JUROS COMERCIAIS
CADUCIDADE DO DIREITO À ELIMINAÇÃO DE DEFEITOS
QUESTÃO NOVA
Sumário

I - O art. 102.º, § 3, do Código Comercial, não exige que o ato seja comercial relativamente a ambas as partes, referindo ser aplicável aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou coletivas, por isso, nos atos de comércio unilaterais estabelecidos com consumidores são devidos juros comerciais por força da citada disposição legal.
II- A caducidade do direito de exigir a eliminação de defeitos na obra é uma exceção perentória, de conhecimento não oficioso, porque estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes, por essa razão, perante a invocação, pelo dono da obra, da exceção de não cumprimento do contrato consubstanciada na existência de defeitos, o empreiteiro teria, ou na audiência prévia ou no início da audiência final, querendo paralisar esta exceção, que invocar a referida caducidade.
III- Não o tendo feito num dos referidos momentos, não pode fazê-lo em sede de recurso, já que este é um meio de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.

Texto Integral

Processo nº 12164/19.5T8PRT.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Local Cível do Porto-J2

Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Drª. Ana Paula Amorim




Sumário:
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I - RELATÓRIO

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

A..., Lda., com sede na Rua ..., Centro Comercial ..., Barcelos  instaurou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra a AA residente na Rua ..., Porto, pedindo que o mesmo seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 20.796,19 euros (vinte mil, setecentos e noventa e seis euros e dezanove cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, que se venceram em 02-11-2016, no valor de € 3.150,76 euros (três mil, cento e cinquenta euros e setenta e seis cêntimos) e vincendos, até integral pagamento.
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Alega em resumo que contratou com o Réu a reabilitação de uma habitação unifamiliar localizada em Campanhã, Porto.
Acontece que, do peço global da obra no montante de € 60.486,19, ainda falta pagar a quantia de € 20.796,19.
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Em virtude do óbito do Réu AA ocorrido em 20/10/2017, foram habilitados os seus sucessores BB, CC e DD.
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Citados, os herdeiros habilitados nos autos deduziram contestação pugnando pela improcedência da ação, mais alegando que a obra apresenta vários defeitos que a Autora nunca corrigiu.
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Teve lugar a audiência de discussão e julgamento que decorreu com a observância das formalidades legais.
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A final foi proferida decisão que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou os Réus, na qualidade de herdeiros de AA, a pagar à Autora A..., Lda. a quantia de € 20.796,19 (vinte mil setecentos e noventa e seis euros e dezanove cêntimos), obtida que seja da Autora a eliminação dos defeitos mencionados em 23. dos factos provados.
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Não se conformando com assim decidido veio a Autora interpor o presente recurso concluindo pela seguinte forma:
I. Desde logo, padece de nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos do disposto na alínea d) do artigo 615º do Código de Processo Civil, a douta decisão que, julgando o pedido de indemnização principal parcialmente procedente não se pronunciou, sobre o pedido de pagamento de juros.
II. Devendo a mesma ser suprida, em despacho proferido como complemento, pronunciando-se sobre os juros peticionados pela Autora.
III. Ademais, a Autora/ Recorrente não se conformando com a segunda parte da decisão, “obtida que seja da Autora a eliminação dos defeitos mencionados em 23.”, dela recorre.
IV. Visto o Aresto recorrido, resulta que o dever de “eliminação dos defeitos mencionados em 23”, é consequência da denúncia e pedido de correção desses mesmos defeitos. Independentemente de ter sido devolvida a carta mencionada no facto provado n.º 21, ou de terem passado mais de três anos desde a “denuncia” dos defeitos e o exercício do direito.
V. A carta datada de 03.01.2007, não chegou ao conhecimento da Autora e, por ser um elemento que consta da documentação (doc n.º 1 junto com a contestação) deve ser aditado ao facto dado como provado sob o n.º 21.
VI. Devendo passar a constar do facto n.º 21 “Através da sua Mandatária, o Réu enviou à Autora carta, datada de 03.01.2017, que não foi reclamada ….”–devendo o demais ficar consignado tal como está.
VII. Aditado este elemento ao facto dado como provado n.º 21.º, face aos demais elementos que constam dos autos e da assentada, resulta que só nos presentes autos os Réus denunciam os defeitos da obra.
VIII. Ora, detetados os defeitos em 2016/2017, o prazo de denuncia há muito que se encontra ultrapassado. Estando caducado o prazo para denuncia dos defeitos nos termos conjugados dos artigos 1224.º e 1225.º do CC.
IX. Por outro lado, mesmo que se considere o prazo de denuncia não caducado, mantendo-se o facto provado sob o n.º 21 tal como está, certo é que, o direito à eliminação dos defeitos não foi efetuado nem através de ação judicial, nem com notificação extrajudicial à Autora ou judicial avulsa. Não operou o efeito impeditivo da caducidade.
X. A ação destinada a exigir a eliminação dos defeitos teria de ser interposta dentro do prazo de um ano, desde que verificados os defeitos, sob pena de caducidade do direito.
XI. As obras foram realizadas no ano de 2016. Como se percebe pelas alegações dos Réus, os defeitos foram percecionados nesse ano e “comunicados” em janeiro de 2017, sendo que a contestação com reconvenção dos Réus, é de 10 de dezembro de 2020.
XII. Os Réus quando vieram exercer judicialmente o direito à eliminação dos defeitos por via da reconvenção que deduziu nos presentes autos, já havia decorrido o prazo de um ano, a que aludem os artigos 1224.º e 1225.º do Código Civil.
XIII. Pelo que, sempre caducou o direito dos Réus à eliminação dos defeitos e, como tal, deve ser revogada a sentença recorrida nesse segmento, devendo manter-se o demais decidido pela douta sentença.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir:
a)- saber se a decisão padece de nulidade por omissão de pronúncia;
b)- saber se se verifica a exceção da caducidade no que tange à obrigação da Autora na eliminação dos defeitos.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

É a seguinte a matéria factual que o tribunal recorrido deu como provada.
1. A Autora dedica-se à atividade de construção civil e empreitadas de obras públicas. Preparação dos locais de construção, nomeadamente terraplenagens.
2. O Réu necessitava de uma empresa que procedesse à reabilitação de uma habitação unifamiliar, sita em Largo ..., …, Porto, constituída por dois pisos destinados a habitação.
3. O contrato de empreitada para a referida obra, foi inicialmente adjudicado a B..., com sede Rua ..., Fração M, ... ..., Penafiel.
4. Por intermédio do sócio-gerente da referida sociedade foi estabelecido um contrato de subempreitada com a Autora para a referida obra.
5. Este contrato de subempreitada foi constituído logo para o início da obra.
6. O pedido de emissão de alvará de licença de obra de edificação relativo ao prédio em questão, foi requerido pela Autora, em 28-08-2015.
7. O termo de responsabilidade relativo à direção técnica da obra foi prestado pelo engenheiro que trabalhava para a Autora.
8. A obra teve início em abril de 2015.
9. O réu propôs à Autora que a empreitada ficasse de sua responsabilidade.
10. E a decisão foi tomada nesse sentido, numa reunião tida em 19 de abril de 2016, com a presença do Réu, da Autora e da referida empresa de construção B....
11. Nessa reunião ficou acordado pelas três partes que o contrato de empreitada seguiria pela Autora.
12. Foi enviado orçamento para o Réu que concordou e aceitou.
13. A Autora teve reuniões com a arquiteta da obra.
14. No âmbito da referida empreitada, a Autora obrigava-se a realizar obras de reabilitação de uma habitação unifamiliar sita no Largo ... no Porto que consistiam nos seguintes trabalhos: isolamentos, impermeabilizações, revestimentos, carpintarias, pinturas, equipamentos sanitários, serralharias, instalação elétrica, pichelaria, diversos, eletricidade, sistema solar, desaterro, muro, escada, paredes, teto e pavimento, gás, saneamento, janela chave, rodapé, pladur e pintura.
15. Além dos trabalhos orçamentados, o Réu solicitou trabalhos extra.
16. A Autora emitiu o orçamento n.º 001_201504, com data de 22-04-2015, no valor total de 48.930,00€ a que acresce IVA à taxa legal em vigor.
17. A Autora emitiu os orçamentos n.º 002_201605, com data de 12-05-2016, no valor total de 1.140,00 €, Orçamento n.º 003_201605, com data de 12-05-2016, no valor total de 455,00 €, Orçamento n.º 005_201605, com data de 12-05-2016, e um valor total de 4.273,60 €, Orçamento n.º 006_201605 com data de 12-05-2016, no valor total de 4.705,50 €, Orçamento n.º 014_201606 com data de 30-06-2016, no valor total de 1.150,00 €, Orçamento n.º 022_201607, com data de julho 2016, no valor total de 225,00 €, Orçamento n.º 023_201608, com data de 05-09-2016, com o valor total de 2.950,00 €, Orçamento n.º 024_201608, com data de 05-09-2016, no valor total de 1.105,90 €, Orçamento n.º 030_201608 com data de 06-09-2016, no valor total de 4.229,00 €, e Orçamento n." 035_201610, com data de 21-10-2016, no um valor total de 925,85 €.
18. Dos mencionados orçamentos foram emitidos autos que deram origem às faturas n.º 1/2016 com data de 11-07-2016 no valor de 21.200,00 €; n.º 2/2016 com data de 02-11-2016 no valor de 33.250,35 € e Fatura n.º 3/2016 com data de 03-11-2016 no valor de 6.035,84 €.
19. O Réu pagou a quantia de 39.690,00 €.
20. A Autora enviou ao Réu a carta datada de 09 de dezembro de 2016, na qual lhe solicita o “pagamento do valor em dívida de € 19.484,19 (dezanove mil, quatrocentos e oitenta e quatro euros e dezanove cêntimos), referente ao não pagamento de faturas já vencidas e não pagas.
21. Através da sua Mandatária, o Réu enviou à Autora carta, datada de 03.01.2017, da qual consta “Na qualidade de Advogada e em representação do Senhor AA, passamos a expor a V. Exa. o seguinte: (…) somos a devolver em anexo as faturas n.ºs 2/2016 e 3/2016, a 02.11.2016 e a segunda de 03.11.2016, porquanto, o nosso Constituinte nenhuma quantia deve à sociedade comercial representada por V. Exa. Com efeito, conforme é do conhecimento de V. Exa., para a obra efetuada foi realizado e aceite um orçamento que pressupunha a entrega da casa concluída com chave na mão, na quantia de 48.930,00€ (quarenta e oito mil novecentos e trinta euros). Valor que se encontra pago pelo nosso Constituinte, pois que, foi-lhe entregue mediante transferências bancárias várias a quantia total de 38.480,00€ (trinta e oito mi quatrocentos e oitenta euros). Acresce que, a pedido expresso de V. Exa., o nosso Constituinte adquiriu directamente vários materiais e serviços para a identificada obra, que aquando da orçamentação tinham ficado ao encargo de V. Exa., e com os quais o nosso Constituinte veio a despender um valor superior a 30.000,00€ (trinta mil euros). Por outro lado, conforme é também do conhecimento de V. Exa., para além da aquisição de materiais e serviços de forma directa a pedido expresso de V. Exa., ficaram ainda por realizar serviços orçamentados da V. responsabilidade. Não foram aceites pelo nosso Constituinte orçamentos extraordinários. Ademais (…) no momento presente a obra apresenta defeitos vários, a saber: a) Revestimento de capoto com imperfeições; b) Má impermeabilização do chão do rés-do-chão na parte acrescentada “nova”, c) Entrada de água pela parede do lado da vizinha. Defeitos esses, cuja reposição é da responsabilidade de V. Exa, devendo por isso diligenciar no sentido da respetiva eliminação. Entretanto, a obra do nosso Constituinte sofreu um atraso muito considerável por causas exclusivamente imputáveis a V. Exa., o que originou na esfera do mesmo um prejuízo elevado e que ao momento não é ainda possível quantificar. (…) Face a tudo quanto fica acabado de se expor, o nosso Constituinte não procederá ao pagamento da quantia de 19.484,19€, porquanto nada deve à sociedade comercial de que V. Exa. é legal representante e/ou a V. Exa. Em anexo à presente comunicação vão devolvidas as faturas números 2 e 3 de 2016, (fotocópias na medida em que os originais não foram entregues ao nosso Constituinte nem lhe foram remetidas através de correio). Vai ainda V. Exa. interpelado para em 15 dias proceder à eliminação dos defeitos existentes na obra (casa).”
22. A pedido da Autora o Réu adquiriu materiais e serviços para a obra.
23. A obra apresenta o revestimento de capoto com imperfeições; má impermeabilização do chão do rés-do-chão na parte acrescentada “nova”; infiltrações de água pela parede do lado da vizinha.
24. O referido em 23. não foi corrigido pela Autora apesar da solicitação do Réu para o fazer.
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Factos não provados:

Não se provou que:
a) A obra teve o seu término em outubro de 2016.
b) O orçamento de € 48.930,00 pressupunha a entrega da casa concluída com a chave na mão.
c) O Réu pagou à Autora quantia superior à referida em 19.
d) Com o referido em 22. o Réu despendeu a quantia total €30.000,00.
e) O Réu pagou a fornecedores da Autora os montantes de €4.971,48 e de €2.078,70.
f) O referido em 22. ocorreu em virtude de a Autora não ter crédito junto dos fornecedores.
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III. O DIREITO

Como supra se referiu a primeira questão que vem colocada no recurso prende-se com:
a)- saber se se verifica, ou não, nulidade por omissão de pronúncia.
Nas conclusões I e II alega a apelante que a decisão recorrida não se pronunciou sobre a questão dos juros peticionados na ação.
Importa, desde logo, salientar que suscitada em recurso a nulidade da sentença, cabe ao juiz do tribunal a quo, imediatamente antes de ordenar a sua subida, pronunciar-se sobre a nulidade arguida (artigos 617.º, n.º 1, e 640.º, n.º 1, do CPC).
Essa pronúncia foi omitida, mas não se justifica que se mande baixar o processo à primeira instância (n.º 5 do artigo 617.º) dado, por um lado a evidência do cometimento de tal nulidade e, por outro a apreciação simples que a mesma reveste.
Como resulta do pedido formulado pela Autora aí se pediu a condenação do Réu no pagamento da quantia de € 20.796,19 euros (vinte mil, setecentos e noventa e seis euros e dezanove cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, que se venceram em 02/11/2016, no valor de € 3.150,76 euros (três mil, cento e cinquenta euros e setenta e seis cêntimos) e vincendos, até integral pagamento.
Ora, na parte dispositiva da sentença e sem qualquer fundamento omitiu-se a apreciação da questão dos juros moratórios.
Nos termos do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 615.º do CPCivil a sentença é nula sempre que “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Estabelece-se nesta previsão legal a consequência jurídica pela infração ao disposto no artigo 608.º, nº 2, do mesmo diploma legal. Ou seja, a nulidade prevista na alínea d) está diretamente relacionada com o nº 2 do artigo 608.º, referido, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Conforme este princípio, cabe às partes alegar os factos que integram o direito que pretendem ver salvaguardado, impondo-se ao juiz o dever de fundamentar a sua decisão nesses factos e de resolver todas as questões por aquelas suscitadas, não podendo, por regra, ocupar-se de outras questões.
Portanto, não tendo o tribunal recorrido, como acima se referiu, emitido pronúncia sobre a questão dos juros moratórios, torna-se evidente que se verifica a facti species da citada al. d) do nº 1 do artigo 615.º, ocorrendo, pois, a nulidade invocada pela apelante.
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Todavia, não obstante a verificação de tal nulidade o artigo 665.º, n.º 1, do CPCivil estabelece a regra da substituição do tribunal recorrido, isto é, julgando procedente a arguição de nulidade da sentença, a Relação não deve limitar-se a reenviar o processo ao tribunal a quo, antes deve prosseguir apreciando as demais questões que constituem objeto da apelação e suprindo, claro está, a nulidade cometida mediante o seu conhecimento o que se fará de seguida.
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Como se evidencia, da petição inicial a apelante alega ser também lícito exigir do Réu os juros moratórios à taxa legal para as operações comerciais a contar da data da respetiva data do vencimento da respetiva.
Preceitua o artigo 102.º do Código Comercial, que há lugar ao decurso e contagem de juros em todos os atos comerciais em que for de convenção ou direito vencerem-se e nos mais casos especiais fixados naquele Código. E o seu § 3.º estipula que os juros moratórios legais e os estabelecidos sem determinação de taxa ou quantitativo, relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou coletivas, são os fixados em portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça.
Coloca-se, então, a questão de saber se para a aplicação deste § 3.º, do citado artigo 102.º, do Código Comercial, o ato ou negócio de onde provém a obrigação de pagamento de juros deve ser comercial em relação ao devedor, não bastando apenas que seja subjetivamente comercial em relação ao credor.
Questão surge da confrontação, por um lado, dos interesses da defesa do consumidor e, por outro lado, da tutela do crédito e do credor comerciante profissional justificativa da existência de juros moratórios agravados.
Sobre ela pronunciaram-se, entre outros, os acórdãos desta Relação de Guimarães, de 07/11/2019, de 04/10/2017, os acórdãos da Relação de Coimbra, de 12/02/2019, de 19/10/2010, e os acórdãos do STJ, de 08/09/2016 e de 04/06/2013[1], tendo os mesmos considerado que nos atos de comércio unilaterais estabelecidos com consumidores são devidos juros comerciais por força do disposto no § 3.º do referido artigo 102.º, do Código Comercial.
Concordamos com o entendimento perfilhado nestes acórdãos.
Com efeito, o artigo 102.º, § 3, do Código Comercial, não exige que o ato seja comercial relativamente a ambas as partes, referindo ser aplicável aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou coletivas, bastando, por isso, para a sua aplicação a existência de um ato de comércio unilateralmente comercial.
Por outro lado, o artigo 99.º do mesmo diploma refere também que, embora o ato seja mercantil só com relação a uma das partes, será regulado pelas disposições da lei comercial quanto a todos os contratantes, daqui decorrendo que a aplicação da lei comercial e, por consequência, da taxa de juro prevista no § 3.º do art. 102º, tem lugar ainda que só o credor seja comerciante, sendo o devedor um consumidor.
Na verdade, a razão de ser da existência de juros moratórios comerciais não se relaciona com o devedor, mas sim com o credor.
Na verdade, nas palavras do acórdão do STJ de 09/07/2014 (Proc. 433682/09), citado no acórdão do STJ, de 08/09/2016, essa razão “radica na necessidade de compensar especialmente as empresas pela imobilização de capitais, pois que, para elas o dinheiro tem um custo mais elevado do que em geral, na medida em que deixam de o poder aplicar na sua atividade, da qual extraem lucros, ou têm mesmo de recorrer ao crédito bancário”.
No caso em análise, a autora/apelante é uma sociedade comercial que se dedica, designadamente, à atividade da construção civil e empreitada de obras pública, sendo que os juros de mora se referem à falta de pagamento parcial de serviços que a mesma executou, a solicitação do réu, no âmbito de um contrato de empreitada.
Como tal, face ao disposto nos artigos 13.º e 99.º, do Código Comercial, a obrigação de pagamento de juros decorre de um ato de comércio unilateral, sendo-lhe aplicável a taxa de juros comerciais prevista no § 3.º do art. 102º, do mesmo diploma legal.
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Isto dito, são, pois, devidos juros moratórios vencidos e vincendos à apelante desde a data aposta na fatura ainda em dívida [cfr. artigos 559.º, 804.º, 805.º, nº 2 al. a) e 806.º, nº 1 do CCivil e artigos 102.º do CComercial].
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A segunda questão colocada no recurso prende-se com:
b)- saber se se verifica a exceção da caducidade no que tange à obrigação da Autora na eliminação dos defeitos.
Como os autos demonstram foi na contestação que os Réus habilitados vieram invocar a existência de defeitos na obra (exceção de não cumprimento do contrato artigo 428.º do CCivil).
No atual direito adjetivo fora dos casos previstos no artigo 584.º do CPCivil, desapareceu o articulado e réplica, como articulado normal de resposta às exceções deduzidas na contestação.
Neste contexto, à referida exceção era permitido à Autora/apelante responder em dois momentos, a saber:
a) Na audiência prévia:
b) Ou no início da audiência final (cfr. artigo 3.º, nº 4 do CPCivil).
Como no caso sub júdice as partes prescindiram da realização da audiência prévia (cfr. ata respetiva), apenas no início da audiência final podia a apelante responder à invocada exceção, coisa que não fez.
Ora, a caducidade do direito de eliminação dos defeitos da obra alberga uma exceção perentória, de conhecimento não oficioso, porquanto estabelecida em matéria que não está excluída da disponibilidade das partes (cfr. artigos 579.º, do Código de Processo Civil e 333.º, nº 2 e 1225.º do Código Civil).
Porque assim é, esta questão está sujeita à preclusão da dedução dos meios de defesa estabelecida no artigo 573º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Como assim, a invocação desta exceção perentória apenas em sede de recurso de apelação configura-se como uma questão nova cuja dedução está legalmente precludida.
Efetivamente, como supra se consignou, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”-artigo 608.º, nº 2 do CPCivil.
A problemática prende-se com a delimitação do objecto do recurso, ou seja, com os poderes do Tribunal da Relação na apreciação dos recursos de apelação.
Conforme sinteticamente refere Castro Mendes[2], em relação ao objecto do recurso, duas soluções são possíveis.
Primeira: entender-se que o “Objecto do recurso é a questão sobre que incidiu a decisão recorrida.”
Segunda: defender-se que o “Objecto do recurso é a decisão recorrida, que se vai ver se foi aquela que “ex lege” devia ser proferida.”
A primeira hipótese remete para um sistema de reexame, que permite ao tribunal superior a reapreciação da questão decidenda pelo tribunal a quo, isto é, permite um novo julgamento, eventualmente com recurso a factos novos e novas provas; enquanto o segundo caracteriza um sistema de revisão ou de reponderação, o qual apenas possibilita o controlo da sentença recorrida, ou seja, apenas permite aferir se a decisão é justa ou injusta, considerando os dados fácticos e a lei aplicável, tal como o juiz da 1.ª instância possuía no momento em que proferiu a decisão.
Apesar de não existirem sistemas absolutamente “puros”, ou seja, que apenas apliquem um ou outro sistema “tout court”, a doutrina e a jurisprudência portuguesa têm entendido que “O direito português segue o modelo do recuso de revisão ou ponderação. Daí o tribunal ad quem produzir um novo julgamento sobre o já decidido pelo tribunal a quo, baseados nos factos alegados e nas provas produzidas perante este.”[3]
Por via disso, repetidamente os tribunais superiores têm afirmado que os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.
Por esse motivo, se entende que não é lícito invocar em sede de recurso questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido.
Esta regra decorre, designadamente, dos artigos 627.º, n.º 1, 635.º, n.º 3 e 665.º, n.º 2 e 5 do CPC, apenas excecionada quando a lei expressamente determine o contrário[4] ou nas situações em que a matéria é de conhecimento oficioso.[5]
A questão reside, pois, em saber o que se entende por questões de facto ou direito já submetidas à apreciação do tribunal recorrido.
É comum mencionar-se a este respeito que “questões” não são argumentos, raciocínios jurídicos ou juízos de valor expostos na defesa das teses controvertidas em litígio, reservando-se tal menção apenas para os fundamentos fáctico-jurídicos em que as partes assentaram as suas pretensões, ou seja, para as questões que na perspectiva substantiva apresentam pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.
Em relação à parte ativa, atender-se-á à causa de pedir e pedido e em relação à parte passiva, às exceções deduzidas.
É este, aliás, o raciocínio que subjaz à nulidade a que alude o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPCivil quando prescreve a obrigatoriedade do juiz se pronunciar sobre as questões colocadas à sua apreciação, como supra se referiu.
Tentando, agora, aplicar estes considerandos ao caso presente, verifica-se que a apelante nunca no processo aduziu tal questão, sendo que, se trata de questão que, na perspetiva substantiva, apresenta pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.
Estamos, assim, perante argumentação nova que nunca tinha sido defendida pela apelante, o que coloca o tribunal ad quem perante um novo julgamento, na medida em que este, na reponderação que iria fazer da decisão proferida, não se encontra em situação idêntica àquela em que se encontrou o juiz da 1.ª instância, sendo certo que se trata de questão que não é de conhecimento oficioso.
Como assim, não pode, tal questão, ser conhecida por este tribunal de recurso.
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Improcedem, desta forma, as conclusões III a XIII formuladas pela apelante e, com elas, o respetivo recurso.
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IV-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente por não provada.
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Porém, na sequência da do suprimento da nulidade invocada altera-se a parte dispositiva da sentença pela seguinte forma:
Julga-se a ação parcialmente procedente, por provada e, consequentemente, condenam-se os Réus a pagar à Autora a quantia de €20.796,19 euros (vinte mil, setecentos e noventa e seis euros e dezanove cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, que se venceram em 02/11/2016, no valor de €3.150,76 euros (três mil, cento e cinquenta euros e setenta e seis cêntimos) e vincendos, até efetivo e integral pagamento.
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Custas pela apelante (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 04 de março de 2024.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Ana Paula Amorim

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[1] Todos consultáveis in www.dgsi.pt..
[2] Castro Mendes, Direito Processual Civil, Recursos, AAFDL, 1980, pág. 24. Veja-se, também, Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil III, Recursos, AAFDL, 1982, pág. 172 e Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º. Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2008, pág. 7-8.
[3] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2008, 8.ª edição, pág. 147.
[4] Veja-se, assim, o disposto no artigo 665.º, n.º 2 do CPC que permite a supressão de um grau de jurisdição, desde que verificados os pressupostos ali mencionados.
[5] Conforme se alude expressamente na parte final do n.º 2 do artigo 608.º do CPC.