I - Não cumpre o ónus imposto pela alínea a) do nº1 do artigo 640º do CPC, a indicação, apenas na motivação, dos concretos pontos de facto, considerados provados e não provados, cuja alteração o Recorrente pretende.
II - A exigência da concretização dos pontos de facto que o Recorrente considera incorretamente julgados, prende-se com a sua função de delimitação do objecto do recurso, pelo que, o não cumprimento do ónus, imposto pela alínea a) do nº1 do artigo 640º do CPC, tem como consequência a rejeição do recurso quanto à impugnação da decisão da matéria de facto.
Relatora: Anabela Morais
Primeira Adjunta: Maria de Fátima Almeida Andrade
Segundo Adjunto: Manuel Fernandes
Acordam os Juízes da 5.ª Secção (3ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto, sendo
I. Relatório
Os Autores AA e BB intentaram a presente acção declarativa com processo comum contra a Ré A..., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de €11.759,63, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.
Para fundamentarem a sua pretensão, alegaram, em síntese, que:
- no dia, 15 de Julho de 2017, cerca das 9,30 horas. Ocorreu. no Caminho ..., na Freguesia ..., um acidente de viação, no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, com matrícula ..-IP-.., marca Audi ..., registado em nome de AA e conduzido pelo autor/marido, BB, que seguia, no sentido ...; e o veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-AU-.., da marca Renault ..., propriedade de CC e conduzido por DD, proveniente de Estrada Nacional Nº ...05 e seguia no sentido ... – ...;
- após passar a curva que antecede a recta até à Ponte sobre o Rio Leça, o condutor do veículo PI deparou-se, de frente, com o veículo ..-AU-.., ocupando parte da faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário;
- quer pela velocidade, quer pelo posicionamento na via, quer ainda pela completa desatenção, com que seguia a sua condutora, não deu qualquer possibilidade de reacção ao condutor do IP, de forma a evitar o abalroamento da sua viatura;
- o veículo AU embateu violentamente com a sua frente esquerda, na frente esquerda do IP, tendo o choque ocorrido dentro da metade da via, destinada ao sentido do trânsito, em que circulava o IP, ficando este veículo imobilizado, na sua faixa de rodagem, com a frente inclinada para a sua esquerda, em consequência do embate sofrido;
- concluem que o acidente foi motivado pela actuação negligente da condutora do veículo AU, pelo que a mesma é responsável pelos danos causados, nos termos dos artigos 483º e 503º do Código Civil;
- sobre a condutora do veículo AU recai a presunção de culpa, nos termos e para o efeito do número 3 do artigo 503º do C.C., porquanto, conduzia uma viatura de e por conta de outrem: o veículo ..-AU-.. é propriedade de CC cuja responsabilidade civil, resultante da circulação do referido veiculo, se encontra transferida para a B... S.A., agora, A... S.A., mediante contrato titulado pela Apólice com o número ...23;
- em consequência do embate, o veículo IP sofreu danos cuja reparação importou a quantia de €6.200,00 (seis mil e duzentos Euros), apesar da Ré ter avaliado a reparação em €17.589,25 (dezassete mil quinhentos e oitenta e nove euros e vinte e cinco cêntimos);
- o veículo, ficou impossibilitado de circular em virtude dos danos sofridos;
- o veículo dos autores tinha sido adquirido há cerca de 3 meses, estava em excelente estado de conservação e tinha 150 000 Km, tendo sofrido, em consequência dos danos resultantes do sinistro, uma “grande reparação, deixando marcas e desvalorizando o seu valor comercial”, pelo que, atendendo ao estado de conservação e ao valor do mesmo, deve a Ré pagar o valor de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), referente à sua desvalorização;
- o veículo estava, à data, destinado à deslocação do autor, dado que efectuava quatro deslocações diárias, de e para o trabalho; às necessidades familiares, nas deslocações da autora de e para as sessões de fisioterapia e na deslocação do pai e sogro, respectivamente, para os tratamentos, consequência da recente amputação de uma perna;
- os autores e respectivo agregado familiar ficaram privados da sua viatura, para gozo de alguns dias de férias, dado que o fatídico acontecimento, ocorreu, em período normal das mesmas;
- a privação da viatura, causou por isso, muitos incómodos, transtornos angústias e prejuízos, tendo os mesmos que recorrer à ajuda de familiares e amigos, bem assim a meios de transportes públicos, remediando situações e cancelando deslocações, por forma a superar a falta daquela;
- situação agravada pelo facto de serem pais de uma menor, adolescente a favor de quem a viatura era igualmente utilizada e pelo facto do Autor/marido, ser cabeça de lista, como candidato autárquico, à Freguesia ..., nas Eleições de Outubro, desse ano, cujas necessidades de deslocação, à data, eram constantes e prementes;
- a título de indemnização referente ao tempo de privação de uso e fruição do veículo, pedem o valor de €23,00, por cada dia de paralisação, no total de €1.541,00 (mil quinhentos e quarenta e um euros), referente a 67 dias de paralisação;
- com a violência de embate, sofreu um golpe, na coluna cervical e um forte esticão na zona do tórax, devido ao cinto de segurança e ao accionamento do air bag;
- em consequência do impacto, o autor, sentiu fortes dores, no tórax, coluna e cabeça, que o obrigaram a recorrer à assistência médica hospitalar, tendo ficado 23 dias com Incapacidade Temporária Absoluta para o trabalho;
- exerce a actividade profissional como Técnico de Contabilidade, auferindo o valor ilíquido de €861,98 (oitocentos e sessenta e um euros e noventa e oito cêntimos) e, em consequências daquela incapacidade para o trabalho, deixou de auferir a quantia de €760,43 (setecentos e sessenta euros e quarenta e três cêntimos),tendo recebido, da Segurança Social, o valor de €241,80 (duzentos e quarenta e um euros e oitenta cêntimos);
- a título de danos não patrimoniais, pede a indemnização em valor não inferior a €2.000,00 (dois mil euros).
“Face ao exposto, julga-se a presente acção improcedente, por não provada e, em consequência absolve-se a ré A... do pedido formulado pelos autores AA e BB.
Custas a cargo dos autores.
Registe e notifique”.
*
*
Nos termos dos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.
Assim, perante as conclusões da alegação da Recorrente há que apreciar as seguintes questões:
i. Da observância dos ónus de impugnação da decisão da matéria de facto: falta de indicação, nas conclusões, dos factos impugnados;
ii. Da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil e, em caso afirmativo, pretensão indemnizatória dos autores.
Da sentença recorrida, no Ponto Fundamentação”, consta:
“Factos provados
A. No dia, 15 de Julho de 2017, cerca das 9,30 horas ocorreu no Caminho ..., na Freguesia ..., um acidente de viação.
B. Nele, foram intervenientes: o veículo Ligeiro de Passageiros, matricula ..-IP-.. de marca Audi ..., registado em nome de AA e conduzido pelo autor/marido, BB, que seguia, no sentido ... e o veículo Ligeiro de Passageiros ..-AU-.., da marca Renault ..., propriedade de CC e conduzido por DD, proveniente de Estrada Nacional Nº ...05 e que seguia no sentido ... – ....
C. O caminho detém, uma largura de 3,90 metros, naquele local.
D. O local do sinistro traduz-se numa curva, com duas vias de trânsito em sentidos opostos, com o piso em asfalto betuminoso, em bom estado de conservação
A. O mesmo, é ladeado por prédios rústicos (campos agrícolas).
B. À data e na sua maioria, contendo plantações de milho, com uma altura, em média, superior a 2 metros, pelo que, sendo possível o cruzamento de veículos, “obriga”, contudo, a um cuidado acrescido, para que não colidam.
A. Eis quando o autor após passar a curva, que antecede a reta até à Ponte sobre o Rio Leça, se depara de frente com o Renault ..., matrícula ..-AU-.. que estava prestes a entrar na referida curva, este com inclinação para a direita (atento o seu sentido de marcha) é violentamente embatido pelo IP que entrara na referida curva em contra-mão.
B. O AU circulava na reta, que é precedida de uma descida acentuada, proveniente da citada E.N. ...05 e não chegou sequer a entrar na dita curva.
C. IP invadiu a faixa de circulação contrária, embatendo no AU [1].
D. O IP embateu com o seu canto esquerdo frontal no canto esquerdo frontal do AU
E. Após o embate o IP, ficou imobilizado, na sua faixa de rodagem, com a frente inclinada para a sua esquerda.
F. Tendo o AU, devido ao ressalto, após embate e ao declive da via e da berma, ido parar ao campo, do seu lado direito.
G. Os destroços do sinistro (peças danificadas de ambos os veículos e líquidos derramados) se situam precisamente dentro da faixa por onde seguia o AU [sentido EN ...05 – ...].
H. Quando o AU foi projectado para a sua retaguarda, lado direito, a sua roda da frente esquerda originou uma marca no pavimento de 5,2 km – cf. Letra K do croqui constante do auto de ocorrência, sendo que essa marca no pavimento se situa precisamente dentro da faixa por onde seguia o AU.
I. O veículo, ..-AU-.., é propriedade de CC, cuja Responsabilidade Civil, resultante da circulação do referido veículo, foi transferida para a B... S.A., agora, A... S.A, Contrato, titulado pela Apólice com o número ...23, emitido por aquela Seguradora.
J. Mercê do embate o veículo dos autores sofreu danos na frente, afetando, de entre outros, a suspensão e roda lado esquerdo, capô, para-choques, portas da frente, para-brisas e provocado o acionamento dos air bags.
K. Despendendo os autores o valor de Euros 6.200,00 (seis mil e duzentos Euros), para reparação do veículo, no qual, estão incluídas as peças, material de pintura, e trabalho de mão-de-obra de mecânico, chapeiro, eletricista e pintor.
L. Apesar da Ré, ter avaliado, a reparação em Euros 17 589,25 (Dezassete mil quinhentos e oitenta e nove Euros e vinte e cinco cêntimos), conforme relatório de Peritagem elaborado pela B... e remetido à Autora, refere que “O proprietário, se assim o entender, poderá autorizar a reparação, por sua conta”.
M. O que, desde logo, fizeram, os Autores dado que, o veículo, ficou impossibilitado de circular em virtude dos danos sofridos.
N. A Ré Seguradora, enviou, com data de 18-08-2017, (mais de 30 dias, após o sinistro) comunicação, a informar de que face aos valores apurados, os mesmos, determinavam, estarmos perante uma perda total.
O. Mencionando, para além da estimativa da reparação, o valor Venal do veículo de 14 750,00 Euros e o valor do veículo danificado no montante de 4 150,00 Euros.
P. Sendo apurado, segundo a Ré o valor de 10 600,00 Euros, como valor dos prejuízos sofridos pelo veículo dos Autores.
Q. Comunicação, concluída com a informação; “ Logo que a instrução do nosso processo se encontrar concluída, voltaremos à S/ presença”, sendo que à data, já os autores, haviam dado ordem de reparação.
R. Ficaram os autores e o respectivo agregado familiar, privados da sua viatura, para gozo de alguns dias de férias, dado que o acidente, ocorreu, em período normal das mesmas.
S. Em consequência do impacto, o autor, sentiu dores no tórax e cabeça, que o obrigaram a recorrer à assistência médica hospitalar.
T. O Autor, exerce a actividade profissional como Técnico de Contabilidade auferindo o valor ilíquido de Euros 861,98 (oitocentos e sessenta e um Euros e noventa e oito cêntimos).
U. O autor recebeu da Segurança Social o valor de Euros 241,80 (Duzentos e quarenta e um Euros e oitenta cêntimos).
* Factos Não Provados
1. Que o local do embate, configura uma pequena reta, junto à Ponte sobre o Rio Leça.
2. Que o referido caminho, é praticamente plano, em alcatrão apresentando ligeiras fissuras, no pavimento.
3. Atentas as condições da via, circulava o Autor com velocidade nunca superior a 40 Km/Hora.
4. Que a sua circulação, era efectuada dentro da metade direita da via, atento o seu sentido de marcha.
5. E junto da respectiva berma, adjacente, de forma a permitir, imobilizar o veículo, no espaço livre e visível e em segurança, em caso de necessidade ou perigo.
6. Que o AU circulava a uma velocidade, nunca inferior a 60 Km/Hora.
7. Que o AU circulava, pelo centro da via, ocupando, assim, parte da faixa de rodagem destinada au trânsito em sentido contrário.
8. Porquanto, quer pela velocidade, quer pelo posicionamento na via, quer ainda pela completa desatenção, com que seguia a sua condutora, não deu qualquer possibilidade de reacção ao condutor do IP, de forma a evitar o abalroamento da sua viatura, pela forma inusitada, rápida e abrupta, com que o AU apareceu, pela frente do IP.
9. Que a condutora do AU não efetuou qualquer tentativa, para evitar o choque entre os veículos.
10. Que o choque ocorreu, dentro da metade da via, destinada ao sentido do trânsito, em que circulava o IP, dado que o choque, se verificou, a 2,10 metros, (Dois metros e dez centímetros) medidos a partir da linha da berma, atento o sentido de marcha do AU.
11. Que o fato de o veículo do autor ter ficado imobilizado com a frente para a esquerda foi uma consequência do embate sofrido.
12. Que os autores procederam à reparação do IP tal era a sua falta e os prejuízos que a imobilização do mesmo lhes estava a causar.
13. Que o veículo, dos autores, tinha sido adquirido há cerca de 3 meses e estava em excelente estado de conservação e que tinha 150 000 Km.
14. Que com os danos que o veículo teve que implicaram uma grande reparação, a qual deixou marcas pelo que, se entretanto o quiser vender ou trocar, perderá um valor nunca inferior a Euros 1 500,00 (Mil e quinhentos Euros).
15. Que o veículo, recentemente adquirido, estava à data, destinado à deslocação do autor marido, dado que efectuava quatro deslocações diárias, de e para o trabalho.
16. Assim como para obviar às necessidades familiares, nas deslocações da autora de e para as sessões de fisioterapia, bem assim como para a deslocação do pai e sogro, respectivamente, para os tratamentos, consequência da recente amputação de uma perna.
17. A privação da viatura, causou aos autores muitos incómodos, transtornos angústias e prejuízos, tendo os mesmos que recorrer a pedidos de ajuda a familiares e amigos, bem assim recorrerem a meios de transportes públicos remediando situações e cancelando deslocações, por forma a superar a falta daquela.
18. Situação, esta agravada pelo facto de serem pais de uma menor, adolescente a favor de quem a viatura era igualmente utilizada.
19. Transtornos, ainda agravados, pelo facto do Autor/Marido, ser Cabeça de Lista, como Candidato Autárquico, à Freguesia ..., nas Eleições de Outubro, desse ano, cujas necessidades de deslocação, à data, eram constantes e prementes.
20. Com a violência de embate, pela forma abrupta e imprevista resultou um golpe, na coluna cervical do condutor do IP, aqui Autor.
21. E bem assim, um forte esticão na zona do tórax, devido ao cinto de segurança e ao accionamento dos airbags.
22. Que em consequência do impacto, o autor, sentiu dores fortes e para além do mencionado nos fatos assentes, que também sentiu dores na coluna.
23. Que foi em consequência do acidente que o autor ficou 23 dias com Incapacidade Temporária Absoluta para o trabalho.
24. Que o autor aufere um vencimento multiplicado por 14 meses.
25. Que em consequência daquela incapacidade para o trabalho, o Autor, deixou de auferir a quantia de Euros 518,63 (Quinhentos e dezoito Euros e sessenta e três cêntimos).
26. Como consequência do acidente, mormente o susto e as lesões sofridas, causaram ao autor fortíssimas dores e acentuado abalo psíquico, e alterou a sua vida, de forma significativa, pelo menos durante os 23 dias de baixa, causando dificuldades de locomoção, quer a pé, quer como condutor.
27. Que pelo facto de estar em período de férias, ficou privado, de efectuar alguns passeios e deslocações, designadamente, para acompanhar a sua mulher e filha.
28. Bem assim, pelo facto do autor, ter sido candidato autárquico, ficando, durante pelo menos aqueles dias, de exercer campanha contactando pessoas e visitando a autarquia, sentindo desgosto, angústias e privações, que afectaram igualmente a sua família;”.
1ª Questão:
Insurgem-se os Recorrentes quanto à decisão da matéria de facto, proferida pelo Tribunal a quo, advogando a Recorrida que “resulta também por demais evidente que toda e qualquer referência que é feita, ainda que de forma vaga à prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento (…), não tem qualquer cabimento, nem pode sequer ser levado em consideração por esta Relação, desde logo, porque os Apelantes não cumpriram o ónus a que alude a alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC. O que, em bom rigor (…) não se estranha assim tanto, na justa medida em que os Apelantes bem sabem
que não tinham passagens dos respectivos depoimentos para citar que implicassem qualquer decisão em sentido diverso, nem tão-pouco que colocassem em causa a valoração devidamente fundamentada
levada a cabo pelo Tribunal recorrido e que consta devidamente espelhada na sentença recorrida…”.
Cumpre apreciar e decidir se se mostram observados os ónus impostos pelo artigo 640º do Código de Processo Civil.
Dispõe o nº1 do artigo 639º do Código de Processo Civil que “o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”.
Nos termos do artigo 640º, n.º 1, do Código de Processo Civil, “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a. Os concretos pontos de factos que considera incorretamente julgados;
b. Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c. A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
Ensina António Abrantes Geraldes[2] que o sistema actual de apelação que envolva a impugnação sobre a matéria de facto exige ao impugnante, o seguinte:
“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) O recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considera oportunos; (…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos e pendor genérico e inconsequente;…”.
Na nota 8 ao artigo 640º do Código de Processo Civil, referem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa [3], “É objecto de debate saber se os requisitos do ónus impugnatório devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões sob pena de rejeição do recurso. O Supremo tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm de reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objectividade e de certeza, com os concretos pontos de facto sobre que incide a impugnação”.
António Abrantes Geraldes [4] “sintetiz[a], da seguinte forma o sistema que vigora sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto: a) Em qualquer circunstâncias, o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”.
Como se decidiu no Acórdão de 14/11/2022, proferido por este Tribunal[5], em que a ora relatora teve intervenção, como adjunta, “ em face do teor do citado artigo 640º, do CPC, a lei é clara ao assinalar ao recorrente a obrigatoriedade de especificar nas conclusões do recurso (a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; (b) em caso de, na sua perspectiva, a resposta a tais factos dever ser diversa da proferida pelo Tribunal, a decisão alternativa por si proposta por contraponto à decisão proferida; (c) os concretos meios probatórios, constantes do processo, do registo ou da gravação, que imponham decisão diversa da recorrida e (d) caso a impugnação da decisão de facto se baseie em prova pessoal gravada, a indicação das passagens ou segmentos da respectiva gravação que demonstrem o erro em que incorreu o Tribunal, sendo certo que quanto aos ónus referidos nas sobreditas alíneas (c) e (d) julgamos que os mesmos podem ser cumpridos apenas nas alegações.
Trata-se, através do estabelecimento de tais ónus a cargo do recorrente, em primeiro lugar, a título de ónus primário, nos termos das ditas alíneas (a) e (b) de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso indicando os concretos segmentos da decisão que considera viciados por erro e a resposta alternativa eventualmente proposta. Em segundo lugar, a título de ónus secundário, através das ditas alíneas (c) e (d) estará já em causa a fundamentação ou motivação, em termos concludentes, das razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação e que, no seu entender, impunham uma decisão diversa.
Este ónus, no seu todo, decorre não apenas dos princípios estruturantes da cooperação, lealdade e boa-fé processuais, mas visa garantir, ainda e em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado, evitando o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão que porventura esteja inquestionavelmente correcta.
Por outro lado, como já se referiu, as apontadas divergências sobre o julgamento da matéria de facto têm de constar em termos especificados das conclusões do recurso, seja pela indicação específica/concreta de cada um dos factos que, por referência ao elenco da sentença, tenham sido incorrectamente julgados…”.
Nesse Acórdão pode ler-se «… é praticamente pacífica a doutrina do Supremo Tribunal de Justiça que defende que o recorrente que impugna a decisão de facto tem que fazer constar das conclusões do recurso (não sendo, pois, bastante a sua indicação nas alegações) os concretos pontos da matéria de facto que impugna…”.
Neste sentido, a título exemplificativo, podem citar-se, além dos já referidos na nota anterior, ainda, os AC do STJ de 19.05.2015, relatado pela Sr.ª Juíza Conselheira Maria Teresa Beleza, AC STJ de 8.10.2019, relatado pela Sr.ª Juíza Conselheira Maria João Vaz Tomé, AC STJ de 13.11.2019, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro António Leones Dantas e, ainda, mais recentemente o AC STJ de 15.09.2022, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Fernando Baptista, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
De facto, como se sumaria neste último Acórdão do STJ de 15.09.2022:
“III. Os ónus ínsitos nas als. a) e c) do n.º 1 do artigo 640º do CPC, cuja falta impõe a imediata rejeição do recurso sem necessidade de prévio convite ao recorrente, constituem um ónus primário, o qual deve ser satisfeito, não apenas no corpo das alegações, mas também nas conclusões da alegação.
IV. E pela simples razão de que tais ónus têm por função delimitar o objecto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto”.
E como analisou o STJ, na Decisão de 27/9/2023, proferida no Proc. nº2702/15.8T8VNG-C.S1:
“Com ampla sedimentação na jurisprudência deste tribunal, no funcionamento dos efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º, nº1, do CPC, devemos distinguir, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da indicação dos concretos meios probatórios convocados e da decisão a proferir, a que aludem as alíneas a), b) e c) do nº1 do artigo 640º, que integram o denominado ónus primário, atenta a sua função de delimitação do objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto. (...)» .
No mesmo percurso, salienta o Acórdão do STJ de 19.01.2023 - «Entre os corolários do ónus de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consagrado no n.º 1 do art. 640.º do CPC, está o de que o recorrente deve sempre indicar nas conclusões do recurso de apelação os concretos pontos de facto que julgou incorrectamente julgados.»
Transpondo tais princípios para o caso dos autos, os Recorrentes, nas conclusões, enunciam a dinâmica do acidente resultante da apreciação que efectuaram da participação do acidente e das fotografias que fazem parte integrante dessa participação. Não consta, das conclusões, a indicação dos concretos pontos de facto, considerados provados e não provados, cuja alteração os Recorrentes pretendem, sendo a consequência do não cumprimento desse ónus (imposto pela alínea a) do nº1 do art. 640º do CPC) a rejeição da impugnação na parte correspondente.
Refere António Abrantes Geraldes[6], “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações: (…) b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;”, não existindo, “quanto ao recurso da decisão da matéria de facto, despacho de aperfeiçoamento. Resultado que é comprovado pelo teor do art. 652º, nº1, al. a), na medida em que limita os poderes do relator ao despacho de aperfeiçoamento “das conclusões das alegações, nos termos do nº3 do artigo 639º».
Assim, embora conste do corpo das alegações a indicação dos factos concretos que os Recorrentes pretendem ver alterados por, na sua apreciação, se encontrarem incorrectamente julgados, existe omissão dessa indicação, nas conclusões.
Pelo exposto, não se mostrando cumprido, pelos Recorrentes, o ónus imposto pela alínea a) do n.º 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, rejeita-se o recurso quanto à impugnação da decisão da matéria de facto.
Nas conclusões, os Recorrentes insurgem-se com a sentença recorrida por considerar “responsável do sinistro a condutora do ligeiro de passageiros ..-AU-.., seguro na Ré Seguradora.
O Recorrente fundou a sua pretensão de revogação da sentença na alteração da decisão da matéria de facto, não tendo aduzido qualquer argumento estritamente jurídico para infirmar a decisão recorrida com base nos factos considerados provados pelo Tribunal da Primeira Instância.
As conclusões delimitam o objecto do recurso e balizam o âmbito do conhecimento do Tribunal pelos fundamentos aduzidos, excepto tratando-se de questões de conhecimento oficioso.
Assim, não existindo qualquer outro fundamento invocado pelos Recorrentes para a revogação da decisão recorrida, improcede o recurso, confirmando-se, na íntegra a sentença recorrida.
As custas do recurso ficam a cargo dos recorrentes considerando a improcedência total do mesmo (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas no recurso pelos recorrentes (artº 527, nº1, do C.P.C.), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.
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