2.-subsidiariamente, se revogue a decisão recorrida, na parte em que absolveu o arguido, substituindo-a por outra que o condene pela prática, como autor material, de um crime de desobediência, previsto e punido pelos artigos 348.º, n.º 1, al. a) e 69.º, n.º 1, al. c) do Código Penal, por referência ao artigo 152.º, ns.º 1, al. a) e 3 do Código da Estrada – nos exatos termos alegados em II., .ii), supra;
3.-subsidiariamente, ser determine a anulação do julgamento, com todas as consequências legais,

3.O arguido não apresentou resposta ao recurso.

4.Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando o recurso apresentado pelo Ministério Público junto da 1.ª instância, mas salientando, a acrescer aos erros apontados pela Recorrente (arts. 410.º, 2, c) e 412.º, 3, CPP), um outro, “decisório (art 410.º, 2, a), CPP, também de conhecimento oficioso), radicado na insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, ao ter a Mmª Juíza “a quo” abdicado de indagar, com maior tecnicidade, da impossibilidade efectiva de sopros (necessariamente por segundos breves) por parte de quem é objecto da documentação clínica apresentada nos autos, omissão prejudicial da lógica jurídica subjacente à absolvição”.

5.Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP), não foi apresentada resposta.

6.Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II–Fundamentação

1.–Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art. 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art. 410.º n.º 2 CPP.

No caso concreto, atendendo às conclusões da motivação de recurso, cumpre apreciar as seguintes questões:

Recurso do Ministério Publico:
• Do vício do erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c) do CPP);
• Da impugnação da matéria de facto e subsequente subsunção aos elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de desobediência.
Parecer do Ministério Público:
• Do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito (art. 410.º, n.º 2, al. a) do CPP).

2.–Da sentença recorrida

2.1.-O Tribunal a quo deu como provada e não provada a seguinte factualidade:

FACTOS PROVADOS:
1.–No dia 8 de Outubro de 2023, pelas 23h10, na ..., em ..., o arguido conduzia o veículo automóvel marca ..., matrícula ..-..-ST, circulando sem luzes de presença, tendo sido sujeito a fiscalização rodoviária.
2.–Aquando da entrega dos documentos por parte do condutor, foi notório um forte odor a álcool, motivo pelo qual foi submetido ao teste qualitativo de pesquisa de álcool no ar expirado, tendo acusado uma TAS de 1,74 g/l, pelo que, teve de ser conduzido a Esquadra de Trânsito da Divisão de ..., sita na ..., a fim de efectuar o teste quantitativo.
3.–Já na Esquadra de Trânsito, após ter sido informado como fazia o teste, encostou os lábios no aparelho fazendo um sopro mínimo, menos de um segundo, parando de imediato.
4.–O arguido efectuou mais três sopros de forma igual.
Mais se apurou que:
5.–Na sequência dos factos referidos em 3. e 4. o arguido comunicou aos agentes da Polícia de Segurança Pública que não pode realizar esforços, uma vez que foi sujeito a uma cirurgia há cerca de 6 meses, tendo uma bala alojada no seu corpo na zona abdominal e solicitou que lhe fosse realizado exame de sangue, no Hospital.
6.–O arguido foi vítima de um assalto à mão armada, tendo sido baleado, e nessa sequência sujeito a duas intervenções cirúrgicas para remoção da bala - em 16.04.2022 e 28.03.2023 – ainda que sem sucesso, dado o posicionamento do projéctil e a sua deslocação no interior do organismo.
7.–O arguido exerce a actividade de … da ..., auferindo € 847,00 mensais.
8.–O arguido habita com a tia, empregada e uma sobrinha de 5 anos de idade em casa do tio, pela qual paga € 400,00 mensais de renda.
9.–A companheira do arguido e a filha menor do casal vivem no ....
10.–O arguido é pai de mais duas crianças menores, uma que vive na ... e outra em ..., pagando, respectivamente € 100,00 e € 200,00 a título de pensão de alimentos.
11.–O arguido não é devedor de empréstimos bancários.
12.–O arguido tem como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade.
13.–O arguido tem antecedentes criminais, porquanto:
a.-por factos praticados em 06.01.2013, foi condenado por sentença transitada em julgado em 13.02.2013, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, bem como, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses;
b.-por factos praticados em 08.11.2014, foi condenado por sentença transitada em julgado em 17.12.2014 pela prática de um crime de desobediência, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, bem como, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 meses.

FACTOS NÃO PROVADOS
1.–Na sequência dos factos referidos em 3. e 4. dos factos provados, o arguido foi indagado relativamente à possibilidade de possuir alguma doença que o impedisse ou inibisse de efectuar o teste quantitativo, não tendo sido apresentado motivo plausível que justificasse a sua recusa.
2.–O arguido quis, como fez, desrespeitar a ordem de realizar teste de pesquisa de álcool através do método de ar expirado em alcoolímetro quantitativo.
3.–Bem conhecendo o teor da ordem que lhe havia sido transmitida e da qual ficara bem ciente, bem sabendo que a mesma era legítima e que lhe foi emanada de uma autoridade policial com poderes para tal e no cumprimento das funções que por dever profissional lhe estavam incumbidas, e que, por isso, lhe devia obediência.
4.–E bem conhecendo as consequências do desrespeito da mesma, legalmente cominado com a prática de crime de desobediência.
5.–Agindo livre, deliberada e conscientemente, fê-lo bem sabendo que tal conduta é proibida e punida por lei.

2.2.–O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição parcial):
O arguido confirmou que havia ingerido bebidas alcoólicas na casa do irmão do seu amigo DD e que ainda assim conduziu porque o dito DD lhe pediu para este o ir levar a casa. Aquando da fiscalização rodoviária afirma que efectuou o teste de pesquisa de álcool ao ar expirado e que lhe foi depois solicitado que fosse à Esquadra para fazer o teste quantitativo. Na esquadra diz que tentou fazer o sopro mas não conseguia, o agente dizia que não estava a fazê-lo correctamente e o arguido explicou que devido a um assalto sofrido em 2022 em que foi baleado tem a bala alojada no abdómen e receia efectuar esforços que a possam deslocar no interior do corpo, ao que o agente retorquiu que não queria saber e que não o ia levar para o hospital. O arguido esclareceu que foi já sujeito a duas cirurgias, que teve de abandonar o seu anterior emprego porque não pode fazer esforços e que ao efectuar os sopros sentia desconforto na barriga.
BB, agente da Polícia de Segurança Pública, confirmou o teor do auto de notícia de fls. 2 e 3 por si elaborado, nega que o arguido alguma vez tenha referido que tinha algum problema de saúde que o impedisse de fazer sopros, até porque fez o primeiro no aparelho qualitativo. Relatou que no aparelho quantitativo o arguido fez três sopros insuficientes e que após o 4º sopro disse que não fazia mais porque não tinha gostado da abordagem dos agentes. Garantiu a testemunha que se o arguido tivesse alegado que tinha algum problema de saúde tinha sido conduzido ao Hospital para efectuar exame ao sangue ou exame médico.
CC, agente da Polícia de Segurança Pública, confirmou o teor do anterior testemunho, tendo de modo repetido declarado que o arguido se recusou a efectuar o teste quantitativo porque não tinha gostado do modo como tinha sido abordado pelos agentes na via pública porque não tinham pedido para sair do carro por favor.
DD, amigo do arguido desde os 15 anos de idade, encontrava-se no veículo conduzido pelo arguido na data, hora e local dos factos, confirmou que a abordagem dos agentes da Polícia de Segurança Pública foi pouco cortês já que estes após pedirem os documentos pessoais e do veículo ao arguido, o que este entregou, ordenaram-lhe “saia do carro” e disseram “se não sair vai ser pior”. Facto também mencionado, en passant, pelo arguido nas suas declarações. Confirmou que o arguido efectuou o teste qualitativo no local desconhecendo que taxa acusou já que os agentes não mostraram o resultado ao arguido e às testemunhas. Disse que o arguido foi então conduzido à Esquadra e a testemunha juntamente com mais dois indivíduos que se encontravam no veículo dirigiu-se à Esquadra de onde o arguido saiu dizendo que os agentes lhe haviam dito que ele tinha desobedecido e que ia a tribunal porque pediram para soprar e que ele tinha soprado mas não podia fazer tanta força e pediu para ir ao Hospital mas não o levaram. A testemunha disse saber que o arguido tinha uma bala no abdómen que desde a data em que foi baleado não pode fazer esforços e “está a meio gás” aguardando nova cirurgia.
FF, primo do arguido, corroborou o teor do depoimento prestado pela anterior testemunha, o que fez porque também ele se encontrava a circular no veículo do arguido na data, hora e local dos factos e tal como a anterior testemunha acorreu à Esquadra aquando da libertação do arguido.
Embora as testemunhas de acusação tenham sido peremptórias em afirmar que o arguido não efectuou o teste quantitativo de apuramento de álcool no sangue porque não “gostou” da abordagem dos agentes e porque não quis fazer um sopro suficiente, certo é que, da conjugação da versão dos factos apresentada pelo arguido, com os documentos clínicos por este juntos a fls. 30 verso a 35 dos autos, bem como, dos depoimentos prestados pelas testemunhas de defesa, o tribunal ficou com dúvidas que o arguido tenha de modo livre e voluntário efectuado um sopro insuficiente com intenção de não realizar o dito teste.
De facto, se os senhores condutores, na maioria das vezes, levianamente, alegam não conseguir fazer o sopro no alcoolímetro sem que tenham qualquer impedimento físico para tal e claramente para evitar o apuramento de taxa de álcool no sangue e a subsequente acusação pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, entendemos que não é este o caso dos autos, sendo antes a excepção que confirma a regra.
Efectivamente, o arguido logrou fazer prova (documental e testemunhal) de que padece de um problema de saúde que facilmente se compreende que lhe cause limitações na realização de um sopro profundo e contínuo como é exigido para a realização do teste de alcoolímetro. O arguido tem um projéctil alojado no abdómen desde 16.04.2022, foi já sujeito a duas cirurgias, a última das quais em 28.03.2023, que não lograram conseguir a sua remoção, e tem receio de que este se movimente no interior do seu corpo provocando algum dano físico, estando medicamente impedido de efectuar esforços, sendo certo que, a realização de uma inspiração forte e expiração igualmente forte e contínua provoca inevitavelmente uma contração e extensão do abdómen que vai para além do normal acto de respirar. É, pois, conforme às regras da lógica e da experiência comum que o arguido após ter já efectuado um sopro forte que permitiu a realização de um teste de alcoolímetro qualitativo com sucesso, e perante desconforto no abdómen, tenha instintivamente se protegido efectuando sopros mais contidos.
Perante esta situação, entendemos ser desconforme à normalidade e como tal pouco crível que, o arguido não tenha comunicado aos agentes da Polícia de Segurança Pública que padecia da limitação supra referida e que após o quarto sopro no aparelho quantitativo (quinto no total) tenha alegado que não soprava mais devido ao modo como tinha sido abordado pelos agentes.
Em face do exposto, tendo o nosso ordenamento jurídico consagrado o princípio in dubio pro reo, de acordo com o qual uma situação non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorada a favor do arguido, o Tribunal considerou como não provado que o arguido tivesse agido pelo modo constante da acusação, designadamente que tenha efectuado um sopro insuficiente propositalmente pretendendo como tal recusar-se a efectuar o teste quantitativo de pesquisa de álcool no ar expirado, antes tendo dado como provada a versão dos factos apresentada pela defesa.
(…)
A prova das condições socioeconómicas do arguido, resultou das suas declarações, que se reputaram de suficiente credibilidade.
No que respeita aos antecedentes criminais do arguido, foi considerada o certificado junto a fls. 15 a 18.
***

3.–Apreciando
Como é sabido, e resulta do disposto no art. 368.º aplicável ex vi art. 424.º n.º 2, ambos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer, em primeiro lugar das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão e só após das que a este respeitem, começando pelas relativas à matéria de facto, e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e depois dos vícios previstos no art. 410.º n.º 2 do Código do Processo Penal. Finalmente, e sendo o caso, debruçar-se-á sobre as atinentes à matéria de Direito.
Nessa medida, independentemente da ordem pela qual o recorrente suscita as questões, na sua apreciação o tribunal de recurso deve seguir uma ordem de precedência lógica que atende ao efeito do conhecimento de umas em relação às outras, tendo por referência a ordem indicada na disposição legal citada.
In casu o recorrente manifesta a sua discordância relativamente à decisão sobre a matéria de facto, impugnando-a por duas vias:
- com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o art. 410.º, n.º 2 do CPP (impugnação em sentido estrito, no que se denomina de «revista alargada»), concretamente, por verificação de erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c) do CPP);
- mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP (impugnação em sentido lato), com isso pretendendo inverter o sentido da decisão absolutória e subsequente subsunção aos elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de desobediência.
Ora, quanto a este último segmento, impõe-se, conforme resulta da análise do normativo correspondente (n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP), que o recorrente enumere/especifique os pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como que indique as provas que, no seu entendimento, impõem decisão diversa da recorrida, e não apenas a permitam, assim como que especifique, com referência aos suportes técnicos, a prova gravada.
Tal delimitação decorre da circunstância de a reapreciação da matéria de facto não se traduzir num novo julgamento, mas antes num “remédio jurídico”, destinado a suprir eventuais erros. Por conseguinte, se a decisão proferida for uma das soluções plausíveis, a mesma será inatacável.
Pretende, pois, o recorrente sindicar a valorização dos meios de prova realizada pelo tribunal a quo, visando a reapreciação da prova produzida, no âmbito do recurso amplo da matéria de facto, de modo a ter-se por provada a matéria de facto vertida em 1. a 5. dos “Factos Não Provados”.
Porém, não dá cumprimento ao disposto nos nºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, na medida em que não indica qualquer prova produzida que tenha a virtualidade de impor, claramente, decisão diversa em relação aos factos da sentença recorrida que considera incorretamente julgados.
Com efeito, não invoca o recorrente em seu apoio meios de prova que não tivessem sido considerados pelo tribunal a quo, mas antes questiona a avaliação que o tribunal fez daqueles, concretamente, das declarações do arguido, porquanto, na sua perspetiva, houve lugar a uma inconsistente aplicação do princípio in dubio pro reo.
No essencial, aquilo que resulta das conclusões do recurso é a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal fixou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127.º do CPP.
Nessa medida, o tribunal de recurso não poderá fazer uma nova apreciação da matéria de facto, ficando apenas limitado ao poder/dever de conhecer oficiosamente qualquer dos vícios indicados no art. 410.°, n.°s 2 e 3 do CPP, designadamente, aquele que é apontado pelo Ministério Público em 1ª instância - erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c) do CPP) -, mas também aquele que é salientado pelo Exmo. Procurador Geral Adjunto (parecer) junto desta Relação, ou seja, da insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito (art. 410.º, n.º 2, al. a) do CPP).
Os vícios em questão devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer provas documentadas, limitando-se a atuação do tribunal de recurso à sua verificação na sentença e, não podendo saná-los, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento - art. 426.º, n.º 1 do CPP.
Ora, da análise da peça processual colocada em crise não se vislumbra, salvo melhor opinião, a ocorrência de qualquer erro notório, ou seja, qualquer “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum (…) de onde resulta que o “tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das lege artis” (Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, “Recursos Penais”, 9.ª ed. 2020, Editora Rei dos Livros, p. 81).
Ao invés, e nos termos claramente acertados pelo Exmo. Procurador Geral Adjunto, vislumbra-se, no texto da decisão recorrida, a verificação do vício a que se refere a alínea a), do n.º 2 do art. 410.º do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ou seja, uma efetiva “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão do de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher” (in op. cit. p. 75).
Com efeito, as declarações do arguido “impressionaram” o tribunal a quo, que se “escudou”, de modo a justificar o seu juízo absolutório, na aplicação do princípio in dubio pro reo.
O princípio em referência, tem efetiva relevância e aplicação no domínio da apreciação da prova.
Porém, refletindo-se nos contornos da decisão de facto, apenas será de aplicar quando o julgador, finda a produção de prova, tenha ficado com uma dúvida não ultrapassável relativamente a factos relevantes, devendo, apenas nesse caso, decidir a favor do arguido.
No caso concreto, e desta feita conforme consignado pelo Exmo. Senhor Procurador Geral Adjunto em parecer emitido nos autos (mas também nos termos aflorados pelo Ministério Público na 1ª instância, embora com diferente enquadramento), “o Tribunal recorrido apelou à normalidade das coisas para sedimentar uma incerteza, que reputou irresolúvel e insuperável, justamente a de saber se o condutor AA quis furtar-se à acção fiscalizadora, aquando do momento de expiração de ar pelo analisador quantitativo (como pugnado pelo MºPº, que secundou a versão policial, contida no auto de notícia por detenção) ou, diversamente, se se viu impedido de realizar aquele procedimento regulamentar por incapacidade física, motivada por questões clínicas, cuja existência dela deu então conta aos agentes de autoridade, já na esquadra.”

Todavia, a documentação clínica apresentada pela defesa não esclarece essa impossibilidade, na medida em da mesma não se pode retirar a certeza de que o arguido tivesse impedimento ou condicionante para a realização de teste no ar expirado, nem que devesse temer causar danos à sua saúde com a sua realização.

Deveras, e fazendo uso das interrogações formuladas pelo Exmo. Senhor Procurador Geral Adjunto, como entender o teor da papelata médica-hospitalar que não consigna incapacidades, genéricas ou específicas, considerando mesmo que, à apalpação, o paciente, aqui arguido, se revela indolor, e tal quadro em momento remoto, coincidente com a alta clínica?” (cf. documentação clínica junta pelo arguido em contestação, onde se retira que esteve em situação de incapacidade temporária para o trabalho entre as datas de 19-11-2022 e 17-05-2023, por motivo de doença, incapacitado para a sua actividade profissional, por ter sido, na circunstância de vítima de um assalto à mão armada, baleado no abdómen, sujeito a cirurgia e internamento. Lê-se, da “Condição do Doente na Alta”, que se encontrava em estado de “clinicamente melhorado, hemodinamicamente estável, apirético. Sem queixas álgicas. Abdómen mole, depressível, indolor à palpação. Sem defesa ou sinais de irritação peritoneal. A tolerar dieta. Trânsito intestinal mantido por colostomia. Diurese mantida por agália”, e do “Plano Seguimento/Recomendações” que “deve cumprir: - Analgesia em SOS; - Manter seguimento em Consulta de Cirurgia Geral (…); - Explicados sinais e sintomas de alarme que devem motivar a vinda ao Serviço de Urgência”).
Porque prescindiu o Tribunal recorrido de obter parecer especializado, já que se trata de questão técnica que requer conhecimento abalizado, em regra subtraído à livre apreciação do Julgador (arts 151º e 163º, CPP), para esclarecer a assumida dúvida?”
O “salto” dado pelo tribunal a quo, quanto à situação clínica do arguido – datada, sensivelmente, de meio ano antes da data da prática dos factos – para que tivesse impedimento ou condicionante ou para que devesse temer o “esforço” de um sopro para a realização do mencionado teste, pode e deve ser preenchido através de elementos clínicos que permitam conexionar o resultado (impossibilidade de soprar) com a causa (bala alojada no abdómen).
É para esta realidade que o parecer do Exmo. Procurador Geral Adjunto chama a atenção, ou seja, o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa materialidade não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do tribunal.
Em suma: há factos não apurados, referentes à impossibilidade efetiva dos sopros, que são relevantes para a decisão da causa e que o tribunal deixou de investigar, como devia e podia, sendo a matéria de facto insuscetível de adequada subsunção jurídica.
O suprimento deste vício, subsumível à alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, não pode ser realizado por este Tribunal da Relação, pois implica a produção da prova necessária à decisão da questão, como seja, a de indagar, com maior tecnicidade, da impossibilidade efetiva de sopros por parte de quem é objeto da documentação clínica apresentada nos autos, omissão prejudicial da lógica jurídica subjacente à absolvição, sendo dever do tribunal a quo apurar/clarificar o real quadro factual, ao abrigo do disposto no art. 340.º do CPP, em ordem a poder proferir uma decisão justa.
A questão de facto é da competência do Tribunal do Julgamento, com necessária procedência do recurso.

III–Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em, nos termos dos artigos 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1 al. c), 410.º, n.º 2, alínea a), e 428.º do CPP, oficiosamente declarar a insuficiência da matéria de facto para a decisão e determinar, conforme o disposto no artigo 426.º do CPP, o reenvio do processo para novo julgamento, mas unicamente quanto aos aspetos atrás mencionados, valendo o critério estabelecido no artigo 426.º-A, nºs 1 e 2, do mesmo código.
Sem custas.
Notifique.
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Lisboa, 09 de Abril de 2024


(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)


Ester Pacheco dos Santos
Ana Cláudia Nogueira
Sandra Oliveira Pinto