LUGAR VEDADO AO PÚBLICO
Sumário

Um local reservado por determinada pessoa, para aí decorrer um almoço destinado apenas aos seus convidados, preenche o conceito de lugar vedado ao público do artigo 191 do Código Penal de 1995.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

Procedeu-se a inquérito desencadeado por queixa apresentada por B.........., contra C.........., D.........., E.......... e F.........., relativa a factos abstractamente susceptíveis de integrar os crimes de dano, ofensa à integridade física e introdução em local vedado ao público.
Esses factos são os seguintes:
No dia 1.07.01, a Junta de freguesia de ....., concelho de V N Gaia, da qual o queixoso é tesoureiro, organizou um passeio de idosos, do qual fazia parte um almoço que decorreu num salão do restaurante “Y.....”, em Penafiel. Esse salão estava reservado pela dita Junta de Freguesia, aí apenas podendo entrar os convidados pela mesma, dos quais não faziam parte os denunciados, membros da Câmara Municipal de V N Gaia.
No referido dia, por volta das 13h30, hora em que se iniciava o serviço do almoço, chegaram ao local os denunciados que aí pretenderam entrar e que foram impedidos de o fazer pelos empregados do restaurante e pelo queixoso, que, alegadamente, cumpriam ordens do Presidente da Junta de Freguesia que ainda não tinha chegado.
Ao verem-se impedidos de entrar, o denunciado E.......... deu dois pontapés na porta e o denunciado D.......... desferiu um murro na mesma partindo o seu vidro que se estilhaçou e atingiu o ofendido ferindo-o nos olhos e outras partes do corpo.
Instalou-se de seguida enorme confusão que permitiu que todos os denunciados entrassem no salão onde decorria o almoço, sendo que essa permanência lhes foi depois permitida pelo presidente da Junta, que entretanto chegou, com vista a evitar mais confusões no local.

Findo o inquérito entendeu o Ministério Público:
Relativamente aos crimes de dano e introdução em local vedado ao público, ambos de natureza semi-pública, concluiu pela ilegitimidade do ofendido para a dedução da queixa. No que concerne ao crime de dano, concluiu que os titulares do direito da queixa eram os proprietários do restaurante em causa, que não tinham apresentado queixa. Relativamente ao eventual crime de introdução em local vedado ao público, e tendo o salão em causa sido reservado pela Junta de Freguesia, considerou que não aparece demonstrado nos autos que o queixoso tenha agido em sua representação, pelo que, conclui pela sua falta de legitimidade para intentar o respectivo procedimento criminal.
Quanto ao crime de ofensa à integridade física, foi deduzida acusação contra D...........
Veio então o B.......... requerer a abertura de instrução, para que seja deduzida acusação contra C.......... e D.........., pela co-autoria do crime de introdução vedado ao público, previsto no art.º 191º do Código Penal.
Entre o mais alega que ( 18º) foi deliberado pela própria Junta de Freguesia de ..... patrocinar financeiramente o presente processo criminal em razão de o assistente ter agido em representação da própria junta naquele dia 11 de Julho de 2001, como se verifica pela acta número 109º de 8 de Janeiro de 2002, cuja fotocópia certificada se junta (...) pelo que o ofendido tem legitimidade para subscrever a queixa.
Na oportunidade a Ex.ma Juíza de Instrução Criminal indeferiu a constituição como assistente do ofendido B.........., por ter entendido que o mesmo não tinha legitimidade, uma vez que não é titular de qualquer interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. Na sua óptica quem teria legitimidade seriam os proprietários do restaurante.
Em consequência, como o art.º 287º n.º 1 do Código Processo Penal, possibilita a instrução pelo arguido al. a) e pelo assistente al. b), e o ofendido não era uma coisa nem outra, rejeitou o requerimento de abertura de instrução.

Inconformado o ofendido interpôs o presente recurso, rematando a pertinente motivação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
O despacho recorrido contém total contradição no seu próprio texto, tornando-se incompreensível todo o seu teor, já que invocando um requerimento de abertura de instrução enviado a tribunal em 6 de Fevereiro de 2003, para pronunciar os Dr. C.......... e D.......... pelo crime de introdução em lugar vedado ao público, o despacho ora recorrido indefere o mesmo requerimento de constituição de assistente enviado a Tribunal em 28 de Janeiro de 2003, cujas guias o mesmo tribunal enviou ao recorrente em 31 de Janeiro de 2003 e foram pagas em 5 de Fevereiro de 2003; constituição de assistente efectuada em tempo e em obediência dos artºs 284º e al. b) do n.º 3 do art.º 68, ambos do Código Processo Penal.
O despacho ora recorrido fundamenta o indeferimento (da constituição de assistente), para nós, data vénia, extemporâneo e inadmissível – já que a constituição de assistente se seguiu a despacho que acusa D.......... pelo crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art.º 143º do Código Penal, e por este último perpetrado no ora recorrente – por considerar que o recorrente não tem legitimidade para se constituir assistente, considerando não ser o mesmo titular de qualquer interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, invocando, o mesmo despacho, que tal legitimidade pertence aos proprietários do restaurante. Sendo que é o próprio juiz a quo que invoca que o art.º 191º do Código Penal tutela “um conjunto heterogéneo de valores ou interesses. Que vão desde os valores ainda conotados com a reserva e o segredo pessoais, passando pelo segredo comercial e industrial, até aos valores de eficiência económica e burocrático-administrativa”. Ignorando, assim, o por si mesmo invocado e decidido em contradição com os fundamentos que invoca.
E ainda, rejeitando no despacho ora recorrido o requerimento de abertura de instrução ao abrigo do n.º 3 do art.º 287º do Código Processo Penal, com base nesta mesma disposição legal, o mesmo Meritíssimo Juiz admite, no mesmo despacho, o mesmo e único requerimento de abertura de instrução.
Assim, o presente recurso do despacho que se junta sob os documentos nºs 44 a 48, tem por fundamento o art.º 410º do Código Processo Penal, nomeadamente as al. b) e Constituição) do seu n.º 2, bem como a violação pelo Meritíssimo Juiz a quo do disposto no art.º 68º do mesmo Código, no que se refere à constituição de assistente.

Pede a sua admissão como assistente, bem como a admissão da abertura da instrução para pronúncia de C.......... e D.........., em co-autoria material, pelo crime de introdução em local vedado ao público, previsto e punido pelo art.º 191º do Código Penal.

Entretanto durante a realização do debate instrutório o ofendido B.......... desistiu da queixa apresentada contra o arguido D.........., pelo crime de ofensas à integridade física, desistência que, face à não oposição do ofendido, logo foi homologada, com o consequente arquivamento dos autos nessa parte.

Admitido o recurso o Ministério Público apresentou oportuna e muito bem elaborada resposta a que, já neste Tribunal, o Ex.mo Procurador Geral Adjunto aderiu.
Os Ex.mºs adjuntos tiveram vista nos autos, após o que se realizou conferência.

O Direito:
Procedeu-se a inquérito desencadeado por queixa, apresentada por B.......... contra C.........., D.........., E.......... e F.........., relativamente a factos abstractamente susceptíveis de integrar os crimes de dano, introdução em local vedado ao público e ofensa à integridade física.
Findo o inquérito entendeu o Ministério Público:
Arquivar ao autos relativamente aos crimes de dano e introdução em local vedado ao público, ambos de natureza semi-pública, por ilegitimidade do denunciante para a dedução da queixa.
Quanto ao crime de ofensa à integridade física, foi deduzida acusação contra D...........

Veio então o B.......... requerer a abertura de instrução, para que seja deduzida acusação contra C.......... e D.........., pela co-autoria do crime de introdução vedado ao público, previsto no art.º 191º do Código Penal.
O arguido D.........., também requereu abertura da instrução pretendendo o arquivamento dos autos.
Neste contexto, o despacho da Ex.ma Juíza de Instrução Criminal indeferindo a constituição como assistente do ofendido B.........., por ter entendido que o mesmo não tinha legitimidade, uma vez que não é titular de qualquer interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, limitou-se a ver parte da questão: não estava em causa apenas o crime de introdução em lugar vedado ao público, esqueceu-se a Ex.ma juíza que o requerente também era ofendido pelo crime de ofensa à integridade física, tendo sido já deduzida acusação contra D........... Portanto, pelo menos por este crime, podia o recorrente constituir-se assistente, pelo que lhe assiste, parcialmente, razão.
Acontece que, entretanto, depois de interposto o recurso, e no que ao crime de ofensa à integridade física respeita, o ofendido B.......... desistiu da queixa apresentada contra o arguido D.........., desistência já homologada com o consequente arquivamento dos autos nessa parte. Daí que se verifique uma inutilidade superveniente do recurso nesta parte.

Resta assim, como questão a apreciar, saber se o recorrente tem, ou não, legitimidade para se constituir assistente quanto ao crime de introdução em local vedado ao público.
O primeiro segmento dessa questão prende-se com saber se um local reservado por determinada pessoa, para aí decorrer um almoço destinado apenas aos seus convidados configura, ou não, tipicamente, lugar vedado ao público.
Nos dias de hoje é corrente a realização dos mais variados eventos em locais a isso especialmente destinados, com marcações prévias, uso de instalações fisicamente delimitadas e relativamente autónomas. Tanto quanto resulta dos autos esse era o caso de um dos salões do restaurante “Y.....”, em Penafiel, reservado pela Junta de Freguesia de ....., V N de Gaia, para um almoço dos convidados pela mesma. Ora sendo esses espaços, fisicamente delimitados e separados, com relativa autonomia, e não simplesmente reservados, parece-nos que não podem deixar de ser considerados lugar destinado ao exercício de actividades, não livremente acessíveis ao público.
Importa realçar que não basta a existência de espaço reservado, hoje é essencial que o espaço também esteja delimitado, a existência de barreira física, pois foi com essa finalidade que a Reforma de 1995, substituiu reservado por vedado.
Atendendo a que o art.º 191º do Código Penal, pretende salvaguardar um conjunto heterogéneo de valores ou interesses, em último caso o critério orientador para determinar o titular do bem jurídico protegido, terá que se buscar numa consideração formal: o bem jurídico identificar-se-á com a posição jurídica reconhecida ao titular, que se analisa no direito de admitir e excluir [Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 718]. No caso a Junta de Freguesia tinha o direito de admitir no salão que lhe estava destinado e reservado, os seus convidados, e de excluir, desse espaço, as pessoas que não convidou. Logo a Junta de Freguesia era a titular do interesse que a lei especialmente quis proteger, em conclusão a ofendida [Não importa para o caso perspectivar a questão do ponto de vista do dono das instalações, saber se ele também tinha ou mantinha o direito de admitir ou excluir; mas o certo é que ele mantém intocado um núcleo de direitos, que se distende ou restringe com maior ou menor extensão conforme e na correspondente medida do uso da pessoa a quem cedeu o espaço. No caso parece-nos indiscutível que a Junta tinha o direito de admitir ou não admitir].
Seria diferente o caso se a Junta se limitasse a pedir a reserva de uma mesa, ou de um espaço particular, num espaço geral e mais amplo, de livre acesso a outras pessoas.

O segundo segmento da questão a decidir relaciona-se com a veste em que agiu o recorrente, por si ou em representação da Junta?
O Ministério Público, entendeu que o recorrente não foi mandatado para agir em nome da Junta, e por esse motivo arquivou o inquérito, por falta de legitimidade do recorrente.
Alegou o recorrente no pedido de abertura de instrução, e mantém agora no recurso interposto, que é tesoureiro da Junta e que foi deliberado pela própria Junta de Freguesia de ..... patrocinar financeiramente o presente processo criminal em razão de o assistente ter agido em representação da própria junta naquele dia 11 de Julho de 2001, como se verifica pela acta número 109º de 8 de Janeiro de 2002, cuja fotocópia certificada se junta (...) pelo que o ofendido tem legitimidade para subscrever a queixa.
Está assente a qualidade de tesoureiro do requerente, à data dos factos. O mais alegado precisa de uma pequena correcção: em lado algum da referida deliberação, cuja cópia foi junta aos autos, foi decidido constituir o recorrente representante da autarquia para efeitos de exercício do direito de queixa. O que na dita acta se refere é algo de diverso e esclarecedor: em razão da queixa crime apresentada pelo Sr. B.........., na qualidade de autarca contra o Presidente da Câmara Municipal de Gaia e outros (....) o dito queixoso mandatou a Dr.ª (....) devendo os honorários ser pagos a esta advogada...
O recorrente – ao tempo tesoureiro da Junta de Freguesia - é pessoa distinta da ofendida, não é o seu representante legal, nem foi mandatado para agir em seu nome. Agiu em seu nome próprio e por sua conta, como resulta, v.g., da procuração que outorgou ao respectivo mandatário, dos requerimentos que fez nos autos, no recurso que interpôs. Ora são realidades distintas: representação e pagamento de honorários. Mais, mesmo que tivesse sido mandatado, e não foi, esse mandato/ ratificação teria dado entrada nos autos para além do prazo de seis meses, a que alude o art.º 115º n.º 1 Código Penal.
Finalmente, resulta dos autos que a permanência dos denunciados, membros da Câmara Municipal de V N Gaia, acabou, depois, por ser permitida pelo presidente da Junta, que entretanto chegou, com vista a evitar mais confusões no local.... Ora em matéria de art.º 191º do Código Penal, a concordância do portador concreto do interesse jurídico relevante, ou do seu representante, há-de ser levada ao estatuto doutrinal e ao regime jurídico-penal do acordo que exclui a tipicidade [Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 718], pelo que, também por esta razão, o recurso tinha, nesta parte que improceder.
Conclui-se assim, nesta parte, pela manifesta improcedência do recurso.

Decisão:
Quanto à constituição de assistente no que ao crime de ofensa à integridade física respeita, porque o ofendido B.........., desistiu da queixa apresentada contra o arguido D.........., desistência já homologada com o consequente arquivamento dos autos, verifica-se inutilidade superveniente do recurso.
Quanto à pretensão do recorrente se constituir assistente relativamente ao crime de introdução em local vedado ao público, rejeita-se o recurso, por manifestamente improcedente.

Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
Visto o disposto no art.º 420º n.º 4 do Código Processo Penal vai o recorrente condenado no pagamento de 3 UC.

Porto, 30 de Junho de 2004.
António Gama Ferreira Ramos
Rui Manuel de Brito Torres Vouga
Joaquim Rodrigues Dias Cabral