CLÁUSULA PENAL COMPULSÓRIA
REDUÇÃO
EQUIDADE
Sumário

I – O tribunal pode reduzir qualquer cláusula penal, segundo critérios de equidade, ao abrigo do art. 812º, nº 1 do Cód. Civil, mas para que tal ocorra exige-se que a cláusula seja manifestamente excessiva, ou seja que se mostre flagrantemente exagerada ou desproporcionada às finalidades que presidiram à sua estipulação e ao conteúdo do direito que se propõe realizar.
II – Tratando-se de cláusula penal de natureza compulsória só é possível reduzi-la quando esta evidencie para o devedor uma desproporção substancial e evidente, até porque através da possibilidade de redução da cláusula penal não se pode eliminar o efeito compulsório visado com a sua estipulação.
III – A redução da cláusula penal, ao abrigo do art. 812º, nº 1 do Cód. Civil, pressupõe sempre a alegação e prova de factos donde decorra o seu manifesto excesso.

Texto Integral

Proc. 14056/22.1 T8PRT.P1
Comarca do Porto – Juízo Local Cível – Juiz 5

Apelação



Recorrente: “A... Unipessoal, Lda.”
Recorrida: “B..., Unipessoal, Lda.” e outros



Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Artur Dionísio dos Santos Oliveira e Maria Eiró

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

A autora “A..., Unipessoal, Lda.”, anteriormente denominada “A..., SA”, com sede na Rua ..., ..., Linda-a-Velha, intentou ação comum contra os réus:

a) “B..., Unipessoal Lda.”, com sede na Rua ..., ..., ... Porto;

b) AA, residente na Rua ..., ..., ... Porto, e

c) BB, residente na Rua ..., ..., ... Porto.

Formulou o seguinte pedido:

a) Que os réus sejam condenados solidariamente a pagar à autora a quantia de 17.247,75€, correspondendo 17.216,33€ a capital e 31,42€ a juros de mora calculados desde 12.7.2022 até 19.4.2022, sobre a quantia de 16.984,60€ e sobre o montante de 231,73€, desde 6.1.2022 até 19.7.2022, à taxa de juro de 7% ao ano, em vigor para créditos de que são titulares empresas comercias, acrescida de juros vincendos até integral pagamento;

b) Que a ré sociedade seja condenada a restituir à autora a máquina de café BchM Cimbali M24 Plus 2gr, a máquina de café BchM Cimbali M24 Premium 2gr, o moinho de café BchM Cimbali Md 3000, o moinho de café BchM Cimbali Special, as duas máquinas de lavar BchM Faema F3 e a máquina de café BchM Piccola Cecilia 2gr autdep.

Para tal alega que celebrou com a primeira ré contrato de compra e promoção dos produtos por si comercializados, tendo aquela incumprido com o mesmo contrato. Mais alega que os segundo e terceiro réus se constituíram como fiadores no âmbito de tal contrato.

Os réus contestaram, pronunciando-se pela improcedência da ação e suscitando também a nulidade da cláusula penal ou, se assim não se entendesse, a possibilidade da sua redução.

Realizou-se audiência de julgamento, com observância do legal formalisno, no âmbito da qual foi homologada transação quanto à alínea b) do pedido formulado.

Por fim, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a ação e, em consequência, condenou os réus no pagamento solidário, à autora, da quantia de 12.383,08€, acrescida de juros de mora vencidos vincendos, contados desde 12.7.2022, juros calculados nos termos da Portaria 277/13, de 26.8, absolvendo-se os réus do demais peticionado.

Inconformada com o decidido, interpôs recurso a autora que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Salvo melhor opinião, não está correta a decisão recorrida, que absolveu parcialmente os RR. do pedido, por entender que o montante da cláusula penal – no valor de 10,00€, por cada quilo de café contratado e não adquirido – corresponde ao seu valor contratualizado.

2. Desde logo, porque não vêm provados, ou sequer alegados, factos que comprovem que esse é o valor de mercado praticado pela Recorrente.

3. Daí que para pretender que a mesma seja considerada inválida por excessiva (o que, como vimos, não pretende, nem o Tribunal se propõe apurar), ou para lançar mão da faculdade prevista no artigo 812º do Código Civil, sempre incumbiria aos Réus a demonstração de uma desproporção (manifesta) entre esta e o prejuízo real da Recorrente, o que pressupõe, naturalmente, alegar e provar qual é esse prejuízo – o que não veio a suceder, quer em sede de articulados, quer em sede de audiência de julgamento.

4. Assim, em face da matéria considerada provada e não provada, estava o tribunal impedido de recorrer ao instituto a que se refere o artigo 812º, nº 1 do Código Civil, reduzindo a cláusula penal fixada no contrato por acordo, por falta de elementos para avaliar a sua eventual excessividade manifesta.

A douta decisão recorrida violou as normas dos artigos 810.º e 812º, ambos do C.C.

Pretende assim que se revogue a decisão recorrida, sendo esta substituída por outra que considere procedente a totalidade do pedido da autora/recorrente.

Não foi apresentada resposta.

O recurso foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Cumpre então apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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A questão a decidir é a seguinte:

Apurar se foi correta a decisão recorrida na parte em que reduziu para metade o valor da cláusula penal convencionada entre as partes.


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OS FACTOS

É a seguinte a factualidade dada como provada na sentença recorrida:

a) A autora celebrou com a primeira ré, em 21.12.2018, o contrato nº ...84, cuja cópia foi junta, como documento 1, com a petição inicial.

b) Na cláusula segunda, números 1) e 3) do contrato, a sociedade ré obrigou-se durante o período de vigência do mesmo, a não adquirir a terceiros, nem publicitar ou revender outras marcas de café e descafeinado no seu estabelecimento, e bem assim, a revender e publicitar em exclusivo o café Buondi lote Premium, da autora.

c) na mesma cláusula segunda, mas no número 2), a ré obrigou-se também a adquirir 1.380kg daquele café, devendo tal aquisição ser efectuada através de uma compra mínima mensal de 23kg, durante os 60 meses do contrato previstos no número 1) da cláusula sexta.

d) Como contrapartida das obrigações assumidas pela ré, e como resulta da cláusula quarta, número 1) do contrato, a autora emprestou-lhe o seguinte equipamento:

1. Uma máquina de café BchM Cimbali M24 Plus 2gr, no valor de 3.466,24€, acrescido de IVA;

2. Uma máquina de café BchM Cimbali M24 Premium 2gr, no valor de 830,91€, acrescido de IVA;

3. Um moinho de café BchM Cimbali Md 3000, no valor de 858,08€, acrescido de IVA;

4. Um moinho de café BchM Cimbali Special, no valor de 226,25€, acrescido de IVA;

5. Uma máquina de lavar BchM Faema F3, no valor de 500,00€, acrescido de IVA;

6. Uma máquina de lavar BchM Faema F3, no valor de 607,69€, acrescido de IVA;

no valor global de 7.981,69€, com IVA incluído.

e) Também como contrapartida das obrigações assumidas pela ré sociedade e como resulta da cláusula quinta, número 1), a autora entregou-lhe a quantia de 25.830,00€ a título de comparticipação publicitária;

f) Estabelecendo-se no número 2) da mesma cláusula que resolvido o contrato com fundamento em qualquer causa não imputável à autora, e sem prejuízo de quaisquer indemnizações a que haja lugar, a ré obrigava-se a restituir à autora a comparticipação publicitária prestada, deduzida do montante proporcional ao período contratual decorrido, contado em meses.

g) E no número 3) daquela cláusula estipulou-se que, sem prejuízo da responsabilidade decorrente do incumprimento de outras obrigações contratuais, o incumprimento das obrigações previstas no número dois da cláusula segunda, directamente ou como consequência da resolução do contrato por incumprimento de obrigações nele previstas, obrigava a ré a pagar à autora, a título de cláusula penal, o montante de 10,00€ por cada quilograma de café contratado nos termos do número dois da cláusula segunda e não adquirido pela ré.

h) No âmbito do contrato a autora vendeu e entregou à ré o café Buondi a que corresponde a factura ...38, de 06.12.2021, com vencimento em 06.01.2022, no montante de 231,73€.

i) No entanto, na data do seu vencimento a ré nada pagou, nem posteriormente, apesar de interpelada por carta da autora de 18.05.2022.

j) Os réus AA e BB, constituíram-se fiadores e principais pagadores solidários.

k) A partir de Dezembro de 2021, a ré sociedade deixou de adquirir o café da autora, não mais retomando o seu consumo apesar de interpelada pela autora por carta de 02.06.2022, interpelação de que a autora deu conhecimento aos réus por cartas também de 02.06.2022.

l) Quando deixou de consumir o café da autora a ré tinha consumido 413,39kg dos 1.380kg contratado.

m) A autora resolveu o contrato por carta de 28.06.2022. e exigiu-lhe a restituição da quantia de 7.318,50€.

n) Bem como o pagamento da importância de 9.665,70€ (1.380kg – 413,39 kg x 10€).

o) Resolução também comunicada aos réus fiadores por cartas de 28.06.2022.

p) O café não adquirido pela ré, no período de duração do contrato, foi vendido a terceiros.


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Não se provou o seguinte facto:

a) que os réus não tenham tido conhecimento do teor das cartas remetidas pela autora, em 28/06/2022.


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O DIREITO

1. Na decisão recorrida, na sequência do invocado em sede de contestação, entendeu-se reduzir a metade o valor peticionado pela autora a título de cláusula penal, pelo incumprimento do contrato no tocante à quantidade de café que a 1ª ré se obrigara a adquirir.

Porém, a autora, discordando desta redução, interpôs recurso, no qual sustenta que não se encontram provados factos donde resulte que haja uma manifesta desproporção entre a cláusula penal convencionada e o prejuízo real sofrido pela autora.

Ou seja, o tribunal não dispunha de elementos factuais que lhe permitissem avaliar da manifesta excessividade da cláusula penal.    

Vejamos então.

2. O contrato de compra e venda de café, celebrado entre a autora e os réus, em regime de exclusividade, obrigando o comprador a consumos mínimos obrigatórios de determinadas quantidades de café, durante um certo período de tempo, mediante a contrapartida da disponibilidade de bens destinados do vendedor ao comprador durante o período de vigência do contrato, sendo estabelecida sanção para o incumprimento, exprime a existência de um contrato misto, complexo, de natureza comercial, que envolve elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de prestação de serviços e ainda do contrato de compra e venda de café, em regime de exclusividade relativamente ao comprador – cfr. arts. 2º, 13º e 463º, nº 1 do Cód. Comercial e 410º, nº 1, 874º, 1129º e 1154º do Cód. Civil.[1]

3. Porém, feita esta consideração prévia quanto à natureza do presente contrato, importa assinalar que a questão em discussão no presente recurso cinge-se a saber se foi acertada a decisão da 1ª Instância de reduzir a metade o valor da cláusula penal convencionada no nº 3 da cláusula quinta cuja redação é a seguinte:

Sem prejuízo da responsabilidade decorrente do incumprimento de outras obrigações contratuais, o incumprimento das obrigações previstas no número dois da Cláusula Segunda, diretamente ou como consequência da resolução do contrato por incumprimento de outras obrigações nele previstas, obriga o SEGUNDO CONTRATANTE a pagar à A..., a título de cláusula penal, o montante de €10,00 (dez euros) por cada quilograma de café contratado nos termos do número dois da Cláusula Segunda e não adquirido pelo SEGUNDO CONTRATANTE.”[2]

4. Estatui o art. 810º, nº 1 do Cód. Civil que as partes podem fixar por acordo o montante da indemnização exigível, o que se chama cláusula penal. Esta pode ser definida como a estipulação negocial segundo a qual o devedor, se não cumprir a obrigação ou não cumprir exatamente nos termos devidos, maxime no tempo fixado, será obrigado, a título de indemnização sancionatória, ao pagamento ao credor de uma quantia pecuniária. Se estipulada para o caso de não cumprimento, chama-se cláusula penal compensatória; se estipulada para o caso de atraso no cumprimento, chama-se cláusula penal moratória – cfr. CALVÃO DA SILVA, Cumprimento e Sanção Penal Compulsória”, 4ª ed., págs. 247/248.  

O direito de estipular uma cláusula penal surge como corolário do princípio da liberdade contratual consagrado no art. 405º do Cód. Civil, do qual decorre que dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver, bem como reunir no mesmo contrato as regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei.

O principal objetivo da cláusula penal, que resulta do acordo das partes, é o de evitar dúvidas futuras e litígios entre elas quanto à determinação do montante da indemnização – cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil Anotado”, Vol. II, 3ª ed., pág. 74.

A cláusula penal, conforme afirma ANTUNES VARELA (in “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 7ª ed., págs. 139/140), é normalmente chamada a exercer uma dupla função, no sistema da relação obrigacional.

“Por um lado, a cláusula penal visa constituir em regra um reforço (um agravamento) da indemnização devida pelo obrigado faltoso, uma sanção calculadamente superior à que resultaria da lei, para estimular de modo especial o devedor ao cumprimento. Por isso mesmo se lhe chama penal – cláusula penal – ou pena – pena convencional.

A cláusula penal é, nestes casos, um plus em relação à indemnização normal, para que o devedor, com receio da sua aplicação, seja menos tentado a faltar ao cumprimento.

A cláusula penal extravasa, quando assim seja, do prosaico pensamento da reparação ou retribuição que anima o instituto da responsabilidade civil, para se aproximar da zona cominatória, repressiva ou punitiva, onde pontifica o direito criminal.   (…)

Por outro lado, a cláusula penal visa amiudadas vezes facilitar ao mesmo tempo o cálculo da indemnização exigível.

Assim sucede, com alguma frequência, quando os danos previsíveis a acautelar sejam muitos e de cálculo moroso, quando os prejuízos sejam, por natureza, de difícil avaliação ou quando sejam mesmo de carácter não patrimonial.” 

Como já atrás se referiu, a cláusula penal reveste usualmente duas modalidades: compensatória, quando estipulada para o caso de não cumprimento; moratória, quando estipulada para o caso de atraso no cumprimento.

Escreve CALVÃO DA SILVA (in “ob. cit., págs. 248/249) que “dada a sua simplicidade e comodidade, a cláusula penal é instrumento de fixação antecipada, em princípio “ne varietur”, da indemnização a prestar pelo devedor no caso de não cumprimento ou mora, e pode ser eficaz meio de pressão ao próprio cumprimento da obrigação. Queremos com isto dizer que, na prática, a cláusula penal desempenha uma dupla função: a função ressarcidora e a função coercitiva.

No que concerne à primeira destas funções, a cláusula penal prevê antecipadamente um forfait que ressarcirá o dano resultante de eventual não cumprimento ou cumprimento inexacto. Incidindo sobre o momento ressarcitório da dinâmica contratual, através dela as partes pré-avaliam o dano e liquidam-no de uma maneira «forfaitaire» (invariável) e preventiva. O que significa que o devedor, vinculado à cláusula penal, não será obrigado ao ressarcimento do dano que efectivamente cause ao credor com o seu incumprimento ou cumprimento não pontual, mas ao ressarcimento do dano fixado antecipadamente e negocialmente através daquela, sempre que não tenha sido pactuada a ressarcibilidade do dano excedente (art. 811º, nº 2).”

Já quanto à segunda daquelas funções – coercitiva - escreve o mesmo Professor (in ob. cit., pág. 250) que a cláusula penal “(…) funciona, também, como poderoso meio de pressão de que o credor se serve para determinar o seu devedor a cumprir a obrigação, desde que o montante da pena seja fixado numa cifra elevada, relativamente ao dano efectivo. O carácter elevado da pena constrange directamente o devedor a cumprir as suas obrigações, visto desencorajá-lo ao não cumprimento, pois este implica para si uma prestação mais onerosa do que a realização, nos termos devidos, da originária prestação a que se encontra adstrito. Esta maior onerosidade do incumprimento é de natureza a incitar o devedor a realizar a prestação devida, dada a ameaça de sanção que sobre si recai em caso de inadimplemento, e, assim, reforça e garante realmente a obrigação principal, exercendo pressão sobre o devedor no sentido do seu cumprimento.”

Estipulada validamente uma cláusula penal, a pena, que é o seu objeto, será exigível quando se verifique a situação para que foi prevista. Haverá, pois, que apurar a falta que os contraentes, por seu intermédio, quiseram sancionar, se a simples mora, o inadimplemento definitivo, o incumprimento propriamente dito ou qualquer outra irregularidade da prestação. Assim como haverá que determinar o interesse que concretamente se quis proteger com a estipulação da pena, a fim de saber se o facto ilícito ocorrido é o que ela cobre – cfr. PINTO MONTEIRO, “Cláusula Penal e Indemnização”, Colecção Teses, Almedina, pág. 683.

Prosseguindo, escreve PINTO MONTEIRO (in ob. e loc. cit.): “Não basta, porém, para que a pena se torne exigível, que ela haja sido aceite validamente e venha a ocorrer a situação por si prevenida. O devedor só incorre na pena caso tenha procedido com culpa.”

E mais adiante diz-nos ainda o mesmo Professor (in ob. cit., pág. 685):
“O direito à pena deve ser exercido (…) de acordo com o princípio da boa fé, à luz do qual poderá ter de se considerar que a pena é inexigível – e não apenas susceptível de redução – caso o seu elevado montante indicie sancionar ela infracções de especial gravidade, o que não se compatibilizará com uma atitude do credor que reclame o seu pagamento em face de uma diminuta infracção, praticamente insignificante. Também um comportamento tolerado ou consentido durante largo tempo, sem qualquer reacção do credor, poderá ser facto impeditivo da exigibilidade da pena, caso a sua reclamação posterior se mostre contrária ao princípio da boa fé.”

5. Prosseguindo, não se colocando dúvidas quanto à exigibilidade da cláusula penal convencionada, haverá agora, como já atrás se referiu, que indagar tão-somente da possibilidade da sua redução, ao abrigo do art. 812º, nº 1 do Cód. Civil.

Dispõe-se neste artigo que «a cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer disposição em contrário.»  

Sobre o poder que neste preceito legal se confere ao juiz no sentido de proceder à redução da cláusula penal escreve o seguinte CALVÃO DA SILVA (in ob. cit, págs. 272/273):

“Se a irredutibilidade da cláusula penal constitui uma solução injusta – por ser uma porta aberta a abusos cometidos por credores pouco escrupulosos e, assim, possibilitar o desenvolvimento imoderado e excessivo da sua função cominatória – não é difícil reconhecer que a intervenção judicial comporta em si o perigo de neutralização do valor coercitivo da cláusula penal, privando o credor de um legítimo e salutar, desde que não abusivo, meio de pressão sobre o devedor recalcitrante, apto a vencer resistências deste não menos injustificadas e a determiná-lo a cumprir as obrigações a que se encontra adstrito.

(…)

A questão está … em encontrar uma solução que, evitando resultados extremos, corrija os abusos sem matar o legítimo e salutar valor cominatório da cláusula penal, importante e às vezes essencial para compelir ao cumprimento devedores recalcitrantes que oferecem resistências injustificadas, prejudiciais ao credor e à segurança e desenvolvimento do comércio jurídico. (…)

O controlo judicial da cláusula penal impõe-se, mas limitado apenas à correcção de abusos, impõe-se, tão-só, para proteger o devedor de exageros e iniquidades dos credores, mas, não já, para privar o credor dos seus legítimos interesses (…)

Por isso, e para isso, a intervenção judicial do controlo do montante da pena não pode ser sistemática, antes deve ser excepcional e em condições e limites apertados, de modo a não arruinar o legítimo e salutar valor coercitivo da cláusula penal e nunca perdendo de vista o seu carácter à forfait. Daí que, por toda a parte, apenas se reconheça ao juiz o poder moderador, de acordo com a equidade, quando a cláusula penal for extraordinária ou manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente.”

E mais adiante o mesmo Professor (in ob. cit., pág. 274/276) escreve:

“Na apreciação do carácter manifestamente excessivo da cláusula penal, o juiz não deverá deixar de atender à natureza e condições de formação do contrato …; à situação respectiva das partes, nomeadamente a sua situação económica e social, os seus interesses legítimos, patrimoniais e não patrimoniais; à circunstância de se tratar ou não de um contrato de adesão; ao prejuízo previsível no momento da celebração do contrato e ao efectivo prejuízo sofrido pelo credor; às causas explicativas do não cumprimento da obrigação, em particular à boa ou má fé do devedor (…); ao próprio carácter à forfait da cláusula (…). É em função da apreciação global de todo o circunstancialismo objectivo e subjectivo do caso concreto, nomeadamente o comportamento das partes, a sua boa ou má fé, que o juiz pode ou não reduzir a cláusula penal, independentemente da existência de uma estipulação negocial que retire ao tribunal esse poder ou traduza renúncia prévia do devedor à utilização do equitativo poder de redução judicial, dado o carácter cogente do art. 812º - carácter imperativo que leva a considerar não escrita essa estipulação.”

O art. 812º do Cód. Civil surge assim como norma de controlo, como norma destinada a permitir uma fiscalização judicial de penas convencionais cujo exercício, na circunstância concreta, se revele abusivo – cfr. PINTO MONTEIRO, ob. cit., pág. 209.    

6. Revestindo a cláusula penal aqui em análise natureza coercitiva, compulsória, como flui da sua redação, deverá ter-se presente que para impelir o devedor a cumprir é necessário cominar-lhe um mal que represente um desincentivo ao incumprimento. Uma vez que esse mal não se relaciona com os danos e acresce mesmo à indemnização dos danos, o excesso manifesto terá de se reportar à dimensão da própria cominação e ocorrerá quando esta seja irrealista, desmesurada, brutal. Só é possível reduzir a cláusula penal quando for manifesto que esta possui uma desproporção substancial e evidente, quando a satisfação da mesma tiver para o devedor efeitos exorbitantes.

Através da sua redução não se pode eliminar o efeito compulsório querido com a estipulação da cláusula penal, até porque isso daria aos devedores a ideia de que podem aceitar qualquer cláusula dessa natureza sem temerem pelo seu pagamento em caso de não cumprimento uma vez que depois, quando ela lhe for exigida, obterão a sua redução judicial.

Tal redundaria na exclusão por via judicial do mecanismo jurídico da cláusula penal voluntária, o que deve ser evitado - cfr. Ac. Rel. Porto de 3.3.2016, p. 11709/15.4 T8PRT.P1, relator ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA, disponível in www.dgsi.pt..

Conforme escrevem ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO e A. BARRETO MENEZES CORDEIRO (in “Código Civil Comentado – II – Das Obrigações em Geral” – CIDP, Almedina, 2021, pág. 1070) “[a] cláusula penal a reduzir deve ser manifestamente excessiva. A jurisprudência enfatiza o advérbio: não basta que seja excessiva; deve ser chocante e exagerada, de valor exorbitante, totalmente desadequado e abusivo…”. [3]

7. No caso dos autos o Mmº Juiz “a quo”, com fundamento no art. 812º, nº 1 do Cód. Civil, por considerá-la manifestamente excessiva, entendeu reduzir para metade o valor convencionado na cláusula penal aqui sob análise.

Nesse sentido, escreveu o seguinte:

“No que se refere ao valor da cláusula penal inserta na cláusula 5ª, n.º 3 do contrato, importa dizer que ficou ali previsto o pagamento de uma quantia de 10,00€ por cada quilo de café não adquirido, nas condições previstas no contrato.

Trata-se do mesmo valor contratualizado, para efeitos de pagamento pela compra de cada quilo de café.

Ora parece claro ser excessivo uma cláusula penal que permite à autora ter uma vantagem em dobro, caso o contrato tivesse sido cumprido, uma vez que pode vender o mesmo café a terceiros, pelo mesmo preço.”

Sucede que não podemos concordar com este entendimento.

Com efeito, não se mostra provado, nem sequer foi alegado pelos réus, que tivesse sido contratualizado entre as partes o valor de 10,00€ para a aquisição de um quilo de café.

Por isso, carece de fundamento a afirmação feita na sentença recorrida de que a quantia de 10,00€ por quilo se tratava do valor que tinha sido contratualizado para pagamento de cada quilo de café adquirido à autora.

Assim, por ausência de suporte fáctico, não é acertado concluir que o pagamento de uma cláusula penal de 10,00€ por cada quilo de café não adquirido equivalerá, para a autora/recorrente, a uma indemnização em montante igual ao que comercializaria o seu café a terceiros e que, consequentemente, tal lhe permitiria obter uma vantagem em dobro.[4]

De resto, os elementos que resultam dos autos, relativamente ao preço do quilo de café, apontam para valores superiores àqueles 10,00€, o que é até referido nas suas alegações pela autora/recorrente, onde afirma que o preço médio do quilo de café por si comercializado, para o lote Boundi, Premium, ronda, em média, os 29,00€, ao qual acrescerá o IVA à taxa legal em vigor.[5]

É que não poderemos ignorar que da fatura FT 1N051238, de 6.12.2021, com vencimento em 6.1.2022, referente à aquisição de 6 kgs Buondi, lote Premium, junta com a petição inicial, resulta que o preço de cada quilo de café deste lote corresponde a 31,40€, incluindo IVA – al. h).

Constata-se pois que o valor do quilo de café considerado na cláusula penal – 10,00€ - é significativamente inferior a este e, por essa razão, mesmo que o café não adquirido pela ré, no período de duração do contrato, tenha sido vendido a terceiros – al. p) -, não podemos concordar com a afirmação feita na sentença recorrida de que esta cláusula penal se mostra excessiva por permitir à autora ter uma vantagem em dobro, caso o contrato tivesse sido cumprido.[6]

Ora, na sequência do que já atrás se expôs, a redução de cláusula penal compulsória só deve operar quando esta for, face à factualidade apurada, manifestamente excessiva, revelando para o devedor uma desproporção substancial e evidente, o que no presente caso não ocorre.

Aliás, a possibilidade de redução da cláusula penal por via judicial não pode eliminar o efeito compulsório que foi visado com a sua estipulação.

Neste contexto, o recurso interposto pela autora obterá provimento devendo ser integralmente atribuída a verba correspondente ao funcionamento da cláusula penal fixada no nº 3 da cláusula quinta do contrato celebrado entre as partes - 9.665,70€ (1.380kg – 413,39 kg x 10,00€) -, o que importará a total procedência da ação que propôs.


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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela autora “A... Unipessoal, Lda.” e, em consequência, altera-se a sentença recorrida que se substitui por outra que condena solidariamente os réus “B... Unipessoal, Lda.”, AA e BB no pagamento à autora da quantia de 17.247,75€ (dezassete mil duzentos e quarenta e sete euros e setenta e cinco cêntimos), correspondendo 17.216,33€ a capital e 31,42€ a juros de mora calculados desde 12.7.2022 até 19.7.2022, sobre a quantia de 16.984,60€ e sobre o montante de 231,73€, desde 6.1.2022 até 19.7.2022, tudo acrescido de juros de mora vencidos e vincendos desde 19.7.2022 e até integral pagamento nos termos da Portaria nº 277/13, de 26.8.

As custas, em ambas as instâncias, pelo seu decaimento, serão suportadas pelos réus/recorridos.


Porto, 20.2.2024
Eduardo Rodrigues Pires
Artur Dionísio dos Santos Oliveira
Maria Eiró
_________________
[1] Cfr. Acs. STJ de 15.1.2013, p. 600/06.5 TCGMR.G1.S1, relator FONSECA RAMOS e de 4.6.2009, p. 257/09.1 YFLSB, relator SALVADOR DA COSTA, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[2] É o seguinte o texto do nº 2 da cláusula segunda: «O SEGUNDO CONTRATANTE obriga-se a adquirir à A..., ou a distribuidor por esta indicado, a quantidade de 1380,00 quilogramas de café, devendo tal aquisição ser efetuada através de uma compra mínima mensal de 23,00 quilogramas.»
[3] Entre a jurisprudência aí referenciada apontam-se os Acórdãos da Relação de Coimbra de 10.7.2014, p. 3865/10.4 T2AGD.A.C1 (CATARINA GONÇALVES), disponível in www.dgsi.pt. e de 13.1.2009 (COSTA FERNANDES) in CJ, ano XXXIV, tomo I, págs. 13/17. 
[4] Anote-se aqui que a redução da cláusula penal, por manifestamente excessiva, pressupõe sempre a alegação e prova dos factos respetivos – cfr., por ex., Ac. Rel. Lisboa de 8.6.2021, p. 1340/18.8 T8CSC.L1, relatora ANA RODRIGUES DA SILVA, disponível in www.dgsi.pt.    
[5] Uma simples pesquisa na Internet permite constatar que o preço por quilo de café Buondi, lote Premium, se situa nesta área de grandeza.   
[6] De referir que nos Acórdãos do STJ de 10.10.2013 (p. 1303/11.4 TBGRD.C1.S1, relator ORLANDO AFONSO) e da Relação do Porto de 21.2.2018 (p. 1057/12.7 TBBVLG-A.P1, relator CARLOS GIL), ambos disponíveis in www.dgsi.pt., mencionados na decisão recorrida em seu apoio, entendeu-se que o montante unitário previsto na cláusula penal era igual ao que seria devido no caso de fornecimento efetivo de café ou bebidas, conclusão que no presente caso não é possível extrair.