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LETRA DE CÂMBIO
VALIDADE
REQUISITOS
IMPOSTO DE SELO
Sumário
I - Não figura nos requisitos a que a livrança deve obedecer a exigência de que o valor nela aposto deva ser expresso em moeda em curso no momento da emissão. II - As simples formalidades de carácter fiscal, como o imposto de selo, não afectam a eficácia da livrança enquanto título de crédito.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
I - Relatório
B..... deduziu embargos de executado, por apenso à execução para pagamento de quantia certa que lhe move Banco....., SA, alegando, em resumo, que:
A livrança dada à execução não obedece aos requisitos legalmente estabelecidos, pelo que não pode valer como título executivo;
Na data da emissão da referida livrança, o escudo, bem como os títulos de crédito com valores inscritos naquela moeda, já não tinham curso legal;
Foi alterado o símbolo representativo da moeda inscrita no título de crédito, tendo a embargada ao adulterar o símbolo da moeda inscrita no título, substituindo o símbolo de escudos pelo símbolo de euros, inutilizado a própria livrança;
A livrança em causa também não pode ser considerada como documento particular de reconhecimento de divida, dado que no requerimento inicial da execução a embargada não invocou a obrigação subjacente à emissão da livrança, desconhecendo o embargante qual o negócio subjacente à mesma, bem como se a subscritora da livrança deve qualquer quantia à embargada.
Conclui que os embargos devem ser julgados procedentes, declarando-se inexistente o título dado à execução e absolvendo-se o embargante do pedido formulado na execução.
Notificada a embargada contestou, defendendo a improcedência dos deduzidos embargos.
No saneador foram os embargos julgados improcedentes e condenou-se o embargante na multa de 5 UC, como litigante de má fé.
Inconformado o embargante interpôs o presente recurso de apelação, tendo na sua alegação concluído, em síntese, que:
- O modelo uniforme de livrança é de utilização obrigatória em Portugal, sendo que o modelo de livrança que serve de base à execução já não tem curso legal no país;
- A embargada com o intuito de validar a livrança que tinha em mãos, rasurou o símbolo representativo do escudo que nele estava inscrito e, em sua substituição, apôs o símbolo do euro, moeda que se encontrava em curso no momento da emissão da livrança;
- A substituição do símbolo do escudo pelo símbolo do euro consubstancia-se numa clara violação da forma legalmente prevista para o negócio jurídico em apreço e não numa mera alteração do texto da livrança;
- Está vedado à embargada invocar nos presentes autos a relação material subjacente ao título de crédito por tal implicar uma alteração da causa de pedir;
- Ao adulterar os dizeres constantes do impresso de livrança, ao apresentar a livrança a pagamento e ao propor a presente acção executiva, a embargada cometeu um crime de passagem de moeda falsa, devendo ser mandadas extrair certidões para instauração do respectivo processo crime;
- A condenação do embargante como litigante de má fé, sem previamente ter sido objecto de discussão entre as partes e precedida de contraditório, viola o disposto no art. 3º, n.º 3, do CPC;
- Acresce que o seu comportamento processual não se enquadra em nenhuma das alíneas do art. 456º do CPC.
Conclui que deve ser revogada a decisão recorrida por violar o disposto nos artigos 30º do Código do Imposto de Selo, 220º e 364º do Código Civil, 3º, n.º 3 e 46º, al. c), do Cód. de processo Civil, 266º e 267º do Cód. Penal e 242º, do Cód. de Processo Penal.
Sabido que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 684º, n.º 3, e 690º, n.º 1, do C.P.C.), as únicas questões a decidir consistem, no essencial, em saber se a livrança dada à execução constitui título executivo e se foi violado o contraditório em relação à condenação do embargante como litigante de má fé.
II – Fundamentos
1. De facto
A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:
1. A exequente/embargada é portadora de uma livrança subscrita pela sociedade D....., Lda da qual consta o carimbo da firma dessa sociedade com a menção de gerência e duas assinaturas dos gerentes daquela sociedade, constando da mesma e sob a expressão “dou o meu aval à Empresa” subscritora, a assinatura do embargante, tendo como data de emissão 23-07-02 e no local destinado à importância (em escudos) é mencionado em números a quantia de 27.857,44 €, à qual se faz referência no quantitativo em extenso, apresentando como data de vencimento o dia 12/08/2002.
2. Foi celebrado em 14/06/2000, entre a sociedade D....., Lda e a embargada o contrato constante do escrito junto a folhas 23 a 25, subscrito pelo embargante enquanto “avalista” bem como na qualidade de gerente da sociedade D....., Lda., mediante o qual a embargada concedeu a esta um financiamento de 6.400.000$00 para aquisição de uma viatura, a reembolsar em 48 prestações mensais de 156.986$00, cada uma.
Está ainda assente através do documento junto a folhas 23 a 25 que:
3. A livrança dada à execução foi assinada em branco para garantir o pagamento do capital emprestado, juros e encargos decorrentes do referido financiamento, tendo a embargada sido autorizada a completar o seu preenchimento em caso de não pagamento das acordadas prestações mensais.
2. De direito
Defende o embargante que a livrança dada à execução não obedece aos requisitos exigidos para poder valer como titulo de crédito, alegando que em face da alteração do Código do Imposto de Selo que estabeleceu os novos modelos de letras e livranças, em vigor à data da emissão e vencimento da livrança em causa, o escudo, bem como os títulos de crédito inscritos naquela moeda já não se encontravam em circulação, não podendo ser utilizados como títulos de crédito.
Sustenta ainda que ao rasurar a livrança, alterando o símbolo da moeda nela impresso (escudos) para Euros, cometeu um crime de falsificação e inutilizou a livrança como título de crédito.
Carece, porém de razão, como bem resulta evidenciado na decisão recorrida.
Desde logo improcede a pretensão do embargante no sentido do título dado à execução ser declarado inexistente, por aplicação do disposto na Lei n.º 150/99, de 11 de Setembro e da Portaria n.º 287/00, de 27 de Janeiro.
Os requisitos que a livrança deverá conter para que assuma tal natureza, constam da indicação taxativa constante do artigo 75º da LULL, sendo que entre esses requisitos essenciais não figura a exigência de que o valor nela aposta deva ser expresso na moeda em curso no momento e no país da emissão. Pelo contrário, a lei admite mesmo que a letra ou livrança seja preenchida em moeda estrangeira e que a mesma venha a ser alterada aquando do pagamento do título.
As exigências de forma constantes da regulamentação do imposto de selo são simples formalidades de carácter fiscal que não afectam a eficácia da livrança enquanto título de crédito (v., entre outros, o Ac. da Rel. de Lisb. de 27-01-98, CJ, 1998, tomo I, pág. 95).
Por outro lado, a LULL admite no seu artigo 69º (aplicável às livranças por força do disposto no art. 77º), a alteração do texto da letra ou livrança, dispondo que “No caso de alteração do texto de uma letra, os signatários posteriores a essa alteração ficam obrigados nos termos do texto alterado; os signatários anteriores são obrigados nos termos do texto original”.
Ao contrário do que sustenta o embargante, o facto do valor aposto na livrança ter sido expresso em euros, apesar da livrança fazer referência a escudos (moeda em curso à data em que foi assinada), não afecta a sua validade e eficácia. O fundamental, como refere a embargante, é que o valor em divida corresponda à divida de capital, juros e encargos, sendo que nada foi alegado pelo embargante que aponte no sentido de que o valor aposto na livrança não corresponda ao montante efectivamente em divida.
Mas ainda que o valor aposto na livrança fosse superior ao montante em divida, resultante da relação subjacente, tal facto não determinaria a inutilização da livrança como titulo executivo. Apenas determinaria a redução da quantia exequenda ao valor de que, em face da relação subjacente, a embargada era credora no momento do vencimento do título.
À data em que o contrato subjacente foi celebrado e a livrança em causa foi assinada e entregue à embargada, a moeda corrente era o escudo, constando por isso o símbolo daquela moeda no impresso da livrança.
Mas tendo, entretanto, entrado em vigor o euro, ainda que a embargada tivesse aposto na livrança o valor da dívida em escudos, sempre haveria que fazer a conversão para euros, moeda em curso à data do vencimento da livrança.
Sendo portadora de um título em branco, com autorização para o preencher, a embargada limitou-se a apor o valor em divida expresso em euros, moeda com curso legal à data em que completou o preenchimento.
Na qualidade de avalista o embargante só ficaria desobrigado se a obrigação garantida fosse nula por vício de forma (art. 32º da LULL). Nulidade que não se verifica pelo facto da embargada ter rasurado o símbolo impresso da moeda em curso à data da assinatura da livrança (escudo) e aposto em letra manuscrita o símbolo do euro, moeda em que foi expresso o valor aposto na livrança. Tendo, após a assinatura da livrança, passado a vigorar o euro, a divida em escudos sempre teria de ser convertida para a nova moeda, sendo que a mera alteração do símbolo da moeda, impresso na livrança, não assume relevância, nem constitui facto gerador da invocada nulidade do título por vício de forma.
Constituindo a livrança dada à execução título executivo (art. 46º, alínea c), do CPC), também não tinha a embargada de invocar no requerimento inicial a relação subjacente.
Não merece, pois, censura, a decisão recorrida, na parte em que julgou os embargos improcedentes.
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Insurge-se ainda o embargante contra a condenação como litigante de má fé, alegado, além do mais, que a decisão em causa foi proferida com violação do contraditório dado que não lhe foi dada oportunidade de se pronunciar previamente àquela decisão, o que constitui violação do disposto no artigo 3º, n.º 3, do CPC.
Entendemos que nessa parte assiste razão ao apelante.
O disposto no nº 3 do art. 3º do CPC, visando evitar decisões surpresa, implica a audição das partes antes da prolação de decisão com que, por não corresponder à normalidade, não tinham o dever de contar.
Apercebendo-se de que a conduta processual do embargante podia cair na alçada dos arts. 266º-A e 456º, do CPC, o Mº a quo deveria ter ouvido as partes, para que não fossem surpreendidos com uma eventual condenação como litigantes de má fé, tudo em conformidade com os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 357/98, de 12.05.98 (DR, II Série, de 16.07.98) e 289/2002, de 3.7.98 (DR II Série, de 13.11.02).
Efectivamente, nos termos do citado nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil: "O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo licito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem". Com este preceito legal o legislador prescreveu "... a proibição da prolação de decisões surpresa...", como decorre do preâmbulo do Decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro. Ora, parece óbvio que a condenação de uma das partes como litigante de má-fé, embora seja de conhecimento oficioso, é uma questão de direito importante para a parte. Tanto assim é que nos termos do nº 3 do artigo 456º do Código de Processo "Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido o recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má-fé."
Tendo sido proferida decisão de condenação sem previamente terem sido ouvidas as partes, foi violado o disposto no citado artigo 3º, n.º 3, o que constitui nulidade coberta pela decisão recorrida que impõe, nessa parte, a anulação desta.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em julgar a apelação parcialmente procedente, confirmando-se a decisão recorrida na parte em que julgou os embargos improcedentes e anulando-se na parte em que condenou o embargante como litigante de má fé, devendo o Tribunal recorrido, ouvidas as partes e apreciadas as suas razões à luz dos factos apurados, proferir nova decisão sobre a questão da má fé.
Custas pelo apelante.
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Porto, 22 de Junho de 2004
Alziro Antunes Cardoso
Albino de Lemos Jorge
Rui Fernando da Silva Pelayo Gonçalves