ACORDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA Nº 1/2015
ELEMENTOS SUBJECTIVOS DO CRIME
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DA ACUSAÇÃO
Sumário

I–O que o STJ arreda, no AUJ n.º 1/2015, é que o acrescento de factos consubstanciadores do elemento subjetivo do tipo de ilícito imputado venha a redundar na transformação de uma conduta atípica (por falta de devida descrição do elemento subjetivo) numa conduta típica, ou punível, ainda que não importe a imputação de crime diverso (em plano distinto do âmbito de aplicação dos arts. 1.º, al. f), 358.º e 359.º do Cód. Processo Penal).

II–No caso de serem descritos na acusação factos que integram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os elementos atinentes ao dolo, poderá haver convolação, em sede de julgamento, para a imputação do mesmo crime base, a título de negligência, por via da alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nos termos previstos no artigo 358º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Processo Penal.

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

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1–Relatório

1.1- Decisão recorrida
Por sentença de 25/09/2023, foram os arguidos AA, BB e CC, devidamente identificados nos autos, absolvidos da prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de fraude sobre mercadorias, previsto e punido pelos artigos 3.º, n.º 1 e 23.º, n.º 1, b) do DL n.º 28/84, de 20 de janeiro.

1.2Recurso
Não concordando com a decisão, o MINISTÉRIO PÚBLICO interpôs recurso da mesma pugnando pela condenação dos arguidos, terminando com as seguintes conclusões:
«1.–Nos presentes autos foi proferida uma acusação contra os arguidos AA e BB pela prática de um crime de fraude sobre mercadorias p.p. pelo disposto no artº 23º. nº 1 do DL nº28/84 de 20.01, ex vi do artº 35º, nº 1, do regulamento (EU) 1379/2013 de 11.12 e anexo I da Portaria nº 587/2006 de 22.06 e, ainda, à arguida "CC", a prática do mesmo crime, nos termos do disposto no artº 3º, nº 1 do DL 28/84 de 20.01.
2.–Realizado o seu julgamento, a Mmª Juíza a quo absolveu os três arguidos entendendo não estarem preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime em análise. Contudo,
3.–Os factos provados nos pontos 3 a 6 da sentença recorrida preenchem o elemento objetivo do crime de fraude sobre mercadoria, p.p. pelo disposto no artº 23º, nº 1, al.b) do DL 28/84 de 20.01.
4.–Assim, o tribunal recorrido não aplicou corretamente a norma do artº 23 nº1, al.b) do DL nº 228/84 de 20.01, incorrendo em erro da aplicação da matéria de direito, nos termos do artº 412º, nº 2, al.a) do CPP.
5.–A Mmª Juíza a quo incorreu, ainda, no vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e, ainda, no erro notório de apreciação da prova, nos termos previstos no artº 410º, nº 2, al.b) e al.c) do CPP, sendo que, quanto ao primeiro, por concluir pela absolvição dos arguidos pelo não preenchimento do tipo objetivo quando considerou provados os factos a que se alude no ponto 3, o que bastaria para o seu preenchimento, sendo a fundamentação manifestamente contraditória com tais factos, e consequentemente com a decisão. É um erro notório porquanto da apreciação da prova produzida em julgamento a conclusão a retirar, quanto ao elemento subjetivo do tipo, é precisamente a inversa daquela que foi retirada pela Mm Juíza a quo, ou seja, a prova produzida em sede de julgamento e os factos provados permitem concluir pelo evidente dolo direto dos arguidos.
6.–Sob a epígrafe "Subsunção jurídica da factualidade apurada", a Mmª Juíza a quo invocou que, não constando da acusação a factualidade relativa à vertente negligente do crime, não pode este Tribunal, em sede de julgamento, acrescentar tal elemento, pois como se fixou no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ n.º 1/2015, o acórdão de fixação de jurisprudência do STJ nº 1/2015.
7.–Tal Acórdão é inaplicável in casu porquanto só visa os casos em que na acusação não se descrevem os elementos subjetivos do tipo de crime, o que não é manifestamente o caso dos autos. 0 elemento subjetivo (dolo) vem claramente descrito nos pontos 7,8, 9 e 10 da acusação pública
8.–Ainda, salvo devido respeito, a Mm Juíza não andou bem ao considerar que não se encontrava descrito na acusação o elemento subjetivo do tipo, querendo reportar-se à negligência.
9.–Ora, a transposição de um crime doloso para um crime negligente importará sempre alguma alteração factual, uma vez que os factos que traduzem o elemento subjetivo do crime não são coincidentes. Tal alteração será não substancial porquanto não implica a imputação aos arguidos de um crime diverso, nem agrava os limites máximos das penas aplicáveis — conforme artigo 1º, alínea f) do Código de Processo Penal. 0 que está em causa é a imputação do mesmo crime, não na forma dolosa que constava da acusação, mas na sua forma negligente e a alteração teria por efeito, não a agravação, mas a diminuição do limite máximo das sanções aplicáveis.
10.–Em consequência o Tribunal a quo violou os artigos 13º, 14º,15º e 358º, todos do Código Processo Penal (CPP), bem como, o nº 2 da norma do arts 23º, do DL n.º 28/84, de 20 de janeiro e o artº 410º, nº 2, al. a) do CPP.
11.–Resultou amplamente provado que os arguidos são donos da peixaria há mais de 20 anos, pelo que têm uma vasta experiencia e conhecimento das espécies piscícolas e dos procedimentos comerciais desde a sua aquisição até à sua venda ao consumidor; que os arguidos haviam comprado 105,08 quilos de pampo da antártica no dia anterior à fiscalização, conforme fatura junta aos autos (documento a fls 5); que os arguidos são responsáveis e dominam o manuseamento, embalamento e venda ao consumidor do referido peixe (pampo); que os arguidos mantiveram na montra em exposição/mostruário para venda as 6 embalagens "cherne de posta", espetada de cherne" e cubos de cherne" a que se alude no ponto 3 das conclusões e, que na arca frigorífica que dá apoio ao mostruário, situada nas traseiras da loja, encontravam-se, ainda, no mínimo, duas dezenas de embalagens de pampo com a designação de "cherne", ou seja, os rótulos eram idênticos aos que estavam no mostruário, conforme depoimento das testemunhas DD e EE, inspetores do IRAE; apesar da quantidade elevada de pampo comprada, mais de cem quilos, não existia no mostruário para venda ao consumidor qualquer embalagem com a designação comercial de pampo; que os arguidos tinham conhecimento de que o cidadão comum desconhece a designação científica do peixe pampo, especificamente o consumidor açoriano , porquanto tal espécie piscícola não é proveniente do mar dos Açores, não é vista nas lotas nem é vista nas peixarias, conforme depoimento da testemunha FF, formado em biologia e inspetor nos Açores há mais de 20 anos; também era do conhecimento dos arguidos que o consumidor medio está bastante familiarizado com a espécie piscícola denominada no mercado por cherne, a qual, por ser bem conhecida no mercado é extremamente vendável ao inverso da outra, o pampo, que, por ser desconhecida, não tem esta característica; os arguidos tinham conhecimento que o que releva para o consumidor é o tipo de peixe que quer consumir e, se for mais barato, facilita e favorece a tomada de decisão, não cabendo ao consumidor a ponderação ou o escrutínio sobre o motivo pelo qual o vendedor escolheu um preço que lhe é mais favorável (podíamos especular sobre dezenas de motivos, como por exemplo, porque tem muito peixe para escoar ou, porque já foi adquirido há algum tempo ou porque quer fazer um estudo de mercado relativamente a esse peixe e por isso vende-o mais barato, etc, etc).
12.–Do teor da conclusão que antecede e das regras da experiencia comum resulta inequívoco que a veracidade e a autenticidade do produto que se destinava à venda ao consumidor foi violada, ou seja, é evidente à saciedade o artifício e o engano engendrado pelos arguidos para levarem os consumidores a comprarem o peixe, violando-se duplamente o consumidor quer quanto ao tipo de peixe quer quanto na confiança depositada no vendedor há tantos anos. O dolo direto é assim inegável e inequívoco.
13.–Não obstante tudo o que ficou já supra referido, o tribunal a quo poderia ter, caso assim o entendesse, aditar aos factos provados um novo facto não substancial nos termos do art. 358º do CPP, com seguinte teor:
7)- Nas circunstancias de tempo e Lugar referidos no ponto 3 dos factos provados, os arguidos conservavam numa arca frigorífica existente nas traseiras do seu estabelecimento, pelo menos, duas dezenas de embalagens de rotulo de idêntico teor às 6 embalagens descritas no referido ponto 3.
14.–O Tribunal a quo poderia ainda dar como provado outro facto não substancial, à semelhança do supra referido no ponto anterior, nos termos do art. 358º do CPP, com o seguinte teor:
8)- O pampo da antártica não é um peixe dos mares dos Açores, não é conhecido da generalidade dos açorianos e não se vê à venda em Lota ou nas superfícies comerciais açorianas.
15.–Face à prova produzida em sede de julgamento e à aplicação das as regras da experiencia comum, da normalidade e da boa fé nas praticas comerciais e na venda de bens ao consumidor tem que se concluir pelo preenchimento do elemento subjetivo do tipo, ou seja, o dolo direto.
16.–Os arguidos quiseram enganar os clientes levando-os a pensar que estavam a comprar cherne, agindo, livre, deliberada e conscientemente bem sabendo que as suas condutas eram previstas e punidas por lei criminal.
17.–Qualquer consumidor médio confrontado com a designação/inscrição "cherne" nas embalagens dos arguidos confiaria que se tratava realmente de um peixe dessa espécie, para mais, encontrando-se tais embalagens à venda numa peixaria que tem o selo da marca "Açores" e clientela estabelecida ao longo de 20 anos de existência.
18.–Assim, em face de todo o exposto facilmente se conclui, contrariamente às conclusões da douta sentença recorrida que os arguidos não cometeram um mero "lapso não intencional" nem foi por mero engano que agiram da forma supra descrita. Pelo que incorreu o tribunal nos referidos vícios já indicados no ponto 5, conjugados com as regras da experiência comum, tendo igualmente violado o principio da livre apreciação da prova previsto no artº 127º do Cód. P.P.»

1.3O recurso foi admitido por tempestivo e legal, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo, o qual foi alterado para meramente devolutivo por este Tribunal, por ser o legalmente determinado.

1.4O arguido AA apresentou resposta ao recurso, pugnando pela respetiva rejeição.

1.5Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, onde refere, designadamente:
«(…)Como bem demonstra a ilustre recorrente, são várias as enfermidades que afligem a sentença em causa.
Recordemos, antes do mais, que trata este caso do art.° 23.° n.° 1, b), do DL. 28/84, que consagra o crime de “Fraude sobre mercadorias”.
O tipo defende os direitos dos consumidores e a boa fé nas relações negociais, punindo aquele que, além do mais, vender mercadorias de natureza diferente ou de qualidade inferior às que afirma oferecer.
A negligência é punida, art.° 23.° n.° 2 DL 28/84.

Uma primeira crítica feita à sentença em causa centra-se na afirmação da mesma de que não se provaram os “elementos típicos objectivos” do crime em causa, o que é visível no seguinte parágrafo:
“Ora, sem necessidade de grandes desenvolvimentos, da análise da factualidade dada como não provada [cfr. as alíneas a) a d), dos factos não provados] facilmente se constata não se encontrarem provados os elementos típicos objectivos... do crime que lhe vinha imputado”.

Ora, os factos provados n.°s 1 a 6 da sentença em crise correspondem à integralidade dos factos necessários para se concluir pela perfeição dos elementos objectivos do tipo.
Este aspecto é bem fundamentado no recurso em análise.
Retira daqui a ilustre recorrente a prática pela sentença em crise de um erro de julgamento em matéria de direito. Sê-lo-á certamente, mas é também uma insanável contradição entre a fundamentação e a decisão, art.° 410.° n.° 2 b) CPP.

3.1.-É certo que resta a interpretação de que a M.a juiz a quo incorreu em mero lapso naquele excerto da sentença que transcrevemos, pois que quereria dizer apenas que não se encontram provados os elementos típicos subjectivos, o que se retira da sua referência às alíneas a) a d) dos actos não provados. Porém, pela importância desta asserção na economia da sentença, cremos que nos quedamos já fora dos casos de correcção da sentença (art. 380.° n.° 1, b) CPP), sendo de imputar este lapso à referida contradição insanável.

4–Explora seguidamente a ilustre recorrente a ideia de erro notório na apreciação da prova, destacando afirmações da sentença sindicada, ínsitas na sua motivação, que verdadeiramente são desfasadas da actuação dos agentes económicos e da realidade da vida económica.
Assiste-lhe inegável razão.
Ademais, a afirmação da sentença de que o “normal consumidor”, perante a venda do produto com a verdadeira nomenclatura científica e a um preço inusual, logo detectaria que não se tratava de “cherne”, desmerece dos princípios de uma sã interpretação da prova e aprofunda o denunciado erro notório na apreciação da prova. Olvida o tribunal a quo o verdadeiro engodo para o consumidor que é a oportunidade de comprar um peixe de carne nobre (e caro) a um preço mais em conta, como soe dizer-se.
Verdade é, porém, que a ilustre recorrente na explanação da sua ideia, se socorre de elementos estranhos a sentença, colocando-se não tanto na busca de um erro endógeno da mesma, mas na afirmação de um erro de julgamento, a censurar ao abrigo do art.° 412.° n.° 3 CPP.
Uma vez que, cuidadosamente, se identificam as concretas provas que impõem, decisão diversa da recorrida, com identificação do preciso local de gravação dos depoimentos, parece-nos em condições de proceder esta impugnação ampla da matéria de facto.

5–O recurso aborda depois a mais evidente vulnerabilidade exibida pela sentença em crise, a impossibilidade de se considerar a forma negligente do crime em causa, por não constar da acusação a factualidade relativa à vertente negligente do crime e ser vedado pelo STJ (A.F.J n.° 1/2015) a integração de tais elementos omissos.
Como bem se expõe no recurso em análise, o acórdão do STJ acima referido, interessa apenas para os casos em que a acusação (ou o despacho de pronúncia) é totalmente omisso quanto aos elementos subjectivos do crime que estiver em causa.

Isso mesmo se retira do próprio A.F.J. 1/2015, na sua Fundamentação, ao enunciar a questão a dilucidar, onde expressis verbis se afirma que “A questão que nos vai ocupar traduz-se em saber se, perante a omissão total ou parcial, na acusação, de elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito a que nela se faz referência, nomeadamente do dolo, o tribunal de julgamento pode, por recurso ao art.° 358.° do CPP (alteração não substancial dos factos) integrar os elementos em falta”.
Trata-se, portanto, de uma decisão do STJ para os casos de omissão ou esquecimento de descrição na acusação dos elementos subjectivos do tipo.
Não é o caso dos autos.
In casu, o MP deduziu acusação pelo tipo doloso.
A sentença em crise assume claramente que se prova o tipo negligente, mas interpretando erradamente, s. m. o. o citado A.F.J. abstém-se de operar a convolação para o crime negligente.
Ou seja, por outras palavras, a sentença em crise diz-nos que é impossível convolar um crime do tipo doloso para a forma negligente.
Sempre e em qualquer caso.
É bem verdade que por força da estrutura acusatória do processo, princípio de raiz constitucional (art.° 32.° n.° 5 CRP), o juiz de julgamento está vinculado aos termos da acusação (ou pronúncia) não podendo emendar uma acusação imperfeita para a salvar, decorrência também das garantias de defesa de que todo o arguido deve beneficiar num processo equitativo, justo e contraditório.
É também verdade que o legislador renunciou a um critério de rígido imobilismo do libelo acusatório, reconhecendo que a dinâmica do julgamento, a par do dever do juiz de julgamento de ordenar a produção de todos os meios de prova necessários à descoberta da verdade (art.° 340.° n.° 1, CPP), podem levar a alterações da acusação.
Daí a consagração das figuras das alterações substanciais e não substanciais da acusação (art.°s 359.° e 358.° CPP).
Ora, sobre esta possibilidade de, por meio da alteração não substancial dos factos, se convolar uma acusação por dolo numa condenação por mera negligência, respigamos um dos inúmeros arestos que o admitem.

Referimo-nos ao AC. TRE de 9 de Novembro de 2021, proc. n.° 53/18.5GCLLE.E1 cujo sumário afirma que
“No caso de serem descritos na acusação factos que integram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente, os elementos atinentes ao dolo, poderá haver convolação, em sede de julgamento, para a imputação do mesmo crime base, a título de negligência, por via da alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nos termos previstos no artigo 358°, n.°s 1 e 3, do CPP”.
É muito curioso ler este acórdão da Relação de Évora. É que o aí recorrente, o arguido, socorria-se do mesmo argumento que levou a M.a juiz a quo a rejeitar a convolação: o A.F.J. n.° 1/2015.
Sopesando esta argumentação, a Relação de Évora disse lapidarmente que
No que ao presente caso importa, se é certo que como refere o recorrente, de harmonia com a jurisprudência fixada no AUJ n.° 1/2015, de 20/11/2014, não podem os factos atinentes ao elemento subjetivo do tipo, quando não sejam descritos na acusação, ser integrados, em julgamento, por via de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nos termos previstos no artigo 358° do CPP, também não é menos certo, que, no caso de serem descritos na acusação factos que integram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente, os elementos atinentes ao dolo, poderá haver convolação, em sede de julgamento, para a imputação do mesmo crime base, a título de negligência, por via da alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nos termos previstos no artigo 358°, n.°s 1 e 3, do CPP”.

Notar-se-á ainda que rematando a frase que vimos de transcrever, a Relação de Évora lançou em nota de rodapé uma série de outros acórdãos concordantes com a posição defendida, aliás a única que se mostra avisada.
Aliás, importa frisar que o art.° 358.° CPP não oferece um poder discricionário ao juiz de julgamento. Impõe-lhe um dever.
Aprofundando o lapso de que enferma a sentença, haverá de ter-se em conta que os factos que levam seguramente à condenação pelo tipo negligente de fraude sobre mercadorias resultam das próprias palavras dos arguidos. São factos alegados pela defesa, caso em que a M.a juiz a quo poderia ter condenado (em convolação) sem as formalidades a que se reporta o n.° 1 do art.° 358.° CPP.

6– Em resumo, assiste boa razão à digna recorrente sobre os inúmeros vícios que identifica na sentença em crise, devendo o recurso em análise ter provimento; se não pela condenação dos arguidos a título de dolo, pelo menos e seguramente pela sua condenação por mera negligência.»

1.6Notificado o parecer, não foi apresentada qualquer resposta.

1.7Realizada a Conferência, cumpre decidir.
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2.–Questões a decidir no recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância, sem prejuízo das questões que forem de conhecimento oficioso (artigos 379.º, 403.º, 410.º e 412.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal e AUJ n.º 7/95, de 19/10/95, in D.R. 28/12/1995).
Considerando as questões de conhecimento oficioso a impor a apreciação deste Tribunal, atendendo às conclusões apresentadas cumpre apreciar os vícios/nulidades da decisão.
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3.–Fundamentação

3.1- Decisão Recorrida

É de seguinte teor a decisão recorrida:
«(…)Da prova produzida e discussão da causa resultaram os seguintes:

1.–FACTOS PROVADOS:

1.1.- FACTOS CONSTANTES DA ACUSAÇÃO
1.–A arguida CC desenvolve, além do mais, a atividade de comércio a retalho de peixe, crustáceos e moluscos, em estabelecimentos especializados comércio por grosso de peixe, crustáceos e moluscos, atividade de pesca, aquacultura, exploração de viveiros, produção e venda de gelo, indústria transformadora da pesca e da aquacultura, preparação e congelação de produtos da pesca e aquacultura, secagem e salga de produtos da pesca e aquacultura, armazenagem frigorífica, importação e exportação de peixe, crustáceos e moluscos.
2.–Em Março de 2022, o arguido AA e a arguida BB eram os únicos sócios gerentes da arguida CC e, nessa medida, responsáveis por toda atividade desenvolvida pela mesma.
3.–No desenvolvimento de tal atividade, no dia 10/03/2022, pelas 11h, no horário de abertura ao público, nas instalações da ... da arguida CC, sitas na ..., o arguido AA e a arguida BB, agindo em nome e no interesse da arguida CC, tinham em exposição, num mostruário para venda ao público, 6 (seis) produtos com a denominação nos respetivos rótulos: “espetada de cherne”, “cherne em cubos” e “cherne em posta”, cuja espécie que constava das rotulagens era “hyperoglyphe antarctica”.
4.–A denominação “cherne” corresponde às espécies: “polyprion americanus” e “polyprion oxigeneios”.
5.–Assim, a espécie “hyperoglyphe antarctica” não pode ser denominada como “cherne”, atenta a natureza diferente entre a espécie hyperoglyphe antarctica” e as espécies “polyprion americanus” e “polyprion oxigeneios”.
6.– Os produtos identificados em 3, não continham “cherne” na sua composição, mas sim “hyperoglyphe antarctica”, não obstante exibissem a denominação “cherne” nos respetivos rótulos.

1.2.–FACTOS RELATIVOS ÀS CONDIÇÕES ECONÓMICAS, PESSOAIS, SOCIAIS E PROFISSIONAIS DOS ARGUIDOS
7.-O arguido AA é casado com a arguida BB.
8.-Tem a empresa co-arguida e a empresa ....
9.- Vive com a co-arguida, em casa própria pagando empréstimo bancário de 540,00 €.
10.-Recebe da ..., a título de salário, 1.540,00 €.
11.-Tem o 4.º ano de escolaridade.
12.-A arguida BB recebe da empresa co-arguida o salário mínimo regional.
13.-Tem o 4.º ano de escolaridade.
14.-A arguida CC, tem volume de negócios brutos mensais entre € 70.000,00 e 80.000,00.
15.-Apresenta como despesas de água entre 400,00 € e 500,00 €, de luz entre 4.000,00 € e 5.000,00.
16.-Tem 2 sócios como funcionários, os quais auferem 400,00 €, mensais, e 6 empregados, 2 deles recebendo, mensalmente, o salário mínimo regional, e os demais recebendo € 800,00, mensais.

1.3.–ANTECEDENTES CRIMINAIS
17.-Os arguidos não têm quaisquer antecedentes criminais.
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2.–FACTOS NÃO PROVADOS:
a)-O arguido AA e a arguida BB atuaram, em representação e no interesse da arguida CC, bem sabendo que colocavam à venda 6 (seis) produtos da espécie “hyperoglyphe antarctica”, como se tratassem de “cherne”, sabendo ainda que estes produtos tinham natureza e composição diferente da espécie “cherne”, sendo que para o efeito, aproveitando-se da natureza do próprio produto em causa, em estado congelado e embalado e ainda de no rótulo elaborado constar a denominação “cherne”, acreditando qualquer homem médio que o ingrediente principal era “cherne”, o que quiseram e conseguiram.
b)-O arguido AA e a arguida BB sabiam que de tais condutas não só resultaria o engano dos consumidores finais, como também, poderia resultar o engano de eventuais intermediários nas transações, agindo, assim com a intenção de enganar terceiros nas relações negociais, o que quiseram e conseguiram.
c)-O arguido AA e a arguida BB, como representantes da arguida CC, sabiam de que não podiam expor para venda os produtos, melhor identificados no ponto 3, sem que os mesmos estivessem rotulados e identificados com as respetivas reais designações comerciais e que ao expor e vender tal mercadoria como se de “cherne” se tratasse, atuava de modo a provocar engano nas relações comerciais, o que quiseram e conseguiram.
d)- O arguido AA e a arguida BB agiram de forma livre, voluntária e consciente, nos atos supra descritos, bem sabendo que tais condutas não lhes eram permitidas por lei e eram punidas penalmente.
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3.–MOTIVAÇÃO:
A convicção do Tribunal adveio da ponderação crítica do conjunto da prova produzida e analisada em audiência de discussão e julgamento.
Assim:
Quanto aos factos dados como provados nos n.ºs 1 a 6, a convicção do tribunal fundou-se no teor das declarações do arguido AA, não infirmadas, e corroboradas pelo teor da certidão da conservatória do registo comercial de fls. 55-65, bem como pelo teor dos autos de aprensão de fls. 8-9, fotogramas de fls. 43 e pelo teor do depoimento de DD, EE, inspectores da IRAE, e FF, inspectores das pescas, que procederam à inspecção em causa e a descreveram nos mesmos moldes que o arguido.
Quanto à condição pessoal, social, económica e profissional dos arguidos constante dos n.ºs 7 a 16, a convicção do tribunal fundou-se no teor das declarações conjugadas dos arguidos, as quais não se mostraram contrariado por qualquer elemento existente nos autos, nem por qualquer regra da normalidade ou experiência comum.
Quanto à ausência de antecedentes criminais dos Arguidos (cfr. o facto 17, dado como provado), a convicção do Tribunal filiou-se nos certificados do registo criminal, juntos a fls. 190-192.
Quanto aos factos dados como não provados constantes das alíneas a) a d), a falta de convicção do tribunal fundou-se, apesar das declarações produzidas pelo Arguido AA, confessando a materialidade dos factos, na ausência de prova relativamente ao dolo, em qualquer das suas modalidades, da infracção em causa.
Assim é que, da troca de etiquetagem em causa, devidamente confessada, não resulta, sem mais, que a mesma seria para enganar a clientela e potenciar vendas.
Tal circunstancialismo foi negado pelo arguido e não brota de qualquer outro elemento dos autos ou de qualquer regra da normalidade ou experiência comum.
É certo que a troca em causa poderia ser para enganar o consumidor final.
Mas não é menos certo que poderá, como verbalizou o arguido, tratar-se de um mero lapso de etiquetagem, normal em quem tem diariamente vários produtos para etiquetar e mais a mais quando estava em causa produto de aspecto semelhante.
Mais, no caso dos autos, as regras da experiência até apontam para o mero erro ou lapso de etiquetagem não intencional, porquanto foi mantido o nome científico do peixe que estava a ser vendido e o preço deste, o que permitiria ao normal consumidor, dada a desproporção de valores entre o valor de venda de ambos os peixes, logo detectar ser impossível a venda de Cherne àquele valor, tanto mais que não estava a ser anunciada uma qualquer promoção e que, como reportaram os inspectores ouvidos, está em causa uma empresa que opera no mercado há muitos anos, com inúmeras inspecções, e nunca tal havia ocorrido.
Não colhe, aqui, pois, a ideia de que a intenção era potenciar as vendas vendendo um peixe mais conhecido.
Conhecimento e vontade de enganar induzir-se-ia se o preço oferecido fosse o do Cherne ou semelhante, não um valor muito mais baixo que permitia facilmente detectar o erro ocorrido.
***

B.–DE DIREITO:

1.–ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL

1.1.–DO CRIME DE FRAUDE SOBRE MERCADORIAS
Vistos os factos, apliquemos agora o direito que se rotula aplicável.
Os arguidos AA e BB vêm acusados da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de fraude sobre mercadorias, previsto e punido pelo artigo 23.º n.º 1 b) do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro ex vi artigo 35.º n.º 1 do Regulamento (UE) 1379/2013, de 11 de Dezembro e anexo I da Portaria n.º 587/2006, de 22 de Junho, e a arguida CC, vem acusada a prática do mesmo crime, nos termos do disposto no artigo 3.º n.º 1 do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro.
Tal crime, no que ora interessa, está previsto e punido no art. artigo 23.º n.º 1 b) do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro, segundo o qual “quem, com intenção de enganar outrem nas relações negociais, fabricar, transformar, introduzir em livre prática, importar, exportar, reexportar, colocar sob um regime suspensivo, tiver em depósito ou em exposição para venda, vender ou puser em circulação por qualquer outro modo mercadorias: b) De natureza diferente ou de qualidade e quantidade inferiores às que afirmar possuírem ou aparentarem, será punido com prisão até 1 ano e multa até 100 dias, salvo se o facto estiver previsto em tipo legal de crime que comine para mais grave.”, resultando a punição das pessoas colectivas, nos termos do art. 3.º, n.º 1, de tal diploma legal.
*

1.2.–SUBSUNÇÃO JURÍDICA DA FACTUALIDADE APURADA
Visto o crime em causa, passemos, agora, à análise em concreto da situação dos autos, isto é, à subsunção jurídica da factualidade apurada para concluirmos se estão, ou não, preenchidos os elementos típicos do crime que vem imputado aos arguidos.
Ora, sem necessidade de grandes desenvolvimentos, da análise da factualidade dada como não provada [cfr. as alíneas a) a d), dos factos não provados] facilmente se constata não se encontrarem provados os elementos típicos objectivos e subjectivos do crime que lhe vinha imputado.
Tais elementos competiam, como é sabido, à acusação provar .
Contudo, pelas razões que melhor resultam da motivação de facto, a prova em causa não logrou fazer-se.
Para que se pudesse concluir pela condenação do Arguidos, era, pois, necessária, a prova de muito mais.
Era necessária a prova de que foi com conhecimento e intenção a troca em causa, o que não ocorreu, nos termos melhor constantes da motivação, pelo que se impõe a absolvição dos Arguidos relativamente ao crime de que vinham acusados.
E, note-se que, não constando da acusação a factualidade relativa à vertente negligente do crime, não pode este Tribunal, em sede de julgamento, acrescentar tal elemento, pois como se fixou no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ n.º 1/2015, “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.”.»

3.2–Nulidade da sentença - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada:
Vêm apontadas várias irregularidades à sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância que absolveu os arguidos da prática do crime de fraude de mercadorias p. e p. pelo art. 23.º n.º 1, b) do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro.
No que concerne à invocada contradição entre os factos provados e a decisão (art. 410.º, n.º 2, al. b), do Cód. Processo Penal) - na parte em que esta refere não se encontrarem preenchidos os elementos do tipo objetivo do crime – a expressa referência, nessa proposição, à factualidade não provada nas alíneas a) a d), reconduz-nos, sim, à ausência dos elementos do tipo subjetivo, pelo que é manifesto estarmos perante lapso material que, por si, apenas determinaria a correção da sentença nos moldes previstos no art. 380.º do Cód. Processo Penal.
Mas, no mais, os vícios relevam.
Começando, exatamente, pela última afirmação acima transcrita, vemos que o Tribunal a quo absolveu os arguidos por ter considerado não verificados os elementos subjetivos do tipo de crime cuja prática vinha (na forma dolosa) imputada aos arguidos.

Determina o artigo 23.º do D.L. n.º 28/84, de 20 de janeiro, sob a epígrafe fraude sobre mercadorias:
«1–Quem, com intenção de enganar outrem nas relações negociais, fabricar, transformar, introduzir em livre prática, importar, exportar, reexportar, colocar sob um regime suspensivo, tiver em depósito ou em exposição para venda, vender ou puser em circulação por qualquer outro modo mercadorias:
a)-Contrafeitas ou mercadorias pirata, falsificadas ou depreciadas, fazendo-as passar por autênticas, não alteradas ou intactas;
b)-De natureza diferente ou de qualidade e quantidade inferiores às que afirmar possuírem ou aparentarem, será punido com prisão até 1 ano e multa até 100 dias, salvo se o facto estiver previsto em tipo legal de crime que comine para mais grave.
2–Havendo negligência, a pena será de prisão até 6 meses ou multa até 50 dias.
3–O tribunal poderá ordenar a perda das mercadorias.
4–A sentença será publicada.»

Os arguidos AA e BB foram acusados da prática, em coautoria material e na forma consumada, um crime de fraude sobre mercadorias, previsto e punido pelo artigo 23.º n.º 1 b) do DL n.º 28/84, de 20 de janeiro ex vi artigo 35.º n.º 1 do Regulamento (UE) 1379/2013, de 11 de Dezembro e anexo I da Portaria n.º 587/2006, de 22 de Junho, e a arguida CC, pela prática do mesmo crime, nos termos do disposto no artigo 3.º n.º 1 do DL n.º 28/84, de 20 de janeiro, na sua forma base, dolosa.
Contudo, o tipo legal prevê a punição da conduta negligente (n.º 2).
Refere o Tribunal a quo, considerando não provada a conduta dolosa, não poder conhecer da factualidade atinente à vertente negligente do crime, invocando o Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência (AUJ) n.º 1/2015.
Mas fê-lo em desconformidade com os pressupostos que determinaram a emissão da mencionada decisão.
Reporta-se a mesma às situações em que os factos integradores do elemento subjetivo do tipo de ilícito imputado se encontram deficientemente descritos na acusação pública ou particular ou são de todo omissos, definindo-se que o Tribunal não poderá, então, integrar esta omissão sob pena de violar a estrutura acusatória do processo, o direito de defesa do arguido e as demais garantias consagradas nos arts. 18.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Sendo o nosso processo penal de estrutura acusatória, encontra-se subordinado ao princípio da vinculação temática, ao objeto definido pela acusação (ou pronúncia), que assim demarca o thema probandume os limites da decisão (thema decidendum), garantindo o contraditório.
Mas obedecendo a uma estrutura essencialmente acusatória, o nosso sistema processual penal não é de acusatório puro, mas sim temperado por um princípio de investigação da verdade material.
E admite que a narração dos factos na acusação não seja exaustiva e que factos ou circunstâncias relativas ao crime possam surgir durante a discussão da causa, após a acusação, matéria regulamentada nos artigos 1.º, al. f), 283.º, 303.º, 358.º e 359.º do Cód. Processo Penal que distinguem entre “alteração substancial” e “alteração não substancial” dos factos descritos na acusação ou pronúncia.
Por isso, refere o STJ na mencionada decisão que «A audiência de julgamento é uma das fases do processo que está obrigatoriamente subordinada ao princípio do contraditório, mas tal não colide com o aludido princípio de investigação da verdade material. O juiz não está impedido de averiguar por si, autonomamente, a verdade material do caso, sem estar sujeito ao acervo factual aduzido pelo Ministério Público, pelo assistente ou pelo arguido, podendo investigar livremente e ex officio, desde que respeitados os ditames do due process of law e necessariamente com subordinação ao princípio do contraditório. Com efeito, os sujeitos processuais não estão incapacitados de exercerem a sua actividade probatória de forma plena, como o arguido conserva todos os direitos específicos que lhe dizem respeito, nomeadamente o direito de audiência, acima explicitado. Por isso, um tal ónus imposto ao juiz, que, no fundo, representa a contrapartida da ausência de um ónus de alegar ou contradizer que recaia sobre as partes, maxime, sobre o arguido, não contraria a estrutura basicamente acusatória do nosso processo penal.
(…)A acusação continua a ser condição e limite do julgamento, com plena validade dos princípios implicados por ela, um dos quais, como vimos, é o da identidade. Este confere uma certa rigidez ao objecto do processo, em nome, como já se afirmou, do direito de defesa do arguido. Porém esta rigidez não pode ser tal que impeça o juiz de averiguar, por sua iniciativa, todos os factos relevantes, devendo ele, como já visto, proceder a uma investigação esgotante dos factos que se integram no objecto do processo, ainda que nele não explicitados, porque o objecto do processo não se reduz aos contornos fixados na acusação ou na pronúncia.»
Para resolver o problema da articulação entre a rigidez do objeto do processo e a sua flexibilização, consagraram-se os institutos da alteração substancial e não substancial dos factos nos arts. 1.º, al. f), 358.º e 359.º do Cód. Processo Penal, com os mesmos se procurando o equilíbrio da investigação da verdade material (a que o juiz de julgamento se encontra obrigado – art. 340.º do Cód. Processo Penal) com o princípio do acusatório e do imperativo da defesa do arguido.
O elemento subjetivo do tipo define a relação do agente com determinada ação ou omissão, com o facto objetivo praticado, sendo pressuposto da imputação. Por isso, o art. 283.º, n.º 3 al. b), do Cód. Processo Penal impõe que o mesmo conste da acusação, sob pena de nulidade.
E o que o STJ arreda, no AUJ n.º 1/2015, é que o acrescento de factos consubstanciadores do elemento subjetivo do tipo de ilícito imputado venha a redundar na transformação de uma conduta atípica (por falta de devida descrição do elemento subjetivo) numa conduta típica, ou punível, ainda que não importe a imputação de crime diverso (em plano distinto do âmbito de aplicação dos arts. 1.º, al. f), 358.º e 359.º do Cód. Processo Penal).
Mas manifestamente não é essa a situação dos autos, já que a acusação descreve o elemento subjetivo do tipo legal cuja prática é imputada aos arguidos.

Ali se refere, nomeadamente:
«7.-O arguido AA e a arguida BB atuaram, em representação e no interesse da arguida CC, bem sabendo que colocavam à venda 6 (seis) produtos da espécie “hyperoglyphe antarctica”, como se tratassem de “cherne”, sabendo ainda que estes produtos tinham natureza e composição diferente da espécie “cherne”, sendo que para o efeito, aproveitando-se da natureza do próprio produto em causa, em estado congelado e embalado e ainda de no rótulo elaborado constar a denominação “cherne”, acreditando qualquer homem médio que o ingrediente principal era “cherne”, o que quiseram e conseguiram.
8.-O arguido AA e a arguida BB sabiam que de tais condutas não só resultaria o engano dos consumidores finais, como também, poderia resultar o engano de eventuais intermediários nas transações, agindo, assim com a intenção de enganar terceiros nas relações negociais, o que quiseram e conseguiram.
9.-O arguido AA e a arguida BB, como representantes da arguida CC, sabiam de que não podiam expor para venda os produtos, melhor identificados no ponto 3, sem que os mesmos estivessem rotulados e identificados com as respetivas reais designações comerciais e que ao expor e vender tal mercadoria como se de “cherne” se tratasse, atuava de modo a provocar engano nas relações comerciais, o que quiseram e conseguiram.
10.-O arguido AA e a arguida BB agiram de forma livre, voluntária e consciente, nos atos supra descritos, bem sabendo que tais condutas não lhes eram permitidas por lei e eram punidas penalmente.»
Vem, assim, descrito o elemento subjetivo do tipo, nos vários elementos que compõe a sua forma dolosa (art. 14.º do Cód. Penal) - no seu elemento intelectual, bem como no seu elemento volitivo e emocional.
Sinteticamente, vem descrito o conhecimento (previsão ou representação), por parte dos agentes, das circunstâncias do facto, ou, por outras palavras, o conhecimento dos elementos materiais constitutivos do tipo objetivo do ilícito e a vontade, por parte dos agentes, de realizar o facto típico, depois de terem representado (ou previsto) as circunstâncias ou elementos do tipo objetivo do ilícito.
E no caso de serem descritos na acusação factos que integram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente, os elementos atinentes ao dolo, poderá haver convolação, em sede de julgamento, para a imputação do mesmo crime base, a título de negligência, por via da alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nos termos previstos no artigo 358º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Processo Penal.
Vindo os arguidos acusados pela prática do crime de fraude sobre mercadorias p. e p. pelo art. 23.º do D.L. 28/84, de 20 de janeiro, na sua forma dolosa, podem ser condenados pelo mesmo crime, na sua forma negligente, não se verificando, nessa situação, uma alteração substancial dos factos constantes da acusação – na definição constante do artigo 1.º, al. f), do CPP –, pois resulta na imputação subjetiva menos grave do crime em causa, estando-se antes perante uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação e uma, consequente, alteração da sua qualificação jurídica, que deve ser comunicada ao arguido, em observância do disposto no artigo 358º, n.ºs 1 do Cód. Processo Penal1.
A situação que nos ocupa reporta-se à venda de peixe (sem prejuízo das unidades armazenadas/depositadas nos mesmos moldes, de acordo com as declarações das testemunhas), embalado e etiquetado na sociedade arguida.
A fatura de venda contém a designação correta do produto, quanto ao nome comercial e científico. As etiquetas apostas nas embalagens, tendo o nome científico correto, exibem distinto nome comercial – em concreto “Cherne”.
As normas comunitárias e nacionais de organização do mercado no sector dos produtos da pesca e da aquicultura preveem que os produtos da pesca e da aquicultura só podem ser propostos para venda a retalho e ao consumidor final, independentemente do método de comercialização, se uma marcação ou rotulagem adequada indicar a denominação comercial, o método de produção e a zona de captura. A Portaria 587/2006, de 22 de junho aprova em anexo a lista das denominações comerciais autorizadas em Portugal e as autorizadas apenas nas regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.
Do anexo II vemos que sob a denominação comercial de Cherne podem ser comercializadas as espécies Polyprion americanus e Polyprion oxigeneios.
Nenhuma das embalagens apreendidas nos autos, nas quais figurava a denominação comercial “Cherne”, continha estas espécies.
O arguido AA, admitindo esta circunstância, referiu ter-se tratado de um erro, como se expõe na motivação (aparentando o Tribunal acolher a bondade desta versão). Mas não se procurou apurar como e em que termos poderá ter ocorrido este erro, vendo que a classificação da denominação comercial se encontra determinada por lei, a espécie científica correspondia à espécie efetivamente embalada e esta denominação estava correta.
Nada se procurou apurar, aliás, a respeito do embalamento na sociedade arguida, processo do qual se poderá extrair a intenção dos arguidos ou a eventual violação de regras, de deveres de cuidado que orientam as boas práticas neste sector.

E, na aquisição dos factos, tendo em vista o princípio do apuramento da verdade material, encontra-se o Tribunal de julgamento obrigado à produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (art. 340.º do Cód. Processo Penal), incumbindo-lhe também o dever de, de igual modo, levar em conta todos os factos que resultem da discussão da causa e importem à sua boa decisão, ainda que com recurso aos mecanismos previstos nos arts. 358.º e 359.º do Cód. Processo Penal.

E podendo fazê-lo oficiosamente, também o deve fazer a requerimento, incumbindo aqui especiais deveres funcionais ao recorrente, que tem o ónus de suporte da acusação.

Posto isto, resta-nos concluir que o Tribunal recorrido, devendo e podendo fazê-lo (nada resultando dos autos em contrário), não investigou toda a matéria de facto com relevo para a decisão da causa, o que determina que a matéria dada como assente não permite, dada a sua insuficiência, a aplicação do direito ao caso.
Estamos, assim, perante o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, que gera a nulidade da sentença – arts. 374.º, 379.º, n.º 1, als. a) e c) e 410.º, n.º 2, al. a) do Cód. Processo Penal e impede a decisão da causa.

Nenhum outro caminho nos resta que não seja o de determinar a anulação (parcial) do julgamento e o consequente reenvio do processo para novo julgamento restrito às questões atinentes ao apuramento do elemento subjetivo do crime - cfr. arts. 340.º, 410.º, n.º 2, al. a), 426.º, n.º 1 e 426.º-A, todos do Cód. Proc. Penal.
Em consequência, fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas em recurso.
*

4.–Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, em consequência, anular parcialmente a sentença recorrida, ordenando o reenvio do processo para reabertura da audiência de julgamento pelo mesmo Tribunal, restrita à questão do apuramento do elemento subjetivo do crime, ao abrigo dos artigos 340.º, 410.º, n.º 2, al. a), 426.º, n.º 1 e 426.º-A, todos do Cód. Processo Penal.
*
Sem custas (art. 513º, nº1, do Cód. Processo Penal).
Notifique.
*


Lisboa, 9 de abril de 2024


Mafalda Sequinho dos Santos
(Juíza Desembargadora Relatora)
Sandra Oliveira Pinto
(Juíza Desembargadora Adjunta)
Carlos Espírito Santo
(Juiz Desembargador Adjunto)



1.Neste sentido, Ac. TRE de 9/11/2021, Proc. n.º 53/18.5GCLLE.E1, Ac. da RC de 22/05/2013, Proc. n.º 387/10.7PBAMD.C1 e Ac. da RE de 23/02/2021, Proc. 1901/15.7TDLSB.E1, acessíveis in www.dgsi.pt.