HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
CITAÇÃO
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
Sumário

I - No incidente de habilitação de herdeiros, a citação dos habilitandos é válida e regular se lhes forem entregues, no acto da citação, duplicados da petição inicial do incidente e dos documentos que a acompanhavam.
II - Não é inepta a petição inicial do incidente se, pelo requerente, foi invocada a qualidade de cônjuge e filhos do falecido, com a alegação de serem os seus únicos sucessores, e tal qualidade não foi por eles impugnada.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório

B.............., SA, agora, C................, SA, instaurou acção declarativa de condenação contra D.................., SA e Companhia de Seguros X................, SA., ocorrendo que esta requereu a intervenção acessória provocada de E............. e F..............., intervenção que foi admitida, sendo ordenada a citação dos chamados.
Ao tentar-se a citação do chamado E..............., verificou-se que o mesmo havia falecido a 27 de Julho de 1999.
Surgem, deste modo, os presentes autos de habilitação de herdeiros, requerida pela 2ª Ré, contra os herdeiros do falecido que identifica:
a) G................., como viúva daquele E................ e,
b) H................ e L...................., ambos filhos do falecido,
todos residentes na ...................., ............, ..............., alegando, para tanto, que o falecido deixou como únicos sucessores aqueles requeridos, respectivamente cônjuge e filhos daquele.
Citados estes como habilitandos bem como as restantes partes e intervenientes no processo principal, vieram as requeridas G............... e L..............., por um lado, arguir a nulidade da sua citação por violação do disposto nos art.s 235° e 198° do CPC e, por outro e a não se entender assim, excepcionar a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, com a consequente nulidade de todo o processo e sua absolvição da instância.
A requerente "Companhia de Seguros X..........., S.A." vem responder querendo sanar eventual vício da citação com a junção de cópia dos seus articulados apresentados na acção, em que foi requerida a intervenção do E............... .
Profere-se o tribunal decisão em que concluiu que não se verifica a suscitada nulidade de citação.
Esta decisão não foi notificada às requeridas.
Juntos documentos profere-se sentença em que se considera inverificada a alegada ineptidão da petição e se julga os requeridos G.............., H............... e L............. habilitados como sucessores de E................ para com eles, nessa qualidade e na posição daquele, prosseguir a acção os seus trâmites.
Inconformados recorrem as habilitandas G.............e L............ .
Nas alegações de recurso quanto à decisão em que os considera habilitados, questionam a omissão de pronúncia da arguição da nulidade da citação que antes haviam invocado, ao qual reage o tribunal, verificando a falta de notificação do despacho que decidiu da alegada nulidade de citação, ordenando-o agora, o que leva à formulação de novo recurso pelas requeridas, também este admitido como de agravo (fls. 169).
Apresentaram-se alegações e contra alegações.
Sustentaram-se os despachos agravados.
Colhido os vistos legais, nada obsta ao conhecimento dos recursos.

*

II – Fundamentos dos recursos.

Demarcam e delimitam o âmbito dos recursos as conclusões que neles são formuladas – artigos 684º n.º 3 e 690º n.º 1 do CPC -, donde a justificação para a sua transcrição que, no caso, foram:
No caso dos autos ocorreram dois recursos: um de apelação e relativo à decisão de habilitação e um de agravo respeitante à decisão sobre a nulidade da citação.
Nos termos do artigo 710º do CPC, inicia-se a apreciação do recurso de agravo interposto.

II – I – Quanto ao recurso de agravo e relativo à invocada nulidade de citação

A - As ora recorrentes reclamaram, em sede de contestação ao Incidente de Habilitação contra si interposto pela recorrida, da nulidade da citação, por violação do disposto nos artigos 228º, n.ºs 1 e 3 e 235º do C.PC.
B - Com efeito, aquando da citação, às requeridas apenas foi entregue cópia do requerimento de habilitação e os dois documentos que a ele vinham juntos, a saber, assento de casamento e assento de óbito.
C - Apenas com os elementos que foram entregues às recorrentes com a citação, não lhes foi dada a possibilidade de compreensão plena do objecto da acção.
D - Não lhes foi permitido ter, naquele momento, conhecimento de qual a relação material controvertida em discussão, nem qual a eventual intervenção do falecido E............... na mesma, impossibilitando-se, assim, a aferição do interesse concreto que as recorrentes, poderiam ter em demandar ou contradizer a demanda no processo em que foram chamados a intervir.
E - Também não lhes foi facultada ou entregue qualquer peça processual, nomeadamente, a petição inicial, a contestação e o requerimento de intervenção provocada do falecido E............., de modo a permitir-lhes contestar o incidente de habilitação com pleno conhecimento de causa.
F - Não tiveram condições para ficar a saber se, efectivamente, a coisa ou o direito litigioso chegaram a entrar no património da herança ou no respectivo passivo.
G - Com a citação, continuaram a ignorar em absoluto se sucederam ao falecido na relação jurídica objecto da acção em que foram chamadas a entrar.
H - Em suma, do que lhes foi transmitido no momento em que foram chamadas a intervir nos presentes autos, não constavam os elementos suficientes para que possam, através de um pleno conhecimento do processo, defender-se de forma completa e com absoluto conhecimento de causa.
I- Como refere o Ac. RC, de 21-5-1985, in Col. Jur. 1985, 3º, p. 79, "não basta que o habilitado seja herdeiro da parte falecida para que proceda o pedido de habilitação, é indispensável demonstrar que, segundo o direito substantivo, lhe sucedeu na relação jurídica em litígio", pelo que, não sabendo as requeridas qual o litígio em causa, não puderam, em sede de contestação, defender-se devidamente no incidente de habilitação.
J - Irregularidade que determinou, a impossibilidade do exercício pleno do direito de defesa das recorrentes, pelo que concluíram as recorrentes que, nos termos dos artigos 235º, 198º, n.ºs 1 e 4 do CPC, devia ser declarada a nulidade da citação das requeridas.
L - Ao decidir pela improcedência da arguida nulidade, o despacho recorrido interpretou e aplicou mal as normas constantes dos artigos 198° e 235° do CPC, que, conjugados com os artigos 371° do C.P.C., assim como as normas dos artigos 2024º, 2025°, n.º 1 e 2068º do Código Civil, não foram respeitados no caso em apreço.

Deve ser dado provimento ao recurso e ser anulado o despacho com a declaração da procedência da arguida nulidade de citação.

II -II– Da apelação da sentença.

A análise das conclusões formuladas de A) a Q) e constantes das alegações de recurso interposto da sentença de habilitação estão prejudicadas dado que constituem uma repetição das formuladas para atacar a decisão sobre a nulidade da citação.
Por isso, passa-se a transcrever apenas as que dizem respeito ao inconformismo das agravantes por se considerar a petição apta a produzir os efeitos pretendidos e não a considerar inepta.
Assim.

- O requerimento inicial de habilitação é inepto por falta de causa de pedir, não se conformando as recorrentes com o entendimento da sentença recorrida segundo o qual é bastante a alegação de que os requeridos são os únicos herdeiros do falecido para que haja idónea causa de pedir .
- No sentido da posição das Recorrentes já se pronunciou a Jurisprudência - Ac. RC, de 21-5-1985, in Col. Jur. 1985, 3º, p. 79, segundo o qual "não basta que o habilitado seja herdeiro da parte falecida para que proceda o pedido de habilitação, é indispensável demonstrar que, segundo o direito substantivo, lhe sucedeu na relação jurídica em litígio".
- A correcta interpretação e aplicação do artigo 371º do CPC, não pode apartar-se do sentido das normas de direito substantivo, pelas quais a habilitação dos sucessores da parte falecida é possível, desde que sejam eles que, como herdeiros, sucedem na titularidade das relações jurídicas patrimoniais da pessoa falecida (artigo 2024º do Código Civil), e de que a herança é responsável pelo pagamento das dívidas do falecido (artigo 2068º do Código Civil).
- O sentido teleológico da norma do artigo 371º do CPC é o de permitir o chamamento à demanda de quem sucedeu à parte falecida nas suas relações jurídicas patrimoniais, pelo que não pode a causa de pedir do incidente de habilitação, ser omissa quanto à relação jurídica patrimonial em que participava o falecido, sob pena de não estarem completos os pressupostos em que assenta o direito de proceder ao chamamento.
- A falta de causa de pedir toma, nos termos do artigo 193º do CPC nulo todo o processado, o que, de acordo com o artigo 494º, al. b) do CPC consubstancia uma excepção dilatória cuja consequência é a absolvição da instância, de acordo, por sua vez, com o n.º 2 do artigo 493º do mesmo Código.
- Pelo que deveria a douta sentença recorrida ter absolvido as recorrentes da instância.
- Não o tendo feito, salvo o devido respeito, que é muito, interpretou e aplicou mal as normas constantes dos artigos 371º, 193º, 494º al. b) e 493º, n.º 2, todos do C.P.C., assim como as normas dos artigos 2024º e 2068º do Código Civil.
Nestes termos, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser declarada nula a douta sentença recorrida, atento o disposto nos artigos 660º, n.º 2 e 668º, n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil, e, caso assim se não entenda, revogar-se a sentença recorrida, declarando-se procedente a excepção de ineptidão do requerimento inicial em face dos artigos 371º, 193º, 494º, al. b) e 493º, n.º 2, todos do CPC e os artigos 2024º e 2068º do Código Civil.
*
Nas contra alegações a Companhia de Seguros manifesta-se de forma contrária.
*

III – Factos Provados

O tribunal, para proferir sentença de habilitação, considerou provados os seguintes factos:
1º - Na acção ordinária 1128/99 a B................, SA, agora C..........., SA, demanda a Companhia de Seguros X................, SA.
2º - Esta veio requerer a intervenção acessória de E.............., intervenção que foi admitida.
3º - Ao tentar-se a citação deste, verificou-se que o mesmo havia falecido a 27 de Julho de 1999.
4º - Vem a Companhia de Seguros X.........., S.A. requerer a habilitação dos seus herdeiros para com este, na posição do falecido, prosseguir a causa.
5º - Os requeridos G............., H............ e L........... são, respectivamente, cônjuge sobrevivo e os filhos, e únicos sucessores do falecido E.............. .
*

IV – O Direito.

Analisemos em primeiro lugar o recurso da arguida nulidade de citação, pese embora a interposição de tal recurso seja posterior ao da sentença, por causa unicamente da falta de notificação à parte daquele despacho, a atribuir ao tribunal recorrido.

O fundamento principal do recurso da nulidade de citação consiste no facto de não lhes ter sido entregue, no acto da citação, a petição, contestação e requerimento de intervenção, mas apenas duplicado da petição de habilitação e documentos que a acompanham.
Precise-se e fixe-se que se está perante uma habilitação de herdeiros, prevista nos artigos 371º e segs. do CPC e que teve origem na suspensão da instância por falecimento de parte, nos termos do art. 276º n.º 1 al. a) do CPC.
Ora, com a habilitação de herdeiros pretende-se colocar no lugar do falecido, os habilitados que lhe sucedam segundo o direito substantivo, na relação jurídica em litígio, tudo com vista a que não ocorra um vazio processual, havendo de se averiguar quem são os sucessores do falecido relativamente ao direito ou obrigações que constituem objecto da acção.
Ou, como afirma Lopes Cardos, Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, Reimpressão, pág. 296 “O incidente de habilitação é um dos meios de modificar a instância quanto ás pessoas” e tem por objecto determinar quem tem a qualidade de herdeiro ou aquela que legitimar o habilitando para substituir a parte falecida – art. 373º n.º 1º, 1ª parte, do CPC -.
Na habilitação deverão ser incluídas, fazendo parte da causa de pedir, os factos susceptíveis de revelar que os requeridos são os únicos sucessores do falecido e a demonstração que, segundo o direito substantivo, lhe sucedem.
Intentada a habilitação para os fins e objectivos acima referidos, impõe o art. 372º n.º 1 do CPC que se proceda á citação dos requeridos que ainda não tenham sido citados para a causa, como foi o caso.
Com a citação pretende-se comunicar, em primeiro lugar, a propositura de uma acção ou qualquer incidente, chamando-o ao processo para se defender – art. 228º do CPC -, encerrando, então, um duplo sentido, qual seja da transmissão de conhecimento e de convite para defesa.
O n.º 1 do art. 371º do CPC está, no que se refere à forma do chamamento, de perfeita harmonia com o que dispõem os n.º 1 e 2 do artigo 228º - Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. II, pág. 145 -.
Por isso se impõe, como elementos a transmitir obrigatoriamente ao citando – art. 235º do CPC - que no acto da citação deva ser entregue ao citando o duplicado da petição e cópia dos documentos que a acompanham, comunicando-se que fica citado para a acção a qual o duplicado se refere - art. 235° do C PC).
A omissão destes deveres, isto é, quando efectuada sem a observância das formalidades prescritas na lei e quando haja falta de citação nos casos previstos no art. 195º do CPC, determina a nulidade da citação ainda por falta de observação das formalidades prescritas na lei – art. 198º do CPC -, nulidade esta que deverá ser arguida.
Isto é, se a citação foi feita sem observância das formalidades referida naquele art. 235°, será nula e implicará, consequente e necessariamente, a anulação de todo o processado e a repetição da citação.
Explica ainda Antunes Varela, Manual do Processo Civil, 2ª ed., pág. 389 que “Da falta de citação distingue-se, não só a nulidade da citação (feita com preterição de qualquer formalidade não reputada essencial, ma s cuja falta possa prejudicar a defesa do citado: art. 198º), como ainda a irregularidade da citação (feita com preterição de formalidade não essencial, em termos de não prejudicar a defesa do citado).
Acresce que convirá reafirmar que se está perante uma acção de habilitação de sucessores de pessoa falecida.
Acção que, como se deixou já dito, tem finalidade própria e meio processual próprio que a regula.
Como sucintamente se afirma na decisão recorrida,
“Nesta acção, os requeridos apenas são citados para contestarem (apenas) a habilitação. Não são citados para a causa principal, mas apenas para a habilitação.
Daí que ao habilitando, no acto da citação, apenas terão de ser entregues o duplicado da petição de habilitação e cópia dos documentos que a acompanham”.
Das certidões juntas aos autos a fls. 63 e 64, verificamos que os elementos essenciais desta acção foram entregues às citadas, como sejam, o duplicado da petição de habilitação e cópia dos documentos que a acompanham, facto que as mesmas reconhecem nas suas alegações, pretendendo apenas que lhes tivesse sido entregue também os elementos essenciais à compreensão do litígio – petição inicial, contestação e requerimento de intervenção provocada do falecido E............. -, sem os quais lhes estava vedada a compreensão plena do objecto da acção, desconhecendo qual a relação material controvertida em discussão.
Ora, tais argumentos são, salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, de pouca consistência processual, na medida em que, com os elementos entregues aquando da citação para a habilitação, estaria a parte, caso o pretendesse, apta a conhecer o litígio a cuja habilitação se destinava, colhendo todos os elementos que considerasse necessários à plena compreensão do objecto do processo, no uso da faculdade consentida nos artigos 167º n.º 2 e 3º, 169º e 174º, todos do CPC.
Mas, independentemente deste percurso e desta possibilidade, considerados que sejam como habilitados da pessoa falecida, cessará a suspensão então ordenada e que justificou a habilitação de herdeiros com a notificação de tal decisão – art. 284º n.º 1 al. a) do CPC -, tanto às partes sobrevivas da causa principal como aos habilitados – art. 229º n.º 2 do CPC – e relativamente aos que não forem requerentes da habilitação, como foi o caso dos autos, trata-se de uma notificação pessoal, devendo fazer-se nos termos do art. 256º do CPC, com as formalidades próprias da citação – Lopes Cardoso, obra citada, pág. 314 -.
O tribunal cumpriu o fixado no art. 228º e 235º do CPC, inexistindo a invocada nulidade de citação.

Analisemos agora a questão da ineptidão da petição inicial

Determina o art. 276º n.º 1 al. a) do CPC que a instância se suspende quando falecer ou se extinguir alguma das partes, normativo este de carácter imperativo e cuja obrigatoriedade de imediato cumprimento impõe o art. 277º n.º 1 do CPC, isto é, junta certidão de óbito ou conhecimento de falecimento aquando a citação, tem o juiz o dever de decretar imediatamente a suspensão da instância.
A instância suspensa apenas pode prosseguir depois de estarem habilitados os sucessores do falecido, nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 284º do CPC.
Como acima se afirmou já o objecto do incidente de habilitação é determinar quem tem a qualidade que o legitime para substituir a parte falecida e na habilitação deverão ser incluídas, fazendo parte da causa de pedir, os factos susceptíveis de revelar que os requeridos são os únicos sucessores do falecido e a demonstração que, segundo o direito substantivo, lhe sucedem.
Ora, analisando a petição inicial do incidente de habilitação, verificamos que foi pedida a habilitação dos requeridos como sucessores de E............... para, nessa qualidade, prosseguirem a acção e invoca-se a qualidade de cônjuge e filhos da pessoa falecida para o chamamento com a circunstância de serem os únicos sucessores do falecido.
Nos termos dos artigos 2133º e 2157º do C. Civil, não impugnada que esteja tal qualidade e antes mesmo aceite pelas partes, serão os requeridos, nos termos da lei substantiva, os habilitados.
Preenchidos se mostram, pois, todos os requisitos para que a acção seja considerada apta e, daí, inverificado o que dispõe o art. 193º do CPC, ou seja, há e é inteligível a indicação do pedido e da causa de pedir, inexiste contradição entre o pedido e a causa de pedir, para além de não se cumularem causas nem pedidos substancialmente incompatíveis.
Em conclusão, não se verifica a invocada ineptidão da petição inicial.
*

V – Decisão

Nos termos e pelas razões expostas, acorda-se:
- negar provimento ao agravo;
- julgar improcedente o recurso de apelação e confirmar a decisão recorrida;
- custas pelos apelantes/agravantes.
*

Porto, 21 de Junho de 2004
Rui de Sousa Pinto Ferreira
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira
Manuel José Caimoto Jácome