ASSISTENTE
CRIME DE FALSO TESTEMUNHO
Sumário


I- A circunstância de o recorrente ter sido admitido, por forma tabelar e genérica, a intervir nos autos na qualidade de assistente, em momento anterior ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, não faz caso julgado formal, podendo a questão ser decidida até à decisão final.
III- No crime de falso testemunho, o bem jurídico protegido consiste essencialmente na realização ou a administração da justiça como função do Estado.
A jurisprudência largamente maioritária, na qual nos incluímos, é no sentido de a que a pessoa prejudicada com a falsidade de testemunho tem legitimidade para se constituir assistente.
Se for alegado e demonstrado que o meio de prova viciado foi relevante para a decisão, então, a parte processual contra a qual esse meio fez prova não pode deixar de considerar-se prejudicada com a declaração falsa produzida e, nessa medida, é aquela pessoa portadora de um interesse relevante, inerente ao bem jurídico protegido, cuja salvaguarda importa assegurar, sob pena de a injustiça decorrente da declaração falsa persistir, tendo de lhe ser dada oportunidade de demonstrar que o seu interesse foi gravemente lesado, não tendo sido feita a justiça que lhe era devida no processo em causa.
III- No caso dos autos não se vislumbra a alegação de qualquer prejuízo, o qual, a verificar-se, teria de resultar direta e imediatamente da alegada falsidade do testemunho da ora arguida. Nesta conformidade, na ausência de alegação do referido prejuízo, o recorrente não pode ser considerado ofendido e, consequentemente, também não lhe pode ser atribuída a qualidade de assistente quanto ao imputado crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360º, nºs 1 e 3 do C. Penal.

Texto Integral


Processo nº 512/21.2T9BRG.G1

I- RELATÓRIO

Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Instrução Criminal de Braga, Juiz ..., no processo nº 512/21...., tendo o Ministério Público proferido despacho de arquivamento, o assistente AA, com os demais sinais nos autos, apresentou requerimento de abertura de instrução, pretendendo que a arguida BB fosse submetida a julgamento pela prática de um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360º, nº1 e 3 do C. Penal e de um crime de difamação p. e p. pelo artigo 180º, nº 1 do C. Penal, o qual foi admitido apenas na parte relativa ao imputado crime de falsidade de testemunho.
2. Uma vez realizado debate instrutório, foi proferida decisão instrutória, na qual foi conhecida, como questão prévia, a questão da legitimidade do assistente para, em face do requerimento de abertura de instrução apresentado, ver pronunciada a arguida pela prática de um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360º, nº1 e 3 do C. Penal, tendo concluído carecer de legitimidade para o efeito.
3. Não se conformando com tal despacho, o assistente dele interpôs recurso, tendo concluído nos seguintes termos (transcrição)[1]:
A.
Após a realização de debate instrutório na abertura da instrução requerida pelo Assistente AA, foi proferida decisão no dia 02-11-2023, Mmo. JIC de Braga – Juiz ... com a REFª ...49 assente na determinação de “Faltar ao Requerente AA legitimidade, em face do requerimento para abertura da instrução que apresentou, para o apresentar com a pretensão de pronúncia da arguida BB pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º/1 e 3 do Código Penal “.
B.
A questão central do presente recurso não carece de especial complexidade, conquanto, urge apenas aferir superiormente se podia o Mmo. Juiz de Instrução Criminal negar ao Recorrente a sua legitimidade para, através do Requerimento para Abertura da Instrução, na qualidade de Assistente, pedir a pronúncia da arguida BB pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º/1 e 3 do Código Penal.
C. O Recorrente considera, desde logo, que detém essa legitimidade e entende assim que a douta decisão proferida viola os seus elementares direitos constitucionais de direito à justiça e acesso aos tribunais, previstos no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa,
D. O Recorrente entende que, para além de ter legitimidade pedir a pronúncia da arguida BB pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º/1 e 3 do Código Penal, tem para mais, um concreto e próprio interesse em agir, relembrando pois, que o crime denunciado de falsidade de testemunho, impediu a realização da justiça que o Recorrente pediu aos Tribunais.
E. A não realização da justiça derivada da prática dos factos denunciados pelo Recorrente, acarretou para este prejuízos patrimoniais e não patrimoniais, que os presentes autos bem conhecem, conquanto, a sentença da ação cautelar nº 3818/18.... encontra-se junta aos autos, cuja juntada se deu pela mão do Recorrente – vide fls. 82, onde se perceciona o decretamento da dita ação cautelar no património do Recorrente.
F. O Recorrente considera que tem um interesse próprio e concreto na resposta punitiva, que é paralelo ao interesse comunitário na realização da justiça que se encontra demonstrado na sua denúncia, no seu requerimento de constituição de assistente e abertura de instrução e também assente na prova documental que juntou ao processo.
G. O Recorrente considera que com a prática dos factos por si denunciados que consubstanciam no seu entender, um crime de falsidade de testemunho, foi-lhe causado um severo prejuízo patrimonial e foi negado o seu direito à realização da justiça;
H. O Recorrente à época dos factos denunciados, defendia-se judicialmente do pagamento da quantia de 49290,80€ que ilegalmente a Autora (mãe da aqui arguida) naqueles autos cautelares, pretendia assacar do património do Recorrente, e que veio a efetivar através do processo nº 5976/18...., Juízo Local Cível de Vila Verde, com a instauração de ação declarativa de condenação contra o aqui Recorrente, que ainda não transitou em julgado, por força de recurso de apelação instaurado pelo Recorrente.
I.
A arguida, em sede de prestação de depoimento, na qualidade de testemunha de sua Mãe, ali Requerente na ação cautelar contra o aqui Recorrente, entorpeceu a justiça e o alcance da boa e justa decisão da causa, ao apresentar ao Tribunal total falta de fidelidade à verdade, revelando para tanto, que manteve com o Recorrente uma relação de amizade, quando antes havido referido ter com o mesmo uma relação amorosa, que foi o Assistente que a abordou para ela dar o nome a um projeto de mirtilos, uma vez que ele já não tinha idade e que tudo o que fez foi dar o seu nome porque o projeto era exclusivamente dele, que o Assistente era o único beneficiário das operações bancárias feitas pela Internet, acrescentando que o mesmo tinha acesso à palavra passe de acesso e a respetiva caderneta, que quando acabou o dinheiro que o Proder dava, o Assistente começou a ameaçar que ela iria ter problemas, já que estava tudo em seu nome, pelo que ambos pediram dinheiro à mãe da denunciada, que o Assistente era visita frequente na sua casa e na casa da sua mãe, que o Assistente disse que eles tinham que fazer um empréstimo que não podia dar ser em seu nome e foi então que falaram com a mãe da denunciada, que os detalhes dos pedidos de empréstimo eram explicados pelo Assistente à mãe da denunciada, estando ela igualmente presente, que a sua mãe, contraiu um empréstimo bancário no valor de 20.000,00 EUR mais juros, que após fizeram uma transferência bancária para a conta da Banco 1... associada ao Proder que estava em seu nome, que para além desse valor, a mãe emprestou 9.000,00 EUR ao Assistente, que o Assistente ameaçava que teriam que devolver todo o dinheiro que receberam no âmbito do projeto agrícola, que era o Assistente que tratava todas as questões com o Banco e que falava com os clientes, que deixou de ir à quinta, porque das últimas vezes que lá foi, o Assistente mandava embora e batia-lhe, que não conhecia nenhum veículo automóvel da propriedade Assistente e que o mesmo andava com um veículo automóvel emprestado por um amigo, e que o Assistente não tinha emprego, não tinha contas bancárias, apenas trabalhava na quinta, tudo em contravenção quer com a realidade e a verdade, quer com os 30 documentos que o Recorrente fez apresentar junto do DIAP, com o único fito, de obter sucesso na demanda judicial instaurada pela sua Mãe contra o aqui Recorrente.
J. Por causa da prática dos factos denunciados pelo Recorrente e que melhor constam descritos da queixa por si formulada, e atendendo ao depoimento falso prestado pela arguida em sede judicial, este foi impedido de alcançar a justiça e perdeu a respetiva ação cautelar, tendo consequentemente um grande e até agora irremediável prejuízo patrimonial e não patrimonial.
K. O Recorrente foi prejudicado, os seus interesses foram prejudicados em consequência dos factos por si denunciados em 25 de janeiro de 2021.
L. O bem jurídico protegido pela incriminação do artigo 360.° do Código penal é a realização da justiça e a tutela da veracidade dos depoimentos de terceiros em conflito, sendo que, na senda, o Recorrente considera que com a prática dos factos por si denunciados não lhe foi realizada justiça nem lhe foi tutelada a veracidade dos depoimentos de terceiros em conflito;
M. A realização da justiça é um bem jurídico comunitário mas também é um bem jurídico individual;
N. O Recorrente tem direito à realização da justiça, é titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação;
O. Face a todo o exposto, e ao contrário do defendido pelo Mmo. JIC de Braga, o Recorrente tem legitimidade e interesse em agir pelo que deverá ser constituído assistente, sendo que, a decisão contrária que proferiu em 02-11-2023 atenta contra o teor de vasta jurisprudência, que a título de exemplo se enuncia, toda ela disponível em www.dgsi.pt.: ACÓRDÃO DO STJ de 24.7.2005, ACÓRDÃO DO TRC DE 6.5.2009, ACÓRDÃO DO TRL DE 24.09.2015, ACÓRDÃO TRL DE 3.10.2007, ACÓRDÃO DO TRC DE 6.5.2009, ACORDÃO DO TRC DE 23.5.2012, ACÓRDÃO DO TRL DE 18.7.2007, ACÓRDÃO DO TRL DE 24.9.2015;
P. Como é consabido, a lei concede a certas pessoas a possibilidade de se integrarem no procedimento criminal, através do acompanhamento de um técnico de direito e de exercitarem alguns poderes próprios, além de auxiliarem o detentor da ação penal, ou seja, o Ministério Público, adquirindo a qualidade de sujeitos processuais, no objetivo da promoção da boa administração da justiça, com o estatuto de assistente, previsto nos arts. 68º e segs. do CPP.
Q. Na verdade, além de outras situações que não interessam para o caso em apreço, a lei admite a intervir como assistentes os ofendidos, entendendo por estes os titulares dos interesses que a lei especialmente quer proteger com a incriminação (arts.68, nº1, al.a, CPP e 113, nº1, CP).
R. Em relação à fase de inquérito, já ultrapassada, o seu objeto foi definido pela denúncia apresentada por AA, imputando crimes de falsidade de testemunho à constituída arguida neste processo.
S.
Durante o decurso do Inquérito, o Recorrente requereu a sua constituição como Assistente e esta posição processual foi-lhe concedida pelo MMo. Juiz, tendo o inquérito terminado com despacho de arquivamento e tendo os autos sido remetidos para instrução, o seu objeto passa a ser definido pelo RAI apresentado.
T. Ao contrário do que parece resultar do despacho recorrido, a admissão de assistente não pode estar condicionada pelo mérito do RAI, importando, apenas, apurar a legitimidade do requerente face ao objeto da instrução, tal como o mesmo é definido por quem a requer.
U. A apreciação liminar da viabilidade da instrução, que o Mmo Juiz acaba por fazer no despacho recorrido, pressupõe que o requerente seja admitido a intervir como assistente, e isso o Recorrente, já tinha sido admitido a intervir como Assistente.
V. Ao contrário do afirmado no despacho recorrido, é seguro que o crime de falsidade de testemunho, imputado no RAI, tipo criminal integrado no capítulo dos crimes contra a realização da justiça, é um crime público em relação ao qual o interesse essencialmente protegido é da titularidade do próprio Estado,
W. Mas também é existe o interesse particular das partes de cada processo em ver acolhida uma versão que corresponda à verdade material, para o que é essencial a verdade dos testemunhos de quem é chamado a depor.
X. Por essas razões, admitiu o Supremo Tribunal de Justiça a intervenção como assistente em relação a crime de denúncia caluniosa (ARESTOS CITADOS NAQUELE AC. Nº1/03) e foi fixada jurisprudência por aquele mesmo ACÓRDÃO Nº1/03, no sentido de admitir como assistente, em relação ao crime de falsificação, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente.
Y. No caso, em relação ao crime de falsidade de testemunho, é inquestionável que se pretende proteger a realização da justiça, contudo, se existe esse interesse geral do Estado, de realização da justiça, também existe o interesse particular das partes de cada processo em ver acolhida uma versão que corresponda à verdade material, para o que é essencial a verdade dos testemunhos de quem é chamado a depor.
Z. Ora, um testemunho falso, pode conduzir a uma decisão injusta com reflexos negativos na esfera jurídico de uma parte, como é alegado pelo Recorrente que afirma ter a conduta dos denunciados conduzido a uma decisão judicial que ele não desejava, com um consequente prejuízo patrimonial de valor muito elevado.
AA. Neste sentido, acórdãos acessíveis em www.dgsi.pt: ACORDÃO DA RELAÇÃO DO PORTO DE 20NOV.07, PROFERIDO NO PROCESSO Nº8112/2007: “… II – Após o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2003, têm os tribunais vindo a reconhecer que, em determinados tipos de crime público que protegem bens jurídicos eminentemente públicos (v.g. denúncia caluniosa e falso testemunho), o legislador pretendeu também tutelar bens jurídicos de natureza individual, assim se afastando da orientação que, tradicionalmente, resolvia a questão da legitimidade para constituição de assistente, atendendo à natureza individual ou supra-individual do bem jurídico tutelado pela incriminação (apenas no primeiro caso se admitindo essa constituição como assistente)”; ACORDÃO DA REL. COIMBRA DE 24JUN.09 (Pº Nº966/08.2TBLRA, RELATOR CALVÁRIO ANTUNES): “A prestação de um falso testemunho repercute-se directamente na esfera jurídica da pessoa que o depoente dolosamente visou desfavorecer, devendo, assim, ser reconhecida legitimidade ao ofendido para intervir como assistente no respectivo processo penal”, ACORDÃO DA RELAÇÃO DE COIMBRA DE 7-06-2016 (Pº 59/14.3TAPBL.C1, RELATOR MARIA PILAR DE OLIVEIRA: “A pessoa que haja sofrido prejuízos com a falsidade de depoimento ou declaração deve-se considerar ofendida, porque titular de interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, tendo, em consequência, perante despacho de arquivamento do inquérito do Ministério Público, legitimidade para se constituir assistente e requerer instrução”; ACORDÃO DA RELAÇÃO DO PORTO DE 11-01-2017 (Pº 2020/13.6TAPVZ.P1, RELATOR DONAS BOTTO): “ No artº 360º CP é protegido não apenas um interesse de ordem publica mas também pode ser imediatamente protegido um interesse susceptivel de ser corporizado num concreto interesse individual, pelo que é admissível a constituição de assistente”
BB. Assim, em relação ao caso concreto, entende-se que o Recorrente é titular de interesse que a lei visa proteger com o crime de falsidade de testemunho, o que lhe garante legitimidade para intervir nos autos como assistente, nos termos do art.68, nº1, al.a, do CPP,
CC. DEVENDO, ATENTO TODO O ALEGADO, SER O DESPACHO PROFERIDO PELO MMO. JIC SER REMIDO DO ORDENAMENTO JURÍDICO, E SER E CONSEQUÊNCIA, SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE NÃO RETIRE O ESTATUTO DE ASSISTENTE AO RECORRENTE, E SEJA EM RESULTADO, PROFERIDO DESPACHO DE PRONÚNCIA DA ARGUIDA BB PELA PRÁTICA DO CRIME DE FALSIDADE DE DEPOIMENTO, P. E P. PELO ART. 360º DO CÓDIGO PENAL.
TERMOS EM QUE E NOS MELHORES EM DIREITO QUE OS SENHORES JUÍZES DESEMBARGADORES MUI PROFICIENTEMENTE SUPRIRÃO, DEVE O PRESENTE RECURSO PENAL SER ADMITIDO E SER JULGADO PROCEDENTE E EM CONSEQUÊNCIA, E SER E CONSEQUÊNCIA, SUBSTITUÍDO O DESPACHO PROFERIDO PELO MMO. JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE BRAGA POR OUTRO QUE NÃO RETIRE O ESTATUTO DE ASSISTENTE AO RECORRENTE, E SEJA EM RESULTADO, PROFERIDO DESPACHO DE PRONÚNCIA DA ARGUIDA BB PELA PRÁTICA DO CRIME DE FALSIDADE DE DEPOIMENTO, P. E P. PELO ART. 360º DO CÓDIGO PENAL.

ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA E SÃ JUSTIÇA!
PEDE DEFERIMENTO.

4. O Ministério Público, na primeira instância, respondeu ao recurso, tendo concluído nos seguintes termos (transcrição):

I- O crime de falsidade de depoimento admite a intervenção nos autos na qualidade de assistente, daquele que sofreu prejuízos com a prática da falsidade.
II — Para tanto é necessário que esse prejuízo seja alegado.
III — Não tendo sido, não pode ser admitido/mantido como assistente e como tal requerer a abertura de instrução, com pretensão de pronúncia da arguida.
IV - Nestes termos, deverá ser negado provimento ao recurso, confirmando-se o despacho recorrido.
Vossas Excelências, porém, farão JUSTIÇA.

5. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto proferiu o seu parecer, tendo concluído nos seguintes termos (transcrição):
Em face do que deixamos exposto, resulta para nós claro que o recorrente, porque em relação ao crime em apreço, o crime de falsidade de testemunho, não pode constituir-se assistente, está carecido de legitimidade para não só requerer a abertura da instrução, como também, consequentemente, o exercício do direito ao recurso relativo ao despacho de não pronúncia da arguida por tal ilícito, recurso que então deverá ser rejeitado, tendo em vista o disposto no art.º 420, nº1 e art.º 414, nº. 2, ambos do CPPenal – o recorrente não tem “as condições necessárias para recorrer”.
6. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do CPP, tendo a arguida /recorrida respondido, fazendo seus os argumentos apresentados pelo Exmo. Senhor Procurador – Geral Adjunto.
7- Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1- Objeto do recurso
O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso[2] do tribunal, cfr. artigos 402º, 403º e 412º, nº 1, todos do CPP.
Assim, e tendo presente o disposto no nº 1 do artigo 412º do C.P.P., temos que a questão a decidir consiste em saber se, conforme foi decidido na decisão recorrida, ao recorrente não assiste legitimidade para se constituir assistente quanto ao crime de falsidade de testemunho que imputou à arguida no requerimento de abertura de instrução.

2. A decisão recorrida
O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):
DECISÃO INSTRUTÓRIA
1. Relatório.
1.1. Despacho de arquivamento.
A final do inquérito o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento (fls. 1129 e ss), ao abrigo do disposto no artigo 277.º/1 do CPP, por ter sido possível recolher prova bastante da não verificação do crime (falsidade de testemunho).
1.2. O requerimento de abertura da instrução.
Veio o assistente AA (fls. 1138 e ss) requerer a abertura da instrução contra a arguida BB, com a pretensão de pronúncia desta pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º/1 e 3 do Código Penal, bem como pela prática de um crime de difamação agravado, p. e p. pelo artigo 180.º/1 e 3 do Código Penal, ex vi do artigo 132.º/2-g) do CPP.
Para tanto alinha, em síntese muito enxuta, que a arguida (enquanto testemunha) aventou perante o Tribunal uma relação amorosa com o assistente; que o assistente a convenceu a dar o nome no projecto de candidatura; que o assistente é que lidava com os dinheiros do fundo, que o assistente pediu um empréstimo de 50.000,00 euros à mãe e que mesclou negócios havidos entre o assistente e a mãe da arguida, tudo em contradição com documentação existente.
Arguindo ainda a nulidade prevista no artigo 120.º/2-d) do CPP, porquanto a decisão de arquivamento enferma de vício de investigação, bem como não considerou a ofensa à honra e bom nome do assistente.
1.3. As diligências instrutórias,
Por despacho de fls. 1189 foi declarada aberta a instrução, negando-se, no entanto, a abertura quanto à pretensão de pronúncia pela prática de crime de natureza particular
Foi realizado o debate instrutório, com observância do legal formalismo, como da acta consta.
2. Saneamento.
O Tribunal é o competente.
Como resulta do artigo 308.º/3 do CPP, no despacho a que se refere o n.º 1 (despacho de pronúncia ou de não pronúncia) o juiz começa por decidir das nulidades ou de outras questões prévias ou incidentais que possa conhecer.

É o caso:
2.1. Da legitimidade do assistente para manter esse estatuto.
Conforme resulta dos autos (refª ...15) em 17/01/2023 foi o requerente AA admitido a intervir nos autos como assistente. E no tempo em que o foi não havia ainda sido proferido o despacho de arquivamento e, como tal, também não havia requerido a abertura da instrução.
Dispõe o artigo 68.º do CPP que:
“1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:
a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;
(…)
Como se diz no acórdão do TRL de 20/06/2007, proc. 4721/2007-3, “A decisão que admite o assistente a intervir como tal nos autos não faz caso julgado formal, mas sim caso julgado rebus sic stantibus, podendo a questão da legitimidade ser decidida diferentemente em momento posterior do processo. A legitimidade para intervir como assistente, em inquérito, afere-se pela denúncia, enquanto a legitimidade a apreciar subsequentemente prende-se com a natureza dos crimes a que se refere a acusação, o requerimento de abertura de instrução ou a decisão recorrida, em caso de recurso”.
Neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos dos TRP de 18/11/2020, proc. 3465/18.0T9MTS.P1; TRL de 29/04/2014, proc. 142/12.0TELSB.L1-3; TRG, de 02/05/2016, proc. 52/14.6T9VPA-A.G1; TRC de 29/05/2013, proc. 762/10.7TAFIG.C1;
Ver ainda, com as devidas adaptações, o acórdão de fixação de jurisprudência do STJ, n.º 5/2019, DR, 1.ª série, de 26/09/2019, onde se decidiu que «O despacho genérico ou tabelar de admissão de impugnação de decisão da autoridade administrativa, proferido ao abrigo do disposto no artigo 63.º n.º 1, do Regime Geral das Contra--Ordenações, não adquire força de caso julgado formal.»
Cabe então equacionar se, quanto ao crime de falsidade de testemunho (cuja pronúncia é pretendida), pode o requerente manter esse estatuto, em face do requerimento de abertura da instrução que apresentou (enquanto acusação alternativa).
Desde já se deve afirmar que não pode.

Dispõe o artigo 360.º do Código Penal que:
1 - Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.
(…)
Pela incriminação protege-se o bem jurídico da realização da justiça (cfr. Comentário do Código Penal, 4.ª ed. actualizada, Paulo Pinto de Albuquerque, p. 1208).
Como se diz no acórdão do TRL de 29/03/2022, proc. 7127/19.3T9LSB-5, dgsi:
– O crime de falsidade de testemunho, tipo criminal integrado no capítulo dos crimes contra a realização da justiça, é um crime público em relação ao qual o interesse essencialmente protegido é da titularidade do próprio Estado.
–Contudo, se existe esse interesse geral do Estado, de realização da justiça, também existe o interesse particular das partes de cada processo em ver acolhida uma versão que corresponda à verdade material, para o que é essencial a verdade dos testemunhos de quem é chamado a depor.
–Ora, um testemunho falso, pode conduzir a uma decisão injusta com reflexos negativos na esfera jurídico de uma parte, entendendo-se que, nesse caso, esse particular é titular de interesse que a lei visa proteger com o crime de falsidade de testemunho, o que lhe garante legitimidade para intervir nos autos como assistente, nos termos do art.68, nº1, al.a, do CPP.
Ou seja, importa que no processo onde foi prestado o depoimento tenha resultado uma decisão injusta para o requerente (e que isso seja afirmado no requerimento de abertura da instrução)
Se resultou e está afirmado tem legitimidade.
Elucidativos são os dizeres do acórdão do TRG, de 08/02/2016, proc. 72/14.0TAPTL-A.G1, dgsi:
I- No crime de falso testemunho, o bem jurídico protegido consiste essencialmente na realização ou a administração da justiça como função do Estado. Contudo, o legislador consagrou uma significativa agravação da penas em função do resultado do crime e a não punibilidade por retratação depende da inexistência de prejuízo para terceiro, o que permite afirmar que a esfera de protecção deste tipo de crime abrange também outros bens jurídicos e interesses relevantes, ainda que particulares.
II-Detém legitimidade para a constituição de assistente o requerente de instrução que invoca e pretende ver indiciado que sofreu um prejuízo patrimonial directamente decorrente do cometimento pelos dois denunciados de falso testemunho em audiência de julgamento.
É a exigência de afirmação de prejuízo enquanto fundamento para garantir a legitimidade de assistente
Também assim o acórdão do TRC de 07/06/2016, proc. 59/14.3TAPBL.C1, dgsi:
A pessoa que haja sofrido prejuízos com a falsidade de depoimento ou declaração deve-se considerar ofendida, porque titular de interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, tendo, em consequência, perante despacho de arquivamento do inquérito do Ministério Público, legitimidade para se constituir assistente e requerer instrução.

E já bastante antes o STJ, em acórdão proferido em 12/07/2005, proc. 05P2535 (conselheiro Simas Santos), dgsi:
1 – No nosso ordenamento, o exercício da acção penal foi confiado a um órgão de Estado - ao Ministério Público, pela forma especificada nos referidos dispositivos do Código de Processo Penal, de acordo com a concepção de que o jus puniendi e o correlativo jus procedendi são de interesse eminentemente público.
2 – Mas não se esqueceu que para a protecção da vítima deve conferir-se-lhe voz autónoma nível do processo penal de forma a permitir-lhe uma acção conformadora do sentido da decisão final: o assistente.
3 – Do estatuto de assistente destacam-se, pois, a sua qualificação como sujeito processual, mesmo quando se trate de processos por crimes públicos e os poderes processuais alargados que lhe são conferidos, nomeadamente o direito de recurso relativamente a todos os tipos de crimes.
4 – Podem constituir-se assistentes:
– as pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito;
– qualquer pessoa em determinados crimes expressamente indicados;
– as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;
– os representantes do ofendido falecido, não renunciante, incapaz ou menor de 16 anos; e
– os ofendidos, maiores de 16 anos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
5 – Os titulares dos interesses que a lei penal tem especialmente por fim proteger quando previu e puniu a infracção e que esta ofendeu ou pôs em perigo, são as partes particularmente ofendidas, ou directamente ofendidas e que, por isso, se podem constituir acusadores.
6 – O vocábulo "especialmente" usado pela Lei, significa, pois, de modo especial, num sentido de "particular" e não "exclusivo", adoptando aquela o conceito estrito, imediato ou típico de ofendido.
7 – A legitimidade do ofendido deve ser aferida em relação ao crime específico que estiver em causa, designadamente em caso de concurso de infracções, em que se pode ser ofendido por um só dos crimes, devendo atender-se ao Código Penal, à sistemática da sua Parte Especial, e, em especial, interpretar o tipo incriminador em causa em ordem a determinar caso a caso se há uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos com essa incriminação e não confundir essa indagação com a constatação da natureza pública ou não pública do crime.
8 – Só caso a caso, e perante o tipo incriminador, se poderá afirmar, em última análise, se é admissível a constituição de assistente. E esta análise do tipo legal interessado deve ter presente que a circunstância de ser aí protegido um interesse de ordem pública não afasta, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente, pois os preceitos penais podem reconduzir-se à protecção de um ou vários bens jurídicos.
9 – O crime de falsidade de depoimento é um crime contra a realização da justiça, de actividade, mas em que o prejuízo de terceiro condiciona a moldura penal abstracta e a possibilidade de dispensa de pena, através da retratação.
14 – Assim, se num caso concreto, o agente com a falsidade de depoimento causar prejuízo aos interesses particulares de determinada pessoa, esta poderá constituir-se assistente.
É o conceito estrito de ofendido que está em causa e que o Tribunal Constitucional já antes chancelara de conformidade constitucional (decisão sumária 258/2002 e jurisprudência nela citada: Acórdãos nºs 647/98, 579/01, 76/02 e 162/02, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 41º vol. p. 423 e DR, II Série, de 15/2/02, 5/4/02 e 31/5/02, respectivamente).
Ora, lido o requerimento de abertura da instrução do assistente, em parte alguma dele resulta ter o mesmo sofrido qualquer prejuízo na acção (no caso na providência cautelar que correu sob o n.º de processo 3818/18.4T8BRG), desconhecendo-se completamente o seu desfecho.
Aliás o requerente é bem elucidativo ao situar-se “fora” de qualquer ideia de prejuízo, porquanto diz no ponto 23 (44, 48 e 49) “A desconformidade entre as declarações emitidas pela arguida e a realidade por ela conhecida e apreendida, independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja, patenteia claramente contradições entre si ….”, o que sedimenta claramente uma posição de que não se move no âmbito de qualquer prejuízo sofrido através da prestação do imputado depoimento falso, nem o sua legitimidade se pode fundar numa pretensa imagem distorcida de si dada pela arguida aquando e por via da prestação do pretenso falso depoimento.
E se assim é – como é – claramente que o requerente AA não é titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, em referência ao afirmado falso testemunho.
Do que decorre que não pode manter a qualidade de assistente.

*
Está prejudicada a apreciação das demais nulidades, aliás inexistentes (não houve preterição da prática de qualquer acto obrigatório por parte do MP) e ademais do despacho de abertura da instrução foi decidido que quanto ao crime de natureza particular cabe ao assistente deduzir acusação particular e não requerer a abertura da instrução.
3. Decisão.
Assim, tendo em conta o acima exposto e atento o disposto no artigo 308.º/3 do Código de Processo Penal, decido:
3.1. Falta de legitimidade para manter o estatuto de assistente.
Faltar ao requerente AA legitimidade, em face do requerimento de abertura da instrução que apresentou, para o apresentar com a pretensão de pronúncia da arguida BB pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º/1 e 3 do Código Penal.
Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC
Notifique.

3. Apreciação do recurso

3.1- No despacho recorrido foi considerado que o recorrente, em face do requerimento de abertura de instrução, carecia de legitimidade para manter a qualidade de assistente, com vista à pronúncia da arguida pela prática de um crime de falsidade e de testemunho p. e p. pelo artigo 360º, nºs 1 e 3 do Código Penal.  
Relativamente à constituição de assistente quanto esteja em causa o crime de falsidade de testemunho, a jurisprudência tem-se dividido, como aliás decorre do despacho recorrido e das alegações do recurso apresentado, onde são elencados acórdãos de sentido oposto, sendo, contudo, largamente maioritário, como veremos, o entendimento de que a pessoa prejudicada com a falsidade de testemunho tem legitimidade para se constituir assistente.  

Vejamos a questão.
3.1.1- Antes, porém, importa aqui reafirmar, conforme foi referido no despacho recorrido, que a circunstância de o recorrente ter sido admitido, por forma tabelar e genérica, a intervir nos autos na qualidade de assistente, em momento anterior ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, não faz caso julgado formal, podendo a questão ser decidida até à decisão final. Relativamente a este ponto, a jurisprudência é consensual. Assim, especificamente quanto à constituição como assistente, vide v.g., os acórdãos dos TRP de 18/11/2020, proc. 3465/18.0T9MTS.P1; TRL de 29/04/2014, proc. 142/12.0TELSB.L1-3; TRG, de 02/05/2016, proc. 52/14.6T9VPA-A.G1; TRC de 29/05/2013, proc. 762/10.7TAFIG.C1, citados no despacho recorrido, disponíveis em www.dgsi.pt.
Como tivemos ocasião de afirmar no Ac. RG de 26.06.2023, processo nº 300/21.6GBVNF.G1[3], disponível em www.dgsi.pt, relatado pelo aqui relator, relativamente à questão do caso julgado formal do despacho liminar, meramente tabelar e genérico de admissão do requerimento de abertura de instrução “A propósito do caso julgado formal resultante de decisões tabelares ou genéricas o STJ, relativamente a questões diversas daquela que está aqui em apreciação, uniformizou jurisprudência no sentido de que «A decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento», cfr. AUJ 2/95 de 16-05-1995, DR 135/95 Série I-A, de 12-06-1995; bem assim que  «O despacho genérico ou tabelar de admissão de impugnação de decisão da autoridade administrativa, proferido ao abrigo do disposto no artigo 63.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, não adquire força de caso julgado formal», cfr. AUJ n.º 5/2019, de 04-07-2019, DR 185/2019, Série I de 2019-09-26,      
(…)
Como é sabido, no Código de Processo Penal não existe qualquer norma relativa ao caso julgado. Por isso, estamos perante uma lacuna, pelo que de acordo com o disposto no seu artigo 4º, importa para o efeito recorrer às normas do Código de Processo Civil, o qual no seu artigo 595º, nº 3 estabelece que “No caso previsto na alínea a) do n.º 1, o despacho constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas”. Em face do teor desta norma, em processo civil, é entendimento pacífico segundo o qual o caso julgado apenas se forma relativamente a questões ou exceções dilatórias que tenham sido concretamente apreciadas e nos limites dessa apreciação, não valendo como tal a mera declaração genérica sobre a ausência de alguma ou da generalidade das exceções dilatórias.
(…)
Aliás, o entendimento que aqui defendemos, segundo o qual por a decisão ser tabelar ou genérica não ocorre caso julgado formal, é o que melhor se compatibiliza com a regra do dever de fundamentação dos atos decisórios contida no artigo 97.º n.º 5, do CPP, enquanto consagração do disposto no artigo 205.º n.º 1, da CRP, e no artigo 6.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Na verdade, como se salienta numa das declarações de voto do citado AUJ n.º 5/2019, “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem [«dos direitos humanos»] vem interpretando o artigo 6.º da «Convenção para a protecção dos Direitos do Homem [«dos direitos humanos»] e das liberdades fundamentais» no sentido de que a fundamentação das decisões dos tribunais, constituindo um princípio de boa administração da justiça num Estado de Direito, representa um dos aspectos do direito a um processo equitativo protegido por esta disposição, a qual impõe, assim, o dever de os tribunais motivarem adequadamente as suas decisões, de acordo com a sua natureza (por todos, o acórdão de 9 de Julho de 2007, no caso Tatishvili c. Rússia, n.º 1509/02)”, sublinhado nosso.”

3.1.2- No que concerne à constituição como assistente por parte do recorrente, relativamente ao crime de falsidade de testemunho, decorre que segundo o artigo 68º do C.P. Penal:
“1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:
a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;
b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;
c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime;
d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, ou, na ausência dos demais, a entidade ou instituição com responsabilidades de protecção, tutelares ou educativas, quando o mesmo tenha sido judicialmente confiado à sua responsabilidade ou guarda, salvo se alguma delas houver auxiliado ou comparticipado no crime;
e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, recebimento ou oferta indevidos de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.”
No caso em apreço, em que está em causa o crime público de falsidade de testemunho, porque este crime não se encontra previsto na alínea e) do nº1 do artigo 68º do CPP, o recorrente só terá legitimidade para se constitui como assistente se for considerado ofendido nos termos do disposto na alínea a) do nº 1 do referido preceito legal. Ou seja, se for considerado “titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.
Mas, como é sabido, ofendido e lesado constituem conceitos legais distintos, pois que conforme decorre do nº 1 do artigo 74º do CPP, “lesado é “a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime ainda que não se tenha constituído ou não possa constituir-se assistente”.
Enquanto o ofendido é apenas o que for titular dos interesses que a lei penal especialmente quis proteger com a incriminação, “…o lesado é toda e qualquer pessoa que, segundo as normas do direito civil, tenha sido prejudicada em interesses seus juridicamente protegidos, ou seja, todos aqueles que sofreram danos e que, segundo as regras do direito processual civil, tiverem legitimidade para formular o pedido de indemnização. O lesado é um conceito lato ou extensivo do ofendido e que abrange todas as pessoas civilmente lesadas pela infração pena, Cfr. (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal , Universidade Católica, 2017, vol. I, pág. 361).
De forma que, a resposta à questão de saber se o aqui recorrente tem a qualidade de ofendido quanto ao imputado crime de falsidade de testemunho, depende da identificação do bem jurídico protegido por este tipo legal de crime. 
Contudo, como bem se refere no AFJ nº 10/2010, in DR nº242, I Série A, de 16-10-2010, “…a identificação do bem jurídico de um crime depende essencialmente da análise rigorosa dos seus elementos típicos, e não da sua inserção sistemática ou do seu «nome», elementos que deverão também ser considerados, mas não são decisivos. Mesmo os crimes contra o Estado ou contra a sociedade podem «esconder» algum ou alguns interesses particulares suficientemente valiosos para a lei lhe reconhecer protecção directa. A defesa do interesse público ou social constitui naturalmente o objectivo primeiro deste tipo de crimes. Mas, a par dele, outros valores, de natureza privada, podem coexistir, amparando -se na tutela pública, mas com suficiente autonomia para se afirmarem como interessados específica e autonomamente, não apenas reflexamente, na punição da conduta típica.
A própria oposição público/privado se apresenta por vezes incapaz de caracterizar com precisão a natureza de interesses complexos que recebem a tutela penal.
Em síntese: sempre que for identificado um interesse determinado, corporizado num concreto portador, que não se confunda com o interesse (típico do lesado) no simples ressarcimento do dano sofrido, nem com o interesse geral na mera vigência das normas penais (as chamadas «expectativas comunitárias»), estaremos perante um bem jurídico protegido.
Assim, só depois da análise concreta, caso a caso, da tipicidade da incriminação se pode chegar à identificação do ou dos bens jurídicos protegidos e consequentemente dos seus titulares.”
Ora, “o bem jurídico protegido pelo crime de falsidade de testemunho consiste essencialmente na realização da justiça, enquanto função do Estado. Quer dizer: o interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão”, cfr. A. Medina de Seiça,   Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, Tomo III, pág. 460 e segs.. No mesmo sentido, vide Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2008, UCE, pág. 846.
Como foi salientado no Ac. RL de 17.01.2017, processo 224/16.9T9LRS-A.L1-5, disponível em www.dgsi.pt “O que está em causa não é, primordialmente, a Justiça em sentido abstracto e absoluto, mas antes, de forma imediata, a justiça do caso concreto, meio necessário para que aquela seja também conseguida, passando pela definição dos direitos e interesses das partes do processo, com base em declarações e depoimentos verdadeiros.
Para que o respectivo crime de falso testemunho se consuma não é exigível a verificação de qualquer dano para a descoberta da verdade ou para a justiça concreta do caso, nem sequer a adequação da conduta para esse efeito, sendo ainda irrelevante apurar se o meio de prova viciado foi ou não determinante para a decisão.
Todavia, se for alegado e demonstrado que o meio de prova viciado foi relevante para a decisão, então, a parte processual contra a qual esse meio fez prova não pode deixar de considerar-se prejudicada com a declaração falsa produzida e, nessa medida, é aquela pessoa portadora de um interesse relevante, inerente ao bem jurídico protegido, cuja salvaguarda importa assegurar, sob pena de a injustiça decorrente da declaração falsa persistir, tendo de lhe ser dada oportunidade de demonstrar que o seu interesse foi gravemente lesado, não tendo sido feita a justiça que lhe era devida no processo em causa.”

O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a atribuir legitimidade aos particulares, prejudicados por certos ilícitos, para se constituírem assistentes, apesar da natureza eminentemente pública do bem jurídico protegido, como sucedeu nos seguintes casos:

- Acórdão n.º 1/2003, de 16/01/2003, DR 49 SÉRIE I-A, de 2003-02-27, segundo o qual “No procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente”.
- Acórdão n.º 8/2006, DR série I-A de 28/11/2006, segundo o qual “No crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º do Código Penal, o caluniado tem legitimidade para se constituir assistente no procedimento criminal instaurado contra o caluniador.”.
- Acórdão n.º 10/2010, D.R. n.º 242, Série I de 2010-12-16, nos termos do qual “Em processo por crime de desobediência qualificada decorrente de violação de providência cautelar, previsto e punido pelos artigos 391º do Código de Processo Civil e 348º, nº 2, do Código Penal, o requerente da providência tem legitimidade para se constituir assistente.”
No que se refere especificamente ao crime aqui em causa, na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque[4] e Augusto Silva Dias[5] defendem que tem legitimidade para se constituir assistente a pessoa prejudicada pelo crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução.
A partir do acórdão do STJ de 12/07/2005, proc. 05P2535, disponível em www.dgsi.pt, a jurisprudência largamente maioritária, na qual nos incluímos, é no sentido de que a pessoa prejudicada com a falsidade de testemunho tem legitimidade para se constituir assistente. Neste sentido, para além do acima citado Ac. RL de 17.01.2017, vide, v.g., os seguintes arestos, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
-  Ac. STJ de 12/07/2005, proc. 05P2535:
“7 – A legitimidade do ofendido deve ser aferida em relação ao crime específico que estiver em causa, designadamente em caso de concurso de infracções, em que se pode ser ofendido por um só dos crimes, devendo atender-se ao Código Penal, à sistemática da sua Parte Especial, e, em especial, interpretar o tipo incriminador em causa em ordem a determinar caso a caso se há uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos com essa incriminação e não confundir essa indagação com a constatação da natureza pública ou não pública do crime.
8 – Só caso a caso, e perante o tipo incriminador, se poderá afirmar, em última análise, se é admissível a constituição de assistente. E esta análise do tipo legal interessado deve ter presente que a circunstância de ser aí protegido um interesse de ordem pública não afasta, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente, pois os preceitos penais podem reconduzir-se à protecção de um ou vários bens jurídicos.
9 – O crime de falsidade de depoimento é um crime contra a realização da justiça, de actividade, mas em que o prejuízo de terceiro condiciona a moldura penal abstracta e a possibilidade de dispensa de pena, através da retratação.
14 – Assim, se num caso concreto, o agente com a falsidade de depoimento causar prejuízo aos interesses particulares de determinada pessoa, esta poderá constituir-se assistente.”.
- Ac. RC de 07/06/2016, proc. 59/14.3TAPBL.C1:
“A pessoa que haja sofrido prejuízos com a falsidade de depoimento ou declaração deve-se considerar ofendida, porque titular de interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, tendo, em consequência, perante despacho de arquivamento do inquérito do Ministério Público, legitimidade para se constituir assistente e requerer instrução.”.
- Ac. RG, de 08/02/2016, proc. 72/14.0TAPTL-A.G1:
“I- No crime de falso testemunho, o bem jurídico protegido consiste essencialmente na realização ou a administração da justiça como função do Estado. Contudo, o legislador consagrou uma significativa agravação da penas em função do resultado do crime e a não punibilidade por retratação depende da inexistência de prejuízo para terceiro, o que permite afirmar que a esfera de protecção deste tipo de crime abrange também outros bens jurídicos e interesses relevantes, ainda que particulares.
II-Detém legitimidade para a constituição de assistente o requerente de instrução que invoca e pretende ver indiciado que sofreu um prejuízo patrimonial directamente decorrente do cometimento pelos dois denunciados de falso testemunho em audiência de julgamento.”.
- Ac. RP de 16.03.2016, processo 16943/13.9TDPRT-A.P1:
“Tem legitimidade para se constituir assistente a pessoa prejudicada pelos crimes de falsidade de depoimento ou declaração e de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, dos art.º 359 e 360.º, do Cód. Penal.”.
- Ac. RL de 29/03/2022, proc. 7127/19.3T9LSB-5i:
“– O crime de falsidade de testemunho, tipo criminal integrado no capítulo dos crimes contra a realização da justiça, é um crime público em relação ao qual o interesse essencialmente protegido é da titularidade do próprio Estado.
–Contudo, se existe esse interesse geral do Estado, de realização da justiça, também existe o interesse particular das partes de cada processo em ver acolhida uma versão que corresponda à verdade material, para o que é essencial a verdade dos testemunhos de quem é chamado a depor.
–Ora, um testemunho falso, pode conduzir a uma decisão injusta com reflexos negativos na esfera jurídico de uma parte, entendendo-se que, nesse caso, esse particular é titular de interesse que a lei visa proteger com o crime de falsidade de testemunho, o que lhe garante legitimidade para intervir nos autos como assistente, nos termos do art.68, nº1, al.a, do CPP.”
Revertendo  tudo o que ficou dito supra para o caso em apreço, decorre que o recorrente não pode manter a qualidade de assistente, admitida por despacho tabelar e genérico, do qual não foi interposto recurso, mas que não forma caso julgado formal, podendo a questão ser conhecida até à decisão final, pois que nenhuma censura nos merece o despacho recorrido, designadamente, na parte em que refere “… lido o requerimento de abertura da instrução do assistente, em parte alguma dele resulta ter o mesmo sofrido qualquer prejuízo na acção (no caso na providência cautelar que correu sob o n.º de processo 3818/18.4T8BRG) (….)
Aliás o requerente é bem elucidativo ao situar-se “fora” de qualquer ideia de prejuízo, porquanto diz no ponto 23 (44, 48 e 49) “A desconformidade entre as declarações emitidas pela arguida e a realidade por ela conhecida e apreendida, independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja, patenteia claramente contradições entre si ….”, o que sedimenta claramente uma posição de que não se move no âmbito de qualquer prejuízo sofrido através da prestação do imputado depoimento falso, nem o sua legitimidade se pode fundar numa pretensa imagem distorcida de si dada pela arguida aquando e por via da prestação do pretenso falso depoimento.
E se assim é – como é – claramente que o requerente AA não é titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, em referência ao afirmado falso testemunho.
Do que decorre que não pode manter a qualidade de assistente.”.
Na verdade, no caso vertente o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, no qual concluiu no sentido de ter sido recolhida prova bastante da não verificação do crime de falsidade de testemunho.  
Apesar disso, lido e relido o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo aqui recorrente na sequência do sobredito despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, tal como referido no despacho recorrido, não se vislumbra a alegação de qualquer prejuízo, o qual, a verificar-se, teria de resultar direta e imediatamente da alegada falsidade do testemunho da ora arguida.  
Nesta conformidade, na ausência de alegação do referido prejuízo, o recorrente não pode ser considerado ofendido e, consequentemente, também não lhe pode ser atribuída a qualidade de assistente quanto ao imputado crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360º, nºs 1 e 3 do C. Penal.  
Por último, e ao contrário do defendido pelo recorrente, importa dizer que a posição aqui defendida em nada colide com o disposto no artigo 20º da CRP, sendo que o recorrente não concretiza em que medida este preceito foi violado, quedando-se por uma alegação genérica.
Em suma, o recurso improcede totalmente.

III- DECISÃO  

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso e consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 Ucs,– artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, ambos do C.P.P., artigo 8º, nº 9 do R.C.P. e tabela III anexa a este último diploma legal.
Texto integralmente elaborado pelo seu relator e revisto pelos seus signatários – artigo 94º, nº 2 do CPP, encontrando-se assinado eletronicamente na 1ª página, nos termos do disposto no artigo 19º da Portaria nº 280/2013, de 26.08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20.09.
Notifique.
Guimarães, 19.03.2024

Os Juízes Desembargadores
Armando Azevedo (Relator)
Paulo Almeida Cunha (1º Adjunto)
Cristina Xavier da Fonseca (2º Adjunto)
  
 
[1] Nas transcrições de peças processuais irá reproduzir-se a ortografia segundo o texto original, sem prejuízo da correção de erros ou lapsos manifestos e da alteração da formatação do texto da responsabilidade do relator.
[2] De entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr.  Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995, as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP, irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P..
[3]  No mesmo sentido, vide, v.g. o Ac. RP de 24.05.2023, processo nº 7537/17.0T9PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 2ª edição, pág. 204 e segs.
[5] A tutela do ofendido e a posição do assistente no processo penal português, in Maria Fernanda Palma (coordenadora) Jornada de Direito processual Penal e Direitos Fundamentais, Coimbra, Almedina, 2004, página 62-63.