PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
RATEIO FINAL
Sumário

I - No âmbito do processo de insolvência, o valor do crédito global reconhecido a um determinado credor só pode considerar-se pago através do produto da venda de um bem numa outra ação executiva na qual esse credor reclamou créditos se e na medida em que haja coincidência dos títulos que compõem aquele mesmo crédito.
II - O credor que na execução, além do capital, tenha direito a ser pago por despesas, indemnização ou juros, tem igualmente direito, em caso de insuficiência do produto para saldar todos os créditos, a ver respeitado o critério de imputação previsto no artigo 785.º, n.º 1, do Código Civil.
III - Não havendo dados suficientes nos autos no sentido de saber se estes critérios foram respeitados na elaboração do mapa de rateio, a instrução deve prosseguir com essa finalidade.

Texto Integral

Processo n.º 3987/19.6T8VNG.P1


Relator: João Diogo Rodrigues;
Adjuntas: Márcia Portela;
Lina Castro Batista.

*
Sumário
……………..
……………..
……………..


*

Acordam no Tribunal da Relação do Porto,

I- Relatório

1- No processo de insolvência em que figura como devedora, AA, encerrada a liquidação, foi pelo Administrador da Insolvência apresentada a proposta de distribuição e rateio final, segundo a qual o produto de tal liquidação foi suficiente para pagar os créditos reclamados na íntegra e ainda sobra um saldo de 28.761,64€ que, no entender do referido Administrador, deve ser entregue à Insolvente.

Isto porque, para além do mais sem interesse para este recurso, à sociedade A..., Ldª (habilitada como adquirente do crédito reclamado pela Banco 1..., S.A.) foi reconhecido um crédito de 109.458,45€ sobre a massa insolvente e a mesma já recebeu 108.081,40€ no processo executivo n.º 8979/08.8TBVNG, para saldar o mesmo crédito.

2- Tomando conhecimento desta proposta, veio a referida sociedade, no dia 14/07/2023, reclamar e pedir a retificação do mapa de rateio apresentado, de tal modo que lhe seja entregue o valor total de 27.755,83€, correspondente ao capital ainda em dívida, acrescido de juros, à taxa constante da reclamação de créditos apresentada. Isto pelas razões seguintes:

“- Nos presentes autos, foi apresentada uma Reclamação de Créditos quanto aos créditos titulados pela aqui Credora, no valor de 109.458,45€ (cento e nove mil quatrocentos e cinquenta e oito euros e quarenta e cinco cêntimos), valor este contabilizado à data de 14/05/2019.

- Foram ainda peticionados na referida reclamação os juros de mora vincendos até integral e efetivo pagamento, o que não é considerando na proposta de mapa de rateio apresentada.

- Aquando da entrega do produto da venda, no processo de execução n.º 8979/08.8TBVNG, foi efetuada a liquidação da obrigação reclamada e a mesma ascendia a 135.120,21€ (cento e trinta e cinco mil cento e vinte euros e vinte e um cêntimos), conforme Nota Justificativa que ora se junta como Documento n.º 1 e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

- Ora, o valor referente ao produto da venda recebido pela aqui credora foi de 108.081,40€ (cento e oito mil e oitenta e um euros e quarenta cêntimos), não sendo na verdade suficiente para liquidação do montante total em dívida.

- De acordo com o disposto no art. 785.º, n.º 1, do Código Civil, “Quando, além do capital, o devedor estiver obrigado a pagar despesas ou juros, ou a indemnizar o credor em consequência da mora, a prestação que não chegue para cobrir tudo o que é devido presume-se feita por conta, sucessivamente, das despesas, da indemnização, dos juros e do capital.”.

- Assim, a aqui Credora Reclamante procedeu à imputação do valor por si recebido de acordo com este normativo legal, encontrando-se ainda por liquidar à aqui Credora o valor de 27.038,81€ a título de capital”.

3- Ouvido o Administrador de Insolvência, pronunciou-se no sentido de aqui não ser aplicável o regime prescrito no artigo 785.º, n.º 1, do Código Civil, mas deve ter-se em conta, antes, o determinado na sentença de verificação e graduação de créditos, como sucedeu.

4- No mesmo sentido se pronunciou a Secretaria, no termo elaborado para o efeito, considerando que a proposta de rateio final de 12/07/2023 se encontra devidamente elaborada, “uma vez que respeita o determinado na sentença de graduação de créditos e teve em consideração o teor do reqtº. de 22.03.2023 (satisfação parcial dos créditos do Banco 2..., SA e A..., SA., em processo de execução)”.

5- Seguidamente, no dia 18/10/2023, foi proferido o seguinte despacho:

“Requerimento de 14 de Julho de 2023.

A credora/habilitada “A..., S.A.” veio apresentar reclamação relativamente à proposta de distribuição e de rateio final, com os fundamentos que aqui damos por reproduzidos.

Afigura-se-nos, contudo, que não lhe assiste razão.

De facto, o crédito reconhecido, por sentença transitada em julgado, agora titulado pela credora/habilitada, ascende ao montante de 109.458,45 euros [cfr. apenso B (nomeadamente, a notificação datada de 17 de Julho de 2020)], pelo que apenas este montante pode ser atendido.

A proposta apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência respeita o determinado na sentença de verificação e graduação de créditos, proferida a 5 de Janeiro de 2021 (transitada em julgado).

Pelo exposto, indefiro o requerido.

Notifique”.

6- Inconformada com esta decisão, dela recorre a referida sociedade, A..., Ldª, a qual termina a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“A- Na sequência da proposta de Mapa de Rateio final apesentada pelo Exmo. Senhor Administrador de Insolvência, foi por este proposta a devolução de um valor remanescente à Insolvente de 28.761,64€ (vinte e oito mil setecentos e sessenta e um euros e sessenta e quatro cêntimos), tendo a Recorrente apresentado a competente reclamação da mesma.

B- No entanto, considerou o Tribunal a quo que a proposta de mapa de rateio apresentada estava conforme a Sentença de Verificação e Graduação de Créditos, proferida em 05-01-2021.

C- Nos presentes autos a Recorrente reclamou o seu crédito no valor de 109.458,45€ (cento e nove mil quatrocentos e cinquenta e oito euros e quarenta e cinco cêntimos), valor este contabilizado à data de 14/05/2019, bem como, os juros de mora vincendos até integral e efetivo pagamento.

D- A Recorrente foi parcialmente ressarcida tendo recebido o montante de 108.081,40€ (cento e oito mil e oitenta e um euros e quarenta cêntimos), não sendo este valor suficiente para liquidação do montante total em dívida que aquando da liquidação no Processo de execução n.º 8979/08.8TBVNG, ascendia a 135.120,21€ (cento e trinta e cinco mil cento e vinte euros e vinte e um cêntimos).

E- A Recorrente procedeu à imputação do valor por si recebido, de acordo com o disposto no art. 785.º do Código Civil, encontrando-se ainda por liquidar à aqui Credora o valor de 27.038,81€ a título de capital.

F- No entanto, de acordo com o entendimento do Tribunal a quo a Recorrente apenas tem direito a ser parcialmente ressarcida, nos presente autos, e a título de rateio final deverá receber apenas o valor de 1.377,05€ (mil trezentos e setenta e sete euros e cinco cêntimos).

G- Tal decisão é, salvo melhor opinião, nula por contraria à lei, pois o processo de insolvência visa o ressarcimento dos credores mediante a execução universal dos bens da Insolvente, art. 1.º do CIRE.

H- Ainda que o seu crédito não fosse considerado como garantido conforme decorre do acima explanado, a aqui Credora tem o direito a ser ressarcida, uma vez que peticionou os juros subordinados.

I- Não devendo uma sentença de verificação e graduação de créditos, que é omissa quanto à graduação dos créditos subordinados prevalecer e manter-se inalterada, como sucede no caso concreto, uma vez que pode ser retificada a todo o tempo ao abrigo do disposto no art. 614.º do C.P.C..

J- Atento o supra exposto, deverá ser ordenada a correção do mapa de rateio apresentado nos presentes autos, de modo a permitir a entrega do valor devido à aqui Credora para o integral pagamento da dívida da Insolvente.

K- Em alternativa, deverá ser ordenada a retificação da sentença de verificação graduação de créditos e graduados os créditos subordinados de todos os credores, de modo a que os juros vencidos após as reclamações de créditos apresentadas sejam ressarcidos, sendo posteriormente retificado o mapa de rateio final”.

É, em síntese, o que pretende.

7- Não consta que tivesse havido resposta.

8- Recebido o recurso nesta instância e preparada a deliberação, importa tomá-la.


*

II- Mérito do recurso

1- Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto deste recurso, delimitado, como é regra, pelas conclusões das alegações da Recorrente [artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (CPC) “ex vi” artigo 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)], cinge-se a saber se deve ser ordenada a correção do mapa de rateio ou, em alternativa, ordenada a retificação da sentença de verificação e graduação de créditos, nos termos propugnados pela Apelante.


*

2- Para a resolução destas questões é útil levar em consideração os seguintes factos, que resultam da consulta do histórico eletrónico deste processo e demais apensos ao processo de insolvência:

a) Por sentença proferida no dia 13/05/2019, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência da Devedora, AA.

b) No dia 16/07/2019, para além de outros, foi apreendido à ordem do processo referente a essa insolvência o seguinte bem: “Direito à meação do prédio urbano, correspondente a uma casa com cave e r/chão e andar com logradouro sito na Rua ..., da freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o número ...71([1]) e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...36”.

c) No apenso de reclamação de créditos, o Administrador da Insolvência reconheceu à Banco 1..., S.A., um crédito global de 109.458,45€, vencido no dia 14/05/2019, assim constituído: 97.826,81€, a título de capital; 11.132,20€, a título de juros; e 499,44€, a outros títulos.

d) Posteriormente, por sentença proferida no dia 05/01/2021, o referido crédito foi reconhecido e graduado em primeiro lugar para ser pago pelo produto da venda do direito referido em b).

e) Esta sentença foi notificada às partes por ofício expedido no dia 06/01/2021 e não foi impugnada.

f) No processo de execução n.º 8979/08.8TBVNG, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Execução - Juiz 7, foi vendida a outra metade indivisa do prédio mencionado em b).

g) Nesse processo a Banco 1..., S.A., reclamou créditos que, no final, foram liquidados no montante global de 135.120,21€, sendo que 33.591,71€, correspondem a juros vincendos à taxa de 6538% de 21/02/2017 até 22/05/2022, sobre o capital de 97.826,81€.

h) Por sentença proferida no dia 08/10/2020, já transitada em julgado, a sociedade, A..., S.A., foi habilitada para intervir no processo principal e seus apensos em substituição da credora, Banco 1..., S.A..

i) A sociedade, A..., S.A., recebeu no aludido processo de execução (8979/08.8TBVNG) a quantia de 108.081,40€.


*

            3- Análise dos fundamentos do recurso

Pretende a Apelante, como vimos, que seja ordenada a correção do mapa de rateio apresentado nos presentes autos, de modo a permitir que lhe seja entregue o valor que entende ser-lhe ainda devido (27.755,83€) para integral pagamento da dívida da Insolvente ou, em alternativa, que seja “ordenada a retificação da sentença de verificação graduação de créditos e graduados os créditos subordinados de todos os credores, de modo a que os juros vencidos após as reclamações de créditos apresentadas sejam ressarcidos, sendo posteriormente retificado o mapa de rateio final”.

Comecemos, então, por averiguar se é de acolher o primeiro pedido.

No dito mapa de rateio fez-se uma conta muito simples: Nestes autos foi reconhecido à Apelante (atual substituta da Banco 1..., S.A.), um crédito global de 109.458,45€. Como, porém, já recebeu 108.081,40€ no processo executivo indicado (nº 8979/08.8TBVNG) para saldar aquele crédito, só falta pagar-lhe 1.377,05€ (109.458,45€-108.081,40€).

Partiu-se, assim, do princípio que o crédito em causa é qualitativamente igual em ambos os processos e que nestes autos pode ser abatido por inteiro o valor que a Apelante recebeu na referida execução.

Ora, são estes pressupostos que não temos por demonstrados.

Com efeito, na reclamação de créditos apensa a estes autos, o crédito reconhecido à Apelante ascende ao montante global de 109.458,45€ e é assim constituído: 97.826,81€, a título de capital; 11.132,20€, a título de juros; e 499,44€, a outros títulos.

Já no referido processo executivo, como resulta da nota justificativa aí elaborada (junta aos autos pela Apelante e pelo Banco 2..., S.A.), aquela, ou seja, a Apelante viu aí ser-lhe reconhecido um crédito no valor global de 135.120,21€, mas destes, 33.591,71€ dizem respeito a juros vincendos relativos ao período que mediou entre 21/02/2017 e 22/05/2022, sobre o capital de 97.826,81€.

Não há, assim, uma inteira coincidência de rubricas, exceto no que diz respeito ao capital.

E, não havendo essa inteira coincidência, deve questionar-se até que ponto o valor recebido pela Apelante na aludida execução pode ser inteiramente abatido nestes autos, para saldar o crédito que aqui lhe foi reconhecido.

Ora, quanto a esta matéria, temos por seguro que só na parte em que haja coincidência de títulos é que o pagamento efetuado à Apelante naquele processo executivo pode extinguir o crédito que aqui lhe foi reconhecido.

Por outro lado, também não pode deixar de se ter presente que, naquela execução, a Apelante tem direito a ver respeitado o critério de imputação previsto no artigo 785.º do Código Civil. Isto é, havendo, como há, outros créditos para além do capital, deve seguir-se a ordem de imputação prevista nesse preceito[2]. O que significa que se, por exemplo, os créditos aí reconhecidos englobarem juros de mora vincendos que não foram igualmente reconhecidos nestes autos, a Apelante tem o direito a vê-los pagos com prioridade sobre capital. E o mesmo se diga de outras despesas ou indemnizações. O dito artigo 785.º, do Código Civil, é claro a este respeito.

Ora, analisando os elementos disponíveis nos autos, cremos que não se pode concluir, desde já, que estes critérios foram respeitados. Isto é, que, por um lado, foi respeitada a ordem de imputação de pagamentos prevista no aludido artigo 785.º do Código Civil e que, por outro lado, depois de observada essa ordem, haja absoluta coincidência de títulos entre aquilo que a Apelante recebeu no processo executivo já indicado e as distintas rubricas que compõem o crédito que aqui lhe foi reconhecido. Basta atentar que, de acordo com a nota justificativa elaborada em tal execução, dos 135.120,21€, 33.591,71€ dizem respeito a juros vincendos relativos ao período que mediou entre 21/02/2017 e 22/05/2022, mas já se ignora a que rubricas se reporta o valor remanescente, 101.528,50€.

Bem se vê, pois, que, sem estrem perfeitamente clarificados os diversos títulos que compõem o crédito reconhecido à Apelante naquela execução e sem ser observado no pagamento o critério legal de imputação já referenciado, não se pode concluir que aqui, no processo de insolvência, aquela só tem direito a receber 1.377,05€, como se concluiu no questionado mapa de rateio e a decisão recorrida acabou por sancionar.

Isto dito, no entanto, não deixa de se acrescentar que, nesta fase e momento, a única diretriz para o dimensionamento do crédito da Apelante nesta sede, ou seja, neste processo de insolvência, é a sentença que nele foi proferida de verificação e graduação de créditos. Essa sentença, com efeito, não foi oportunamente impugnada, apesar de notificada às partes por ofício expedido no dia 06/01/2021 e, assim, não mais pode ser modificada, a não ser por via de recurso de revisão. Dito por outras palavras, essa sentença transitou em julgado (artigo 619.º, n.º 1, do CPC) e, assim, a partir daí, tornou-se imutável e vinculante. Imutável porque, ressalvada a hipótese do recurso de revisão já referenciada, não mais pode ser modificada. E vinculante porque, como prescreve o artigo 619.º, n.º 1, do CPC, a decisão nela incorporada “sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”. O que quer dizer que, no caso presente, não havendo lugar a nenhuma destas ressalvas, todas as partes e especialmente o tribunal (seja ele qual for) lhe devem obediência.

Evidentemente que, na altura própria, essa sentença podia ter sido impugnada. Tal como pode ser retificada se nela se verificar algum erro material, ou seja, erro de cálculo ou de escrita (artigo 249.º do Código Civil e artigo 614.º do CPC). Mas, não é isso que, neste momento, está em causa. É, antes, como já vimos, a correção do mapa de rateio, em função dos critérios anteriormente expostos. E essa correção, como também resulta do já exposto, só pode ser verificada depois averiguados os títulos concretos a que se deve considerar paga a Apelante no processo executivo já indicado e do confronto desse pagamento com as diferentes rubricas que constituem o crédito global que aqui lhe foi reconhecido, de modo a concluir se e em que medida é que essas rubricas estão saldadas.

Consequentemente, havendo necessidade de ulterior instrução, a decisão recorrida não pode deixar de ser revogada, procedendo, assim, o presente recurso, nesta pretensão.


*

III – Dispositivo

Pelas razões expostas, concede-se provimento ao presente recurso e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida e determina-se que se proceda a ulterior instrução nos termos e com os objetivos supra assinalados.


*


- Custas pela Massa Insolvente.



Porto 20/02/2024
João Diogo Rodrigues
Márcia Portela
Lina Baptista
_____________
[1] E não 2731 como consta do auto de apreensão, conforme despacho proferido no dia 09/10/2020 no apenso de apreensão de bens.
[2] Neste sentido, por exemplo, Ac. RP de 22/10/2019, Processo n.º 562/19.9T8OAZ.P1, consultável em www.dgsi.pt, de que o ora relator foi também subscritor.