PEDIDO CIVIL
RECURSO
DEMANDANTE
LEGITIMIDADE
Sumário


I- O recurso restrito ao pedido de indemnização civil não pode, em nenhuma circunstância, ferir o caso julgado que se formou em relação à responsabilidade criminal, pelo que não é admissível a impugnação que pretenda colocar em causa matéria que suporta/afasta a responsabilidade criminal.
II- Assim, no caso de absolvição criminal o recurso interposto pelo demandante civil só pode ter por objecto matéria que não contrarie o que ficou definitivamente decidido na sentença recorrida em matéria penal, pelo que só dispõe de legitimidade para sindicar a decisão da matéria de facto que não perturbe a decisão de facto levada sobre a integração do tipo-de-ilícito e a culpabilidade penal

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I - Relatório

Decisão recorrida
No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 476/20...., do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo – Juízo Local Criminal de Ponte de Lima, foi proferida sentença, no dia 15 de junho de 2023, que absolveu o arguido AA, da prática de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal, e de um crime de ameaça agravado, previsto e punido pelos artigos 153.º e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
Foi também o arguido absolvido da totalidade do pedido de indemnização civil contra ele formulado por BB, no montante global de € 5.500,oo.

*
Recurso apresentado

Inconformado com tal decisão, a demandante civil veio interpor o presente recurso e após o motivar, apresentou as seguintes conclusões e petitório, que se reproduzem:

“- I -
O presente recurso tem por objecto toda a matéria de facto e de direito, da sentença proferida nos presentes autos, respeitante à absolvição do arguido, AA, pela prática, como autor material, dos crimes de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal, e de um crime de ameaça agravado, previsto e punido pelos artigos 153.º e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal; bem como, da decisão de julgar totalmente improcedente a ação cível, e, em consequência, absolver o demandado civil, AA, do pedido, nomeadamente no que concerne: à impugnação da matéria de facto dada como provada e não provada, por erro de julgamento, e por erro na aplicação do direito que sustenta a decisão, por não se mostrar consentâneo com a prova produzida em julgamento; e o erro notório na apreciação da prova.
- II -
Para prova da factualidade julgada como provada, o julgador estribou a sua convicção, no depoimento apresentado pelo Arguido que negou a prática dos factos.
- III -
O Tribunal “a quo” não deu qualquer relevância aos documentos juntos aos autos, nomeadamente, a participação criminal de 19 de Agosto de 2020; o auto de notícia de 2 de Julho de 2020, com fotografias de terreno calcado e mimosas quebradas, as fotografias de fls. 78, 79, 168 a 174 e a escritura de doação e caderneta predial de fls. 137 a 147.
- IV -
O Tribunal “a quo” também não deu qualquer relevância às declarações da Assistente, BB.
- V -
Bem como não valorou o depoimento das testemunhas CC, DD e EE.
- VI -
Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo julgou incorretamente os referidos factos, porquanto em relação aos mesmos deveria ter sido feita prova.
- VII -
Pelo que, os factos das alíneas A), B), C), D), E), F), G), H), I), J), K) e L) dados como não provados na sentença recorrida, foram incorretamente julgados como não provados, devendo ter sido dados como provados.
- VIII -
O Tribunal “a quo” ao dar como não provados os factos das referidas alíneas nas versões que constam da fundamentação da sentença, violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do CPP.
- IX -
Assim, a matéria de facto dada como provada, no ponto supra referido, e dada como não provada nas alíneas acima citadas, foi incorretamente julgada, pelo que, a prova produzida nos presentes autos impunha ao Tribunal “a quo” uma decisão oposta à que resulta da decisão recorrida.
- X -
Resulta de forma clara e inequívoca da prova gravada e produzida, decisão diversa da recorrida relativamente à absolvição do arguido, que deveria ter sido, assim, condenado pelos crimes pelos quais estava acusado – um crimes de dano e um crime de ameaça agravado.
- XI -
Pelo que se impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, pelos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados as alíneas A), B), C), D), E), F), G), H), I), J), K) e L) dos factos não provados na sentença recorrida.
- XII -
Da análise de toda a prova produzida em audiência de julgamento logo se constata a sua fragilidade e inconsistência, reveladoras de que o Tribunal a quo não apreciou crítica e racionalmente as provas, de acordo com as regras da experiência, da lógica e do senso comum.
- XIII -
Saliente-se o facto de o tribunal a quo, na formação da sua convicção, ter dado especial relevância ao depoimento do arguido, denota uma postura claramente tendenciosa e contexto inflacionado, o que obrigava a uma criteriosa análise dos demais meios de prova (objetivos), por forma a tentar captar, de entre os documentos carreados e os relatos da Assistente e das testemunhas aquilo que, com a segurança que se impõe, pôde dar-se como assente.
Sem prescindir,
- XIV –
Salvo o devido respeito por opinião diversa, face ao comportamento do arguido nos termos supra expostos, não pode nem deve o tribunal ”a quo” dizer que “Acreditou-se, designadamente, pelo detalhe do depoimento da assistente nesta parte, que o arguido tenha proferido a expressão “ainda hoje vais dormir ao cemitério”. Sucede que a referida expressão surgiu num contexto de conflito duradouro e como reacção imediata a uma ordem por parte da assistente (para que cessasse a actividade que levava a cabo, actividade que, de acordo com a descrição que da mesma fez a própria assistente, se reconduziria à limpeza do seu prédio), que logo em seguida se muniu de uma pedra, logrando o recuo do arguido. Por essa razão, não se deu como provado que ao proferir a referida expressão, no contexto em que o fez, o arguido tivesse intenção de provocar receio e intranquilidade na assistente (e não apenas verbalizar um desabafo em ambiente de contenda).” Mas, como aceitar que, provando-se, como se provou, que o arguido proferiu a expressão “Ainda hoje vais dormir ao cemitério!”, se conclua que tal expressão não se afigura apta a causar medo/inquietação na ofendida?
- XV -
Acresce, verifica-se ainda uma contradição entre o facto provado em 5), “Alarmada pelo barulho do trator, a assistente logo se dirigiu ao seu prédio e, perante os seus protestos de teor não concretamente apurado, o arguido dirigiu-se-lhe, dizendo: “Ainda hoje vais dormir ao cemitério!” e a alínea D) dos factos não provados: “D. Que o arguido tivesse intenção de, com a expressão proferida, provocar receio e intranquilidade na assistente.”
- XVI -
Assim, salvo o devido respeito, a sentença de que se recorre, para além de contradições claras entre a matéria provada e não provada, decide em clara contradição com a matéria provada, havendo erro na apreciação da prova, que exige uma decisão de condenação do arguido pelos crimes de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal, e de um crime de ameaça agravado, previsto e punido pelos artigos 153.º e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
- XVII -
O mesmo se dizendo relativamente ao pedido de indemnização cível, que deverá ser julgado procedente, por provado.

NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ A DOUTA SENTENÇA SER REVOGADA, SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE CONDENE O ARGUIDO AA PELOS CRIMES DE CRIME DANO, P. E P. PELO ARTIGO 212.º, N.º 1 DO CÓDIGO PENAL, E DE UM CRIME DE AMEAÇA AGRAVADO, P. E P. PELOS ARTIGOS 153.º E 155.º, N.º 1, AL. A), DO CÓDIGO PENAL, E AINDA NO PAGAMENTO DE UMA INDEMNIZAÇÃO PELOS DANOS PATRIMONIAIS E NÃO PATRIMONIAIS SOFRIDOS, NO MONTANTE RECLAMADO NO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL FORMULADO, TUDO ACRESCIDO DE JUROS À TAXA LEGAL DESDE A NOTIFICAÇÃO DO MENCIONADO PEDIDO.
TERMOS EM QUE FARÃO, INTEIRA E SÃ JUSTIÇA”.
*
Resposta ao recurso por parte do Ministério Público.

Na primeira instância, o Ministério Público, apresentou resposta ao recurso pugnando pela improcedência do mesmo.
Apresenta as seguintes conclusões, que se reproduzem:
“I. O recurso interposto pela Recorrente BB apenas foi admitido na parte cível, uma vez que a Recorrente não é assistente nos autos, não tendo legitimidade para recorrer da parte crime, (cfr. artigo 401.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal), pelo que não cabe ao Ministério Público direito de resposta, porquanto não é parte na ação cível enxertada no processo penal.
II. Caso assim não se entenda, sempre se dirá que, considerando a decisão de absolvição do arguido pela prática dos ilícitos criminais pelos quais vinha acusado, não há lugar à condenação do mesmo no pedido de indemnização cível formulado, por não se verificarem os pressupostos da responsabilidade civil, consagrados no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil.
Nestes termos e nos de Direito por V. Ex.as doutamente supridos, deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a douta Sentença recorrida na íntegra e nos seus termos, assim se fazendo INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!”.
*
Resposta ao recurso por parte do arguido

Apresenta as seguintes conclusões, que também se reproduzem:
“1.ª - O Recorrido entende que foram corretamente julgados os factos descritos no itens/pontos 1 a 11 dos factos provados; e não violou a decisão recorrida na apreciação da matéria de facto dos referidos itens/pontos, quaisquer preceitos legais pelo que, nenhuma censura merece a Douta Sentença no que a esses itens diz respeito.
2.ª - O recurso interposto pela Recorrente BB apenas foi admitido na parte cível, uma vez que a Recorrente não é assistente nos autos, não tendo legitimidade para recorrer da parte crime, (cfr. Artigo 401.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal).
3.ª - Considerando a decisão de absolvição do arguido pela prática dos ilícitos criminais pelos quais vinha acusado, não há lugar à condenação do mesmo no pedido de indemnização cível formulado, por não se verificarem os pressupostos da responsabilidade civil, consagrados no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil.
NESTES TERMOS, e nos mais de direito, deve ser julgado improcedente o recurso interposto pela Recorrente BB, nos termos das conclusões supra, mantendo-se a Douta Sentença recorrida, nos seus precisos termos, sem qualquer alteração, com o que se fará a inteira JUSTIÇA!”.
***
Tramitação subsequente

Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o processo foi com vista ao Exmº. Senhor Procurador-Geral Adjunto, para emissão de parecer.
*
Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.
*
Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
*
II – Fundamentação.

Cumpre apreciar o objeto do recurso.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas essas questões, as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.
Há que começar por apreciar a questão, de conhecimento oficioso, da legitimidade da demandante civil para interpor o recurso quanto à parte civil, dado que relativamente à parte crime, o recurso já foi rejeitado por despacho de 1 de outubro de 2023, por a mesma não deter a qualidade de assistente[1].

O tribunal “a quo” apreciando o mérito da questão, considerou como não provado que tivesse sido ele a cortar as árvores pertencentes à BB, que tivesse agido com a intenção concretizada de destruir as árvores, com um valor de € 3.000,00 e que se encontravam implantadas no terreno desta.
Do mesmo modo deu como não provado que o arguido tivesse intenção de provocar na BB, receio e intranquilidade.
Absolveu-o assim quer da prática do crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal, quer do crime de ameaça agravado, previsto e punido pelos artigos 153.º e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, pelos quais fora acusado pelo Ministério Público.
Consequentemente também o absolveu da totalidade do pedido de indemnização civil, que se fundava na prática desses mesmos ilícitos.
*
Face ao disposto no artigo 401.º nº1 al. c) do CPP têm legitimidade para recorrer, as partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas.
A questão que se coloca é a de aferir do âmbito que pode revestir esse recurso.
Entendemos que o recurso só pode ter objeto matéria que não contrarie o que ficou definitivamente decidido na sentença recorrida em matéria penal, pelo que só dispõem de uma tal legitimidade para sindicar a decisão da matéria de facto que não perturbe a decisão de facto levada sobre a integração do tipo-de-ilícito e a culpabilidade penal.[2]
A impugnação dos factos julgados não provados em primeira instância sob alegação de que deviam ter sido julgados provados, no ponto em que não pode cindir-se a decisão atinente à matéria da responsabilidade civil daquela decisão atinente à responsabilidade penal, está para fora do alcance da legitimidade impugnatória (recursiva) que a lei concede aos demandantes civis que não sejam paralelamente também assistentes.
Conforme se salienta no Ac. do S.T.J. de 24 de fevereiro de 2010, procº n.º 151/99.2PBCLD. a admitir-se a possibilidade de uma nova discussão, estar-se-ia a abrir caminho para uma revisão (obviamente fora de um quadro de recurso extraordinário) e para uma redefinição de matéria factual assente no processo.
Adiantando-se ainda com todo o acerto que “num tal quadro com uma decisão com uma certa configuração factual – no plano criminal – definitiva, inatacável, inatingível, insindicável, intocável, e em simultâneo, concomitantemente – porque estranha razão? – com uma outra diversa descrição no sector da responsabilidade civil, o que manifestamente não pode ser, por se revestir de uma contraditio in terminis uma diversa solução factual no âmbito de um mesmo quadro factual”.
Por isso se diz que o demandante cível tem legitimidade para recorrer de facto na estrita medida em que esses sejam essenciais à eventual procedência do pedido cível, isto é, aos que digam respeito aos pressupostos de responsabilidade civil, mas que não colidam com a possibilidade de alterar a factualidade central penal, ao menos no que diz respeito à integração no tipo de ilícito e à culpa penal, faltando assim legitimidade para impugnar os factos com reflexo na tipicidade, ilicitude e culpa penal se mantiver a simples qualidade de demandante civil e se, simultaneamente, não se constituir assistente, não sendo assim indiferente o facto da demandante civil não ser concomitantemente assistente [3].
Também neste sentido o acórdão desta Relação de Guimarães de 7 de julho de 2011, procº 296/04.9TAGMR, no qual de uma forma cristalina entende que em recurso restrito ao pedido de indemnização civil, o demandante cível não tem legitimidade para recorrer da matéria de facto que contenda com a factualidade relativa aos elementos típicos do crime, quando o arguido seja absolvido do crime que lhe vem imputado e, em consequência, do pedido de indemnização civil,
À parte civil está reservada a faculdade de recorrer apenas relativamente a aspectos que se prendam com a acção civil, como sejam os prejuízos decorrentes do facto ilícito e o quantum indemnizatório. Mesmo que indirectamente, o recurso da parte cível não pode pôr em causa a matéria penal da sentença, sob pena da sua intervenção processual beneficiar de uma amplitude idêntica à do assistente e que o C.P.Penal não lhe quis atribuir.
Por conseguinte, o recurso restrito ao pedido de indemnização civil não pode, em nenhuma circunstância, ferir o caso julgado que se formou em relação à responsabilidade criminal, pelo que não é admissível a impugnação que pretenda colocar em causa matéria que suporta/afasta a responsabilidade criminal.
No mesmo sentido, o acórdão também desta Relação de Guimarães, de 21 de setembro de 2015, procº 108/14...., ao esclarecer que o ofendido não pode utilizar o recurso da parte civil para indirectamente demonstrar o seu desacordo relativamente à parte criminal da sentença.
Temos deste modo que, tendo transitado em julgado a parte que absolveu o arguido da prática dos crimes de que vinha acusado, não pode o mero demandante civil, vir impugnar essa matéria que não ficou provada, relativa à prática de tais ilícitos, sendo o pedido de indemnização civil, inexoravelmente conexo.
Carece assim a demandante de legitimidade para interpor o recurso, que é deste modo rejeitado.
Fica assim prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pela demandante civil no seu douto recurso.
*
III – Decisão.

Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em rejeitar o recurso interposto pela demandante civil, mantendo-se assim na íntegra a sentença recorrida.
*
Custas pela recorrente, requerente cível, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça devida.
*
Notifique.
                                                                         
Guimarães, 19 de março de 2024.
(Decisão elaborada pelo relator com recurso a meios informáticos e integralmente revista pelos subscritores, que assinam digitalmente).

Os Juízes Desembargadores,
Pedro Freitas Pinto (Relator)
Paulo Almeida Cunha (1º Adjunto)
Bráulio Martins   (2º Adjunto)        


[1] Junto ao suporte físico do processo a fls. 276.rejeitar
[2] Ac. Relação de Coimbra de 5 de maio de 2015, procº 760/11.3GEALR, publicado como os demais citados in www.dgsi.pt.
[3] Vd. Ac. da Relação de Évora de 12 de julho de 2018, procº 371/13.9GBSSB