INVENTÁRIO
EXECUÇÃO POR TORNAS
ARTIGO 222º E DO C.I.R.E.
Sumário


I - O regime do art. 222ºE do C.I.R.E. não tem aplicação quando se trata de procedimento destinado exclusivamente à venda de bem adjudicado em partilha e para pagamento de tornas, nos termos do art. 1122º do C.P.C.
II - Analisando o procedimento de venda, em termos da sua configuração processual, verifica-se que: não há lugar a penhora, nem designação de fiel depositário; não há oposição pelo devedor de tornas, nem embargos de terceiro. Tanto significa que o procedimento tem uma eficácia meramente “interna”, adstrita à venda dos bens adjudicados ao devedor e até onde seja necessário para o pagamento das tornas.
III – Esta venda é uma forma simplificada de execução com o único objetivo de fazer entrar no património do credor das tornas a importância destas

Texto Integral


I - Relatório

No âmbito do processo de inventário para partilha de bens, os interessados AA e BB vieram requerer a venda do imóvel adjudicado à herdeira CC, por não ter pago as tornas devidas aos requerentes.
A requerida admitiu não ter pago as tornas, invocando encontrar-se em situação económica difícil, o que determinou que tivesse apresentado no Juízo de Comércio Processo Especial para Acordo de Pagamento, o qual foi distribuído sob o n.º 4905/23...., no Juiz ... do Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão, pedindo que nos termos do artigo 222.º E do CIRE seja suspensa qualquer cobrança e/ou ação executiva.

Sobre a requerida suspensão da instância, recaiu o seguinte despacho:
«(…) Inexistindo dúvidas que a venda em processo de inventário para pagamento de tornas é um verdadeiro processo executivo, mais simples e célere, limitado ao património adjudicado, tem aplicação o disposto no artigo 222.º E do CIRE, segundo o qual “A decisão a que se refere o n.º 4 do artigo 222.º-C obsta à instauração de quaisquer ações executivas para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações executivas em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se as mesmas logo que seja aprovado e homologado acordo de pagamento, salvo quando este preveja a sua continuação.
Face ao exposto, estando pendente Juízo de Comércio Processo Especial para Acordo de Pagamento da requerida devidamente homologado, suspende-se a presente instância.».

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Inconformados com a decisão que determinou a suspensão dos termos do inventário, na fase em que havia sido requerida a venda de imóvel adjudicado à cabeça de casal e devedora de tornas, por aplicação do disposto no art. 222ºE do C.I.R.E. vieram os herdeiros AA, DD e EE, interpor recurso, finalizando com as seguintes conclusões:

I- Na realização da partilha da herança, os direitos de cada um dos herdeiros são realizados mediante a determinação dos respetivos quinhões hereditários e preenchimento destes;
II- O quinhão hereditário de cada herdeiro, é preenchido com bens da herança, sempre que possível;
III- Quando a um dos herdeiros são adjudicados bens em valor superior ao que lhe cabia, em face do respetivo quinhão, há lugar à restituição, em valor, do excesso;
IV- Tal restituição constitui tornas, as quais se destinam a compor e realizar, no todo ou em parte, os quinhões hereditários dos demais herdeiros;
V- O quinhão hereditário de cada herdeiro, seja ele realizado em bens ou em dinheiro, não pode ser alterado ou prejudicado em razão da situação económica do outro herdeiro;
VI- Uma vez realizada e homologada a partilha, o credor de tornas tem direito a exigir o pagamento destas ao herdeiro que levou bens em excesso;
VII- Não sendo pagas as tornas, o credor tem direito a requerer a venda de bens adjudicados ao devedor, bem como, no caso de se tratar de imóveis, de hipoteca daqueles que irão ser vendidos;
VIII- O procedimento destinado à venda de bens adjudicados ao devedor de tornas tem natureza executiva, mas com especificidades do ponto de adjetivo, considerando também em conta os direitos materiais à realização plena dos quinhões hereditários;
IX- O procedimento estabelecido no art. 1122º do C.P.C. destina-se exclusivamente a obter a venda de bens adjudicado ao devedor e ao pagamento de tornas, assegurando o respeito integral pela realização dos direitos dos herdeiros cujos quinhões não foram preenchidos com bens da herança;
X- Aquele procedimento do art. 1122º do C.P.C. tem especificidades e tramitação própria, muito diferentes de uma ação executiva comum;
XI- Os direitos dos credores de tornas nascem com a abertura da herança e ficam determinados, quanto ao valor e forma de realização, no momento da partilha;
XII- Qualquer alteração no valor das tornas constituirá violação do direito hereditário, em prejuízo do credor e em benefício do devedor que adquiriu na partilha e fez integrar no seu património os bens adjudicados em excesso;
XIII- Os direitos do herdeiro credor de tornas, uma vez que estas correspondem à realização do quinhão hereditário, não podem ser afetados ou prejudicados para uma situação económica difícil do devedor de tornas, em resultado de outras relações jurídicas estranhas à herança;
XIV- O legislador ao criar e regular o PEAP, nos termos dos artigos 222ºA e seguintes do C.I.R.E. não pretendeu criar um procedimento que vise alterar o regime normal de aplicação do art. 1122º do C.P.C.;
XV- Aquele procedimento do PEAP destina-se a permitir a regulação de responsabilidades e acordo de pagamento de obrigações emergentes de relações jurídicas estabelecidas entre devedor e credores, que não os direitos hereditários de terceiros alheios àquelas relações jurídicas;
XVI- O PEAP não tem aplicação quando se trata da realização de direitos hereditários, através de procedimento executivo para pagamento de tornas, mediante a venda de bens que faziam parte da herança, pelo que não pode ser ordenada a suspensão daquele procedimento;
XVII- Admitir que o procedimento destinado a obter o pagamento de tornas pode ser suspenso em função do PEAP é aceitar que o que resultar deste último terá repercussão e eventual alteração ao montante das tornas, pois que naquele processo especial o devedor pode, com a aprovação pela maioria dos demais credores, aprovar um plano que reduza os créditos dos herdeiros;
XVIII- Os credores de tornas não poderão ficar dependentes de terceiros não herdeiros, para a alteração e eventual redução do montante das tornas, a que têm direito, mantendo o devedor das tornas o seu quinhão intocado;
XIX- A aplicação do PEAP no procedimento destinado ao pagamento de tornas (que é a realização de um quinhão hereditário) constitui um uso perverso e fraudulento do art. 222ºE do C.I.R.E., pois que poderá conduzir à alteração do valor dos quinhões hereditários, com violação do artigo 2136º do Código Civil, por tornar diferentes os direitos entre os credores de tornas e a devedora das mesmas que recebeu os bens e os integrou no seu património pessoal;
XX- A suspensão do procedimento destinado à venda de bens adquiridos na partilha, exclusivamente para pagamento de tornas, constitui violação do disposto no art. 222ºE do C.I.R.E., nos artigos 1121º e 1122º do C.P.C., bem como no nº1 do artigo 2101º do C.C.;
Pugnam os recorrentes pela revogação do despacho que determinou a suspensão do procedimento para venda do imóvel adjudicado a herdeiro, tendo em vista exclusivamente o pagamento de tornas, ordenando-se o prosseguimento dos autos.
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Foram apresentadas contra-alegações, defendendo a recorrida a improcedência do recurso e a manutenção do decidido.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II - Delimitação do objeto do recurso

A questão decidenda a apreciar, delimitada pelas conclusões do recurso, restringe-se a saber se o procedimento de venda em inventário, destinado a obter o pagamento de tornas, pode ser suspenso por aplicação do disposto no artigo 222ºE do C.I.R.E.
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III - Fundamentação

O despacho recorrido determinou a suspensão da instância, dos termos do inventário, na fase em que havia sido requerida a venda de imóvel adjudicado à cabeça de casal e devedora de tornas, na sequência da apresentação por esta de um Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP), considerando-se que, ao caso, era aplicável o disposto no art. 222ºE do C.I.R.E.
A questão posta em recurso reconduz-se a saber se a suspensão das ações executivas decorrentes da apresentação de um PEAP é aplicável ao procedimento de venda no âmbito do processo de inventário.
A resposta só pode ser negativa.

Vejamos as razões.
Estabelece o artigo 1122º, nº2, do Código de Processo Civil que depois do trânsito em julgado da sentença homologatória e se houver direito a tornas, os requerentes podem pedir que se proceda, no processo, à venda dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para o seu pagamento.
O procedimento destinado à venda dos bens tem, ao abrigo deste normativo, natureza executiva.
Tendo natureza executiva, reveste, no entanto, especificidades e limites que afastam a aplicação do regime de suspensão dos processos executivos em função do PEAP.
Analisando o procedimento de venda, em termos da sua configuração processual, verifica-se que: não há lugar a penhora, nem designação de fiel depositário; não há oposição pelo devedor de tornas, nem embargos de terceiro.
Tanto significa que o procedimento tem uma eficácia meramente “interna”, adstrita à venda dos bens adjudicados ao devedor e até onde seja necessário para o pagamento das tornas ao credor.
Encontramo-nos, nas palavras de FF, perante um novo, privativo e prático, processo executivo, embora especial.
Essa especialidade é explicada pelo autor, nos seguintes termos:
«Regra geral, o direito definido executa-se com base em título idóneo a esse fim (…), mediante formalismo próprio.
No caso considerado tudo é diferente, pois o credor das tornas limita-se a pedir, em simples requerimento, o que no nº 3 do art. 1378.º se lhe consente. Então, formulado tal pedido e transitada que seja a sentença homologatória das partilhas, procede-se à venda, no próprio processo de inventário dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para pagamento do seu débito ao requerente, isto sem haver necessidade de lhe instaurar qualquer processo executivo, de o citar para o efeito de nomear bens à penhora - Partilhas Judiciais, Vol. II, 4ª ed., 1990, Almedina, p. 452-453».
Atenta a especificidade desta execução não existe a possibilidade de ser deduzida oposição à mesma mediante embargos de executado uma vez que este incidente declarativo implica uma discussão incompatível com esta forma especial de processo – acórdão da Relação de Guimarães, processo nº 202/08.1TBBGC-A.G1, Relatora Margarida Almeida Fernandes, disponível em www.dgsi.pt.
Do mesmo modo que não há lugar à suspensão da instância em consequência da apresentação de um processo especial para acordo de pagamento. É que esta venda é uma forma simplificada de execução com o único objetivo de fazer entrar no património do credor das tornas a importância destas – acórdão da Relação de Lisboa de 07/06/1968, citado na obra de Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais.
Face ao regime adjetivo e finalidade a que está adstrito, no procedimento de venda em inventário o devedor de tornas não pode invocar situação económica difícil, que será sempre alheia e externa às questões da partilha e ao objetivo único de entregar ao credor o valor das tornas.
Em face do exposto, o regime do art. 222.ºE do C.I.R.E. não tem aplicação quando se trata de procedimento destinado exclusivamente à venda do imóvel adjudicado em partilha e para pagamento de tornas, nos termos do art. 1122.º do C.P.C.
Procede, assim, a apelação.
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I - O regime do art. 222ºE do C.I.R.E. não tem aplicação quando se trata de procedimento destinado exclusivamente à venda de bem adjudicado em partilha e para pagamento de tornas, nos termos do art. 1122º do C.P.C.
II - Analisando o procedimento de venda, em termos da sua configuração processual, verifica-se que: não há lugar a penhora, nem designação de fiel depositário; não há oposição pelo devedor de tornas, nem embargos de terceiro. Tanto significa que o procedimento tem uma eficácia meramente “interna”, adstrita à venda dos bens adjudicados ao devedor e até onde seja necessário para o pagamento das tornas.
III – Esta venda é uma forma simplificada de execução com o único objetivo de fazer entrar no património do credor das tornas a importância destas
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida, considerando-se que regime do art. 222ºE do C.I.R.E. não tem aplicação quando se trata de procedimento destinado à venda de bem adjudicado em partilha e para pagamento de tornas, nos termos do art. 1122º do C.P.C., determinando-se o prosseguimento dos termos do processo.
Custas a cargo da recorrida.
Guimarães, 4 de Abril de 2024

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. – Paula Ribas
2º Adj. - Des. Jorge Santos