CONTRATO DE TRABALHO
TRANSMISSÃO DE POSIÇÃO DE EMPREGADOR
CONSTITUIÇÃO DE NOVA SOCIEDADE
EX TRABALHADORA SÓCIA GERENTE
Sumário


Ocorrendo a transmissão de uma unidade económica para empresa constituída, em partes iguais, pelo anterior titular dessa unidade e por uma sua trabalhadora, que consigo passa a viver maritalmente, e que no ato de constituição da firma é nomeada gerente, funções que passa a exercer, gerindo a empresa sem interferência do outro sócio, configura-se um corte no que respeita ao contrato de trabalho da autora, na passagem da atividade daquela “unidade económica” para a sociedade, já que quando ocorre a transmissão, a autora é já sócia gerente da transmissário, nunca nela ingressando como trabalhadora.
Em tais circunstancias não é de considerar ter ocorrido transmissão da posição de empregador para aquela firma, em relação ao contrato de trabalho de tal trabalhadora.

Texto Integral


Acordam na Secção Social da Relação de Guimarães

AA, residente na Rua ..., ..., ..., intentou a presente declarativa comum, emergente de contrato de trabalho, contra EMP01..., Lda, com sede na Rua ..., ..., ..., pedindo a condenação da ré a pagar as quantias que descrimina.
Para tal alega que, tendo celebrado com a ré contrato de trabalho, este cessou por sua iniciativa, alegando justa causa, não tendo liquidado os créditos a que tinha direito.
A ré contestou, pronunciando-se pela improcedência do pedido, alegando nunca ter sido celebrado com a autora qualquer contrato de trabalho.
Foi realizada a audiência de julgamento, sendo proferida decisão absolvendo a ré do pedido.

Inconformada a autora interpôs recurso apresentando em síntese as seguintes conclusões:
- Impugna a decisão relativa à matéria de facto no que respeita aos pontos 14 e 15 da factualidade, e 3 dos factos não provados, com base no depoimento de parte do legal representante da ré, referindo a posição de subalternidade da autora e não ser a remuneração consentânea com as funções de gerente.
- O tribunal deveria ter-se pronunciado sobre a existência de um contrato de trabalho entre a A. e BB, e sobre a transmissão da empresa para a ré.
- A decisão é nula nos termos do artigo 615º, 1 do CPC.
- A qualidade de socio gerente de uma sociedade não impede o reconhecimento da qualidade de trabalhador.
Neste tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência.
Colhidos os vistos dos Ex.mos Srs. Adjuntos há que conhecer do recurso.

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Factualidade:

1. Autora e BB viveram como marido e mulher;
2. O que já se verificava em março de 2013;
3. Sendo que, em março de 2018, a autora deixou a habitação que constituía a casa de morada de família, ocorrendo a separação daqueles;
4. A sociedade EMP01..., Lda, foi constituída pela A. e BB, em 26 de março de 2013, com o capital social de 15.000,00€, ficando cada um destes sócios titular de metade deste capital social, na proporção de 7.500,00€ para cada, pertencendo a cada um uma quota com igual valor nominal;
5. Tendo sido inicialmente nomeados gerentes da R. a A. e o sócio BB, conforme o artigo 10.º do contrato de sociedade;
6. Tendo ficado também estabelecido no “Artigo 8.º Gerência” do contrato de sociedade, desde o início da constituição da R. e até hoje, que “A administração e representação da sociedade são exercidas por gerentes eleitos em assembleia geral.”, que “A sociedade obriga-se com a intervenção de um gerente” e que “A assembleia geral deliberará se a gerência é remunerada;
7. Em 05 de Abril de 2013, pelas dez horas, na sede da R., reuniu a Assembleia-Geral dos sócios da R., com a presença dos seus únicos sócios e gerentes, a A. e BB, com o “Ponto único: Deliberar quanto à remuneração da sócia-gerente AA”;
8. Na referida Assembleia-Geral “foi deliberado que a sócia-gerente AA passe a ser remunerada com o valor mensal ilíquido de 485,00 euros (quatrocentos e oitenta e cinco euros), com efeitos a partir do dia cinco de abril de dois mil e treze.”;
9. Tal facto este que foi comunicado à Segurança Social
10. O BB exerce, a tempo inteiro, desde ../../2011, conjuntamente com o outro seu sócio ..., as funções de gerente da sociedade EMP02... Lda, contribuinte ...13, com sede na Rua ..., ..., ..., concelho ..., constituída em agosto de 2011;
11. Sendo remunerado por essas funções naquela sociedade;
12. Em 06 de Julho de 2018 a autora comunicou à R., por carta registada com AR, a “Renúncia à gerência”;
13. Renúncia essa que foi levada a registo comercial pela própria A., na Conservatória do Registo Comercial, pela Ap. ... de 24 de julho de 2018
14. Desde a data da constituição da ré, e até ../../2018, era a autora quem efetuava as encomendas de mercadorias a fornecedores da R., fazia os pagamentos aos fornecedores e trabalhadores da R., aceitava e organizava as encomendas dos clientes da R., acompanhava a execução e entrega dessas mesmas encomendas, e dava ordens aos funcionários da R. para executarem, essas encomendas;
15. Trabalhadores estes que sempre exerceram o seu trabalho sob as ordens, direção e fiscalização da A;
16. Em 5 de Julho de 2018 a autora remeteu carta registada à ré, comunicando a resolução do contrato de trabalho, invocando justa causa.
Aditado (resulta de documento):
Consta da carta de rescisão:



Aditados:
- A autora foi admitida ao serviço de BB em data não concretamente apurada, mas pelo menos desde dezembro 2007, para exercer funções sob suas ordens e direção e fiscalização.
- A atividade do referido BB passou a ser assumida pela firma ré, constituída por autora e pelo referido BB, exercendo a autora as funções de gerente, conforme referidas em 5, 14 e 15.
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Factos não provados:

1. Que a autora tivesse exercido, para a ré, as funções de encarregada, auferindo um vencimento mensal de 1.200,00 €;
2. Que exercesse, para a ré, as funções de costureira;
3. Que a autora exercesse a sua atividade, na ré, no seguimento de ordens do sócio desta.
4. Que a autora não recebesse qualquer remuneração.
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Conhecendo do recurso:

Nos termos dos artigos 635º, 4 e 639º do CPC, o âmbito do recurso encontra-se balizado pelas conclusões do recorrente.

As questões colocadas:
- Alteração de decisão relativa à matéria de facto

Pontos 14 e 15 da factualidade, e 3 dos factos não provados

Existência de vinculação por contrato de trabalho antes de transmissão de estabelecimento para a ré.
- Omissão de pronúncia quanto à existência de uma relação laboral entre autora e ré e quanto à rescisão por justa causa.
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Relativamente à factualidade refere a depoente o depoimento de BB.
O depoente refere a relação com a autora desde ../../2006, referindo que depois houve um intervalo, “que ela saiu de casa”, depois voltou e terminou em março de 2018.
Referiu que a autora foi sua funcionária até fazerem a “EMP01...”, em março de 2013. Antes era funcionaria do depoente, em nome individual, era costureira e desde ../../2007. Referiu que a partir de março de 2013 ela era gerente, era a única a gerir a empresa, o depoente tem outra empresa, e estava nessa outra. O depoente não tinha ordenado na EMP01.... Era ela que fazia absolutamente tudo. Passou-lhe 50%. Quando saiu, a autora não apareceu mais na empresa. Referiu a baixa médica da autora dizendo ser “farsada”, e que estava a trabalhar num bar. Do depoimento visto na sua totalidade, designadamente o referido quanto à não apresentação da autora para “trabalhar”, não resulta qualquer reconhecimento da qualidade de trabalhadora. O depoente refere apenas, “não se apresentou para trabalhar, como devia”, nunca apareceu mais. Ora o trabalho dela era gerir a empresa, como resulta da totalidade do depoimento. Tanto que, como ela deixou de aparecer, teve que ser ele a “tomar conta da empresa” para aquilo não fechar. A referência que a recorrente faz às págs. 48, 49, 64 e 65, da transcrição do depoimento, referem-se no essencial a outro período, quando o depoente exercia em nome individual. Durante a gestão da autora, resulta do depoimento, era ela que geria, o depoente podia ir ao banco, se a ela não dava jeito, fazer levantamentos, que depois lhe entregava. Referiu ainda, que por vezes os clientes ligavam-lhe a dizer que ela não atendia os telefones, e ele ligava com ela. Às vezes chegavam à fabrica e ela não estava.
A recorrente pretende retirar ilações das referências do depoente, quando se refere à preocupação com a firma, inquirindo, designadamente junto do pessoal, porque “não dava”, e por ter “emprestado” dinheiro. Tais circunstâncias não indicam qualquer subalternidade da autora quanto à gerência, relativamente à qual, no seu essencial e segundo o depoente, era da responsabilidade da autora, já que o depoente tinha outra firma onde normalmente estava.
A depoente CC, referiu a autora como ex patroa, era quem lhe dava ordens. Refere que quando mudou passou a ser “mais “a D. AA, a gerir a empresa. Ele, BB, não mandava lá tanto como a D. AA. A DD referiu ter sido contratada pela autora, que era quem estava diariamente na empresa. De forma idêntica depôs EE. Foi a D. AA que a contratou, falou com ela, embora também tenha falado com ele.
Assim e quanto aos pontos 14 e 15 da factualidade, e 3 dos factos não provados, é de manter a decisão.
Tendo em conta o alegado pela autora na petição inicial, e a invocação do depoimento do BB sobre tal matéria, importa tomar posição sobre a relação anterior à constituição da firma. Tendo em conta o depoimento de BB, não havendo provas em sentido diverso, resulta que a autora foi por si admitida, aditando-se a seguinte factualidade, suprindo a invocada omissão de pronúncia quanto à mesma:
- A autora foi admitida ao serviço de BB em data não concretamente apurada, mas pelo menos desde dezembro 2007, para exercer funções sob suas ordens e direção e fiscalização.
- - A atividade do referido BB passou a ser assumida pela firma ré, constituída por autora e pelo referido BB, exercendo a autora as funções de gerente, conforme referidas em 5, 14 e 15.
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- Existência de uma relação laboral entre autora e ré.
A recorrente sustenta em primeira linha que sempre foi trabalhadora da ré, nunca tendo exercido funções de gerente, sendo o seu vínculo de natureza laboral, sob as ordens do gerente da ré, BB.
Sobre esta questão referimos no Ac. RG 16-12-2021, processo 1154/20.5T8BCL-A.G1:
 “no sentido da possibilidade de exercício da gerência mediante contrato de trabalho, posição que é minoritária na doutrina e relativamente à qual pouca adesão descortinamos na jurisprudência, conquanto alguns acórdãos não descartem a possibilidade. Veja-se o Ac. STJ de 14/2/1995, processo nº 086242, no qual se referiu:
“Temos, pois, que a qualidade dos gerentes advém dum contrato celebrado entre a sociedade e o gerente: o contrato de administração.
Como se qualifica, porém, este contrato?
Quanto a nós, sufragando a posição tomada a este respeito pelo Professor Duarte Rodrigues, no seu estudo sobre "A Administração das Sociedades por Quotas e Anónimas", onde o tema que vimos abordando é largamente tratado (páginas 260 e seguintes) - "o contrato de administração constituirá um contrato de trabalho sempre que, tendo o administrador direito a retribuição, tenha sido atribuído à sociedade, o poder de organizar a execução do seu trabalho, particularmente pela fixação do tempo de trabalho a prestar e do modo de o executar; constituirá um contrato de prestação de serviço sempre que não seja remunerado ou, sendo-o caiba ao próprio administrador organizar a execução do seu trabalho (cfr. também, Professor Raul Ventura, ob. cit. [Sociedades por Quotas, III] páginas 28-29)…”
No acórdão do STJ de 19/12/2018, processo nº 2353/13.1TBVFX.L2.S1, refere-se que; “ admitindo-se que o clausulado do contrato dos autos tenha sido inspirado na figura do contrato de trabalho, julga-se que isso não basta para lhe conferir natureza laboral, pois, não se reconhece, no clausulado contratual em que a ação se funda, a existência de subordinação jurídica do Autor em relação a qualquer das Rés, sendo certo que o Autor foi contratado para exercer as funções de administrador das sociedades Rés. Mais adiante o acórdão, não esclarecendo embora de forma cabal a sua posição, parece propender para a não admissão do exercício da gerência por contrato de trabalho, ao relevar a circunstância de o autor ter sido contratado apenas para exercer funções de administrador.
No Ac. STJ de 30/9/2004, processo nº 03S2053, refere-se:
“A situação dos administradores, gerentes e diretores das sociedades e cooperativas, que praticam atos em nome das pessoas coletivas que representam e são por estas retribuídos, apresenta uma configuração especial que merece alguma reflexão.
Deduz-se do preceituado no art. 986º, n.º 3 do Código Civil que os administradores das sociedades civis devem ser qualificados como mandatários, sendo também o regime do mandato aquele para que remete o art. 987º, n.º 1 daquele diploma.
Da mesma forma os gerentes comerciais, mas também os auxiliares, os caixeiros e os comissários (ou comissionistas) são considerados pelo Código Comercial como mandatários pois as disposições que aos mesmos se reportam (arts. 248º e ss. e 266º e ss.) estão inseridas respetivamente nos capítulos II e III, ambos do Título V do Código Comercial sob a epígrafe "Do Mandato".
Todavia, não é o facto de os Códigos Civil e Comercial estabelecerem que são mandatários que impede a referida qualificação como trabalhadores subordinados já que é o próprio art. 5º, nº3 da L.C.T. que estabelece a possibilidade de um trabalhador ter também um mandato com representação e, por outro lado, o conceito de mandato utilizado no C. Comercial (arts. 231º, 248º, 256º, 259º, 260º, 263º e 264º) não coincide exatamente com o utilizado no C.Civil (arts. 1155º e 1157º), referindo-se a atos de comércio - que abrangem quer atos materiais, quer atos jurídicos - e podendo ter por objeto tanto um resultado como uma atividade (7).
Assim, esta qualificação como mandatários por parte da lei não obsta a que se deva considerar que os comissários, caixeiros, etc., exercem uma relação laboral e que em determinadas circunstâncias os gerentes das sociedades por quotas também o exerçam, desde que estejam preenchidos no caso concreto os pressupostos do contrato de trabalho.”

No Ac. RP de 21/1/2019, processo nº 2602/16.9T8PRT.P1, defende-se que que a qualidade de sócio gerente de uma sociedade por quotas não impede o reconhecimento da qualidade, também, de trabalhador, dependendo esse reconhecimento de um vinculo laboral da demonstração de indícios relevantes de subordinação jurídica a outros gerentes ou a deliberações da gerência no seu todo. Veja-se ainda RG de 22-9-2022, processo nº 2859/20.6T8BCL.G1.
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A questão colocada, contudo, não se prende sequer com saber se o exercício da gerência era efetuado (e se tal é possível legalmente) mediante contrato de trabalho. Antes se refere que nunca foi exercida gerência, antes se mantendo como trabalhadora.
Competia-lha a prova de tal factualidade – artigo 342 do CC-, o que não logrou, antes se tendo provado que a partir da 2013, com a constituição da ré e a tomada por esta da atividade exercida a titulo individual pelo referido BB, a autora passou a ser a gerente desta, dando ordens às empregadas, contratando com clientes e fornecedores e demais funções próprias de gerente. Não resultou provado que tais funções fossem exercidas sob ordens do outro gerente.
Consequentemente e relativamente a esta questão, improcede a alegação.
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A recorrente funda a sua posição ainda na transmissão do estabelecimento, e consequente transmissão do contrato de trabalho que mantinha com o BB.
É incontornável, dispensando grandes considerações, a existência de uma transmissão de estabelecimento tal como configurado pelo artigo 285º do CT, interpretado de acordo com a jurisprudência do TJ, já que toda a estrutura produtiva que girava em nome individual, passou a ser assumida pela ré.
Contudo, resulta da prova que a “firma” que assume a atividade perseguida pelo BB, foi constituída pela autora, com metade do capital, e que sempre esta foi gerente desde início. Aquando da constituição logo a autora foi nomeada gerente no contrato social. Assim sendo, não ocorreu quanto a ela qualquer transmissão de contrato de trabalho, que pudesse posteriormente ficar eventualmente suspenso (Vd. STJ de 23-11-2023, processo nº 2529/21.8T8MTS.P1.S1, embora exista jurisprudência contrária); antes se configurando um corte, um hiato, no que respeita ao contrato de trabalho da autora, na passagem da atividade do BB para a sociedade, já que quando a atividade passa a ser exercida pela firma, a autora é já sócia gerente desta, nunca nela ingressando como trabalhadora. A autora não foi apenas nomeada gerente, foi ela que conjuntamente com o BB, com quem por essa altura passou a viver como marido e mulher, constituiu a sociedade, entrando com metade do capital. É a sociedade assim constituída e de que a autora desde inicio é gerente, que toma a atividade que aquele exercia individualmente.
Consequentemente improcede o alegado.
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 Assim sendo, e porque não demonstrada a existência de uma relação laboral entre a autora e a sociedade, quanto aos mais, designadamente as invocadas nulidades, fica prejudicada a sua apreciação, sendo de confirmar a decisão.

DECISÃO:

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão.
Custas pela recorrente
4/6/2020
Antero Veiga
Francisco Pereira
Vera Sottomayor