PROCURAÇÃO
VÍCIOS
REPRESENTAÇÃO
CASAMENTO
COMUNHÃO GERAL DE BENS
VENDA
Sumário

I - Sendo a procuração conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, tem de ser lavrada por instrumento público.
II - Não definindo a lei "interesse do procurador ou de terceiro", só da análise concreta da situação consubstanciada no negócio realizado, se poderá concluir se aquela foi ou não no acto utilizada como sendo do interesse dos representantes.
III - Existindo vício formal da procuração estamos perante um caso de representação sem poderes, que só pode vincular o representado se este ratificar o negócio pela forma exigida para a procuração.
IV - É legal a venda feita pelo cônjuge administrador sem consentimento do outro, de bens móveis (quota de sociedade) por si levado para o casamento, mesmo no regime de comunhão geral.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

B..... e C....., casados no regime de comunhão geral de bens, residentes na Av......, .....,

intentaram acção declarativa de processo comum, sob a forma ordinária

contra

1) D....., casado no regime de separação de bens com E...., residentes na Rua...., .....,
2) F....., casado com G....., residente na Av......, .....,
3) H....., Notária, com domicílio profissional no Cartório Notarial de...., Palácio da Justiça,.....,

pedindo:

1.º:
a) que seja declarada nula ou anulada a cessão de quotas feita pelo R: F..... (pai do A.), em alegada “representação” do A., ao R. D..... (irmão do A.), referida no art. 14.º da p.i.;
b) Em consequência, ser declarada propriedade dos AA., titulada pelo A. B....., 130.500 acções nominativas da sociedade “I....., SA”, que actualmente se encontram registadas a favor do R. D.....;
c) Ser ordenado o cancelamento do registo da transmissão daquela quota a favor do R. D..... e os subsequentes registos que dela dependam;
d) Serem condenados todos os RR a, solidariamente, indemnizar e compensar os AA. dos danos patrimoniais e não patrimoniais referidos nos arts. 34.º e 35.º, através do pagamento de quantia que por não ser de momento determinável, deverá ser liquidada em execução de sentença, bem como custas e condigna procuradoria.

2.º
Caso assim se não entenda, o que só por mera hipótese admite, ou caso não venha a ser efectivada por impossibilidade objectiva a devolução das acções devidas aos AA., devem os RR. :
a) ser solidariamente condenados a indemnizar os AA. de todos os prejuízos causados pela cessão referida no art. 14.º, no montante nunca inferior ao valor nominal que teria a quota se à data não tivesse sido “cedida”, ou seja, 130.499.059$00,
b) devendo ainda ser condenados a pagar a diferença entre o valor real e o valor nominativo, valor a liquidar em execução de sentença, após avaliação da sociedade referida,
c) bem como os danos não patrimoniais e patrimoniais referidos nos arts. 34.º e 35.º, também a liquidar em execução de sentença,
d) custas e condigna procuradoria.

Para o efeito imputaram os AA. ao 2.º R. uma cessão de quota na sociedade indicada, a favor do 1.º R., intervindo aquele na escritura a declarar que o fazia em representação do A. marido, vendedor, com uma procuração formalmente nula e já caducada, e fora do âmbito dos poderes conferidos, declarando na escritura que o A. era ainda solteiro - quando bem sabia que este era casado e segundo o regime de comunhão geral de bens - , alienando assim um bem que também sabia pertencer à A. esposa.
Os AA. atribuem também responsabilidade civil profissional à 3.ª Ré, por alegada violação grosseira dos seus deveres profissionais na efectivação dessa escritura, ao não ter conferido devidamente a qualidade dos intervenientes e o estado civil do representado A. bem como a regularidade formal da procuração.

O 1.º R. contestou suscitando a ilegitimidade do A. e a sua própria ilegitimidade (por estar desacompanhado da esposa), arguiu a caducidade para accionar e impugnou parte dos factos (fls. 92-98).
O 2.º R. arguiu a ineptidão da petição inicial, a sua própria ilegitimidade bem como a do primeiro R., invocou a caducidade do direito de accionar por parte do A., e sustentou a regularidade dos poderes com que actuou, bem como a da Notária, 3.ª Ré, e impugnou parte da materialidade fáctica aduzida pelos AA., dizendo designadamente que ignorava que o A. se tivesse casado (fls. 69-88)
A 3.ª Ré contestou deduzindo a sua ilegitimidade e a do A. marido, e impugnou parte da alegação dos AA., designadamente a respeito da falta de diligência sua no acto notarial e eficácia da procuração. (fls. 100-107)

Houve réplica, onde os AA. sustentaram a improcedência das excepções deduzidas, concluindo como na petição inicial.

No saneador foram julgadas procedentes a excepção de ilegitimidade dos RR. em relação aos três primeiros pedidos - considerando-se insuprível essa ilegitimidade -, bem como a ilegitimidade do A. marido, e, em relação ao 4.º pedido, foi julgada a nulidade de todo o processo, assim absolvendo os RR. da instância.

Os AA. agravaram do despacho, vindo o Tribunal da Relação a negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Novamente inconformados, recorreram os AA. para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo vindo esse mais alto Tribunal a dar parcial provimento ao recurso em causa,
a) declarando o A. e os RR. D..... e F..... partes legítimas quanto aos três primeiros pedidos formulados pelos AA., nessa parte se revogando o acórdão recorrido e se ordenando o prosseguimento da acção;
b) confirmando o acórdão recorrido quanto ao nele decidido no sentido da ilegitimidade passiva da Ré H..... quanto aos três primeiros pedidos;
c) e determinando, ainda, que os autos voltassem a este Tribunal da Relação do Porto para que, se possível com a intervenção dos mesmos Desembargadores, se conheça do agravo da 1.ª instância no tocante à ineptidão da petição inicial.

O Tribunal da Relação veio então a confirmar a posição da primeira instância, julgando inepta a petição inicial quanto ao pedido formulado em d) da petição inicial, e ordenou depois que os autos baixassem à primeira instância para que prosseguissem os autos quanto aos três primeiros pedidos formulados.

Foi então lavrado saneador-sentença vindo a acção a ser julgada improcedente por não provada, e, consequentemente, absolvidos os RR. dos pedidos contra eles formulados ainda em apreciação (os três primeiros)

A A. esposa interpôs então recurso dessa decisão, tendo o referido recurso sido admitido como de apelação.
Apresentou então as respectivas alegações de recurso.
Contra-alegaram separadamente o 1.º e o 2.º R.

Remetidos os autos a este Tribunal foi o recurso aceite com a adjectivação e demais atributos que lhe haviam sido atribuídos na primeira instância.
Correram os vistos legais.

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II - Âmbito do recurso.

Vamos começar por transcrever as conclusões apresentadas nas alegações de recurso da apelante, já que consoante decorre do disposto nos arts. 684.º-3 e 690.º-1 do CPC,, é nelas que se delimita o âmbito do recurso, e porque nelas se encontram exaradas também, ainda que de forma mais sintética do que no restante corpo alegacional, as razões ou os argumentos utilizados pela apelante para convencer da bondade da sua posição sobre as questões suscitadas.

Concluiu a apelante as suas alegações de recurso, pela maneira seguinte:
“1 - A presente causa já foi objecto de decisão pelo Supremo Tribunal de Justiça, no que se refere à legitimidade das partes, quer activa, quer passiva, tendo as mesmas sido consideradas partes legítimas, tendo ainda o Acórdão delimitado o âmbito dos pedidos e causas de pedir.

2. Assim, e dando como reproduzidos os factos dados como assentes na sentença recorrida, entenderam os autores e entende a agora recorrente, como resulta dos articulados, que:
A) procuração caducou a partir do momento do casamento dos autores no regime de bens de comunhão de adquiridos;
B) A procuração é nula por falta de forma, por a mesma tendo sido outorgado no interesse do representante ou de terceiro, necessitar de respeitar a forma legal prescrita no art.º 127.º n.º3 do Código do Notariado, que era instrumento público o que não aconteceu.
C) É nula ainda a procuração porque em relação ao acto jurídico concreto para que foi utilizada, (ceder por 4.500.000$00, alegadamente já recebidos, a quota com valor nominal de 83.500.010$00, que no mesmo acto passou a ter o valor nominal de 130.499.059$00), que foi evidentemente no interesse do terceiro adquirente, a mesma não respeitou a forma legal prescrita, que é por Instrumento Público.
D) Há uma representação sem poderes em relação ao Autor marido, mesmo que se considere que a procuração não caducou, por força do regime de casamento, por a procuração em causa conferir poderes para ceder (...) A QUOTA NO VALOR NOMINAL DE QUATRO MILHÕES QUATROCENTOS E DEZ MIL ESCUDOS, ( . . .)” e foi usada para ceder a QUOTA COM O VALOR NOMINAL DE OITENTA E TRÊS MILHÕES QUINHENTOS E DEZ MIL ESCUDOS, QUE NO MESMO ACTO PASSOU A TER O VALOR NOMINAL DE CENTO E TRINTA MILHÕES QUATROCENTOS E NOVENTA E NOVE MIL E CINQUENTA E NOVE ESCUDOS, pela quantia de quatro mil e quinhentos escudos, alegadamente já recebidos.
E) Cedência esta NUNCA RATIFICADA.
F) Em relação à autora-mulher e agora recorrente, entendeu-se sempre estar perante uma venda de bens alheios, uma vez que a quota que era sua propriedade, em comunhão com o seu marido, foi cedida pelo seu sogro, sem sequer ser invocada a sua representação.
G) Entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, no seu douto Acórdão, que quer o autor-marido, quer a autora-mulher, eram e são partes legítimas para requererem a declaração de nulidade do negócio efectuado, quer se entenda como venda de bens alheios, quer se entenda convolar para declaração de ineficácia, se se entendesse que o pedido de declaração de nulidade não fosse admissível. Isto em relação a ambos os autores.
H) Quanto à caducidade da procuração por consequência do regime de casamento celebrado entre os autores, entendeu o Juiz "a quo", que a mesma não se verificou, entendendo que "(...) o remédio será vir pedir a anulabilidade nos termos referidos no já citado artigo 1687° do C. Civil."
I) Com o devido respeito, e não se conformando a recorrente com esta tese, a melhor resposta é exposta pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça: "Quanto à autora mulher, no tocante a este mesmo pedido, disse-se no acórdão recorrido que não pode invocar a ineficácia por não ter alegado qualquer factualidade configuradora de tal situação. E acrescentou-se que não é invocável o disposto no art. 1687°. n° 4. Esta última afirmação é correcta, já que este preceito respeita à venda de bens próprios sem autorização do cônjuge a quem pertencem; e, no caso, há um bem comum."
J) Ou seja, os argumentos apresentados pelo Meritíssimo Juiz "a quo", teriam cabimento, se por exemplo, os autores tivessem casado no regime de bens supletivo, de comunhão de bens adquiridos. Ao casar no regime de comunhão geral de bens, a relação jurídica subjacente à outorga da procuração extinguiu-se, por deixar de estar na disponibilidade do autor, sendo necessário mais do que o mero consentimento do outro cônjuge, mas sim uma manifestação expressa da sua vontade, nos termos do art.º 265°-n.º 1 do Código Civil, sendo que nestas circunstâncias, não se pode deixar de considerar que a procuração em causa se extinguiu.
K ) -
L) No que respeita à questão da nulidade formal da procuração, reconheceu o Meritíssimo Juiz "a quo", e muito bem, que "Não se duvida que constando da procuração que ela era também passada no interesse do procurador ("interesse dos representantes", como aí se exarou) a lei exigia que a mesma fosse lavrada por instrumento público n° 3 do citado artigo 127°".
M) No entanto, ao questionar-se se: "E terá ela respeitado a forma legal exigida para tanto, pelos n.s 1 e 2 do transcrito art.º 127° (de então) em relação ao acto jurídico concreto para que foi utilizada?”o M.º Juiz não responde à pergunta mais básica e que está subjacente, e tantas vezes levantada pelos autores. NO INTERESSE DE QUEM FOI UTILIZADA A PROCURAÇÃO? O Meritíssimo Juiz "a quo" entende que não foi utilizada no interesse do representante. Tese discutível, porque carece de demonstração; O interesse juridicamente relevante não se esgota na mera aquisição. Mas adiante. Por consequência entende que foi respeitada a forma legal. O Meritíssimo Juiz "a quo" nem sequer se dá ao trabalho, acredita-se que por lapso decorrente do excesso de trabalho, comum a todos os Juízes, de se pronunciar se foi ou não utilizada a procuração no interesse de terceiro, conforme alegado, o que implicaria o desrespeito pela forma legal prescrita, e consequente nulidade do negócio jurídico celebrado, nos termos do art.º 220°do Código Civil.
N) Ao não se pronunciar, como devia quanto ao alegado pelos autores, tal como é reconhecido no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, como era seu dever legal, quanto a se a procuração foi utilizada, no acto jurídico concreto, no interesse de terceiro, está-se perante uma nulidade da sentença, nos termos do art.º 668° n.º l, al. d), do Código de Processo Civil, cabendo a este Tribunal de recurso pronunciar-se quanto a tal.
O) Quanto ao âmbito dos poderes conferidos, tem que se dividir, como atrás exposto, consoante se trata do autor marido e quanto se trata da autora mulher, independentemente de o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ter entendido que quer o autor marido quer a autora mulher, terem ambos legitimidade, de modo próprio, para pedirem quer a declaração de nulidade, por bens alheios, quer a declaração de ineficácia, caso se torne necessário convolar o pedido de declaração de nulidade, por se considerar este não admissível.
P) Quanto ao autor marido, entendeu o Meritíssimo Juiz "a quo" que: "Face a esta interpretação, torna-se evidente que o Réu E..... não exorbitou os poderes de representação do Autor marido, e que por este lhe foram conferidos através da procuração de 13 de Maio de 1992, não tendo sido assim violado o disposto no artigo 268.º do C.Civil.".
Ou seja, uma procuração que confere poderes para “(...) em seu nome e representação, alienar e ceder pelo preço que entender e a quem lhe aprouver A QUOTA NO VALOR NOMINAL DE QUATRO MILHÕES QUATROCENTOS E DEZ MIL ESCUDOS, de que é titular, no capital social da sociedade comercial por quotas sob a firma "I....., Lda, com sede..." serve perfeitamente para ceder COM O VALOR NOMINAL DE OITENTA E TRÊS MILHÕES QUINHENTOS E DEZ MIL ESCUDOS, que no mesmo acto, passa a ter o valor nominal de TRINTA MILHÕES QUATROCENTOS E NOVENTA E NOVE MIL E CINQUENTA E CINQUENTA E NOVE ESCUDOS. Lê-se, e com o devido respeito, não se acredita com é possível defender-se tal!
Q) - Uma quota no capital social de uma sociedade identifica-se pelo seu valor nominal, pela sua participação no capital social da sociedade. Ao identificar na procuração A QUOTA COM O VALOR NOMINAL de X, o representado está a definir e a delimitar o âmbito dos poderes conferidos. Ele não conferiu poderes para vender "toda e qualquer quota de que fosse titular”, ele definiu a quota em questão. Defender o contrário é algo juridicamente repugnante que qualquer leigo na matéria vislumbra.
R) - Assim, ao contrário do entendido pelo Meritíssimo Juiz “a quo", está-se perante a situação de violação do art.º 268° do Código Civil, sendo o negócio nulo ou ineficaz, perante os autores, consoante se entender, uma vez que este e sua esposa, NUNCA o RATIFICARAM!
S) - Quanto à A. e agora recorrente, que sempre alegou e defendeu que em relação a si, se estava perante uma situação de venda de bens alheios, prevista no art. 892.º do CC., sem embargo do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, considerar que também em relação a esta, se pode invocar uma situação de representação sem poderes e de consequente ineficácia, por ter sido cedido um bem que era sua propriedade, sem sequer a sua representação ser invocada, o Meritíssimo Juiz “a quo" nem sequer se dignou apreciar.
T) - Assim, está-se mais uma vez perante uma nulidade da sentença, nos termos do art.º 668° n.º l, al. d) do Código de Processo Civil, uma vez que alegado e inclusive reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça como tal, o Juiz “a quo" não se pronunciou quanto ao pedido da autora e às suas razões, cabendo mais uma vez ao presente Tribunal de recurso fazê-lo.

TERMOS EM QUE, CASO O MERITÍSSIMO JUIZ “A QUO" NÃO SUPRA AS NULIDADES INVOCADAS, DEVE:
1 - SER REVOGADA A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA;
2 - SER DECLARADA NULA OU INEFICAZ, CONFORME FICOU DELIMITADO PELO DOUTO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, A CESSÃO DE QUOTAS FEITA PELO RÉU F....., EM ALEGADA REPRESENTAÇÃO DO AUTOR, AO RÉU D.....;
3 - EM CONSEQUÊNCIA, SER DECLARADA PROPRIEDADE DOS AUTORES, TITULADA PELO AUTOR B....., CENTO E TRINTA MIL E QUINHENTAS ACÇÕES NOMINATIVAS DA SOCIEDADE "I....., S.A., QUE ACTUALMENTE SE ENCONTRAM REGISTADAS FAVOR DO RÉU D.....”
4 – SER ORDENADO O CANCELAMENTO DO REGISTO DA TRANSMISSÃO DAQUELA QUOTA A FAVOR DO RÉU D..... E OS SUBSEQUENTES REGISTOS QUE DELA DEPENDAM”
5 - CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, O QUE SÓ POR MERA HIPÓTESE SE ADMITE, OU CASO NÃO VENHA A SER EFECTIVADA POR IMPOSSIBILIDADE OBJECTIVA A DEVOLUÇÃO DAS ACÇÕES DEVIDAS AOS AUTORES, DEVEM OS RÉUS SOLIDARIAMENTE SER CONDENADOS A INDEMNIZAR OS AUTORES DE TODOS OS PREJUÍZOS CAUSADOS PELA CESSÃO, NO MONTANTE NUNCA INFERIOR AO VALOR NOMINAL QUE TERIA A QUOTA SE À DATA NÃO TIVESSE SIDO "CEDIDA", OU SEJA, 130.499.059$00, DEVENDO AINDA DER CONDENADOS A PAGAR A DIFERENÇA ENTRE O VALOR REAL E O VALOR NOMINATIVO, VALOR A LIQUIDAR EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA, APÓS AVALIAÇÃO DA SOCIEDADE REFERIDA.
ASSIM FAZENDO V. EX.AS, COMO COSTUMAM, ELEVADA E IMPARCIAL JUSTIÇA”

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Como pode ver-se, são as seguintes as questões suscitadas, sobre as quais pretende a apelante que nos pronunciemos:
a) nulidade formal da procuração
b) caducidade da procuração
c) representação sem poderes para o 2.º R. outorgar em nome do A. marido e inexistência de ratificação
d) nulidade de sentença por omissão de pronúncia a respeito da utilização da procuração no interesse de terceiro
e) nulidade de sentença por omissão de pronúncia a respeito da falta de poderes de representação da A. esposa para alienação de bens que também a esta pertencem

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Fundamentação

III-A) Os factos

Foram considerados assentes na decisão recorrida os factos seguintes:

1.º) Em 1992.05.13 o A. marido adquiriu uma quota no valor de 4.410.000$00 da I....., Ld.ª”- doc. junto aos autos a fls. 12 –14, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais;
2.º) No dia 1992.05.13, no -.º Cartório Notarial de....., constituiu o 2.º R., pai do A., e G....., sua mãe, seus procuradores, para cederem a quem lhes aprouvesse essa quota-documento junto aos autos a fls. 22 e 23, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais;
3.º) Procuração essa lavrada por documento escrito e assinada pelo A. com reconhecimento presencial da letra e assinatura;
4.º) Por escritura de 1992.12.09 o capital social da sociedade referida em 1.º foi elevado por incorporação de reservas livres e de reservas de reavaliação, tendo a quota do A. passado a ter o valor nominal de 83.510.000$00 – documento junto aos autos a fls. 6 a 28 cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os legais efeitos;
5.º) Em 1998.07.08 o A. casou com a A. civilmente com convenção antenupcial onde foi estipulado o regime de comunhão geral de bens – doc. junto aos autos a fls. 29-30, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais
6.º) Em 1998.12.22, o 2.º R., apresentando-se como representante do A. com exibição daquela procuração e dizendo ser este solteiro, cedeu ao 1.º R. a referida quota pelo valor de 4.500.000$00, declarando que o seu representado recebera já esse preço – documento junto aos autos a fls. 31-39 cujo teor se dá aqui por inteiramente reproduzido para todos os legais efeitos.
7.º Na mesma escritura (de 98.12.22) foi elevado de novo o capital social (para 1.000.000.000$00), passando a quota cedida a ter o valor nominal de 130.499.059$00, e foi transformada a referida sociedade (por quotas) em sociedade anónima, com o capital social de 1.000.000.000$00, representado e dividido em um milhão de acções de 1.000$00 cada.

Como não está posta em causa a matéria de facto considerada assente e provada, nem dos autos resulta que entre ela haja obscuridades, deficiências ou contradições, consideram-se aqui os factos atrás mencionados como estando definitivamente fixados.

III-B) O Direito

a) Da nulidade formal da procuração

De acordo com o disposto no art. 262.º-2 do CC, “Salvo disposição em contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deve realizar.”

O Código do Notariado, na redacção então vigente, dizia no art. 127.º-3 que

“As procurações conferidas também no interesse de procurador ou de terceiro devem ser lavrados por instrumento público cujo original é arquivado no cartório”.

Analisemos então o caso concreto:

Na procuração passada pelo A. B..... em 1992.05.13, este declarava constituir seus procuradores F..... (...) e G..... (...) (i.é., seus pais) poderes para qualquer um deles (representantes) em seu nome e sua representação, alienar e ceder pelo preço e condições que entender e a quem lhe aprouver a quota no valor nominal de 4.410.000$00, de que é titular, no capital da sociedade comercial por quotas “I....., Ld.ª”(...) Confere ainda poderes para alienar a quem entender e pelo preço e condições que quiser, as acções, quer nominativas, quer ao portador, que vierem a ser subscritas ou possuídas por si, no capital social da sociedade, quando esta se transformar em sociedade anónima.
No final da procuração vinha exarado que “A presente procuração é subscrita, também, no interesse dos representantes, podendo estes ceder ou alienar a referida quota a si próprios.” (sublinhados nossos)

A lei não define o “interesse do procurador ou de terceiro” que se deva ter como relevante, pelo que, contemplando a procuração diversos poderes, só da análise à situação concreta consubstanciada no negócio realizado se poderá concluir se a procuração foi ou não utilizada, naquele caso, como sendo do interesse dos representantes.

Ora o negócio jurídico celebrado pelo 2.º R. em representação do A., seu filho e em favor do outro filho (1.º R.), realizado seis anos e meio mais tarde, consistiu na alienação da quota daquele, pelo valor de 4.500.000$00 ( e na qual é referido ter o seu representado recebido já essa importância) quando o seu valor nominal era já nessa data de 83.510.000$00, pelo que este negócio não podia ser já do interesse do representado A., pela enorme e notória desconformidade dos respectivos valores das quotas, mas sem dúvida que era do interesse do 1.º R. (adquirente, e também filho) e necessariamente dos 2.ºs RR. (ainda que o seu interesse pudesse ser apenas de ordem moral), dado que só factores estranhos, muito diversos dos interesses de um “bonus pater familiae”, poderiam levar a celebrar em representação de um filho negócio economicamente tão incompreensível como desastroso para ele, tanto mais que, dias mais tarde, aquando da transformação da sociedade de quotas em sociedade por acções e aumento do respectivo capital, aquela quota fica a ter a correspondência a 130.500 acções de 1.000$00, ou seja, passando a ter o valor de 130.500.000$00 !

Ora, estando indicado na procuração que esta era emitida também no interesse dos representantes, e colhendo-se do negócio celebrado ao abrigo da citada procuração que o negócio, tal como foi realizado, em nada era do interesse do representado – só podendo portanto ser no interesse de terceiro ou dos próprios representantes daquele - , a conclusão a que temos de chegar é que, no indicado negócio de alienação de quota, os representantes agiram sem ter em seu poder a procuração com a formalidade exigida para esse concreto negócio, já que só através de instrumento público aquela poderia conferir aos representantes os necessários poderes para procederem à alienação da quota do seu representado naquelas circunstâncias, tão diferentes das existentes à data da sua outorga.
A declaração negocial dos representantes, para serem eficazes na esfera jurídica do representado, teriam de ser conferidos através de instrumento público e não através de simples escrito, na qual foi apenas feito o reconhecimento da letra e assinatura do procurador, ou então, necessário se tornava que viesse a ocorrer, ao menos, a ratificação do negócio por parte do representado pela mesma forma legalmente exigida.- arts. 268.º-1 e 2 do CC.

Assim, a inobservância da forma legal da procuração faz com que a declaração negocial se torne ineficaz em relação ao representado enquanto o referido negócio não for ratificado por este.
Como o A. o não ratificou (se o fizesse tinha também de ser efectuada a ratificação pela forma exigida para a procuração), o negócio celebrado pelos 2.ºs RR. (alienação da quota pertencente ao A. em favor do 1.º R., pela importância de 4.500.000$00), nenhum efeito pode produzir em relação ao A.

b) Da caducidade da procuração

O CC. prevê no art. 265.º os casos em que se extinguem as procurações.

Vem aí referido que elas se extinguem nos casos seguintes:

- quando o procurador a ela renuncia,
- quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base, excepto de outra for, neste caso, a vontade do representado
- quando o representado a revogue nos casos em que a mesma não tenha sido conferida também no interesse do procurador
- quando o representado a revogue nos casos em que a mesma tenha sido conferida também no interesse do procurador e o procurador dê o seu acordo a essa revogação, ou, independentemente desse acordo, venha a ocorrer justa causa

Não há previsão alguma que estipule a caducidade da procuração por casamento posterior do representado.
Assim, posto que formalmente irregular, a procuração emitida não caducou, posto que ineficaz para os efeitos do negócio celebrado, como já sustentado na alínea antecedente.

c) Da representação sem poderes para o 2.º R. outorgar em nome do A. marido e inexistência de ratificação

Tendo o 2.º R. utilizado no negócio uma procuração que não obedecia aos requisitos formais exigidos (porque o negócio era no interesse dele e/ou de terceiro), concluímos que o negócio foi celebrado em nome do representado sem que os representantes tivessem os necessários e indispensáveis poderes para o efeito, que só poderiam considerar-se dados através do competente meio.
Assim, estamos perante um caso de representação sem poderes, pelo que o mesmo negócio não pode vincular o representado enquanto este não ratificar o negócio pela forma exigida para a procuração, como aliás já tivemos oportunidade de acima assim o referir – art. 268.º-1 e 2 do CC.
Uma vez que o negócio não chegou a ser ratificado, há que concluir pela sua ineficácia relativamente ao A., supostamente representado pelos 2.ºs RR. na escritura de alienação de quota.

d) Da nulidade de sentença por omissão de pronúncia a respeito da utilização da procuração no interesse de terceiro

Dizem os apelantes que a sentença não chega a pronunciar-se a respeito da utilização da procuração no interesse de terceiro, havendo por isso omissão de pronúncia.
Não é esse, no entanto, o nosso entendimento porque a questão que é colocada reporta-se à validade e eficácia da procuração e sua utilização no negócio em causa.
Ora o M.º Juiz deixou dito na sentença que os representantes (2.ºs RR.) agiram estritamente dentro dos poderes que a procuração supostamente lhes conferia, no concreto negócio em que a procuração foi utilizada.
Não houve assim, em nossa opinião, omissão de pronúncia.
O que houve foi um tratamento jurídico, que se afastou da solução preconizada pelos apelantes, e relativamente a cuja solução, também nós não nos sentimos sintonizados.

e) Da nulidade de sentença por omissão de pronúncia a respeito da falta de poderes de representação da A. esposa para alienação de bens que também a esta pertencem

A sentença não apreciou a questão da falta de poderes de representação relativamente à A. esposa, e, nesse aspecto, podemos dizer que houve omissão de pronúncia, o que conduz necessariamente à nulidade da mesma – art. 668.º-1-d) do CPC.
Há por isso que pronunciar-nos sobre a matéria em crise.

Vejamos:

O A. era desde 1992.05.13, titular de uma quota de 4.410.000$00 na sociedade “I....., Ld.ª”
Como entretanto casou com a A. C..... em regime de comunhão geral de bens, essa quota passou a ser um bem comum do casal – art. 1732.º do CC - , já que da escritura de aquisição da quota – fls. 12 a 14 dos autos – colhe-se que a mesma não foi adquirida por doação, e, assim, não se encontrar tal quota excluída do regime de comunhão – art. 1733.º-1-a) do CC.

Poderia essa quota ser alienada sem o consentimento da A. esposa?

Entendemos que sim, porque estamos perante a alienação de um bem móvel do qual o A. é administrador único, por ele existir já na sua esfera patrimonial do actual administrador antes do casamento, ainda que, por efeito do regime de bens de casamento (regime de comunhão geral) se tenha entretanto transformado em bem comum, e, nesse caso, (como é de bens móveis que tratamos) não é necessário o consentimento do cônjuge para proceder à respectiva alienação.

Explicitemos o nosso raciocínio, seguindo “pari passu” o que, segundo nós, resulta da lei:

De acordo com o disposto no art. 1678.º-2-c) do CC. cada um dos cônjuges tem a administração dos bens que haja levado para o casamento, ou adquiridos a título gratuito depois do casamento, bem como dos sub-rogados em lugar deles, posto que, com o regime de bens do casamento, hajam tais bens passado a ser bens comuns.
Portanto, não obstante a referida quota se ter tornado num bem comum (devido ao regime de bens do casamento ser o de comunhão geral), a administração dela continuou a pertencer ao A. marido.
Ora, de acordo com o disposto no art. 1682.º-2 do CC., “Cada um dos cônjuges tem legitimidade para alienar ou onerar, por acordo entre vivos, os móveis próprios ou comuns de que tenha a administração, nos termos do n.º 1 do art. 1678.º e das alíneas a) a f) do n.º 2 do mesmo artigo, ressalvado o disposto nos números seguintes – n.ºs 3 e 4 desse mesmo artigo.(sublinhado nosso)
Donde, poder concluir-se que o A. poderia alienar a sua quota na sociedade – arts. 1678.º-2-c), a menos que se tratasse dalguma das hipóteses previstas no n.º 3 e 4 do artigo 1682.º-3 e 4, excepções estas que não se verificavam, já que a alienação da quota não constitui alienação de móveis utilizados conjuntamente por ambos os cônjuges na vida do lar ou como instrumento comum de trabalho - art. 1678.ºn.º 3-a), nem respeitava a bem móvel pertencente exclusivamente ao cônjuge que o não administrava – art. 1678.º-3-b), nem versava sobre negócio gratuito – art. 1678.º-4 do CC.

Assim, para a alienação da quota social na sociedade “I....., Ld.ª” não precisaria o A. do consentimento de sua esposa, posto que bem comum.

E, como não precisava do consentimento da A. esposa para a alienação dessa quota, não precisava que na procuração outorgasse também a esposa para que pudesse proceder-se à sua alienação a título oneroso.
(Anota-se e sublinha-se aqui que não se está perante o regime sancionatório previsto no art. 1687.º do CC. (que permite a anulabilidade do negócio a requerimento do cônjuge que não deu o consentimento à alienação), pois a situação concreta aqui prevista insere-se no n.º 2 do art. 1682.º do CC (alienação de bem móvel comum por parte do cônjuge a quem pertence o poder de exclusiva administração, porque bem adquirido pelo A. marido anteriormente ao matrimónio- art. 1678.º- 2-c) ) e não nos n.s 1 e 3 desse mesmo artigo, como aludido nas alegações das partes (alienação de bem móvel comum, cuja administração caiba aos dois cônjuges).

Donde a falta absoluta de poderes dos representantes (2.ºs RR.) na procuração para representar a A. esposa seja questão que é aqui juridicamente inócua, dado que, se a procuração tivesse obedecido à legal formalidade exigida para o caso concreto, bastaria a representação do A. marido para que o negócio produzisse os respectivos efeitos.

Não havia, por outro lado, que trazer à colação a questão da venda de bens alheios – arts. 892.º e 902.º do CC. - , dado que não é de bens alheios que se trata no presente caso, mas tão só da eventual irregularidade da venda de bem móvel comum (quota social) do casal, por inexistência de representação de um dos titulares.
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De tudo quanto acabamos de referir, concluímos que o negócio celebrado pelos 2.ºs RR., em que o A. interveio utilizando a procuração junta aos autos (meramente escrita e assinada com reconhecimento presencial de letra e assinatura do outorgante A.) e na qual eram dados poderes aos RR. para estes alienarem a quota do A. na sociedade “I....., Ld.ª”, a quem quer que fosse e pelo preço e condições que os 2.ºs R.R. quisessem), não obedecia à forma legalmente exigida, porque nela vinha exarado que a procuração era outorgada também no interesse dos 2.ºs RR.., e sendo assim, deveria ser ela outorgada através de instrumento público.
Não sendo observada a forma legal na procuração, o negócio celebrado com base nela, torna ineficaz o referido negócio relativamente ao A., enquanto este o não ratificar.
Como o A. o não ratificou, não se operou juridicamente a transmissão da quota dos AA. para o 1.º R.
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A ineficácia do negócio é vício menos gravoso que o da declaração de nulidade ou de anulabilidade, pelo que, tratando-se apenas de uma questão de qualificação jurídica, cujas consequências são menos gravosas que as requeridas no pedido da acção, não está este Tribunal impedido de fazer uso desse poder.
Assim posto, a apelação deve proceder parcialmente.

IV. Deliberação

Na procedência parcial da apelação, revoga-se a não obstante douta sentença recorrida, substituindo-a por outra em que:
a) se declara ineficaz a cessão de quota feita pelo 2.º R., em alegada representação do A., ao 1.º R.;
b) se declara que pertencem aos AA. 130.500 acções nominativas de I....., SA”;
c) se ordena o cancelamento do registo feito quanto àquela transmissão e dos que dela dependam.
Custas por apelante e apelados na proporção de 1/3 e 2/3.
Na acção as custas ficam a cargo dos AA. e RR. (ainda subsistentes na causa), na mesma proporção.

Porto, 22 de Junho de 2004
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Maria Teresa Montenegro V C Teixeira Lopes