NULIDADE DE SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
RELAÇÕES DE VIZINHANÇA
PRETENSÕES DE NATUREZA REAL
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Sumário


I. Estando o pedido reconvencional formulado com base em relações reais, não está sujeito à prescrição estabelecida no artigo 498.º do Cód.Civil.
II. Se o risco de desmoronamentos ou deslocações de terra não passou a existir com a escavação realizada pela apelada há mais de 40 anos, passando tão-só a existir na eventualidade de os apelantes levarem a cabo a sua intenção de construir uma moradia naquele prédio – o qual, por ser de natureza rústica teria de ser previamente convertido em prédio urbano – sem antes reforçarem o talude, não se encontram preenchidos os pressupostos exigidos pelo artigo 1348.º do Cód. Civil, como o da existência de dano e nexo de causalidade, dano esse que só existiria se o referido prédio rústico fosse convertido em prédio urbano e, nele, construída uma moradia sem o reforço do talude que os apelantes querem impor à apelada.

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório (feito com base no relatório da sentença).

AA e BB intentaram a presente acção declarativa comum contra “EMP01..., Ld.ª”, pedindo a condenação da ré a adoptar as medidas necessárias, suficientes e adequadas para evitar o risco de ruína do muro pertencente aos autores, bem como deslocações de terra, mais concretamente que seja condenada a, no seu prédio e na confrontação com o referido prédio dos autores, construir dois muros de contenção em alvenaria de pedra, os quais devem ser realizados em socalcos, separados entre si pelo menos três metros, até vencerem a diferença de cota entre terrenos.
Para tanto e em suma alegaram que 30 de Abril de 2019, mediante escritura pública celebrada no Cartório Notarial, declaram comprar à “EMP02... STC, S.A.”, que declarou vender, por €35.000,00, o prédio rústico composto por terreno de cultura, sito no Lugar ..., ... ou ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...46, descrito na Conservatória ... sob o nº...43/..., actualmente descrito em nome dos autores.
Alegam também a aquisição originária desse prédio, por usucapião.
Nesse prédio, os autores pretendem construir uma moradia.
Na confrontação norte do prédio dos autores, existe um muro em blocos, pertencente ao dito prédio, muro esse que servia apenas para vedação, encontrando-se, aquando da sua execução, a cota não superior a um metro, relativamente ao prédio confrontante.
Sucede, porém, que em data não concretamente apurada, nesse prédio vizinho, pertencente aos ora réus, foi efectuada uma escavação para alargamento da área de depósito.
Dessa escavação resultou um talude vertical com cerca de 13 metros de altura, estando comprometida a estabilidade do prédio onde os autores pretendem construir a moradia.
A ré contestou, invocando a falta de interesse em agir, na medida em que não há um dano concreto e efectivo.
Mais invocou a prescrição, alegando que as escavações no seu prédio ocorreram em 1976, com o consentimento do proprietário do prédio actualmente pertencente aos autores, tendo decorrido mais de 20 anos desde a prática do facto, havendo por isso prescrição do direito ora invocado, nos termos do art. 309º do CC.
Também reconveio, pedindo a condenação dos autores a efectuar ou a custear na íntegra a construção de um muro de contenção de terras no seu prédio, bem como a realizar todas as obras tecnicamente necessárias e adequadas a impedir o escoamento de águas pluviais para o prédio da ré. Pediu ainda a condenação dos reconvindos numa sanção pecuniária compulsória de € 50,00 por cada dia de atraso no cumprimento da sentença.
Para tanto e em suma alegou que o muro que existe na confrontação com o prédio dos autores foi executado depois das escavações e é impróprio para suporte das terras do prédio dos autores, não estando dotado de um sistema de drenagem próprio que acautele o risco de deslizamento de terras advindo da pressão das águas pluviais.
Após fixação do valor da acção e remessa dos autos para o Juízo Central, realizou-se uma tentativa de conciliação, que se iniciou com uma deslocação ao local.
Frustrada a conciliação, foi dispensada a realização de audiência prévia e proferido o despacho a que alude o art. 596º do Código de Processo Civil, julgando-se improcedente a excepção de falta de interesse em agir dos autores, mais se relegando para final o conhecimento da excepção de prescrição.
Os autores reclamaram da selecção dos temas da prova, tendo a reclamação improcedido, conforme consta da acta de 02.11.2022.
Houve lugar à produção antecipada da prova, com inquirição da testemunha CC, no dia 26.07.2022.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
Dispositivo:
Pelo exposto, a presente acção vai julgada totalmente improcedente, com a consequente absolvição da ré “EMP01..., Ld.ª” do pedido.
A reconvenção procede parcialmente, condenando-se os autores/reconvindos AA e BB a fazer as obras de manutenção no muro referido em 5), por forma a impedir a abertura de buracos por onde passam terras e águas para o prédio da ré, mais ficando os mesmos condenados ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de € 50,00 (cinquenta euros) por cada vez que tais buracos permitam tais passagens de terras e água.
Custas da acção a suportar pelos autores – nº 1 do art. 527º do Código de Processo Civil.
Custas da reconvenção na proporção do decaimento, que se fixa em 50% para os autores e para a ré – nº 2 do art. 527º do Código de Processo Civil.
D.N.”.

*
Inconformados com esta decisão, os autores dela interpuseram recurso e formularam, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):
“CONCLUSÕES:

I- Os Recorrentes não se conformam – daí o recurso - com a sentença, proferida em 7 de maio de 2023, com a referência ...69, que, simultaneamente, julgou a ação totalmente improcedente e parcialmente procedente a reconvenção, condenando-os a fazer as obras de manutenção no muro referido em 5), por forma a impedir a abertura de buracos por onde passam terras e águas para o prédio da ré, bem como no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de 50 € por cada vez que tais buracos permitam tais passagens de terras e águas.
II- Antes do mais, a R./Recorrida deduziu reconvenção contra os aqui Recorrentes, formulando, consequentemente, o respetivo pedido reconvencional.
III- Os Recorrentes, nos artigos 77º a 79º da réplica, defenderam-se, além do mais, por exceção perentória, invocando a prescrição do alegado direito da Recorrida.
IV- Não obstante isso, a verdade é que, o Tribunal, na sentença, não conheceu da mencionada questão que foi submetida à sua apreciação pelos Recorrentes.
V- E essa desconsideração vai, neste preciso conspecto, desde a matéria de facto ao enquadramento jurídico, já que o Tribunal nem sequer decidiu – como provada ou não provada – a factualidade alegada pelos Recorrentes concernente à referida exceção perentória da prescrição que invocaram na réplica.
VI- A situação descrita integra, salvo o devido respeito, a causa de nulidade da sentença prevista sob a alínea d), do nº1, do artº615º do C.P.C., a qual aqui se invoca expressamente para todos os devidos e legais efeitos.
VII- Acresce que, os Recorrentes entendem que a factualidade constante da sentença, tal como se encontra, deveria ter determinado, sem mais, a procedência da ação e, consequentemente, a condenação da Recorrida no pedido.
VIII- Com efeito, consta da sentença, como factualidade provada, que: “7. Em data não concretamente apurada, mas que se compreende entre 1976 e 1979, a ré procedeu a uma escavação na confrontação sul do seu prédio, até à distância de cerca de um metro do prédio referido em 1).; 8. Após a escavação referida em 7), passou a existir uma diferença de cota de cerca de não menos de 10 metros entre o prédio mencionado em 1) e o prédio mencionado em 2).; 9. Não existirá a segurança necessária para evitar o desabamento de terra se os autores construírem uma casa no prédio referido em 1), com a configuração que adveio após o referido em 7) e 8).; 10. Para que fosse possível construir uma moradia no prédio referido em 1), seria necessário proceder a obras de contenção das terras do talude, designadamente por via da construção de muros em socalcos ao longo do mesmo, ascendendo as obras a um valor compreendido entre os € 81.600,00 e € 96.768,00.”.
IX- Posteriormente, ainda na sentença, na parte relativa ao enquadramento jurídico, o Tribunal considerou que a situação descrita nos factos provados não integra a previsão do artigo 1348º do Código Civil, e, consequentemente, julgou a ação improcedente, absolvendo a R. do pedido.
X- Evidencia-se nessa mesma sentença que o Tribunal, para firmar tal conclusão, ter-se-á baseado na natureza rústica do prédio dos AA. em contraponto com a natureza urbana do prédio da R..
XI- Todavia, e com todo o respeito, essa argumentação utilizada pelo Tribunal é, na modesta opinião dos Recorrentes, manifestamente improcedente.
XII- Na verdade, a diferente natureza dos prédios aqui em causa – rústica ou urbana – é absolutamente irrelevante para que a situação seja reconduzida, ou não, à previsão da norma constante do artº1348º do Código Civil.
XIII- A lei não faz essa distinção nem ela se justifica por razões de interpretação e aplicação da norma jurídica ao caso concreto,
XIV- Sobretudo no sub judice, em que o prédio dos Recorrentes, não obstante ter natureza rústica tem, contudo, aptidão construtiva/edificativa que, todavia,
XV- Perde, precisamente – mas não justamente – por força da intervenção levada a cabo pela Recorrida no seu prédio,
XVI- Que impede, tal como consta expressamente dos itens 8., 9. e 10. Da factualidade provada, que os Recorrentes possam, como pretendem, edificar uma moradia no seu prédio e, consequentemente,
XVII- Torná-lo, também ele, num prédio urbano.
XVIII- Nos termos do artº1348º, nº1 do C.Civil, assiste ao proprietário a faculdade de, no seu prédio, fazer escavações, desde que não prive os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra.
XIX- Mesmo que o proprietário tenha tomado as precauções necessárias na execução dessas obras, logo que venham a padecer danos com obras feitas, os proprietários vizinhos serão indemnizados pelo autor delas (nº2 do artº1348º do C.Civil).
XX- Por estar em causa a conservação do estado dos lugares, a reparação da violação do direito de vizinhança deve passar, antes de mais, pela reconstituição desse estado, tal como antes de encontrava.
XXI- Nestes casos, tão importante quanto a lesão material do direito é a sua compressão ilegítima, daí que a noção de dano seja até mais abrangente do que normalmente o é, de tal forma que o legislador antecipa a tutela jurídica, considerando não só relevantes os desmoronamentos ou as deslocações de terra, mas também o perigo de tais consequências virem a surgir (neste sentido, veja-se Ac. do TRG, de 27/10/2016, Relator João Diogo Rodrigues, publicado em www.dgsi.pt).
XXII- Portanto, os Recorrentes entendem que a sentença, ao julgar a ação totalmente improcedente e ao absolver a Recorrida do pedido, viola ostensivamente o preceituado no artº1348º do C.Civil,
XXIII- Devendo, por isso, ser revogada por outra decisão – acórdão – que julgue a ação totalmente procedente e condene a Recorrida no pedido.
XXIV- Além disso, quer parecer aos Recorrentes que o acervo factual constante da sentença, tal como se encontra, deveria conduzir à total improcedência do pedido reconvencional e, consequentemente, à sua absolvição do mesmo.
XXV- Neste conspecto, decidiu o Tribunal julgar parcialmente procedente o pedido reconvencional, condenando os aqui Recorrentes “a fazer as obras de manutenção do muro referido em 5), por forma a impedir a abertura de buracos por onde passam terras e águas para o prédio da ré, mais ficando os mesmos condenados ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de € 50,00 por cada vez que tais buracos permitam tais passagens de terras e água.”.
XXVI- Para tanto, baseou-se o Tribunal no preceituado no nº2, do artº1351º do Código Civil, rematando a questão da seguinte forma: “Ou seja, nos termos deste normativo, o prédio da ré não tem que estar sujeito a receber as águas e terras que decorram do prédio dos autores em virtude do muro ali erigido estar a escavar pela base – artigo 13) -, impondo-se aos autores, e não à ré ou aos seus funcionários, a respectiva manutenção.”.
XXVII- Vejamos, então, o acervo factual constante da sentença que, na perspetiva dos Recorrentes, é relevante para a resolução desta concreta questão.
XXVIII- O prédio dos Recorrentes confronta do seu lado norte com o prédio da Recorrida e, nessa confrontação, existe um muro construído em alvenaria, com cerca de 2,20 metros de altura e 20 cm de espessura – facto nº5;
XXIX- O prédio da Recorrida está situado a uma cota inferior do prédio dos Recorrentes – facto nº6;
XXX- Em data não concretamente apurada, mas que se compreende entre 1976 e 1979, a Recorrida procedeu a uma escavação na confrontação sul do seu prédio, até à distância de cerca de um metro do prédio dos Recorrentes – facto nº7;
XXXI- Após a escavação referida em 7), passou a existir uma diferença de cota de não menos de 10 metros entre o prédio dos Recorrentes e o prédio da Recorrida – facto nº8;
XXXII- O muro em alvenaria referido em 5) foi construído após a escavação referida em 7) e 8) – facto nº11;
XXXIII- O muro referido em 5) não tem um sistema para drenagem e escoamento das águas que se acumulam no prédio dos Recorrentes – facto nº12;
XXXIV- As águas que se infiltram no prédio dos Recorrentes têm vindo a erodir a base do muro referido em 5), permitindo a passagem de água e terra – facto nº13.
XXXV- Ora, nos termos do disposto no artº1351º, nº1 do Código Civil, “Os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastam na sua corrente.”.
XXXVI- O referido preceito legal consagra o princípio de que as águas devem seguir o seu curso normal, sem que os utentes delas ou os donos dos prédios imponham a outros a alteração artificial desse fluxo normal.
XXXVII- Trata-se de uma restrição ao direito de propriedade dos prédios inferiores e que deriva diretamente da lei.
XXXVIII- Já no nº2, do referido artº1351º do Código Civil, está consignado o seguinte: “Nem o dono do prédio inferior pode fazer obras que estorvem o escoamento, nem o dono do prédio superior obras capazes de o agravar, sem prejuízo da possibilidade de constituição de uma servidão legal de escoamento, nos casos em que é admitida.”.
XXXIX- Salvo melhor opinião contrária, os Recorrentes creem que o muro existente na confrontação norte do seu prédio, construído em alvenaria, não constitui uma obra capaz de agravar o escoamento das águas, até pelo contrário.
XL- Apesar de tudo, a água e a terra que se infiltram pela base desse muro, que está erodida, e que caiem sobre o prédio da Recorrida, é sempre muito inferior ao que sucederia caso esse muro não existisse.
XLI- Portanto, esse muro não só não agrava o escoamento, como até o mitiga.
XLII- Assim, a situação, ao contrário do que consta da sentença, não pode ser reconduzida à previsão do artº1351º, nº2 do Código Civil.
XLIII- Ao decidir de forma diversa, a sentença em causa viola o preceituado no artº1351º, nº2 do Código Civil,
XLIV- Devendo, por isso mesmo, ser proferida uma outra decisão – acórdão –que, revogando-a, julgue o pedido reconvencional totalmente improcedente e, consequentemente, dele absolva os Recorrentes.
XLV- De resto, os Recorrentes entendem que há boas razões para impugnarem a decisão sobre a matéria de facto, já que entendem que estão incorretamente julgados os factos considerados, na sentença, como provados, sob os pontos 7, na parte em que se decide que a escavação ocorreu entre 1976 e 1979, e 11, e, como não provados, os constantes das alíneas a) e b).
XLVI- Comecemos, então, por analisar o depoimento prestado pela testemunha DD, que é engenheiro civil e que, nessa qualidade e a pedido dos Recorrentes, elaborou, indo ao local, o parecer técnico junto aos autos com a petição inicial, como documento nº....
XLVII- A propósito do muro de vedação existente no limite do prédio dos Recorrentes e na confrontação com o prédio da Recorrida, o referido depoente disse: “Pronto. O que se constatou, depois de eu ir ao local, foi que as condições em que ele estava assente não eram favoráveis para um muro, pelo corte que existia ali no terreno, não é? Ou seja, aquilo não era um talude, não é? Tinha lá um corte vertical, e estava em condições de poder vir a ruir.” (00:04:33). E, mais à frente, “Ah, ok. Pronto. Nota-se que existe já terra que passou para baixo da fundação do muro, e só acontece se formas lá tirar terra, está a perceber?” (00:07:14). E, mais à frente, “Pronto. E há zonas do terreno em que se nota que a terra já passou por baixo dessa fundação, que abateu o terreno. Isso só acontece se nós retirarmos terra do outro lado do muro.” (00:07:34). E, mais à frente, depois do mandatário da Recorrida lhe ter perguntado se tinha forma de concluir que foram feitas escavações depois da construção do muro, a referida testemunha respondeu assim: “Desta forma que eu estou a justificar, sim.” (00:07:54). E, posteriormente, a Mma Juíza colocou à testemunha a seguinte questão: “Uma das coisas que se discute neste processo é quando é que foi feita essa escavação e, portanto, nós precisamos de elementos objetivos que nos permitam concluir, se sim ou não. Com alguma certeza, não é só por suposição, se pode dizer que houve escavação… porque as partes aqui divergem: uma parte diz que a escavação foi posterior a esse muro e a outra diz que foi muito anterior. E nós temos de saber se é possível afirmar com algum grau de certeza que houve escavação do talude após ter (impercetível) ali aquele muro de vedação?”, tendo a testemunha respondido da seguinte forma: “Aquele muro. Mas, como é óbvio, eu falo daquilo que consigo aferir, não é? Não consigo dar com certeza que sim ou que não, não é? Mas o que se via nos movimentos de terra e do abatimento, tem que ser com… ou seja, teve como causa isso, só pode. Nós vamos escavando e vamos retirando suporte ao que existe, não é? Claro, a gravidade depois atua.” (00:10:47). E, posteriormente, à seguinte pergunta efetuada pelo mandatário dos Recorrentes: “Tendo em conta que o muro está praticamente no limite do corte, era possível construi-lo com aquele corte feito?”, a testemunha respondeu: “Eu não o faria.” (00:15:01). Mais à frente, o mandatário dos Recorrentes perguntou: “Temos aí fotografias, talvez (inaudível). Mas fazer o muro no limite no limite, naquele limite, quer dizer, ele está praticamente a centímetros do corte, não é?”, e a testemunha respondeu: “Sim. Tanto que se vê… em alguns sítios, vê-se a fundação do muro.” (00:15:35), e, voltando o mandatário dos Recorrentes ao uso da palavra para dizer: “Tem sítios que até se vê a fundação do muro. Portanto faz algum sentido alguém construir um muro ali naquele sítio…”, tendo a testemunha afirmado o seguinte: “Não faz sentido…”.
XLVIII- Portanto, como se afigura evidente pelo depoimento da referida testemunha que, além de ser engenheiro civil, não tem qualquer relação com os Recorrentes, a não ser a da contratação dos seus serviços profissionais para esta concreta questão, o muro foi construído antes de a Recorrida ter procedido ao corte vertical no seu prédio,
XLIX- Pois tudo indica, com um elevadíssimo grau de certeza, que nem seria fisicamente possível construir o referido muro, naquele local, depois de efetuado, pela Recorrida, o corte no seu terreno.
L- Analisemos, então, agora, o depoimento prestado pela testemunha EE, que é empreiteiro, sobretudo na parte que o mesmo versa sobre o muro e o corte efetuado pela Recorrida no seu terreno.
LI- A referida testemunha, à seguinte pergunta efetuada pelo mandatário dos Recorrentes: “… . Era possível construir aquele muro, tendo lá aquele talude, ou tinha que ter sido antes de o talude se fazer? O talude, não, desculpe, do corte.”, respondeu: “De certeza que tem de ser antes de… tem que ser antes de cortar o talude, senão não se consegue fazer como está lá o muro, assim.” (00:03:57). E, posteriormente, sobre a mesma questão, disse: “Se fosse fazer como está lá aquilo, o muro como está lá, como está o talude agora, eu não ia lá fazer.” (00:04:09). Posteriormente, a Mma Juíza Juíza formulou a seguinte questão à testemunha: “O que o Senhor Doutor pergunta não é se era uma boa ideia ou se era seguro. É se era possível?”, ao que a testemunha respondeu: “Eu acho que não, Senhora Doutora Juíza. Porque é… o talude está… o muro está muito à beira do talude. Aquilo, eu acho que não.” (00:04:21). E, mais à frente, ainda sobre o facto de o muro ter sido construído depois do corte: “Eu acho que é impossível.” (00:04:37). E sobre a mesma questão, mais à frente: “Porque é muito perto. É impossível trabalhar ali.” (00:04:40). Ainda sobre o mesmo assunto, um pouco mais à frente: “Tem que ter pelo menos 2 ou 3 m para a pessoa trabalhar. Agora, há lá sítios que está quase o corte pelo muro. Por isso é que eu estou a dizer que era impossível.” (00:04:49). Posteriormente, a testemunha respondeu da seguinte forma à seguinte pergunta efetuada pelo mandatário da Recorrida: Pergunta – “Mas sobre a questão de saber se o muro foi construído antes ou depois das escavações, isso tem opinião, mas sabe de alguma coisa, assistiu a alguma coisa? – Resposta da testemunha: “Não. É assim, eu trabalho na construção há 30 anos. E eu… não é possível a pessoa trabalhar, fazer aquele muro como aquilo está lá. Não é possível, porque a pessoa não consegue trabalhar do lado de lá. É impossível.” (00:07:38). E, logo de seguida, após o mandatário da Recorrida lhe ter perguntado se era necessário trabalhar do lado de lá, a testemunha respondeu assim: “Era. Sem dúvida nenhuma. Ninguém consegue fazer o muro se não for ao lado de lá, ninguém. É preciso meter taipais, é preciso trabalhar tudo do lado de lá. É impossível trabalhar do lado daqui, fazer tudo sem ir ao lado de lá é impossível.” (00:07:54).
LII- Portanto, mais um depoimento, prestado por uma pessoa com uma vastíssima experiência em obras – 30 anos, que aponta, inequivocamente, no sentido de o muro ter sido construído antes do corte perpetrado pela Recorrida no seu prédio.
LIII- Depoimento esse que foi prestado de forma imparcial, onde, ao contrário de outros que foram prestados, não descortinamos razões objetivas para deixar de ser (muito) credível.
LIV- Vejamos, agora, o depoimento prestado pela testemunha FF, sobretudo no que respeita às questões respeitantes ao muro e ao corte efetuado pela Recorrida no seu prédio.
LV- Este depoimento parece-nos particularmente importante já que a testemunha declarou ter efetuado um furo no prédio da Recorrida em 2009, a pedido desta, ostentando, até, a respetiva fatura. Portanto, conhece o local desde, pelo menos, o ano de 2009, onde regressou há cerca de um ano atrás.
LVI- A referida testemunha declarou esse facto, por diversas vezes: “Conheço bem porque fui eu que fiz o furo lá em 2009.” (00:02:22). “…o furo que eu fiz foi à EMP01..., cá em baixo.” (00:03:01). “2009, tenho aqui a fatura.” (00:03:07).
LVII- E, sobre o estado em que se encontrava o terreno nessa altura – 2009, a Mma. Juíza formulou a seguinte pergunta ao depoente: “Mas nessa altura, em 2009, teve medo que lhe caísse alguma coisa em cima ou não?”, ao que a testemunha respondeu: “Não, porque o terreno não estava assim.” (00:03:40). E, mais à frente, caracterizando o estado em que se encontrava o terreno da Recorrida, nessa altura, a testemunha referiu: “Para o lado da fábrica, portanto, aquele corte não existia lá atrás porquê? Eu quando fui ver para fazer o furo à EMP01..., o furo era para ser feito dentro do poço, porque é possível fazer, isto porquê, porque as pessoas tentam rentabilizar a canalização do motor do poço, portanto já tem lá o ponto elétrico, já tem os tubos e se o furo for feito noutro sítio depois temos de encaminhar toda a canalização para o poço.” (00:03:46). E, mais à frente, disse: “…E o terreno estava diferente daquilo que está hoje, portanto, o terreno estava mais para o lado da fábrica, portanto, este lado da senhora estava mais para lá para… havia terra, portanto, aquela terra foi retirada até onde está hoje.” (00:05:08). E a testemunha, mais à frente, quando o mandatário dos Recorrentes o inquiriu sobre as diferenças existentes no prédio da Recorrida, na parte que confronta com o prédio dos Recorrentes, entre 2009 e a atualidade, referiu: “Não, ele era mais, portanto, estava atrás do poço, mas tinham, era mais dis… não estava tão cortado como está agora, era mais lançante, era mais , sei lá, 3, 4, 5 metros, eu não quero mentir, não estava tão a pique, estava mais disfarçado.” (00:22:50). E, mais à frente, sobre a mesma matéria, a testemunha referiu: “…desses pormenores, agora o que eu fiquei surpreendido quando agora fui ao terreno, olhei lá para baixo, e foi logo “isto não estava assim”, portanto, fiquei logo isto não era assim, agora, saber como é que era preciso exatamente não lhe consigo, agora sei que aquilo não estava tão a pique, era mais disfarçado, não era tão a pique.” (00:23:28). E, posteriormente, sobre a mesma questão, a testemunha declarou que: “Era, era um corte que tinha, só que a noção que eu tenho, estamos a falar já de 10, 12 anos é que não era assim uma parede tão… que chamaria-me logo a atenção para fazer lá o furo, olhando para aquilo com a máquina a tremer aquilo viesse abaixo, eu teria logo dito “olhe, esqueça, nem vale a pena eu ir ver o poço”, isto é dos cuidados que eu tenho com segurança, aquilo está lá um perigo, quer dizer, a fazer ali bum-bum- bum, junto daquela empena, se aquilo desmuralha, cai em cima das máquinas, mata o pessoal.” (00:24:01).
LVIII- Portanto, mais um depoimento prestado de forma absolutamente imparcial, por uma pessoa que demonstrou conhecimento direto de causa, pois esteve no local, em 2009, para efetuar um furo no prédio da Recorrida, tendo regressado ao mesmo local mais de 10 anos depois, deixando muito bem assinaladas as diferenças entre o antes e o depois, quanto ao talude que passou a ser um corte vertical.
LIX- Analisemos, agora, o depoimento prestado pela testemunha GG, que se apresentou como topógrafo e autor do levantamento topográfico, efetuado ../../2018, sobre o prédio dos Recorrentes, e que constitui o documento nº..., junto aos autos com a petição inicial.
LX- O primeiro aspeto que deve ficar realçado a propósito deste depoimento é que, ao contrário do que consta da sentença, o levantamento topográfico não foi efetuado a pedido dos Recorrentes, mas sim da anterior proprietária do prédio.
LXI- É que, perguntado à testemunha se conhecia os Recorrentes ou a Recorrida, o mesmo respondeu “não.”.
LXII- A testemunha, confrontada com o referido documento da sua autoria, começou por afirmar que, na confrontação do prédio dos Recorrentes com o prédio da Recorrida, “As cotas, tem cuvas de nível no tereno.” (00:07:12). E, mais à frente, quando confrontado com as fotografias via satélite de anos anteriores, que, aparentemente (mas só isso), não iam de encontro ao documento nº..., a testemunha, defendendo o seu levantamento topográfico, disse: “(impercetível) aqui esclarecer uma coisa. Quando estamos aqui a fazer métodos comparativos de 2010 com um levantamento de 2018 ou de 2019 (impercetível) 2018, há uma coisa que eu sei, e isto é pôr o meu profissionalismo em questão. Todos os pontos que aqui estão dados e todas as peças desenhadas que aqui estão representadas, à data, era como estava o terreno.” (00:14:47). E, posteriormente, ainda a propósito do documento nº..., da sua autoria, referindo-se às respetivas curvas de nível, a testemunha disse: “Quanto mais juntas estão as curvas de nível, maior é a verticalidade, ok? Se reparar, aqui, as curvas de nível estão bastante afastadas, está a ver onde eu quero chegar? E eu… deixe-me aqui … (impercetível) curvas de nível, de meio em meio metro (impercetível). Cada risquinho que aqui está.” (00:28:01). E, logo de seguida, declarou: “Temos que os contar, é meio metro.” (00:28:24). E, seguidamente, disse: “Doutora, (impercetível) cada risquinho que aqui está é meio metro.” (00:28:27).
LXIII- Um depoimento, portanto, prestado, de forma isenta, totalmente de acordo com o teor do levantamento topográfico que constitui o documento nº..., junto aos autos com a petição inicial (esse mesmo documento foi junto aos autos, em 4 de novembro de 2022, numa versão ampliada),
LXIV- E donde se retira, com muita evidência que, à data em que foi efetuado o levantamento topográfico – 2018 -, existia, no prédio pertencente à Recorrida, e no confronto com o prédio dos Recorrentes, um talude (e não um corte vertical) constituído de terra,
LXV- Que esbarrava diretamente no muro erigido no prédio dos Recorrentes, nessa mesma confrontação, de tal forma que, nessa referida confrontação, onde o prédio dos Recorrentes estava a um nível de, por exemplo, cerca de 207 metros acima da linha média da água do mar, o prédio da Recorrida situava-se a um nível de cerca de 206 metros,
LXVI- E assim sucessivamente (não havia desfasamento superior a um metro), ao longo de toda a confrontação dos prédios, contando, no entanto, que os mesmos são irregulares (não têm sempre a mesma altura),
LXVII- Numa extensão de cerca de 2 metros, no sentido norte – sul, e, a partir daí, nesse mesmo sentido e numa extensão de cerca de mais de 10 metros, a cerca de 196 metros.
LXVIII- E era precisamente essa terra, existente no prédio da Recorrida, com esse suave declive no sentido norte – sul, que funcionava como um talude de sustentação do muro e da própria terra existente no prédio dos Recorrentes.
LXIX- Ou seja, a sustentabilidade do muro existente no prédio pertencente aos Recorrentes, bem como a própria sustentabilidade do terreno desse mesmo prédio, dependiam da existência do referido talude, com o seu suave declive.
LXX- E era, portanto, assim, que os prédios se encontravam em 2018, ou seja, na data em que foi elaborado o levantamento topográfico que constitui o documento nº..., junto aos autos com a petição inicial,
LXXI- O que significa que o corte efetuado pela Recorrida no seu prédio, ocorreu em data posterior.
LXXII- Vejamos, agora, o depoimento prestado pela testemunha HH, arquiteto e pessoa encarregada pelos Recorrentes para efetuar um estudo do seu prédio, com vista à construção de uma moradia.
LXXIII- Para esse efeito, foi cedido à testemunha o levantamento topográfico que constitui o documento nº..., junto aos autos com a petição inicial, datado de ../../2018, acompanhado do competente termo de responsabilidade, assinado pelo topografo, a testemunha GG.
LXXIV- Confrontado com esse documento e tendo-lhe sido solicitado que o explicasse, a testemunha declarou o seguinte: “A configuração do terreno, tinha o levantamento da zona, com rigor; tinha um talude… tinha o muro que dividia a propriedade na parte posterior do terreno (impercetível)…” (00:03:04). E, imediatamente a seguir, disse: “Lado norte com a empresa EMP01.... Havia um talude, havia um talude, que há uma diferença de cota de sensivelmente 12 metros entra a plataforma da base de cima no terreno da D. BB e do Senhor AA, e a parte de baixo, onde está implantada a fábrica; e havia um talude que tinha um distanciamento que variava mais ou menos entre 2 m e 3 m para lá do muro… portanto, tinha uma plataforma ao nível do terreno da D. BB, e depois um talude que ia até à cota natural, ou à cota que foi criada para fazer a implantação da fábrica.” (00:03:20). Posteriormente, a testemunha explicou as diferenças existentes entre o que constava do levantamento topográfico e as condições físicas com que se deparou no terreno, na confrontação norte, quando visitou o local, em 2019. A este respeito disse: “Pronto. Depois, as condições do terreno não eram exatamente as mesmas, e nós promovemos um novo levantamento na altura em que fizemos…” (00:04:06). Um pouco mais à frente, disse: “Fui ao terreno e as confrontações, as condições do terreno confrontante a norte não eram as mesmas que constavam da planta topográfica que tinha sido… cedida” (00:04:18). E, um pouco mais adiante, ainda sobre as condições representadas no documento nº..., disse: “Lá está, o levantamento que tinha sido cedido, apresentado tinha um talude que começava… aquilo variava entre 2 m…” (00:04:42). E, um pouco mais à frente, sobre as condições com que se deparou quando foi visitar o terreno, em 2019, por oposição àquelas que estavam representadas no documento nº..., disse: “Chegando ao muro… portanto, estava lá o terreno desaterrado junto ao muro, isso não se verificava no levantamento que me foi cedido.” (00:06:01).
LXXV- A tudo isto acresce o levantamento topográfico que constitui o documento nº..., junto aos autos com a petição inicial que, por um lado, permite ver representado o prédio dos Recorrentes, nomeadamente na parte em que confronta com o prédio da Recorrida, no estado atual e, por outro lado,
LXXVI- Quando confrontado como o documento nº..., junto aos autos com a petição inicial, elaborado em junho de 2018, permite-nos ver evidenciadas as diferenças existentes quanto ao talude, que deixou de ser um talude para passar a ser um corte vertical.
LXXVII- Ora, da análise conjugada dos meios de prova acima elencados, os Recorrentes entendem que:
LXXVIII- - O item 7. dos factos provados deve ser alterado e passar a ter a seguinte redação: “7. Em data não concretamente apurada, mas sempre depois de ../../2018, a ré procedeu a uma escavação na confrontação sul do seu prédio, até à distância de um metro do prédio referido em 1)”;
LXXIX- - A factualidade constante do item 11. dos factos provados deve ser considerada como não provada;
LXXX- - A factualidade constante da alínea a) dos factos não provados deve ser considerada como provada;
LXXXI- - A factualidade constante da alínea b) dos factos não provados deve ser considerada como provada.
LXXXII- E, feita a subsunção jurídica do (novo) referido acervo factual, deve, simultaneamente, a ação ser julgada totalmente procedente e totalmente improcedente o pedido reconvencional,
LXXXIII- Como o que se fará a esperada Justiça!
Termos em que, sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve, revogando-se a sentença, o presente recurso ser julgado totalmente procedente!”.
*
A ré apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso interposto, e requereu a ampliação do objecto do recurso, terminando com as seguintes conclusões (que se transcrevem):
“CONCLUSÕES
DA RESPOSTA
I. Quanto à invocada nulidade, à Sentença proferida subjaz que a questão da prescrição suscitada pelos Recorrentes ficou prejudicada, não ocorrendo, por isso, a nulidade da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, que só se verifica quando da decisão não resulte, de forma expressa ou implícita, que o conhecimento de alguma questão colocada pelas partes tenha ficado prejudicada em face da solução dada ao litígio.
II. Por estar em causa a violação do direito de propriedade da Recorrida, imprescritível ao abrigo do disposto no artigo 298.º, n.ºs 1 e 3 do Código Civil, e visando a pretensão da Recorrida o restabelecimento do direito violado, ao invés da compensação ou reparação por essa violação, não está essa pretensão sujeita a qualquer prazo de prescrição, tão-pouco ao de três anos referido pelos Recorrentes.
III. Acresce que, na pretensa invocação de prescrição, os Recorrentes não deram cumprimento ao ónus da alínea c) do artigo 572.º (ex vi do n.º 2 do artigo 578.º) do Código de Processo Civil e, também, não se pronunciaram relativamente ao despacho saneador em que o Tribunal a quo, desde logo, tomou posição acerca das excepções invocadas nos articulados.
IV. Em face do exposto, não se verifica nulidade da sentença ou, se assim não fosse, qualquer excepção de prescrição.
V. Quanto à invocada violação do artigo 1348.º do Código Civil, não resulta da Sentença, ao contrário do que alegam os Recorrentes, que a natureza do prédio dos Recorrentes tenha sido, per se, determinante ou relevante, para a decisão do Tribunal a quo.
VI. O que, ao invés, resulta é que o invocado risco de desmoronamentos ou deslocações de terra não passou a existir com a escavação realizada pela Recorrida, passando tão-só a existir na eventualidade de os Recorrentes levarem a cabo a sua intenção de construir uma moradia naquele prédio – o qual, por ser de natureza rústica teria de ser previamente convertido em prédio urbano – sem antes reforçarem o talude.
VII. Daí não se encontrarem, ademais, preenchidos os pressupostos exigidos pelo artigo 1348.º do Código Civil, como o da existência de dano e nexo de causalidade, dano esse que, saliente-se, inexistente, só existe se o referido prédio rústico fosse convertido em prédio urbano e, nele, construída uma moradia sem o reforço do talude que os Recorrentes querem impor à Recorrida.
VIII. A Sentença não violou, por isso, o disposto no artigo 1348.º do Código Civil.
IX. Quanto à invocada violação do n.º 2 do artigo 1351.º do Código Civil, salvo o devido respeito, não é lógica ou razoável a alegação dos Recorrentes de que o muro construído no seu prédio «mitiga» o escoamento, daí não sendo, no seu entender, aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 1351.º do Código Civil.
X. Em face do que se encontra demonstrado nos pontos 12 e 13 dos factos dados como provados (e atentas, ademais, as regras da lógica), facilmente se conclui que o muro construído no prédio (superior) dos Recorrentes ocasiona, precisamente, a acumulação de águas nesse prédio (impedindo-as de seguir as suas correntes naturais), acumulação essa que, por seu turno, vai erodindo ou descalçando a base do muro e criando pontos de passagem artificiais por onde, juntamente com terra, a água, que não é absorvida ou escoada naturalmente, acaba, por escoar, logicamente, com superior abundância.
XI. A Sentença não violou, por isso, o disposto no n.º 2 do artigo 1351.º do Código Civil.
XII. Quanto à impugnação, pelos Recorrentes, da decisão sobre a matéria de facto, tendo em consideração o princípio da livre apreciação (cf. artigos 396.º do Código Civil e 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil), os recorrentes não podem, sem mais, pretender sobrepor a sua própria convicção à do Julgador, procurando sustentá-la como também ela acertada ou, eventualmente, mais acertada, sem alegarem e demonstrarem que a do Tribunal recorrido assenta em pressupostos ou juízos manifestamente ilógicos, arbitrários e insustentáveis em face das regras da experiência comum.
XIII. A Sentença proferida encontra-se devidamente fundamentada, expondo as razões que fundamentam a sua opção, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade à versão dos factos que resulta do conjunto da prova produzida e permitindo a percepção e o escrutínio do processo lógico subjacente à convicção do Julgador, tendo, ademais, o Tribunal a quo procedido a uma correcta e criteriosa valoração da prova produzida, interpretando-a da forma que, simplesmente, se afigura mais plausível e consentânea com as regras da ciência, da lógica e da experiência comum.
XIV. No entanto, os Recorrentes limitaram-se a apresentar uma versão alternativa dos factos, indicando trechos isolados dos depoimentos de testemunhas – algumas delas cuja credibilidade o Tribunal a quo entendeu ser frágil e diminuída – sem alegarem ou demonstrarem que a convicção do Tribunal recorrido se mostra errada ou revela uma impossibilidade lógica, violando, por isso, as regras da experiência comum.
XV. Os Recorrentes limitaram-se, ademais, a indicar provas que apenas permitiriam uma outra decisão, em vez dos concretos meios probatórios que impunham ou obrigavam uma decisão diversa da recorrida, incumprindo, assim, o ónus que lhes é imposto pela alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil.
XVI. Em qualquer caso, contrariamente ao que os Recorrentes procuraram sustentar, os depoimentos das testemunhas DD e EE não são susceptíveis de demonstrar que o muro situado no prédio dos Recorrentes fora construído antes da escavação em causa nos autos.
XVII. Isto porque a testemunha DD (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 02/11/2022, entre as 15:16 e as 15:32) acabou por admitir que o muro pode, também, ter sido construído depois da escavação (minutos 00:12:40 a 00:14:30), revelando, até, que seria possível construir o muro depois da escavação, embora não o fizesse, e, nessa hipótese, apesar de não se recordar se o muro tinha qualquer acabamento, não excluiu a possibilidade de ser aplicado acabamento no muro do lado do talude, contanto que houvesse «alguma perícia» nessa aplicação (minutos 00:14:40 a 00:15:22).
XVIII. Aliás, as imagens que constam dos autos, designadamente as que foram juntas com a contestação e as que integram a acta de 20/06/2022, revelam que o muro, efectivamente, não tem nenhum acabamento do lado do talude.
XIX. E o depoimento da testemunha EE mostrou-se, como notou o Tribunal a quo, condicionado e parcial, constatando-se que esta testemunha se limitou a procurar sustentar, imoderadamente e sem critério razoável, a versão que interessava aos Recorrentes, emitindo opiniões e palpites e aventando, sem conhecimento directo dos factos.
XX. Ora, pelo contrário, a testemunha CC (cf. depoimento prestado em sede de produção antecipada de prova, em 26/07/2022, entre as 14:22 e as 15:03), que acompanhou as escavações e viu o muro em causa a ser construído, esclareceu – merecendo, do Tribunal a quo, credibilidade – que as escavações em causa foram realizadas «nos anos 70» (minutos 00:09:20 a 00:09:30) e que só posteriormente é que o muro foi construído, «há uns 15, 20 anos» (minutos 00:10:30 a 00:13:45).
XXI. O mesmo facto foi confirmado pela testemunha II (cf. Depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 02/11/2022, entre as 16:16 e as 16:37) que, também com conhecimento directo e de forma credível, esclareceu que o muro foi construído depois das escavações, tanto mais que, quando, há 27 ou 30 anos, essa testemunha começou a realizar trabalhos de manutenção nas instalações da Recorrida, já o terreno tinha a configuração actual (minutos 00:09:30 a 00:09:40) e o muro ainda não existia, só podendo, por isso, ter sido construído no limite e a partir do terreno dos Recorrentes (minutos 00:13:45 a 00:14:20 e 00:18:45 a 00:19:20).
XXII. Aliás, os depoimentos das testemunhas CC e II confirmaram as declarações do Legal Representante da Recorrida (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 02/11/2022, entre as 14:26 e as 14:47) que, com objectividade, afirmara que as escavações foram realizadas aquando da construção da fábrica em 1978 (minutos 00:02:05 a 00:02:18), com a autorização e com a colaboração do dono do terreno (minutos 00:04:23 a 00:06:39), terreno este agora pertencente aos Recorrentes, e que só há cerca de 20 anos é que o muro em causa foi construído (minutos 00:08:15 a 00:08:47).
XXIII. E, contrariamente ao que os Recorrentes também procuram sustentar, os depoimentos das testemunhas FF, GG e HH não têm a virtualidade de demonstrar que uma suposta «restante parte das escavações […] só ocorreu, pelo menos, a partir de 05/06/2018».
XXIV. Isto porque o depoimento da testemunha FF (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 07/12/2022, entre as 10:14 e as 10:58) revelou-se parcial, como também concluiu o Tribunal a quo, verificando-se que também esta testemunha se limitou a sustentar a versão que interessava aos Recorrentes.
XXV. Aliás, quando confrontada com imagens de satélite que infirmavam o seu depoimento, esta testemunha, demonstrando comprometimento, primeiro, sugeriu que a vegetação visível em algumas imagens teria de estar suportada na terra que, na sua versão, fora removida (apesar de em imagens de datas anteriores já não haver vegetação ou terra) e, depois, passou a contrariar, irrazoavelmente, as evidências que resultavam das imagens, sugerindo que numa imagem seria visível uma mancha de «saibro» que corresponderia ao talude supostamente removido (apesar de resultar claro das imagens de satélite que o terreno manteve a configuração desde 2003) (minutos 00:15:50 a 00:21:20).
XXVI. Já as conclusões que os Recorrentes retiram do depoimento da testemunha GG (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 19/04/2023, entre as 14:15 e as 14:51) – resumidas nos artigos 89.º a 95.º das suas alegações de Recurso e nas conclusões vertidas nos artigos LXIV a LXX – não têm correspondência com o que a testemunha efectivamente transmitiu em Tribunal.
XXVII. Na verdade, esta testemunha esclareceu que, após o muro, existe, desde logo, um desnível vertical com cerca de 2 metros de profundidade – cuja extensão horizontal a testemunha desconhece, por não a ter medido – e após esse desnível existe um talude (propriamente dito) com cerca de 10 metros de profundidade (minutos 00:16:10 a 00:17:40, 00:18:13 a 00:18:20, 00:18:30 a 00:18:46 e 00:27:30 a 00:29:35), acrescentando que um talude pode, efectivamente, ser vertical (minutos 00:17:50 a 00:17:58).
XXVIII. Esta mesma testemunha estabeleceu, ainda, uma relação entre o levantamento topográfico que realizou e as fotografias que constam dos autos e que em Audiência de Julgamento lhe foram exibidas – todas elas posteriores a esse levantamento e à entrada da acção em juízo – sem que tais fotografias lhe tenham causado estranheza, tendo, peremptoriamente, afirmado que essas fotografias estavam «mais ou menos dentro» da representação gráfica constante do levantamento topográfico (minutos 00:18:55 a 00:19:25).
XXIX. Na verdade, o depoimento desta testemunha mostra-se mais concordante com a versão da Recorrida e com a convicção correctamente alcançada pelo Tribunal a quo.
XXX. Uma vez que a testemunha HH se baseou exclusivamente no levantamento topográfico realizado pela testemunha GG para afirmar ter havido um distanciamento (que se crê ter sido referido como sendo horizontal) «que variava entre 2 metros e 3 metros para lá do muro» (minutos 00:03:40 a 00:04:05) e considerando que a testemunha GG esclareceu (1) que não pode afirmar qual seria essa extensão horizontal porque não a mediu, e (2) que o distanciamento a que a testemunha HH se refere como sendo uma «plataforma» se trata, antes, de um desnível vertical com 2 metros de profundidade, o depoimento do referido HH simplesmente não comprova o que os Recorrentes vieram alegar.
XXXI. Por último, resulta da análise das imagens de satélite, juntas pela Ré com o requerimento de 11/11/20222, que os prédios em causa nos presentes autos mantiveram (apenas com variações na vegetação) a mesma configuração pelo menos desde ../../2003.
XXXII. Em face do exposto, resultando da prova produzida em Audiência de Julgamento que, efectivamente, a terraplanagem em causa foi realizada nos anos 70, bem antes da construção do muro que se encontra no prédio dos Recorrentes, e sem que, desde então, tenham sido realizadas quaisquer outras escavações ou remoções de terra, nada haverá, neste conspecto, a censurar ou a apontar à decisão do Tribunal a quo quanto à matéria de facto.

DA AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
XXXIII. Para a eventualidade de o recurso ser julgado procedente, considera, desde logo, a Recorrida que deverá passar a constar do rol dos factos dados como provados que a terraplanagem a que se refere o ponto 7 dos factos dados como provados foi realizada com o consentimento do então proprietário do prédio referido no ponto 1 dos factos dados como provados (i. e., o que agora pertence aos Recorrentes), conforme ao que é, aliás, referido em sede de motivação da Sentença.
XXXIV. Nesse sentido, o Legal Representante da Recorrida (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 02/11/2022, entre as 14:26 e as 14:47), cujas declarações foram positivamente valoradas pelo Tribunal a quo, afirmou, como já se disse, que as escavações foram realizadas aquando da construção da fábrica em 1978 (minutos 00:02:05 a 00:02:18) e com a autorização e com a colaboração do dono do terreno (minutos 00:04:23 a 00:06:39).
XXXV. A mesma circunstância foi confirmada pela testemunha CC (cf. depoimento prestado em sede de produção antecipada de prova, em 26/07/2022, entre as 14:22 e as 15:03), a cujo depoimento o Tribunal a quo atribuiu credibilidade (minutos 00:14:55 a 00:16:15).
XXXVI. A questão do consentimento do então proprietário do prédio dos Recorrentes não é despicienda, seja relativamente à eventual apreciação da prescrição do direito dos Recorrentes conforme ao invocado em sede de contestação, seja, em particular, relativamente a um eventual abuso do direito por parte dos Recorrentes – posto que estes assumiram a posição jurídica dos ante-proprietários, conformando-se com as circunstâncias em que o terreno que adquiriram se encontrava aquando dessa aquisição.
XXXVII. Em face do exposto, deverá ser aditado ao elenco da factualidade dada como provada o seguinte ponto: «A escavação referida em 7) foi realizada com o consentimento do então proprietário do prédio referido em 1)».
XXXVIII. Ainda, para a eventualidade de o recurso ser julgado procedente, considera, também, a Recorrida que deverá passar a constar do rol dos factos dados como provados que o prédio – rústico – dos Recorrentes era, já aquando das escavações realizados, o que se designa por «bouça».
XXXIX. Tanto o Legal Representante da Recorrida (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 02/11/2022, entre as 14:26 e as 14:47) (minutos 00:13:40 a 00:14:00) como a testemunha CC (cf. depoimento prestado em sede de produção antecipada de prova, em 26/07/2022, entre as 14:22 e as 15:03) (minutos 00:12:45 a 00:13:35) o referiram.
XL. E o Tribunal a quo, em sede de motivação da Sentença, não deixou de fazer referência à circunstância de o referido terreno se tratar de uma bouça, inclusivamente colocando a questão «de saber se seria exigível à ré que, há mais de 40 anos atrás, previsse que os adquirentes futuros do prédio mencionado em 1), então uma bouça para a qual a escavação não trazia risco algum, o pretendessem transformar, retirando-lhe a natureza de rústico para nele erguerem uma moradia».
XLI. Ora, a questão da natureza daquele prédio é relevante em relação a um eventual abuso do direito por parte dos Recorrentes – posto que a sua pretensão nos presentes autos tem precisamente por base a circunstância de os mesmos pretenderem alterar a natureza do respectivo prédio para nele construírem uma moradia, não sendo exigível à Recorrida que, aquando das escavações realizadas, previsse tal eventualidade, tanto mais tais escavações não provocaram risco de desmoronamento ou deslocações de terra para aquela bouça.
XLII. Em face do exposto, deverá ser aditado ao elenco da factualidade dada como provada o seguinte ponto: «Aquando da escavação referida em 7) o prédio referido em 1) era uma bouça».
XLIII. Ainda, para a eventualidade de o recurso ser julgado procedente, considera, também, a Recorrida que deverá passar a constar do rol dos factos dados como provados que os Recorrentes adquiriram o respectivo prédio com conhecimento das respectivas e actuais condições.
XLIV. Resulta do teor da Sentença (designadamente da matéria dada como provada), da conjugação da prova verbal produzida em Audiência de Julgamento e supra referida em sede de Resposta às Alegações e das aludidas imagens de satélite, juntas pela Ré com o requerimento de 11/11/20222, que os prédios em causa nos presentes autos mantiveram a actual configuração pelo menos desde ../../2003.
XLV. E ao adquirirem o respectivo prédio em 2019 (cf. pontos 1 a 3 dos factos dados como provados), os Recorrentes conheciam necessariamente as condições do prédio que adquiriram, tanto mais que já antes, em 2014, haviam visto o prédio, como aliás o confirmou, por exemplo, o Recorrente AA (cf. depoimento prestado em sede de Audiência de Julgamento, em 02/11/2022, entre as 14:47 e as 15:07) (minutos 00:02:14 a 00:02:23).
XLVI. Acresce que, no âmbito de um outro processo que os Recorrentes moveram contra a sociedade que lhes transmitiu o referido prédio, essa sociedade alegou, em sede de contestação (com data de 28/08/2020) que os ora Recorrentes propuseram um valor mais baixo para a compra desse prédio, alegando que teriam de suportar custos superiores a 20.000,00 € com a construção de uma muro para contenção de terras – cf. Documento junto pela Recorrida com o requerimento de 19/12/2022 e admitido pelo Tribunal a quo por despacho de 10/01/2023 – daí resultando, atentas as regras da experiência, que essa questão era já do conhecimento dos Recorrentes.
XLVII. O conhecimento, pelos Recorrentes, das condições em que o prédio se encontrava que adquiriram assumirá, também, como se mostra evidente, importância para a eventual apreciação de abuso do direito por parte dos Recorrentes.
XLVIII. Em face do exposto, deverá ser aditado ao elenco da factualidade dada como provada o seguinte ponto: «Quando os Autores adquiriram o prédio referido em 1) fizeram-no com o conhecimento das condições em que o prédio se encontrava».
XLIX. O Tribunal a quo considerou não ser «exigível à ré a construção dos muros para reforço do talude, impondo-se a improcedência da acção, assim ficando prejudicado o conhecimento da excepção de prescrição aduzida pela ré (e até mesmo a questão de saber se seria ou não abusivo o exercício do direito, já que a aquisição do prédio dos autores se deu numa altura em que os prédios tinham a actual configuração desde há várias décadas)».
L. Para a eventualidade de o recurso ser julgado procedente, designadamente, mas não exclusivamente, em relação à impugnação da decisão de direito quanto ao artigo 1348.º do Código Civil ou em relação à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, considera, a Recorrida, que, nessa circunstância, se verificaria a invocada excepção da prescrição do direito dos Recorrentes.
LI. Com efeito, tendo as escavações em causa nos presentes autos sido realizadas entre 1976 e 1979 e, em todo o caso, há mais de 3 anos a contar da data da entrada da acção nos presentes autos, o pretenso direito (indemnizatório) que os Recorrentes invocaram já se encontrava há muito prescrito, fosse em face do regime especial de prescrição de 3 anos, aplicável à generalidade das situações de responsabilidade civil extracontratual (por factos ilícitos, pelo risco ou, como a prevista no artigo 1348.º, n.º 2, do Código Civil, por factos lícitos) por força das disposições (conjugadas) dos artigos 498.º, n.º 1, e 499.º do Código Civil, fosse, ainda, em face do prazo geral e supletivo de prescrição de 20 anos, previsto no artigo 309.º do CC.
LII. É, entretanto, irrelevante, nos termos do disposto no artigo 308.º do Código Civil, para efeitos do decurso de prazo de prescrição, que os Recorrentes só tenham adquirido o terreno em causa em 30 de Abril de 2019, uma vez que, «[d]epois de iniciada, a prescrição continua a correr, ainda que o direito passe para novo titular» e os Recorrentes assumiram a posição jurídica do transmitente, conformando-se com as circunstâncias em que tal terreno se encontrava quando o adquiriram.
LIII. Em face do exposto, o direito dos Recorrentes estaria prescrito, prescrição essa que, embora prejudicada, novamente se suscita para a hipótese, que não se concede, da procedência dos argumentos invocados pelos Recorrentes em sede de recurso.
LIV. Considera, também, a Recorrida, que, na eventualidade de procedência do recurso, se verificaria, ainda, o abuso do direito por parte dos Recorrentes, nos termos do disposto no artigo 334.º do Código Civil.
LV. Isto porque a escavação em causa nos presentes autos não privou o prédio que agora pertence aos Recorrentes do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra e só quando os Recorrentes adquiriram esse prédio em 2019, pretendendo alterar a sua finalidade e nele edificar uma moradia, é que concluíram que essa sua pretensão só se mostraria viável após o reforço do talude, sem o qual poderia ocorrer o dano de que pretendem ser antecipadamente ressarcidos.
LVI. Ora, a imposição à Recorrida dos custos resultantes dessa alteração do status que os Recorrentes pretendem impor consubstancia, salvo melhor entendimento, abuso do direito, o que também se deixa, desde já invocado, para apreciação desse Tribunal na hipótese, que não se concede, da procedência dos argumentos invocados pelos Recorrentes em sede de recurso.
TERMOS EM QUE
e noutros que VV. Exas. suprirão, julgando-se o recurso totalmente improcedente ou, caso assim não se entenda, admitindo-se e julgando-se procedente a presente ampliação do âmbito do recurso, e mantendo-se, em todo o caso, a decisão revidenda, far-se-á JUSTIÇA.”.
*
Responderam os autores ao pedido de ampliação do objecto do recurso, pugnando pela sua improcedência.
*
O recurso foi admitido, como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC) ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:

1. Da nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 615.º, nº 1 d) do CPC;
2. Da impugnação da matéria de facto;
3. Da procedência do pedido e improcedência do pedido reconvencional.
4. Em caso de procedência da apelação, da apreciação da ampliação do objecto do recurso.
*
III. Fundamentação de facto.

Os factos que foram dados como provados na sentença sob recurso são os seguintes:
“1. Por escritura pública datada de 30 de Abril de 2019, a sociedade “EMP02... STC, S.A.”, com sede no Edifício ..., rua Quinta ..., ..., declarou que, mediante o preço de 35.000,00, se obrigava a vender ao ora autor marido, que declarou comprar, o prédio rústico composto por terreno de cultura, sito no Lugar ..., ... ou ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artº...46, com o valor patrimonial de € 265,70, descrito na Conservatória ... sob o nº...43 – ... e cuja propriedade estava registada em nome da referida EMP02....
2. Após o negócio referido em 1), os autores registaram em seu nome a propriedade do prédio aí mencionado.
3. Os autores pretendem edificar uma moradia unifamiliar no prédio referido em 1).
4. O prédio mencionado em 1) confronta, do seu lado norte, com um prédio pertencente à ora ré, “EMP01..., Ld.ª”, constituído por um edifício de ..., destinado à indústria de confeitaria e anexos, o qual confronta do lado sul com o primeiro.
5. Na confrontação norte do prédio referido em 1) existe um muro construído em alvenaria, com cerca de 2,20 metros de altura e 20 cm de espessura.
6. O prédio da ré está situado a uma cota inferior da do prédio referido em 1).
7. Em data não concretamente apurada, mas que se compreende entre 1976 e 1979, a ré procedeu a uma escavação na confrontação sul do seu prédio, até à distância de cerca de um metro do prédio referido em 1).
8. Após a escavação referida em 7), passou a existir uma diferença de cota de cerca de não menos de 10 metros entre o prédio mencionado em 1) e o prédio mencionado em 2).
9. Não existirá a segurança necessária para evitar desabamento de terra se os autores construírem uma casa no prédio referido em 1), com a configuração que adveio após o referido em 7) e 8).
10. Para que fosse possível construir uma moradia no prédio referido em 1), seria necessário proceder a obras de contenção das terras do talude, designadamente por via da construção de muros em socalcos ao longo do mesmo, ascendendo as obras a um valor compreendido entre os € 81.600,00 e € 96.768,00.
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11. O muro em alvenaria referido em 5) foi construído após a escavação referida em 7) e 8).
12. O muro referido em 5) não tem um sistema para drenagem e escoamento das águas que se acumulam no prédio referido em 1).
13. As águas que se infiltram no prédio referido em 1) têm vindo a erodir a base do muro referido em 5), permitindo a passagem de água e terra.”.
*
Foram dados como não provados os seguintes factos:

“a) Que antes da ré levar a cabo uma intervenção no prédio referido em 1), tomando por referência a linha média da água do mar, a diferença de cotas entre os prédios não tivesse um desfasamento superior a um metro e o talude encostasse ao muro de alvenaria existente no prédio desenhando-se com um declive suave.
b) Que as escavações tenham ocorrido após a construção do muro referido em 5).
c) Que o muro referido em 5) tenha sido construído com o propósito de conter as terras do prédio referido em 1).
d) Que as águas das chuvas que caem no prédio referido em 1) alaguem-no, tornando-o pantanoso e intransitável
e) Que a ré, por intermédio do seu legal representante, tenha vindo a cuidar de se deslocar ao caminho público que confronta, a sul, com o prédio dos autores, procedendo à limpeza e remoção de resíduos de forma a guiar adequadamente as águas pluviais e a evitar que as mesmas escoem para e pelo prédio mencionado em 1), com vista a impedir a degradação do muro, pelo risco que isso comporta para o seu próprio prédio.
f) Que o muro referido em 4) esteja na iminência de ruir.”.
*
IV. Do objecto do recurso. 

1. Da invocada nulidade da sentença.
Entendem os autores/recorrentes que a sentença padece de uma nulidade.
Alegam para o efeito que, nos termos do disposto pela alínea d) do n.º 1 do art 615.º do CPC, a sentença apelada é nula porque da mesma não consta qualquer pronúncia sobre a excepção de prescrição invocada pelos apelantes na sua réplica.
O Mmo Sr. Juiz a quo pronunciou-se no sentido de se não verificar tal invocada nulidade.
Dispõe o artigo 615º, nº1, alínea d), do CPC que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Esta nulidade está directamente relacionada com o artigo 608º, nº2, do CPC, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Tal norma reporta-se à falta de apreciação de questões que o tribunal devesse apreciar e não de argumentações, razões ou juízos de valor aduzidos pelas partes, aos quais não tem de dar resposta especificada ou individualizada, conforme tem vindo a decidir uniformemente a nossa jurisprudência.
Daí que possa afirmar-se que a nulidade da sentença com fundamento na omissão de pronúncia só ocorre quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão (e cuja resolução não foi prejudicada pela solução dada a outras).
Ou seja, a omissão de pronúncia circunscreve-se às questões/pretensões formuladas de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado (cfr. nomeadamente Acs. da Relação de Lisboa de 10.2.2004, e de 6.3.2012, acessíveis em www.dgsi.pt).
Assim, a expressão “questões” prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia.
No caso dos autos, cabe razão aos apelantes.
Com efeito, pese embora tenha sido por estes invocada a referida excepção de prescrição, na sua réplica, por referência ao pedido reconvencional deduzido pela ré, a verdade é que sobre a mesma não recaiu qualquer pronúncia do tribunal, nem o conhecimento da mesma ficou prejudicado pela apreciação de qualquer outra questão.
Cumpre assim, sanar tal nulidade.
Começa por dizer-se que, é verdade, como afirma a apelada nas suas contra-alegações, que a autora não individualizou tal excepção na sua réplica.
Contudo, como resulta do disposto pelo art. 572.º, alínea c) do CPC, a falta/omissão da especificação separada da matéria de excepção apenas tem como consequência que a aqui ré não fique prejudicada, se não impugnar tal matéria.
Ou seja, em face da não individualização da excepção, ainda que seja apresentado requerimento pela parte contrária, e os factos essenciais da excepção não sejam impugnados, os mesmos não poderão ser admitidos por acordo.
Nada mais.
Entende a apelante que prescreveu o direito da ré, no que ao pedido reconvencional deduzido diz respeito, por terem decorrido já três anos sobre o seu conhecimento.
Sucede que, a pretensão de tutela exercida pela ré nesse seu pedido não se baseia na responsabilidade civil, mas sim nas relações de vizinhança entre prédios.
Efectivamente, as situações factuais relatadas nos autos, são tuteladas pelo disposto, entre outros, nos artigos 1350º e 1352º do Código Civil.
Estas pretensões têm natureza real, respeitam a relações jurídicas reais e visam a reposição da situação imobiliária pré-existente, donde não estarem sujeitas ao prazo de prescrição invocado pelos apelantes.
Como ensina José de Oliveira Ascensão “A Preservação do Equilíbrio Imobiliário como Princípio Orientador da Relação de Vizinhança, in Estudos em Homenagem ao Professor Manuel Henrique Mesquita” vol. I, 2009, pág. 222/223: “As características específicas da obrigação de preservação do equilíbrio imobiliário decorrem da lógica específica das relações de vizinhança.
Aqui, ocupa lugar primacial o prédio. Os actos das pessoas interessam enquanto estas surgem revestidas da qualidade de titulares de direitos reais; se o não estivessem, haveria relações obrigacionais como quaisquer outras.
Os titulares de direitos reais sobre imóveis estão antes de mais sujeitos ao dever de preservar o equilíbrio imobiliário. A problemática ecológica só fará — a profecia é aqui pouco arriscada — reforçar esse dever.
A pretensão de reconstituição do equilíbrio imobiliário é uma pretensão real. Está integrada no conteúdo do direito real. Tem por isso um regime diverso das pretensões meramente obrigacionais, como as emergentes da responsabilidade civil.
As relações de vizinhança são relações jurídicas reais ou propter rem, que têm um regime muito particular. Mesmo em hipótese de violação, as pretensões delas resultantes não deixam de ter natureza real e ficar integradas no conteúdo dos direitos reais em presença. Como tal, transmitem-se com a transmissão do direito real sobre o imóvel prejudicado e são oponíveis ao titular do imóvel vizinho, por mais variações que haja na titularidade deste.
(…) Desta sua natureza deriva que, em caso de violação, passa a pertencer ao conteúdo do direito real “lesado” esta pretensão à reconstituição. Fica pois sujeita a um regime real e não ao regime das obrigações fundadas na responsabilidade civil.
Ora, isto marca uma profunda diferença de situações obrigacionais, nomeadamente das emergentes da responsabilidade civil.
Se fosse uma obrigação de ressarcir danos, seria limitada à pessoa que os tivesse provocado. Caso esta alienasse o prédio, o adquirente a nada estaria obrigado, dentro dos princípios gerais da responsabilidade civil. Isto frustraria em larga medida a prevalência do equilíbrio imobiliário que se visa”.
Donde se conclui que o pedido reconvencional formulado com base em relações reais, não está abrangido pela responsabilidade civil, não estando assim sujeito à prescrição estabelecida no artigo 498.º do Cód.Civil.
Improcede assim, a excepção de prescrição invocada pelos autores na réplica.
*
2. Da impugnação da matéria de facto.

2.1. Em sede de recurso, os apelantes impugnam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.
Verifica-se que os apelantes indicam quais os factos que pretendem que sejam decididos de modo diverso, bem como os meios probatórios que na sua óptica o impõe(m) e ainda a redacção que aos mesmos deve ser dada.
Já relativamente ao juízo crítico próprio dos apelantes, assentou o mesmo na reclamação de uma diferente valoração a fazer dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento e da prova documental junta aos autos.
Resulta do disposto pelo arts. 640.º, n.º 1, al. b), e 662.º, n.º 1, do CPC que a matéria de facto previamente julgada deverá ser alterada quando a prova produzida imponha decisão diversa da recorrida, e não apenas quando a admita, permita ou consinta.
Para esse efeito, o recorrente terá que contrariar a apreciação crítica da prova realizada pelo Tribunal a quo, demonstrando e justificando por que razão as regras da lógica e da experiência por ele seguidas não se mostrariam razoáveis no caso concreto, conduzindo a um resultado inadmissível, por não sufragado por elas.
Por outras palavras, admitindo-se necessariamente que o Tribunal a quo ouviu integralmente as declarações e os depoimentos escolhidos, e examinou os documentos selecionados, certo é que fez dos mesmos uma outra valoração, ajuizando todo o seu conjunto face à demais prova produzida e às regras da experiência. Assim, pretendendo o recorrente sindicar este juízo, importará que indique as razões objectivas pelas quais entende que à prova que seleccionou (já antes vista e apreciada pelo Tribunal a quo) deveria ter sido dada outra relevância, o que a simples reiteração do seu conteúdo, e a reclamação conclusiva da respectiva suficiência, é claramente inidónea para este efeito (cfr. Ac. desta Relação de Guimarães, de 19.12.2023, relatora Maria João Matos).
No caso dos autos, os apelantes reiteraram as considerações já antes expendidas nas suas alegações finais, concluindo (subjectivamente) pela suficiência da prova produzida para o sucesso da sua tese.
No entanto, como se afirma no Ac. desta Relação acima citado, a jurisprudência do STJ vem defendendo que a menor suficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação.
Assim, este presente Tribunal pode proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada.
Resulta das conclusões de recurso dos autores que estes pretendem que o item 7. dos factos provados seja alterado e passe a ter a seguinte redação:
“7. Em data não concretamente apurada, mas sempre depois de ../../2018, a ré procedeu a uma escavação na confrontação sul do seu prédio, até à distância de um metro do prédio referido em 1)”.
Mais pretendem que a factualidade constante do item 11. dos factos provados seja considerada como não provada; e que a factualidade constante das alíneas a) e b) dos factos não provados seja considerada como provada.
Têm tais factos e als. a seguinte redacção:
“7. Em data não concretamente apurada, mas que se compreende entre 1976 e 1979, a ré procedeu a uma escavação na confrontação sul do seu prédio, até à distância de cerca de um metro do prédio referido em 1).
11. O muro em alvenaria referido em 5) foi construído após a escavação referida em 7) e 8).
*
“a) Que antes da ré levar a cabo uma intervenção no prédio referido em 1), tomando por referência a linha média da água do mar, a diferença de cotas entre os prédios não tivesse um desfasamento superior a um metro e o talude encostasse ao muro de alvenaria existente no prédio desenhando-se com um declive suave.
b) Que as escavações tenham ocorrido após a construção do muro referido em 5).”.
Na decisão apelada, e quanto a tal factualidade, afirmou-se o seguinte:
“As imagens apresentadas com a contestação (fls. 34 verso ss.), coincidentes com as que foram colhidas no local (vd. acta de 20 de Junho de 2022), permitiram compreender claramente a disposição dos prédios, bem como a configuração do talude e a existência, no prédio dos autores, do muro de alvenaria (que circunda o prédio, como se vê na imagem de fls. 34, sendo que à confrontação norte desse prédio segue-se-lhe vegetação que encima o talude, tal como se vê nas imagens de fls. 38 verso a 41 verso e resulta também da última imagem colhida aquando da ida ao local).
A diferença de cotas é acentuada e perceptível em todas as imagens, sendo observável o telhado das instalações da ora ré nas fotografias juntas a fls. 36 a 37 verso, 42 verso a 43 verso e na última imagem colhida na ida ao local. Por aí se percebe que nunca a diferença de cotas entre os prédios poderá ter sido ténue, não havendo espaço para, entre ambos, ter antes existido um desnível suave [al. a)], antes necessariamente acentuado. Sem prejuízo, esse desnível tornou-se mais vertical depois das escavações que vieram a criar o espaço onde foram colocados os bidões que a ré utiliza na sua indústria, para a salmoura da fruta, bidões esses que são visíveis em várias imagens, tais como as de fls. 38 verso a 41 verso e nas primeiras que constam da acta que documenta a ida ao local, aquando da tentativa de conciliação. Tais bidões constam também das imagens aéreas juntas pela ré, colhidas do Google Maps.
Foi, pois, sem qualquer dúvida, que se consignaram os factos constantes dos artigos 4), 5), 6) e 8), bem como a não prova do referido em a).
Em sede de produção antecipada da prova, CC, que vive naquele local desde os anos 70 do século passado, referiu que acompanhou as escavações, fiscalizando os trabalhos, a pedido da ora ré. Isto porque a sociedade que procedia aos trabalhos, sedeada de ..., cobrava à hora, e a ora ré pretendia que houvesse um controlo das horas com a mão-de-obra.
Como o próprio afirmou, as ditas escavações ocorreram nessa década, e o então proprietário do prédio mencionado em 1), de nome JJ (prédio esse que, à data, era uma bouça), não só não se lhes opôs como, de resto, pediu à ora ré que abrisse uma vala para a colocação de um tubo com vista à captação de água, já que por ali passava um rego de água.
O desnível passou a ter, nessa altura, a inclinação acentuada que hoje mantém, e não havia qualquer muro de alvenaria na então bouça, antes e apenas umas pedras grandes colocadas nessa zona onde agora está o muro mencionado em 5). O muro em alvenaria foi construído depois, já neste século, há 15 ou 20 anos atrás.
A distância entre a crista do talude e o limite do prédio mencionado em 1) era de cerca de um metro, tal como ainda sucede.
O depoimento foi credível, contribuindo de modo relevante para a prova do referido em 7) e para a não prova do referido em b), quer pelo claro conhecimento directo dos factos pertinentes que revelou, quer por não haver, por parte da testemunha, qualquer interesse pessoal na causa, quer ainda porque o seu conteúdo foi de encontro à documentação junta aos autos.
Desde logo, o documento junto pelos próprios autores com a p.i., como documento número ... (a fls. 15 e, de modo mais completo, com o requerimento apresentado em 04.11.2022, com a ref. ...07), datado de ../../2018, explicado pelo seu autor, o engenheiro geógrafo GG, contrariou a tese dos autores, mostrando-se mais conforme à da ré, no que respeita à pré-existência das escavações e da verticalidade do talude.
Isto porque, apesar de, numa fase inicial, a testemunha em questão não ter sido clara a esse respeito, acabou por referir (já a partir do minuto 28 do seu depoimento), que o talude em discussão nestes autos constava já desse documento, datado de 2018, com uma altura de cerca de 10 metros, ao contrário do que os autores pressupuseram (artigos 22 a 25 da p.i.). A diferença mais ténue de cota (de 207,70 para 205,34 considerando o nível médio das águas do mar, ou seja, cerca de 2 metros), opera para a crista do talude, sendo que daí para baixo o talude tem, pelo menos, 10 metros de profundidade. Isto porque, como o próprio explicou, cada uma das curvas de nível visíveis nesse documento dista entre si 0,5 metros, o que permite concluir que a altura do talude era de cerca de 10 metros, como se refere em 8). Como o próprio afirmou, quanto mais próximas as linhas, maior a verticalidade.
Face ao trabalho que lhe fora solicitado, não entendeu que devesse referir ao arquitecto ou aos autores alguma coisa quanto ao desnível, apesar de não desconhecer que o objectivo era a construção.
As imagens aéreas juntas com o requerimento de 11.11.2022 (ref. ...69), corroboram a pré-existência das escavações e do talude vertical, pois da sua análise resulta claramente que, em Agosto de 2003 (primeira captura via Google Earth), já os prédios tinham a configuração actual, sendo visível a zona onde estão colocados os bidões, e sendo estes perfeitamente nítidos na imagem subsequente, de 2010.
Ou seja, à data do levantamento topográfico solicitado pelos autores (o documento está datado de ../../2018), já há muito existia aquele talude, com aquela inclinação (como se viu, já existia desde os anos 70 do século passado).
Nesse mesmo sentido se pronunciou o representante legal da ré, KK, que referiu que a terraplanagem e edificação da fábrica ocorreu em 1978 (não obstante a inscrição matricial datar de 1980), sendo que aquela área onde se encontram os bidões e as paletes vem sendo usada para a pré-conserva da fruta, em salmoura, com vista ao fabrico das compotas. Esse espaço importava ainda para a manobra dos camiões.
O dono do terreno de cima, JJ, esteve presente na escavação, procedendo aliás à delimitação do seu terreno, com uns ferros e um fio, para que se soubesse até onde podia ser feita a escavação. O referido JJ, de resto, foi quem vendeu o terreno para a EMP01... erigir a fábrica, e era um amigo de família. Desde então, mais nenhuma escavação foi efectuada nesse talude.
Já o muro em alvenaria mencionado em 5) não existia, à data, tendo sido efectuado há cerca de 20 anos, já bem depois da escavação [artigo 11)]. Há partes do muro que estão a ficar sem terra por baixo, por não haver um bom escoamento de águas [13)].
Estas declarações, proferidas embora por quem tem óbvio interesse na causa, lograram um nível de clareza e objectividade positivamente valorado.
Ademais, foram confirmadas, quer pelos elementos atrás referidos, quer por outros que adiante se mencionarão.
DD, engenheiro que se deslocou ao terreno a pedido dos autores, tendo elaborado o parecer junto a fls. 16 ss. (doc. ... da p.i.), esclareceu que o muro em alvenaria tem uma altura de cerca de 2,20 metros de largura e o talude vertical tem, na extremidade norte, cerca de 13 metros de altura. Junto a esse muro há cedências de terra [artigos 5) e 13)].
Como referiu no parecer, e confirmou em julgamento, não é possível construir uma moradia no prédio dos autores sem que o talude seja reforçado mediante a elaboração de socalcos e construção de muros [9) e 10)].
Ora, a intenção dos autores é, inequivocamente, a de construir uma moradia, como foi dito pelos próprios, em declarações de parte. Foi também por essa razão que intentaram uma primeira acção contra a EMP02..., vendedora - uma vez que o terreno tinha uma área menor do que a pressuposta na compra e venda -, e agora a presente contra a ora ré, pois é precisamente por pretenderem construir que precisam de ter o talude reforçado. AA e BB, autores, declararam isso mesmo, não havendo qualquer razão para duvidar desse facto. Daí o referido em 3).
Das declarações dos autores percebeu-se que foram ver o prédio em 2014, apesar de só o terem comprado em 2019, sendo que, nessa altura, não se aperceberam da configuração do talude, havendo, de resto, muita vegetação, designadamente árvores, que o encobriam parcialmente.
O arquitecto que desenhou o projecto da moradia dos autores, HH, confirmou que só depois de efectuado um muro de contenção no talude é que poderá avançar-se para a construção da moradia, sendo que o orçamento para a protecção do talude consta do documento junto em 03.03.2022, com a ref. ...87, e ascende a € 81.600,00 (fls. 52, verso). Já a ré recolheu um orçamento distinto, de € 96.768,00 (req. ref. ...28, de 18.03.2022, a fls. 56).
Tudo ponderado, não houve dúvida na afirmação do artigo 10) dos factos provados.
O depoimento de EE, empreiteiro a quem seria entregue a construção da moradia dos autores, caso a construção fosse viável, a mais de pouco pertinente quanto ao que cabia apurar, não mereceu credibilidade, mormente quanto à pronúncia sobre a data em que terá sido erguido o muro em alvenaria existente no prédio dos autores. De facto, apesar de ter mencionado a impossibilidade de o muro em alvenaria ter sido ali colocado depois das escavações, os depoentes já referidos em sentido contrário mostraram-se mais credíveis, porque conhecedores dos factos (ao contrário deste depoente, que se pronunciou em função do que intuiu, olhando ao aspecto do muro e das terras) e desinteressadas do desfecho da acção (ao contrário deste depoente, que tem o interesse de construir a moradia, importando-lhe, por conseguinte, o ganho de causa dos autores).
Acresce ainda que não ficou demonstrado que o muro em questão não pudesse ser feito exclusivamente pelo lado do prédio dos autores (na produção antecipada da prova, a testemunha CC explicou que para a sua construção foram feitos dois pegões e colocadas umas vigas e ferro, daqui não resultando que tal obra houvesse que ser executada pelo lado do talude e/ou que não pudesse sê-lo exclusivamente pelo lado do prédio que hoje é dos autores). Aliás, II, que faz a manutenção das instalações da ré desde há cerca de 30 anos, afirmou que começou a haver necessidade de tapar buracos na base do muro de alvenaria há cerca de 6 anos, sendo o próprio quem trata disso [naturalmente que não iria tapar os buracos se por eles não passassem a água e terras indesejáveis para o prédio da ré – artigo 13)]. Afirmou, sem qualquer hesitação, que esse muro em alvenaria foi construído depois das escavações e pelo lado do prédio que actualmente pertence aos autores, por não haver espaço para circular pelo lado do talude.
Frágil e parcial foi também o depoimento de FF, que efectua furos e que já foi sócio do depoente EE, acima mencionado, com quem ainda hoje mantém algumas parcerias. Constatando que o seu depoimento contrariava as imagens aéreas, a testemunha procurou uma saída claramente forçada, vendo nas imagens um “saibro” que mais ninguém viu ou vê.
O depoimento de LL, empregado da ré desde 1988, não foi especialmente valorado, por lhe faltar credibilidade, designadamente quando afirmou que não escorre água pelo talude.
MM, irmão da ré, prestou um depoimento atabalhoado e pouco consistente. Em parte, foi desmentido pela comparação das imagens aéreas com a realidade actual, também constante de imagens e visionada na deslocação (no que respeita às escavações efectuadas). Por outro lado, desdisse-se, a propósito da existência do muro em alvenaria.
O depoente NN, que faz limpeza no prédio dos autores, confirmou que o muro em alvenaria está a escavar por baixo, em virtude das águas da chuva, estando o terreno a ceder. Já a autora OO referira este facto, nas suas declarações, não tendo havido qualquer reserva na afirmação dos artigos 12) e 13). Ainda assim, nenhum dos depoimentos permitiu concluir pelo referido em f).
A depoente PP, que trabalha nos escritórios da ré desde 1988, confirmou que aquela configuração do talude já era assim na altura, sendo que o muro em alvenaria foi erguido posteriormente”.
Ouvida toda a prova produzida, não há como não concordar com tão expressiva fundamentação. O que da mesma consta, é o que efectivamente resulta de toda a prova produzida.
A fundamentação da matéria de facto produzida pelo Tribunal a quo, mostra-se exaustiva, coerente, clara, expondo as razões que fundamentam a sua opção, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade à versão dos factos que resulta do conjunto da prova produzida e permitindo a percepção e o escrutínio do processo lógico subjacente à convicção da Mma Julgadora.
Em suma, foi feita uma correcta e criteriosa valoração da prova produzida.
Por seu lado, os depoimentos das testemunhas indicadas pelos apelantes, ainda que conjugados com a prova documental dos autos, não levam de forma alguma à procedência da pretendida alteração da matéria de facto.
Com efeito, do depoimento da testemunha DD não resulta que o muro situado no prédio dos apelantes foi construído antes da escavação no prédio da apelada e isto porque, a testemunha não disse apenas aquilo que foi transcrito pelos apelantes (que por si só já seria insuficiente para suportar qualquer alteração), tendo antes admitido que o muro tanto pode ter sido construído antes, como depois da escavação.
Tal também não resulta do depoimento da testemunha EE, que quanto a tal se limitou a pronunciar em função do que intuiu, olhando ao aspecto do muro e das terras. Ou seja, limitou-se a especular.
A tal acresce que, quer do depoimento da testemunha CC, que acompanhou as escavações e viu o muro em causa a ser construído, esclarecendo que as escavações em causa foram realizadas nos anos 70 e que só posteriormente é que o muro foi construído, há uns 15, 20 anos; quer do depoimento da testemunha II que esclareceu que o muro foi construído depois das escavações, tanto mais que, quando, há 27 ou 30 anos, essa testemunha começou a realizar trabalhos de manutenção nas instalações da apelada, já o terreno tinha a configuração actual e o muro ainda não existia, resulta de forma clara o contrário do pretendido pelos apelantes.
E, se quanto a estas duas últimas testemunhas nada há a apontar quanto à sua merecida credibilidade, o mesmo já se não poderá dizer quanto do depoimento da testemunha EE, pelas razões devidamente apontadas na decisão apelada.
O mesmo se diga do depoimento da testemunha FF, que se mostrou claramente frágil, desde logo por contraditório com a prova documental com que foi confrontado.
Já no que ao depoimento da testemunha GG diz respeito, mais uma vez se verifica que o que por este foi afirmado em julgamento não foi apenas aquilo que foi transcrito pelos apelantes.
Como se diz na decisão apelada, tal testemunha, autora do documento junto pelos próprios autores com a p.i., como documento número ... (a fls. 15 e, de modo mais completo, com o requerimento apresentado em 04.11.2022, com a ref. ...07), datado de ../../2018, ao explicá-lo, contrariou a tese dos autores, mostrando-se mais conforme à da ré, no que respeita à pré-existência das escavações e da verticalidade do talude.
É que, apesar de numa fase inicial do seu depoimento não ter sido claro a esse respeito (como aliás resulta das próprias transcrições efectuadas pelos apelantes), a verdade é que acabou por afirmar que o talude em discussão constava já desse documento, datado de 2018, com uma altura de cerca de 10 metros.
Para além disso, resulta claramente das imagens aéreas juntas com o requerimento de 11.11.2022 (primeira captura via Google Earth de Agosto de 2003), a pré-existência das escavações e do talude vertical, uma vez que já aí os prédios tinham a configuração actual.
Donde, não há dúvida de que à data do levantamento topográfico já há muito existia aquele talude, com aquela inclinação.
Da mesma forma, e no que ao depoimento da testemunha HH diz respeito, não resulta do mesmo a prova da factualidade pretendida pelos apelantes, bastando para tal atentar ao que foi por estes transcrito de tal depoimento.
De qualquer modo, ainda que subsistisse alguma dúvida residual quanto à matéria impugnada (que para este Tribunal não existe) sempre deveria prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte (cfr. Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, pág. 609).
Para além de que, como acima já referido, de acordo com disposto pelos art.ºs 640.º, n.º 1, al. b), e 662.º, n.º 1, ambos do CPC, a matéria de facto previamente julgada deverá ser alterada quando a prova produzida imponha decisão diversa da recorrida, e não apenas quando a admita, permita ou consinta.

Nesta medida, improcede a impugnação da matéria de facto.
*
2.4. Considerando que não houve nenhuma alteração introduzida na decisão relativa à matéria de facto, a factualidade (provada) a atender para efeito da decisão a proferir é a já constante de III.
*
V. Reapreciação de direito.

Entendem os apelantes que a sentença, ao julgar a acção totalmente improcedente e ao absolver a apelada do pedido, viola ostensivamente o preceituado no artº1348º do Cód. Civil.
Para tanto invocam que, ainda que se mantenha a matéria de facto dada como provada, sempre resultaria dos pontos 7, 8, 9 e 10 dos factos dados como provados o direito peticionado pelos autores, pois que, contrariamente ao decidido, a situação descrita nos factos provados integra a previsão do artigo 1348º do Cód. Civil.
Mais acrescentam que o Tribunal a quo, para firmar a conclusão de que os factos provados não integram a previsão do artigo 1348º do Cód. Civil, ter-se-á baseado na natureza rústica do prédio dos autores em contraponto com a natureza urbana do prédio da ré, argumento esse sem fundamento legal.

Cremos não lhes caber razão.

O direito real pode definir-se como a afectação jurídico-privada de uma coisa corpórea aos fins das pessoas individualmente consideradas, caracterizando-se, assim, a relação de natureza real por um direito de domínio ou de soberania (total ou parcial) sobre a coisa em que incida, por um poder que todos os outros têm de respeitar (cfr. Pires de Lima, Lições de Direitos Reais, pág. 50 e Menezes Cordeiro, Direitos Reais, pág. 351).
Dispõe o art. 1305º do Cód. Civil que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.
Entre as limitações ao direito de propriedade destacam-se as emergentes das relações de vizinhança. Têm em vista regular os conflitos de interesses que surgem entre vizinhos, em virtude da impossibilidade de os direitos dos proprietários serem exercidos plenamente sem afetação dos direitos dos vizinhos (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. III, 2.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 95).
Para disciplina da vizinhança estabelece a lei regras, que fundam relações jurídicas. Em geral derivam delas obrigações para um dos titulares em presença; podem também implicar sujeições ou ónus. Por outro lado, essas relações moldam em abstracto posições recíprocas: sobrepõem-se a relações de conteúdo inverso, pois o sujeito activo de uma é por outro lado o sujeito passivo de outra (José de Oliveira Ascensão, Direito Civil — Reais, 5.ª ed. (reimpressão), Coimbra Editora, 2000, n.° 116 II).
É certo que entre os poderes dos proprietários de imóveis se incluem os de escavação, mas o exercício desses poderes está condicionado, tanto pelas pertinentes regras urbanísticas ou de protecção do ambiente, como, primordialmente, pela necessidade de preservar o equilíbrio imobiliário existente, com a consideração das suas concretas circunstâncias.
Porque assim é, tem-se entendido existir um dever genérico de prevenção do perigo (cfr. José Carlos Brandão Proença, in “Direito das Obrigações – Relatório Sobre o Programa, o Conteúdo e os Métodos do Ensino da Disciplina” – 2007, págs. 180 /181) que significa, nas palavras de Antunes Varela (in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 114. °, pp. 77-79) que “o criador ou o mantenedor da situação especial de perigo tem o dever jurídico de o remover, sob pena de responder pelos danos provenientes da omissão (…)”.
Como projecções legais desse dever (não consagrado especialmente na lei, mas enquadrável, de qualquer modo, nos artigos 483° e 486º)” Brandão Proença cita as normas aos artigos 492.°, 493.°, 502.°, 1347.° a 1350.° e 1352.° do Cód. Civil.
Nessa medida, o direito geral de vizinhança, tal como vem sendo defendido, oferece argumentos bastantes para fundar um direito à protecção do proprietário, através da responsabilização do proprietário do prédio vizinho por todos os actos ou omissões que provoquem uma ruptura do equilíbrio imobiliário existente e que exprimam ou realizem a violação de um «dever geral de prevenção do perigo» (A. Varela, na RLJ 114º).

Integrado nesta necessidade de harmonização das relações de vizinhança, o art. 1348º do Cód. Civil dispõe que “[o] proprietário tem a faculdade de (…) fazer escavações, desde que não prive os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terras”, sendo que o nº 2 desse normativo prevê que “[l]ogo que venham a padecer danos com as obras feitas, os proprietários vizinhos serão indemnizados pelo autor delas, mesmo que tenham sido tomadas as precauções julgadas necessárias”.
No caso dos autos, pretendem os autores que a ré reforce o talude que existe na confrontação dos prédios, com vista à construção de uma moradia no seu prédio, que fica a cota superior.
Considerando a factualidade que se apurou, a questão que se coloca, como bem se afirma na decisão apelada, é a de saber se seria exigível à ré que, há mais de 40 anos atrás, previsse que os adquirentes futuros do prédio hoje dos autores - então uma bouça para a qual a escavação não trazia risco algum - o pretendessem transformar, retirando-lhe a natureza de rústico para nele erguerem uma moradia.
E isto porque, o que se apurou em julgamento, contrariamente ao alegado pelos autores, é que o talude existe desde data não posterior a 1979 e que a ré aí tem as suas instalações industriais desde então. Ou seja, em 2019, quando os autores adquiriram o seu prédio, rústico, já há pelo menos 40 anos que o talude se encontrava como se encontra actualmente.
Para além disso, também não resulta da factualidade provada (nem foi alegado), que, ao longo destes 40 anos, a escavação tenha prejudicado o prédio que agora pertence aos autores.
Pelo contrário, a escavação em causa, quando foi efectuada, não privou os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terras, designadamente na bouça depois adquirida pelos autores.
O que se provou, foi antes que não existirá a segurança necessária para evitar desabamento de terra se os autores construírem uma casa no seu prédio, com a configuração que adveio após a escavação efectuada há mais de 40 anos.
Ou seja, como se afirma na decisão apelada “a necessidade do reforço do talude, que tem o custo mencionado em 10), resulta antes da intenção de construção que os autores pretendem fazer no seu prédio, transformando-o de rústico em urbano”.
Daqui resulta que, ao contrário do que alegam os apelantes, a natureza do seu prédio não foi determinante, para a decisão do Tribunal a quo.
Pelo contrário, o que resulta é que o invocado risco de desmoronamentos ou deslocações de terra não passou a existir com a escavação realizada pela apelada, passando tão-só a existir na eventualidade de os apelantes levarem a cabo a sua intenção de construir uma moradia naquele prédio – o qual, por ser de natureza rústica teria de ser previamente convertido em prédio urbano – sem antes reforçarem o talude.
Donde, não se encontrarem preenchidos os pressupostos exigidos pelo artigo 1348.º do Cód. Civil, como o da existência de dano e nexo de causalidade, dano esse que só existiria se o referido prédio rústico fosse convertido em prédio urbano e, nele, construída uma moradia sem o reforço do talude que os apelantes querem impor à apelada.
A ser assim, como é, concordamos inteiramente com a conclusão a que chegou o Tribunal a quo, no sentido de que o esforço de construção pretendido pelos autores, não pode ser imposto à ré.
Se o terreno por eles adquirido é rústico e se encontra na situação actual há mais de 40 anos, sem que a escavação levada a cabo pela ré tenha por forma alguma posto em causa a segurança do mesmo ao longo de todo este tempo, pretendendo os autores construir uma habitação no referido terreno rústico, terão de ser eles a arcar as despesas daí decorrentes, nomeadamente em termos de reforço do talude em causa. É que, não fosse essa sua vontade, nada haveria sequer a discutir nestes autos.
Assim, não é exigível à ré a construção dos muros para reforço do talude, como pretendido pelos autores.
Mais entendem os apelantes que o pedido reconvencional deveria ter sido julgado improcedente, ainda que se mantenha a matéria de facto dada como provada.
Para tal invocam que creem que o muro existente na confrontação norte do seu prédio, construído em alvenaria, não constitui uma obra capaz de agravar o escoamento das águas, até pelo contrário, pois que, apesar de tudo, a água e a terra que se infiltram pela base desse muro, que está erodida, e que caiem sobre o prédio da recorrida, é sempre muito inferior ao que sucederia caso esse muro não existisse.
Entendem assim que esse muro não só não agrava o escoamento, como até o mitiga, razão pela qual, a situação, ao contrário do que consta da sentença apelada, não pode ser reconduzida à previsão do artº1351º, nº2 do Cód. Civil.
Na sentença apelada, e quanto a tal questão, escreveu-se o seguinte:
Quanto à reconvenção, a ré pediu a condenação dos autores a efectuar ou a custear na íntegra a construção de um muro de contenção de terras no seu prédio, bem como a realizar todas as obras tecnicamente necessárias e adequadas a impedir o escoamento de águas pluviais para o seu prédio da ré. Pediu ainda a condenação dos reconvindos numa sanção pecuniária compulsória de € 50,00 por cada dia de atraso no cumprimento da sentença.
Para tanto e em suma alegou que o muro em alvenaria que existe na confrontação com o prédio dos autores foi executado depois das escavações e é impróprio para suporte das terras do prédio dos autores, não estando dotado de um sistema de drenagem que acautele o risco de deslizamento de terras advindo da pressão das águas pluviais.
Não se provou que o muro em questão tenha sido construído com o propósito de conter as terras do prédio referido em 1) – alínea c). No entanto, provou-se que foi construído após a escavação referida em 7) e 8); não tem um sistema para drenagem e escoamento das águas que se acumulam no prédio referido em 1) e que as águas que se infiltram no prédio referido em 1) têm vindo a erodir a base do muro referido em 5) – artigos 11) a 13) dos factos provados -, muito embora não se tenha provado o risco de ruína [al. f)].
Dispõe o nº 1 do art. 1351º do CC que «[o]s prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastam na sua corrente», acrescentando o nº 2 que «[n]em o dono do prédio inferior pode fazer obras que estorvem o escoamento, nem o dono do prédio superior obras capazes de o agravar, sem prejuízo da possibilidade de constituição da servidão legal de escoamento (…)». Ou seja, nos termos deste normativo, o prédio da ré não tem que estar sujeito a receber as águas e terras que decorram do prédio dos autores em virtude do muro ali erigido estar a escavar pela base – artigo 13) -, impondo-se aos autores, e não à ré ou aos seus funcionários, a respectiva manutenção.
Nessa medida, a violação do direito de propriedade da ré, por violação do nº2 do art. 1351º do Código Civil, implicará, não a reconstrução do muro, como pretendido pela reconvinte, mas, aquém disso, a sua manutenção, por forma a não abrir buracos na base que permitem a passagem de águas e terras.
Com este âmbito, a reconvenção deve proceder.”.
Não há como não concordar com o decidido.
Desde logo porque, considerando o que ficou assente nos pontos 12 e 13 dos factos dados como provados, facilmente se conclui que o muro construído no prédio dos autores e que é superior ao da ré, e que não tem um sistema para drenagem e escoamento das águas que se acumulam no prédio, logicamente ocasiona a acumulação de águas nesse prédio, impedindo-as de seguir o seu normal curso, acumulação essa que, como se provou, vai erodindo ou descalçando a base do muro e criando pontos de passagem por onde, juntamente com terra, a água que não é absorvida ou escoada naturalmente, acaba por escoar.
Assim, também nesta parte é de manter a sentença apelada.

Improcede assim, in totum, a apelação.
Considerando a total improcedência da apelação, resulta prejudicada a apreciação da requerida ampliação do objecto do recurso.
*
Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):

I. Estando o pedido reconvencional formulado com base em relações reais, não está sujeito à prescrição estabelecida no artigo 498.º do Cód.Civil.
II. Se o risco de desmoronamentos ou deslocações de terra não passou a existir com a escavação realizada pela apelada há mais de 40 anos, passando tão-só a existir na eventualidade de os apelantes levarem a cabo a sua intenção de construir uma moradia naquele prédio – o qual, por ser de natureza rústica teria de ser previamente convertido em prédio urbano – sem antes reforçarem o talude, não se encontram preenchidos os pressupostos exigidos pelo artigo 1348.º do Cód. Civil, como o da existência de dano e nexo de causalidade, dano esse que só existiria se o referido prédio rústico fosse convertido em prédio urbano e, nele, construída uma moradia sem o reforço do talude que os apelantes querem impor à apelada.
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VI. Decisão.

Perante o exposto, acordam as Juízes que constituem este Colectivo da 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em:
a) no conhecimento da invocada nulidade da sentença apelada, julgar improcedente a excepção de prescrição invocada na réplica;
b) julgar improcedente a apelação e em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
*
Guimarães, 4 de Abril de 2024

Assinado electronicamente por:
Fernanda Proença Fernandes
Paula Ribas
Maria Amália Santos (não assina por não se encontrar presente, mas deu o seu voto de conformidade)
(O presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das “citações/transcrições” efectuadas que o sigam)