OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
ERRO NA EXECUÇÃO
Sumário

Deve ser condenado pelo crime projectado (ofensa à integridade física simples) e não pelo crime cometido (ofensa à integridade física grave) o arguido que, ao pretender dar uma bofetada na ofendida atinge gravemente na cara com um prato que aquela interpôs entre si e a mão do arguido.

Texto Integral

Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
No Tribunal Judicial da...., -º Juízo, foi julgado em processo comum e com intervenção do tribunal colectivo o arguido B....., tendo sido decidido julgar a acusação parcialmente procedente e provada e, consequentemente:
a) Convolar o crime de que o arguido vinha acusado, p. e p. pelo art. 144°, al. a) do CP, para o crime p. e p. pelo art. 143°, do mesmo diploma legal.
b) Condenar o arguido, B....., pela prática do crime p. e p. pelo art. 143° do CP, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos.
c) Julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização civil e, em consequência condenar o arguido/demandado, a pagar à ADSE a quantia de € 31,97, acrescida dos juros legais desde a notificação - 22-01-2003, cfr. fls. 158.
d) Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, cível e crime, fixando-se, quanto ao último, em 2 UC a taxa de justiça e no mínimo a procuradoria.

Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o arguido, formulando as seguintes conclusões:
1ª No acórdão recorrido foram incorrectamente julgados os pontos 8º, 12º e 14º dos “Factos Provados”;
2ª Da prova produzida e registada em audiência, o ponto 8º deve ser respondido: “Ao pretender o arguido e executar o acto de dar uma bofetada à C....., esta levantou à altura da cara o prato de cerâmica (que se mostrava rachado) que tinha na mão, no qual a mão do arguido foi bater e o fez partir, tendo os cacos do prato atingido o rosto da C.....”;
3ª É abusiva e ilógica a ilação vertida no ponto 12º dos “Factos Provados”, por não se verificar nexo de causalidade adequada entre a conduta típica que se provou ter sido a do arguido (acto de dar uma bofetada) e as sequelas lesivas sofridas pela queixosa, donde a resposta a verter em 12 deverá ser alterada para: “Como consequência dos comportamentos conjugados do arguido e da C....., descritos em 8º, a ofendida sofreu feridas… (etc.)...”;
4ª O ponto 14º dos “Factos Provados” deverá ser alterado para: “ Ao executar o movimento de dar a bofetada à C....., o arguido agiu deliberada...”;
5ª As provas produzidas que impõem decisão diferente da recorrida resultam do depoimento da testemunha D....., mãe da queixosa e companheira do arguido;
6ª Da prova efectivamente produzida e registada resulta que o arguido não cometeu o crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º CP, sob a forma consumada, mas antes tentada, a qual não é punível, nos termos dos artigos 22º e 23º e 143º do CP;
7ª O acórdão recorrido enferma de vício de julgamento da matéria de facto, porquanto omitiu/silenciou factos que impunham ser julgados e considerados na escolha e determinação da medida concreta da pena, nomeadamente: o arguido nem antes nem depois (13.09.2000) dos factos de que vem acusado ofendeu a integridade física da queixosa; no momento da produção dos factos, o arguido, a queixosa e a mãe desta encontravam-se em estado de muita exaltação e nervosismo; a queixosa é toxicodependente, de muito difícil relacionamento e não se dá com ninguém, nem com o pai; o arguido é pessoa pacífica, normal, afável, educada, simpática, incapaz de agredir com violência a queixosa; o arguido e a mãe da queixosa (ambos divorciados) vivem em união de facto há cerca de 5 anos; ao arguido não foi perguntada a sua situação económica;
8ª Na escolha da pena, o Tribunal “a quo” fez errada opção pela pena detentiva e deu como um dos fundamentos facto não provado (anterior ofensa corporal à queixosa) e que fora desmentido (3.3 e 4.2.1), violando assim o disposto no art. 70º do CP;
9ª Mesmo que fosse legalmente admissível a pena detentiva, o tribunal “a quo”, ao doseá-la em 7 meses, excedeu manifestamente os limites impostos pelo princípio da culpa e da protecção dos bens jurídicos (art. 40 CP) e demitiu-se de ponderar e fundamentar a não aplicação do art. 44º, 1 CP;
10ª O Tribunal “a quo” neutralizou o fim ressocializador da punição, ao fixar em 4 anos o período de suspensão da pena de prisão, decisão desproporcionada à personalidade do arguido, grau de ilicitude e intensidade da culpa;
11ª No entendimento do recorrente, a ter sido cometido o crime do art. 143º CP, todo o circunstancialismo em que os factos se produziram configura a previsão do art. 72º, não podendo o arguido ser condenado senão em pena de multa no mínimo legal (art. 73º CP).

O M.ºP.º junto do tribunal “a quo” respondeu à motivação, defendendo a manutenção da decisão recorrida e a consequente improcedência do recurso.

O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto nesta Relação emitiu parecer acompanhando a posição do M.ºP.º na 1ª instância.

Colhidos os vistos, realizou-se a audiência com observância de todo o formalismo legal.

2. Fundamentação
2.1 Matéria de facto

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
1° Entre as 23h45 do dia 13/09/2000 e as 01h20, do dia 14/09/2000, C..... chegou à casa onde vivia com sua mãe D..... e o arguido que vivia maritalmente com a D.....;
2° Aquela casa situa-se no n° .., da Rua....., em......
3º A C..... tocou à campainha da porta e a mãe pediu-lhe para não entrar logo visto o arguido estar alterado, nervoso e que estavam a discutir.
4º Momentos depois voltou a tocar à campainha e entrou na casa.
5º A C..... viu logo que o arguido estava alterado e que não dava para falar com ele.
6° Pouco depois o arguido começou a dizer que ela, C....., é que era a culpada da discussão que ele estava a ter com a sua mãe.
7° A C..... foi à cozinha, pegou num pão e num copo, que colocou num prato, e foi para o seu quarto.
8° O arguido deslocou-se até ao quarto da C..... e, após troca de palavras, executou o gesto para a atingir com a mão e bateu no prato, que ela tinha na mão, que partiu e a atingiu no rosto.
12° Como consequência, a ofendida sofreu feridas incisas na face, no mento, lábio inferior, infra nasal, infra orbitária esquerda e na base esquerda da região nasal que lhe determinaram como consequência directa e necessária, uma cicatriz com 2 cm de comprimento e 0,5 cm de largura na pirâmide nasal à esquerda, uma cicatriz linear com 3cm de comprimento e 0,5 de largura na região mentoniana, conforme auto de exame médico de fls. 88 a 90, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
13° Aquelas lesões determinaram-lhe ainda um período de doença de oito dias com afectação da capacidade de trabalho e desfiguraram-na de forma grave e permanente.
14° O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente no intuito de ofender corporalmente a C....., que vivia consigo na mesma casa e que era filha da sua companheira.
15º O arguido sabia que a sua conduta não era permitida e era proibida por lei.
16º Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.
17º A título de comparticipações decorrentes da prestação de cuidados de saúde à aqui ofendida, despendeu a ADSE a quantia de € 31,97.

E considerou não provado
Com interesse para a decisão da causa não se provaram quaisquer outros factos, designadamente que:
1°. O arguido pegou no copo vazio que estava em cima da cama e atirou-o na direcção da C..... embora não a tenha atingido.
2°. Pouco depois o arguido pegou no prato de louça e atirou-o contra a C...... 3°. O arguido pegou de novo no prato e, de mais perto, atirou-o contra a cara da C..... onde se partiu e a feriu.

FUNDAMENTAÇÃO
A matéria de facto resultou da conjugação das declarações do arguido com o depoimento das testemunhas, que se encontram documentados em suporte magnético, ficha clínica de fls. 24, exames médicos de fls. 71 a 73 e 88 a 90 e certidão de fls. 146.
De salientar que o arguido deu dos factos versão diferente da dada pelas testemunhas sendo que também a versão da ofendida foi algo diferente da mãe da mesma.
A principal divergência consiste em o arguido e a mãe da ofendida dizerem que aquele tentou dar uma bofetada na ofendida, bateu com a mão no prato e este partiu e atingiu-a causando-lhe as descritas lesões.
Por sua vez a ofendida diz que o arguido arremessou o prato, por duas vezes, na sua direcção, sendo que da 1ª vez a não atingiu e da segunda vez lhe acertou na cara causando-lhe as referidas lesões.
Face às diferentes versões, ao princípio in dubio pro reo e às lesões causadas, designadamente a sua localização, consideram os juizes que compõem este colectivo não poder ser outra a matéria fáctica provada.

2.2 Matéria de Direito
As questões suscitadas pelo recorrente na sua motivação, são as seguintes: i) errada apreciação da prova, relativamente aos pontos 8º, 12º e 14º dos “factos provados” ii) omissão/silêncio sobre factos relevantes na escolha da medida concreta da pena; iii) erro na punibilidade da conduta do arguido; iv) erro na escolha da espécie da pena aplicada; v) erro na graduação da pena.

Apreciaremos as questões objecto do presente recurso, segundo a ordem por que foram suscitadas.

i) errada apreciação da prova, relativamente aos factos dados como provados nos pontos 8º,12º e 14º.

Pretende o recorrente que, relativamente ao ponto 8º, se dê como provado:
“Ao pretender o arguido e executar o acto de dar uma bofetada à C....., esta levantou à altura da cara o prato de cerâmica (que se mostrava rachado) que tinha na mão, no qual a mão do arguido foi bater e o fez partir, tendo os cacos do prato atingido o rosto da C.....”.

O Tribunal colectivo deu como provado:
“O arguido deslocou-se até ao quarto da C..... e, após troca de palavras, executou o gesto para a atingir com a mão e bateu no prato, que ela tinha na mão, que partiu e a atingiu no rosto”.

Se atentarmos na matéria constante do ponto 8º dos “factos provados” e na proposta pelo recorrente, verificamos que a diferença é pequena: o arguido pretendia dar uma bofetada, o prato era de cerâmica (e estava rachado), a C..... levantou o prato que tinha na mão, à altura do rosto (versão do recorrente).

A testemunha D....., mãe da ofendida e companheira do arguido, referiu que efectivamente o prato estava rachado, sendo tal característica relevante, uma vez que torna o prato bastante mais frágil. Também a descrição da acção, ou seja, a execução da bofetada, por um lado, e a atitude da ofendida, de levantar o prato à altura do rosto, por outro, estão conformes à versão do arguido e desta testemunha.

Deve assim ser alterado, nesta parte, o ponto 8º dos “factos provados”, nos seguintes termos:
“O arguido deslocou-se até ao quarto da C..... e, após troca de palavras, executou o gesto para lhe dar uma bofetada, batendo, porém, no prato de cerâmica (rachado) que ela tinha mão e instintivamente levantou para impedir a agressão, prato esse que assim se partiu e a atingiu no rosto”.

Relativamente ao ponto 12º dos “factos provados”, entende o recorrente que é ilógica a ilação aí vertida, por não haver nexo de causalidade entre a conduta típica provada e as sequelas lesivas sofridas pela queixosa.

O referido ponto 12º tem a seguinte redacção:

“Como consequência, a ofendida sofreu feridas incisas na face, no mento, lábio inferior, infra nasal, infra orbitária esquerda e na base esquerda da região nasal que lhe determinaram como consequência directa e necessária, uma cicatriz com 2 cm de comprimento e 0,5 cm de largura na pirâmide nasal à esquerda, uma cicatriz linear com 3 cm de comprimento e 0,5 de largura na região mentoniana, conforme auto de exame médico de fls. 88 a 90, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido”.

Neste ponto, o recorrente não tem razão.

Com efeito, uma vez modificada a matéria constante do ponto 8º dos “factos provados” e tendo ficado aí a constar uma descrição da acção, relatando os comportamentos do arguido (executou a acção de dar uma bofetada), da ofendida (levantou o prato à altura do rosto) e o respectivo nexo causal (a mão bateu no prato que assim se partiu e a atingiu no rosto) está, em termos naturalísticos, estabelecida a causalidade entre a bofetada e as lesões. Se tal matéria é suficiente para se poder imputar o resultado à conduta do arguido, em termos de causalidade adequada, já é outra questão que não pode ser resolvida nos factos provados, por envolver juízos tipicamente jurídicos (a causa adequada pressupõe uma causa empírica, mas valorada juridicamente).
Assim, ligação naturalística entre a conduta do arguido – tal como a mesma foi descrita – e as lesões da ofendida, mostra-se irrepreensível.

Finalmente e relativamente ao ponto 14º, pretende o recorrente que se dê como provado o seguinte: “Ao executar o movimento de dar a bofetada à C....., o arguido agiu deliberada…”, ou seja, pretende que a intenção e a consciência de ofender corporalmente, seja especificamente ligada ao facto concreto de “executar o movimento de dar a bofetada”.

Neste ponto também não tem razão, face à alteração feita ao ponto 8º dos “factos provados”.

É certo que o que importa apreciar é o dolo ou a culpa, em função da concreta acção do arguido. E, por isso, a única interpretação possível do ponto 14º dos “factos provados”, é a de que o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, ao actuar da forma descrita naquele ponto 8º. Não se torna necessário voltar a repetir, no local da matéria de facto respectiva, que aqueles elementos (intenção, liberdade e consciência da ilicitude) se reportam aos factos provados. Compreende-se que possa haver algum efeito retórico na pretensão do recorrente (repetição para realçar um aspecto), mas tal efeito é, em nosso entender, dispensável num discurso jurídico rigoroso.

Assim e em conclusão, no que se refere à pretendida alteração da matéria de facto, procede apenas a crítica feita ao ponto 8º dos “factos provados”, o qual passará a te a redacção acima referida.

ii) omissão/silêncio sobre factos relevantes na escolha da medida concreta da pena
O recorrente imputa ainda à decisão recorrida o silêncio sobre factos relevantes para a boa decisão da causa, nomeadamente que: o arguido, nem antes nem depois dos factos descritos, ofendeu a integridade física da queixosa; no momento da produção dos factos, o arguido, a queixosa e a mãe desta estavam em estado de muita exaltação e nervosismo; a queixosa é toxicodependente, de muito difícil relacionamento; o arguido é pessoa pacífica, normal, afável, educado, simpático, incapaz de agredir com violência a queixosa; o arguido e a mãe desta vivem em união de facto há cinco anos; não foi perguntada ao arguido qual a sua situação económica.

Neste ponto (conclusão 7ª), o recorrente não faz o enquadramento do vício da decisão. Porém, dado que o recurso seguiu a metodologia prevista no art. 412º, 3 do C.P.Penal e o recorrente indicou sucintamente os meios de prova que sustentam a sua pretensão, entendemos que o seu objectivo é alteração da matéria de facto, aditando os factos pertinentes.

Em nosso entender, o recorrente não tem razão.
Dentre os factos referidos na sua motivação, há factos sem qualquer interesse para a decisão da causa, em todas as suas especificidades, e há factos que nem sequer se podem inferir da prova produzida.

É de facto irrelevante que o arguido viva com a mãe da ofendida há cerca de 5 anos, como é irrelevante afirmar que nunca tinha agredido a queixosa. Não se tendo dado como provado que houvera agressões anteriores, nem se tendo referido esse aspecto, torna-se claro que a sentença ponderou os factos, tendo em conta apenas a agressão ocorrida nos autos.

Da prova produzida (conforme resulta da leitura das transcrições), verifica-se que o estado de exaltação do arguido e da mãe da ofendida, decorria precisamente do comportamento desta última. De facto, nesse dia, o arguido não queria que a mãe deixasse a filha (ofendida) entrar em casa. Tinham-lhe tirado as chaves de casa e a discussão entre o arguido e a sua companheira radicava aí. O arguido queria que a mãe tomasse uma atitude, ou seja, em termos claros e simples, que não a deixasse nesse dia entrar em casa - cfr. fls. 45 do apenso da transcrição.
Este estado de nervosismo do arguido que não foi considerado nos “factos provados” não tem, em nosso entender, a conotação pretendida pelo recorrente e, a ser dado como provado, com os contornos acima referidos, em nada o beneficiava. Tal estado de nervosismo (não querendo que a ofendida entrasse nesse dia em casa, atitude que a mãe não tomava e que ele achava dever ela tomar) foi, ao fim e ao cabo, mais uma contribuição para o início da discussão que culminou na agressão, do que uma circunstância atenuante de uma eventualidade esporádica. Deste modo, o facto referido pelo recorrente, nos seus verdadeiros contornos, não foi correctamente tomado em conta, uma vez que não constava da acusação (e era prejudicial ao arguido).

Relativamente à falta de perguntas sobre a situação económica do arguido, entende o mesmo ter sido violado o disposto no art. 342º do C.P.Penal.
O citado art. 342º do Cód. Proc. Penal apenas exige, neste aspecto, que se pergunte a profissão e local de trabalho do arguido, o que foi feito. Na verdade, às perguntas do M.º juiz, o arguido respondeu ser Gestor Comercial da “E....., Lda.”, com sede em....., mas trabalhar em casa, isto é, em regime de “Home base”- cfr. acta da audiência de fls. 161 e fls. 1 e 2 do apenso de transcrição.
Verifica-se, assim, ter sido correctamente cumprido o art. 342º do Cód. Proc. Penal.
Também quanto à sua situação económica, entendemos não ter havido qualquer omissão relevante de factos, nem mesmo o arguido, através do seu mandatário (em audiência de julgamento), buscou a demonstração dessa situação económica, ou mostrar dificuldades, neste campo. Muito pelo contrário, o arguido demonstrou algum desafogo, tendo até arrolado como testemunha uma empregada doméstica e referido ter casa própria, onde vivia com a mãe da ofendida, nos fins-de-semana. Assim, a falta de referência à situação económica, nos factos provados e não provados, não teve (nem tem) qualquer reflexo na decisão.

iii) erro na punibilidade da conduta do arguido
Nesta vertente da motivação, defende o recorrente que os factos (no seu entender) provados não permitem a qualificação jurídica que a decisão recorrida lhes deu. Relativamente às ofensas corporais simples, entende que apenas se poderia considerar provada a “tentativa” o que, atenta a moldura penal deste crime, tornava a acção não punível. Alega o recorrente que a sua conduta “não chegou a produzir o resultado típico a que a acção do arguido naturalmente tendia e fora querida: dar uma bofetada” – cfr. fls. 195 da motivação do recorrente.

A qualificação como “tentativa” de uma acção dirigida a molestar fisicamente uma pessoa e que efectivamente a molesta é, à luz do mais elementar senso comum, inaceitável. Não faz sentido nem é defensável entender que, se o agente tivesse com a sua acção apenas provocado ofensas corporais simples, houvesse crime, e deixasse de o haver só porque o dano foi superior ao querido.

Será que podemos cindir a actividade do agente e ver aqui dois crimes: ofensas corporais graves, consumadas e ofensas corporais simples, tentadas?
Esta divisão está na base do raciocínio do recorrente, para concluir que não é punível o crime de ofensas corporais graves, por falta de dolo; e também não é punida a tentativa, porque a moldura penal do crime de ofensas corporais simples, o não permite.

Pensamos que não é assim.

Nunca foi esse, de resto, o melhor entendimento da nossa doutrina, perante situações em que ocorria um erro na execução (“aberratio ictus”). FERRER CORREIA, num estudo célebre, “Dolo e Preterintencionalidade”, publicado in Estudos Jurídicos, Direito Civil e Comercial e Direito Criminal, Coimbra, fls. 320, resolveu a questão em termos que viriam a ser retomados quer por Eduardo Correia, quer por Figueiredo Dias, propondo a seguinte solução:
“Quando um indivíduo, por erro acerca das consequências da sua conduta, vem a realizar o elemento material dum crime diferente daquele que tinha em vista – ele responderá pelo resultado que efectivamente se consumou, e não por simples tentativa ou frustração do que se propunha consumar, já que a sua acção provocou um dano real, concreto.
Mas seria injusto sujeitar o agente às penas cominadas para o crime intencional de facto cometido, uma vez que ele não só o não quis como nem sequer o previu, e ter-se-ia mesmo abstido de agir – faça-se esta observação para reforçar o raciocínio – se o tivesse previsto, como efeito do seu acto. Doutro lado, seria insuficiente aplicar-lhe a sanção correspondente ao crime cometido, quando praticado por mera negligência, porque sempre existiu uma intenção criminosa que se exteriorizou em actos.
Deve então submeter-se o delinquente, que responde pelo delito – o único que foi consumado -, à pena cominada para a consumação intencional do crime apenas tentado”. Ou seja, será aplicada ao agente a pena do crime que projectou, como se de facto ele se tivesse consumado.

Em favor desta opinião, acrescenta EDUARDO CORREIA, Direito Criminal I, pág. 405, “deve argumentar-se que, por esta forma, se faz responder o agente desde logo pela sua vontade real e não por uma pura álea, com o que se põe de lado uma insuportável responsabilidade pelo evento e se corresponde, na medida do possível, às tendências para a objectivação e ideia de culpa que hoje inegavelmente dominam o nosso direito”.

Julgamos, efectivamente, não poder ser outra a solução. Uma solução contrária, levaria ao absurdo de absolver o autor de um crime doloso de ofensas corporais de que resultasse a morte do ofendido, atendendo ao excesso de actuação – cfr. Eduardo Correia, ob. cit. pág. 405, nota 1.

A nossa jurisprudência tem acolhido tal entendimento, como se pode ver no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31-5-95 JSTJ00023666, que faz uma exposição da doutrina nacional:
“ (…) Objecto de larga querela tem sido, sem dúvida, o tratamento a dar aos casos de erro de execução, ou seja, àqueles casos em que o agente, na fase de execução do crime, vem a atingir objecto ou pessoa diferente dos que visava.
Debruçaram-se sobre a questão entre nós, além de outros autores, os Professores Costa Leite, Beleza dos Santos, Cavaleiro de Ferreira, Ferrer Correia, Eduardo Correia e Figueiredo Dias. De algumas das posições defendidas por alguns desses autores, dá-nos conhecimento Maia Gonçalves, em Código Penal Português anotado - 1989, 2ª edição, a páginas 80 e 81. "Característica de toda a filosofia do Código Penal vigente é o modo como se consagra a problemática do erro. Na verdade, este ponto pode perspectivar-se como charneira de toda a problemática da culpa, já que é nele - quer se considere o erro sobre as circunstâncias do facto (artigo 16) quer o erro sobre a ilicitude (artigo 17) - que o direito penal encontra o verdadeiro sentido para ser considerado como direito penal da culpa", lê-se no n.º 4 do Preâmbulo.
Compõe-se o dolo (artigo 14) de dois elementos: um volitivo ou emocional (traduzido na direcção da vontade) e outro intelectual (traduzido no conhecimento dos elementos e circunstâncias descritas no tipo legal conhecimento material desses elementos e conhecimento do seu sentido e significação).
É, pois necessário que o agente conheça as (todas as) circunstâncias de facto que pertencem ao tipo legal, para que a sua actuação se deva considerar dolosa. Daí que o erro sobre uma dessas circunstâncias exclua o dolo.
É ainda à luz do artigo 16 do Código Penal (v. O Código Penal de 1982, vol. 1, 1986, página 152, de Leal-Henriques e Simas Santos) que deve ser resolvida a questão do ex, digo do erro na execução - aberratio ictus-, que ocorre quando o agente não está enganado sobre a qualidade da pessoa ou das coisas, mas, ao executar o crime projectado, vem a atingir uma pessoa ou coisa diferente daquela que queria atingir. E deve sê-lo no sentido propugnado por parte da Doutrina (enunciada por Ferrer Correia) e pela nossa Jurisprudência - submeter o agente que tentou um crime e consumou outro à pena do que projectou, como se, de facto, ele se tivesse consumado, mas quando desta solução resultar uma atenuação em face dos princípios gerais, aplicar essas regras gerais por cessar, então, a razão de ser daquela solução (cfr., insistimos, Eduardo Correia, na obra atrás citada, página 407, e Figueiredo Dias e Faria e Costa, in Responsabilidade pelo resultado e crimes Preterintencionais, pág. 100).
(…) hoje, a "aberratio ictus" está prevista no artigo 16 do Código Penal, sendo a pena agravada pelo resultado, nos termos do artigo 18 do mesmo Diploma, isto é, sempre que tal resultado possa ser imputado ao agente, pelo menos, a título de negligência. (…)”.

No mesmo sentido podem ver-se, entre outros, os Acórdãos do STJ de 27-4-94, JSTJ00024746; de 24-2-94 JSTJ00022205.

Deste modo, a solução a que chegou a decisão recorrida, punindo o arguido pela prática do crime projectado – ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º do C.P. – como se o mesmo se tivesse consumado, não merece qualquer censura.
Improcede assim, nesta parte, o recurso do arguido.

iv) erro na escolha da espécie e graduação da pena aplicada.
Defende o arguido que a espécie da pena não foi adequadamente escolhida, uma vez que se fez errada opção pela pena “detentiva” e fundamentou tal opção num facto “não provado” – anterior ofensa corporal à queixosa.

Na fundamentação da escolha da pena (pena privativa da liberdade), o tribunal colectivo deu também relevo ao facto de “a ofendida ter dito que o arguido já por outra vez a magoou numa mão” – cfr. fls. 170 -, facto este que não consta da matéria provada.

Neste ponto, o recorrente tem toda a razão.

O Tribunal Colectivo só podia valorar os factos que deu como provados e não foi isso que fez.

Por outro lado, perante os factos provados, também julgamos que não se justifica a escolha feita pelo Tribunal “a quo”, de aplicar uma pena de prisão. Na verdade, nos termos do art. 70º do C.Penal, o tribunal deve dar preferência às penas não privativas de liberdade. No presente caso, há a ponderar o facto de o arguido ser primário e a gravidade do crime praticado (ofensa corporal simples, com uma bofetada) que justificam a opção por uma pena não privativa de liberdade. Além disso, tratou-se de uma agressão ocorrida num ambiente familiar, sendo a ofendida filha da companheira do arguido, numa circunstância de “conflito aberto” entre todos.

Nestes termos e face ao disposto nos arts.143º, n.º 1 e 47º, n.º 1 do C.Penal, entendemos adequada uma pena próxima do seu termo médio, isto é, a pena de 120 dias de multa. O grau da ilicitude e da culpa é elevado, tendo em atenção o bem jurídico protegido (integridade física) e as circunstâncias em que os factos ocorreram (desvantagem física, dependência afectiva e económica da ofendida relativamente ao agente), militando apenas a favor do arguido o facto de ser primário.
Justifica-se, assim, a pena de 120 dias de multa (a que corresponde a prisão subsidiária de 80 dias, nos termos do art. 49º, 1 do C. Penal), à taxa diária de 8 € (o arguido é gestor comercial -cfr. acta de fls.161), ou seja, a multa global de 960 €.

3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente;
a) alterar a matéria constante do ponto 8º dos “factos provados”, nos termos acima referidos;
b) condenar o arguido B....., come o autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido nos artigos 143º, 1 e 47º, 1 do Código Penal, na pena de 120 dias de multa (a que corresponde a prisão subsidiária de 80 dias, nos termos do art. 49º, 1 do C.Penal) à taxa diária de 8 €, ou seja na multa global de 960 € (novecentos e sessenta euros).
Custas pelo arguido, fixando a taxa de justiça em 3 UC

Porto, 23 de Junho de 2004
Élia Costa de Mendonça São Pedro
José Henriques Marques Salgueiro
José Carlos Borges Martins (Vencido nos termos da declaração de voto que junto. - O arguido vinha acusado por prática de crime de ofensa à integridade física grave, previsto no artº 144º do CP. Em audiência, depois de produzida a prova, foi comunicada aos sujeitos processuais a alteração dessa imputação para o crime de ofensa à integridade física simples, p.p. no artº 143º do CP.
Não houve qualquer oposição a tal alteração.
Nesta altura, e como também é mencionado na fundamentação jurídica da decisão recorrida, as lesões sofridas pela ofendida não podem ser imputadas ao arguido a título de dolo ou negligência, visto não haver responsabilidade objectiva nesta área do Direito. Não foram por ele intencionadas nem se apurou o especial dever de as prever, pelo que de nenhum juízo de censura é passível o arguido quanto a elas.
Como ensina o Prof. Eduardo Correia (“Direito Criminal”, I, pág. 441, Almedina, Coimbra-1971), o evento agravante só poderá ser imputado ao agente pelo menos quando este tenha actuado, em relação àquele evento, com negligência e portanto com culpa.
Resta então a consideração da ofensa que o arguido pretendia infligir à queixosa - uma bofetada - e que não chegou a concretizar em virtude de ela ter interposto um prato entre a mão do arguido e o seu rosto.
Esta situação enquadrar-se-á no art. 22º do CP, o qual considera que “há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”. E de forma mais explicita na alínea b) do n.º 2 da norma em questão, que prevê como actos de execução os que forem idóneos a produzir o resultado típico.
Ora a tentativa só é punida se o crime consumado corresponder pena superior a 3 anos de prisão - artº 23º, n.º 1 do CP. O que não é o caso do crime previsto no artº 143, n.º 1 do CP, cuja moldura penal é a de prisão até 3 anos ou multa.
O comportamento do arguido, porque nenhum acto material de lesão da integridade física da ofendida lhe é possível imputar, resulta consequentemente não punível.
Não parece decisivo o argumento da falta de senso comum desta decisão, no que diz respeito à absolvição de alguém só porque ocorrem resultados mais gravosos do que aqueles que o arguido previu. É que salientar os autores que a solução de punir o crime projectado também traz riscos nesse âmbito e adiantam um exemplo clássico: se alguém ao pretender matar um cão e vier antes a matar uma pessoa, responderá pela morte do cão.
Também nessa critica estão Jescheck - Weigend no recente tratado de Derecho Penal, parte geral, (5ª edição corrigida e ampliada, Ed. Comares, Granada, Dezembro de 2002): no caso de objectos desiguais a solução é simples: quem quer partir o vidro da janela de um inimigo mas, por descuido, atinge o dono da casa, é castigado por uma tentativa de dano em concurso ideal (unidade de facto) com umas lesões corporais imprudentes. Mas, de acordo com a tese mais geral, também nas hipóteses de equivalência de objectos há que aceitar a tentativa do facto pretendido e, nesse caso, (isto é, na medida em que ao autor se atribua a infracção do dever de cuidado relativamente à vítima afectada), a imprudência quanto ao resultado acontecido (...). A opinião contrária, partidária do facto doloso consumado, esquece o facto de que não basta que o dolo vá referido de uma forma abstracta a uma classe determinada de objecto material, mas sim que o autor deve ter-se proposto a um objecto concreto (pág. 335-336).
Não concordamos com a qualificação da conduta do arguido como erro na execução, desde logo pela impossibilidade lógica de ter ocorrido erro.
Alguém só se poderá enganar quanto a uma conduta se quiser essa conduta.
Mas aqui não foi isso que ocorreu, porque o conjunto de eventos, gesto de dar a bofetada, levantar do prato pela ofendida, lesões diversas das pretendidas pelo agente, não foi querido por este.
Dispõe o art.º 16º, n.º 1 do CP que o erro sobre elementos de facto (...) exclui o dolo. Por outro lado, o n.º 3 deste mesmo preceito determina que fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.
Como bem salienta o texto do acórdão supra, o erro na execução, “aberratio ictus”, ocorre quando o agente ao executar o crime projectado vem a atingir uma pessoa ou coisa diferente daquela que queria atingir.
O arguido mantém a autoria e impulso do acto executivo, embora este se venha a desenrolar de forma a contrariar a sua primitiva intencionalidade. Há em todo o caso uma execução, embora equivoca.
Ele apenas intentou a comissão de um facto que foi colocado fora do seu alcance.
No caso dos autos, o arguido, a partir da interposição do gesto de defesa da ofendida deixou de exteriorizar a sua vontade, de uma forma mais ou menos satisfatória relativamente ao seu projecto inicial, em qualquer acto material subsequente. O partir do prato em consequência desse gesto e as lesões provocadas subsequentemente pelas partes desse prato deixaram de ser acções suas para passarem a ser eventos, assim se tendo interrompido o nexo de causalidade.
Por isso teria sentido a interrogação acerca do dever da sua previsibilidade pelo agente, a qual consiste justamente num juízo antecipado sobre a sua hipotética ocorrência.
A nossa interpretação do teor do artº 16º, n.º 1 e n.º 3 é esta: o erro na execução do crime tem como consequência, num a posteriori lógico, que tal anomalia da acção delituosa deixe de poder configurar esta no quadro do dolo. Fica porém salvaguardada a hipótese de negligência quando tal comportamento errático configure os pressupostos da negligência.
A agravação pelo resultado previsto no artº 145º do CP não prevê qualquer comportamento dirigido a tal resultado, mas exige que esse comportamento se materialize em crime previamente. O resultado tem que estar associado imediatamente ao crime autónomo inicial, para que se possa dizer que o perigo que este desencadeou se materializou naquele mesmo resultado.
Note-se o que se escreveu a propósito no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 243: Também se pode questionar a existência do nexo de causalidade quando o agredido, encontrando-se no topo de um prédio de quinze andares, com a força da pancada desferida com o cano de uma pistola cambaleia e cai, vindo a morrer na sequência da queda. Se bem que em termos estritos se possa afirmar que o atingir outrem nestas circunstâncias envolve um perigo particular ao qual se pode imputar o resultado morte, não é menos verdade que aqui a morte surge como consequência da lesão da integridade física operada, pelo que será de enveredar pela solução do concurso de crimes (ofensa à integridade física dolosa e homicídio negligente).
Só poderá admitir-se haver um juízo de previsibilidade quanto a estes dois últimos aspectos, admitindo-se que cada julgador tenha o seu critério neste particular domínio.
De qualquer forma, neste plano, o crime preenchido sempre seria o do artº 148º do CP (ofensa à integridade física por negligência), e deparar-se-ia então com uma alteração do objecto do processo.)
José Manuel Baião Papão