EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
ENCERRAMENTO DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA QUALIFICADA DE FORTUITA
Sumário

Não é impedimento do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante com fundamento no art. 238º, nº 1, al. e) do CIRE, a circunstância de o tribunal - sem afastar o preenchimento das presunções legais previstas no art. 186º do CIRE – ter determinado o encerramento do processo e qualificado a insolvência como fortuita, por força do estatuído no art. 233º, nº 6 deste mesmo diploma.

Texto Integral

Proc. nº 984/23.0 T8AMT.P1
Comarca do Porto Este – Juízo do Comércio de Amarante – Juiz 2

  

Apelação

   Recorrente: AA

   Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadoras Maria da Luz Teles Menezes de Seabra e Alexandra Pelayo

   Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

   RELATÓRIO

A devedora AA veio requerer a exoneração do passivo restante, tendo invocado para o efeito que preenche todos os requisitos para que a mesma lhe seja concedida e que se dispõe a observar todas as condições previstas nos arts. 236º, nº 3 e 237º e segs. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE).

O credor “Banco 1..., S.A.” opôs-se ao deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante formulado pela Insolvente, nos termos do disposto na al. d) do nº 1 do art. 238º do CIRE, atendendo à antiguidade de incumprimento das responsabilidades junto dos credores/reclamantes.

A Sr.ª Administradora da Insolvência, em 21.8.2023, apresentou parecer desfavorável ao deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

Alega que a insolvente responde por obrigações vencidas já desde o ano de 2005 e encontra-se a ser demandada judicialmente para o cumprimento das mesmas, desde, pelo menos, o ano de 2006.

No decorrer dos anos de 2007 e 2009 foi o seu próprio património levado à venda no âmbito dos processos executivos contra si instaurados, e apenas em 12.7.2023 veio a apresentar-se à insolvência, pedido este que se seguiu à citação prévia daquela, em 31/01/2023, no âmbito do processo executivo instaurado pelo credor “Banco 1...”, processo nº 140/23.8T8LOU.

Mais diz que, pese embora consciente da sua manifesta incapacidade para o pagamento do passivo vencido, repudiou a herança aberta por óbito de seus pais, BB e CC, por escrituras outorgadas em 27.12.2018 e 24.5.2021, respetivamente, e nas quais lhe cabia um quinhão no valor de 10.864,87€, que foi dividido pelos seus três Filhos, DD, EE e FF.

Conclui que este ato de disposição [repúdio] não se coaduna com a conduta e dever de retidão que é expectável/exigível a qualquer devedor, tanto mais num momento em que já reconhecia a sua incapacidade financeira para satisfazer as obrigações assumidas, sendo de tal forma gravoso que se tem por prejudicial à massa insolvente sem admissão de prova em contrário.

Em sede de exercício do contraditório, veio a insolvente dizer que não aceita que tenha violado conscientemente qualquer obrigação legal imposta ao devedor e discorda do parecer da Sr.ª Administradora da Insolvência.

 Alega que na data em que o incumprimento das empresas se tornou definitivo existia diverso património que foi vendido, ficando a própria insolvente sem local onde viver, vendo-se até forçada a emigrar.

 Mais diz que nos últimos anos de vida os pais da insolvente tinham necessidades específicas tendo em conta a sua idade, as quais determinaram a necessidade, numa fase inicial de apoio domiciliário e, posteriormente à morte do pai, o internamento da mãe num lar.

Em face da sua indisponibilidade financeira para colaborar nos gastos que estas situações determinaram, acordou com os irmãos que, como forma de compensação do que era a sua quota-parte na responsabilidade, lhes entregaria a sua parte na herança.

Acrescenta que desconhecia que não devia praticar tal ato por ter credores que não tinham obtido a satisfação integral dos seus créditos e que o repúdio da herança colocava os seus filhos no seu lugar, o que só soube na data da escritura, altura em que aqueles receberam os cheques que lhes foram entregues pelo seu tio GG, como é legalmente imposto, mas devolveram esse dinheiro a sua mãe que, por sua vez, o entregou àquele seu irmão.

Confirma saber que as dívidas das empresas, pelas quais se havia co-responsabilizado, não estavam liquidadas, mas o valor da sua quota-parte nas heranças dos pais era ínfimo relativamente ao valor de qualquer uma dessas dívidas.

Em todo o caso acrescenta que este ativo só ficou disponível após o óbito dos pais da insolvente, sendo inadmissível que se entenda que o facto de a insolvente não se ter apresentado mais cedo à insolvência seja causa de maior prejuízo para os credores.

A insolvência foi qualificada como fortuita, por despacho de 2.10.2023.

Foi agendada data para audição em juízo da devedora, o que ocorreu em 14.11.2023.

Seguidamente foi proferida decisão, em 23.11.2023, que, ao abrigo do preceituado no art. 238º, n.º 1, al. e) do CIRE, indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente.

Inconformada com o decidido, a insolvente, em 29.12.2023[1], interpôs recurso, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes – e muito extensas – conclusões[2]:

1- O presente recurso é interposto da decisão que - indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, com fundamento na alínea e), nº 1 do art. 238 do CIRE.

2- É objecto do recurso a impugnação da matéria de facto não provada constante das alíneas a), d), e), f), h), i) e m) dos Factos Não Provados.

3- Na decisão quanto a tal matéria de facto não foram tidos em conta todos os elementos probatórios constantes dos autos, nomeadamente os documentos juntos pela insolvente e os demais factos assentes.

4- Para a decisão sobre as alíneas a), e), f), h) dos Factos Não Provados não foram tidos em conta:

- O teor do nº 20 dos Factos Provados – que a mãe da insolvente esteve internada num Lar Residencial,

- As datas de óbito dos pais da insolvente – nºs 6 e 8 dos Factos Provados.

- Todos os documentos juntos pela insolvente nos seus requerimentos de 11.09.2023, 16.10.2023 e 26.10.2023, que são recibos do Lar onde esteve a mãe da insolvente e recibos de quantias relativas a outras despesas da falecida – medicamentos, consultas, transporte de bombeiros, fraldas, resguardos, higiene pessoal.

5- Estão juntos aos autos recibos emitidos em nome de CC, relativos aos meses de Junho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro, de 2019, cada um no valor de 575,55 euros.

6- Dos mesmos meses, estão emitidos recibos em nome de GG, irmão da recorrente, no montante individual de 524,45 euros, a título de comparticipação familiar.

7- Resultando que, no ano de 2019, a mensalidade do Lar, neste ano de 2019, era de 1.100,00 euros, à qual que acresciam as demais despesas com medicamentos, higiene pessoal, fraldas, resguardos, consultas ou tratamentos que não eram não comparticipados.

8– Relativos ao ano de 2020 encontram-se juntos recibos emitidos em nome de CC dos meses de Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Outubro e Dezembro, no valor, cada um, de 677,30 euros.

9- Nos mesmos meses, estão emitidos recibos em nome de GG, irmão da recorrente, no montante individual de 472,70 euros, a título de comparticipação familiar.

10- Assim, a mensalidade do Lar, neste ano de 2020 era no valor de 1.150,00 euros, acrescida das mesmas despesas já atrás referidas.

11- Encontram-se juntos recibos emitidos em nome de CC, relativos aos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2021, sendo os dois primeiros no valor de 677,30 e o de Março de 731,93 euros.

12 - Dos mesmos meses, foram emitidos recibos em nome de GG, sendo os dois primeiros no montante individual de 472,70 euros e o último no valor de 423,07 euros, a título de comparticipação familiar.

13- Pelo que, a mensalidade nestes meses foi também de 1.150,00 euros.

14 - Estes documentos foram juntos nos requerimentos da insolvente de 11 de Setembro, 16 de Outubro e 26 de Outubro de 2023.

 15 – Sendo o montante global dos recibos emitidos em nome do irmão da insolvente, acima referidos, de 8.245,02 euros.

16 - Nos mesmos requerimentos foram também juntos recibos de Farmácia, laboratórios, bombeiros, consultas e outras entidades, emitidos em nome da mãe da insolvente, agrupados mensalmente.

17 - Perfazendo tais recibos os seguintes montantes em cada um dos meses a que respeitam:

Junho 2019 – 88,79 euros;

Agosto 2019 – 285,03 euros (110,06+8,95+166,02);

Setembro 2019 – 138,12 euros (82,88+28,04+6,91+20,37);

Outubro 2019 - 131,43 euros (5,90+3,43 +6,91 +12,80 +8,67 +36,12 + 57,60);

Novembro 2019 - 25,07 euros (5,90 + 19,17);

Janeiro 2020 – 77,10 euros;

Fevereiro 2020 – 157,95 (18,50+ 5,90+8+5,90+55,09+78,46);

Março 2020 - 101,13 euros (6,30 + 6,30 +88,53);

Abril 2020 - 315,88 euros (5,07 + 23,76 +2,48 + 19,50 +13,60 + 5,90 + 23,21 + 88,53+10,23+7,50 +18,00 +19,50 +57,60 +21,00);

Maio 2020 - 264,27 euros (110,67 + 10,59+ 32,56 + 65+70 + 23,60 + 5,90 +10,59);

Junho 2020 – 132,86 euros (5,90+8,95 + 5,90+ 45,96+ 66,15);

Julho 2020 – 147,03 euros (3,28 + 33,14 +19,50 +6,64+84,47);

Outubro 2020 – 6,30 euros;

Novembro 2020 – 6,30 euros;

Dezembro 2020 – 50,82 euros; (3,30 + 6,91 + 19,50 + 21,11);

Janeiro 2021 - 176,84 euros (23,82+10,00+ 20,00+ 39,52 + 83,50);

Fevereiro 2021 - 150,33 euros (55,86 + 36,95 + 1,64 + 8,35+15,85 + 24,56+7,12);

Março 2021-166,25 euros (0,21 + 26,81 + 15,85 + 5,45 + 21,14+26,31 + 6,30 +64,18);

18 – O montante global destes recibos é de 2.421,50 euros.

19- Todos os indicados documentos, recibos relativos às mensalidades do Lar e os relativos a outras despesas, constituem documentos particulares, juntos pela insolvente para prova de factos por si alegados em exercício de contraditório.

20- E não foram impugnados – nem o teor, nem a letra ou as eventuais assinaturas - nem pela Exma. Administradora, nem por algum dos credores, nomeadamente pelo credor Banco 1..., que se opôs ao pedido de exoneração do passivo restante, embora por fundamento diverso do da decisão recorrida.

21- Por isso, tais documentos gozam de força probatória plena quanto aos factos deles constantes, nos termos dos artigos 374, nº1 e 376 do Código Civil.

22- Do teor de tais documentos resulta, sem margem para dúvidas, que:

- Nos anos de 2019, 2020 e 2021, a mãe da insolvente esteve internada num Lar Residencial.

- As mensalidades nesses anos foram de 1.100,00 e 1.150,00 euros;

- Os gastos mensais com despesas de farmácia, fraldas, resguardos, higiene, transportes por bombeiros e outros, raramente eram inferiores a 100,00 euros, com frequência ultrapassavam os 200,00 euros e chegaram mesmo a ser superiores a 300,00 euros.

23 - Se um idoso permanece num Lar durante vários meses de um ano, ocorrendo o mesmo no ano seguinte e assim sucessivamente até à data da sua morte, é de admitir que ele se manteve também nos períodos intermédios e dos quais não se possui comprovativos de pagamento da mensalidade.

24 - Não estando de acordo com a normalidade da vida dos idosos necessitados desse apoio, nem das instituições que os recebem, que a mesma pessoa esteja e não esteja no Lar, entre por uns meses e se ausente por outros, a seu contento ou dos seus familiares.

25 – Sendo de admitir que, apesar de a insolvente não ter conseguido juntar documentos comprovativos relativos aos demais meses daqueles anos, a sua falecida mãe tenha realmente permanecido no Lar durante o período indicado desde Novembro de 2018 (após a morte do pai da insolvente) até à sua morte, ocorrida em 07.04.2021.

26 - Não tendo em conta a força probatória dos documentos juntos foram violadas as disposições de direito probatório do Código Civil acima citadas.

27 - A insolvente prestou declarações em audiência gravadas no sistema informático do Tribunal, e disponibilizadas na plataforma Citius, nas quais confirmou:

a) Desde 01m 24s “…eu depois de perder tudo tive de emigrar …minha mãe tinha de ter alguém que cuidasse dela. Decidimos pelos três (irmãos) arranjar um Lar para ela…não tínhamos condições”.

E então aí…eu não podia participar nas despesas e disse que a minha parte (da herança) dos pais ….

b) Aos 5m 53s, perguntada sobre o valor da mensalidade no lar, responde que “…Quando foi era 1050 euros. Sem fraldas, cremes, consultas, medicamentos…Depois aumentou. Havia meses que passava de 1500,00, outras vezes 1200,00… “.

c) E ainda aos 9m 40s: “Os recibos que têm eram o que ultrapassava o valor de… (pensão da Segurança Social da mãe). A mãe esteve (no Lar) desde 2018 a 2021 “.

d) Finalmente, aos 12m 00s, confirma que “O da Segurança Social (valor da reforma) ia diretamente para o Lar, eles (os irmãos) pagavam o resto.”

28 - Não resulta de qualquer elemento que a insolvente não tenha falado verdade sobre as questões que lhe foram colocadas.

29 - Tais declarações vão de encontro ao teor dos documentos juntos, no que toca ao período de permanência da mãe da insolvente no Lar, aos valores das mensalidades e das outras despesas.

30- Atendendo ao teor dos documentos juntos e à força probatória dos mesmos e às citadas declarações da insolvente, impunha-se diferente resposta aos pontos das alíneas a), e), f), h) dos Factos Não Provados.

31- Devendo tal matéria ser incluída no rol dos Factos Provados.

32 - Tido como não provado que “ A insolvente não tinha condições financeiras para colaborar com tais despesas, facto que seus irmãos conheciam”- al. d) dos Factos Não Provados.

33 - Dá-se como reproduzido o teor dos nºs 3, 4, 16 e 17 dos Factos Provados – situação financeira da insolvente, que “responde por obrigações vencidas desde 2005; encontra-se a ser demandada pelo menos desde 2006; que no decorrer dos anos 2007 e 2009 o seu próprio património foi levado à venda no âmbito de processos executivos; e que a insolvente não é titular de qualquer património passível de vir a integrar a massa insolvente; o encerramento dos autos principais por insuficiência da massa insolvente”.

34 - Assente ainda que os bens da insolvente foram vendidos no âmbito de processos executivos para cobrança de dívidas de sociedades, em que foi sócia e gerente, e por cujo cumprimento a insolvente se havia corresponsabilizado solidariamente, tal como o seu ex-cônjuge – o que consta do relatório da Exma. A.I.

35 - Nestas condições, e atendendo ainda que o processo principal foi encerrado por insuficiência da massa, não se justifica a inclusão da matéria da alínea d) nos Factos não provados.

36 - Existindo contradição entre o que se referiu como provado nos nºs 33 e 34 que antecedem e o teor de Não Provado da alínea d), quanto às condições financeiras da insolvente.

37 - Quanto ao segmento da mesma alínea, “…facto que seus irmãos conheciam” devemos considerar:

- Dos documentos juntos aos autos, nomeadamente a escritura de partilha por óbito dos pais da insolvente, consta as moradas destes, nas freguesias de ... e ..., ambas deste concelho, aliás limítrofes.

 - As sociedades e empresas mencionadas no Relatório tinham a sua sede na freguesia ... e a insolvente residiu até 2006 na freguesia ....

 38 – Atenta a proximidade física e de relação familiar não é credível que os irmãos da insolvente, como aliás a população em geral daquelas freguesias, desconhecessem o percurso das sociedades, que conduziu à respetiva insolvência e à venda de todos os bens, das sociedades e dos seus gerentes.

39 - Sendo contrário a toda a lógica que a insolvente não tivesse mantido a situação de debilidade financeira que apresenta desde 2006 e que seus irmãos não tivessem disso conhecimento.

40 - Sendo certo que em 2006 a insolvente tinha já 50 anos – nasceu em ../../1956 – e teve de emigrar para subsistir.

41- Justificando-se a alteração para Provado, de toda a matéria constante da alínea d) dos Factos não Provados.

42 - Quanto à matéria das alíneas i) e j) dos Factos não Provados: “ E foram os irmãos da insolvente que suportaram esses encargos durante todo o tempo que durou o internamento da mãe, desde Novembro de 2018 até Abril de 2021”.

“Face à sua impossibilidade financeira a insolvente havia declarado a seus irmãos que lhes cederia o seu direito nas respetivas heranças em compensação do que era a sua quota-parte na responsabilidade pelos cuidados a prestar aos pais”

43- No que respeita à alínea i) vale o que já ficou alegado acerca da força probatória dos documentos juntos pela insolvente.

 44- Resulta provado que, em cada mês, os serviços do Lar emitiam um recibo em nome da falecida e emitiam outro recibo em nome do irmão da insolvente, GG.

 45- Analisados estes recibos, verifica-se, quanto ao irmão da insolvente, que os do ano de 2019 tinham um valor de 524,45 euros e nos anos seguintes de 472,70 euros.

46- E resulta ainda que a soma do valor dos dois recibos, em cada mês, é igual à mensalidade que a insolvente alega ser a devida pelo internamento da mãe.

47- Está assente que os pais da insolvente eram pensionistas e que a quantia mensal que a mãe recebia era insuficiente para cobrir os custos de um lar e ainda os custos mensais com medicamentos e consumíveis (fraldas, resguardos, higiene pessoal, roupa). Cfr. Nºs 21 e 22 dos Factos Provados.

48- Não há dúvidas que as contas das mensalidades do Lar e das outras despesas, nomeadamente as que estão tituladas pelos documentos juntos aos autos, foram pagas.

 49- E se a falecida não tinha possibilidades para o fazer, naturalmente que o fizeram os filhos que tinham condições para tal, os irmãos da insolvente.

50- Sabendo eles que esta não o podia fazer porque se encontrava, há anos, em estado de graves dificuldades financeiras.

51- Esta matéria é ainda corroborada pelas declarações da insolvente, já atrás citadas e transcritas:

“Decidimos pelos três (irmãos) arranjar um Lar para ela…não tínhamos condições.

E então aí…eu não podia participar nas despesas e disse que a minha parte (da herança) dos pais ….”

 Aos 9m 40s: “Os recibos que têm eram o que ultrapassava o valor de… (pensão da Segurança Social da mãe). A mãe esteve (no Lar) desde 2018 a 2021 “.

E aos 12m 00s: “O da Segurança Social (valor da reforma) ia diretamente para o Lar, eles (os irmãos) pagavam o resto.”

52- Por tais fundamentos, justifica-se a alteração para Provado, da matéria constante das alíneas i) e j) dos Factos não Provados.

 53 - De resto, esta atuação da insolvente e dos seus irmãos, integra-se no cumprimento da obrigação legal de alimentos e ao modo como respondem os diversos obrigados, nos termos dos artigos 2009, nº 1- b) e 2010 do Código Civil.

54- Tendo a insolvente uma obrigação igual à de seus irmãos e existindo um património hereditário, não é admissível que este não fosse afetado à satisfação daquela responsabilidade.

55 - Das alíneas m) e n) dos Factos não Provados

   Não provado

 - Que os filhos da insolvente outorgaram a escritura e receberam os cheques entregues por seu tio GG, mas devolveram esse dinheiro a sua mãe que, por sua vez o entregou àquele seu irmão.

 - Que a insolvente e seus irmãos deram as contas por acertadas.

56- Quanto a esta matéria entendemos que se verifica incorrecta apreciação dos elementos constantes da fundamentação.

57 - Tendo ocorrido a outorga de escritura e constando da mesma a entrega de cheques devidamente identificados aos filhos da insolvente, titulando o valor das tornas, a questão que se mantém é saber se ocorreu a devolução daquela quantia à insolvente e a entrega, por esta, aos irmãos.

58- Consta no fundamento da decisão de facto, quanto a esta matéria:”…se a devedora pretendia pagar uma dívida com a herança que tinha a receber poderia ter recorrido ao mecanismo da dação em pagamento. Mesmo que a devedora não soubesse que com o repúdio estaria a fazer intervir os seus filhos poderia ter agido de outra forma.”

“…se a intenção era compensar seus irmãos bastava ter efetuado uma escritura de repúdio aquando da morte de sua mãe…o que revela que a devedora não queria ter património que pudesse ser alcançado pelos credores".

 59 - E ainda “…alegando a insolvente que foram seus irmãos que suportaram os encargos durante todo o tempo que durou o internamento de sua mãe e não apenas o adquirente dos bens da herança…não se compreende que a mesma tenha dado toda a sua parte apenas a um deles, precisamente ao adquirente do imóvel e não metade para cada um”.

60- Salvo o devido respeito, esta fundamentação poderia valer para alguém com formação jurídica, com experiências de vida semelhantes, ou que tivesse procurado informação junto de profissional habilitado com exposição de toda a sua situação. O que não foi o caso da insolvente.

61 - Se a insolvente tivesse tomado a iniciativa de obter informação qualificada, tinha à sua disposição, além dos apontados, outros meios “seguros” para desviar os bens dos credores se essa fosse essa a sua intenção.

62 - Podia ter renunciado às heranças (figura distinta do repúdio); podia ter confessado a dívida a seus irmãos, devidamente discriminada, por via da satisfação dos encargos com sua mãe e cedido a sua parte em pagamento; podia, com alguma “intenção” estabelecer um acordo com os irmãos autorizando que os pais declarassem vender-lhes os bens; podiam até os pais terem efectuado doação aos outros filhos, e estes entregarem dinheiro à insolvente.

63- Mas a insolvente nem tinha informação, nem a procurou porque lhe pareceu que, desse modo, obtinha o que pretendia – compensar os irmãos por terem suportado sozinhos os encargos com seus pais, e sobretudo com a mãe.

64- Porque a questão apenas se lhe colocou com a necessidade de cooperar em tais encargos.

65 - Sobre a consideração “…não se compreende que a mesma tenha dado toda a sua parte apenas a um deles, precisamente ao adquirente do imóvel e não metade para cada um” há que esclarecer:

 - A insolvente alegou ter declarado a seus irmãos que lhes cederia o seu direito nas respetivas heranças, em contrapartida de estes assumirem a totalidade dos encargos com a mãe.

- Que quando os filhos lhe devolveram o dinheiro titulado pelos cheques que lhes tinham sido entregues pelo irmão GG, a insolvente o entregou a este irmão.

 - E que todos - a insolvente e os irmãos – deram por acertadas as contas.

66- Se apesar da declaração da insolvente que cederia a sua quota-parte nas heranças aos irmãos, na escritura de partilha os bens foram adjudicados apenas a um deles, necessariamente isso implicou um acordo do outro.

 67- Por outro lado, o facto de a insolvente ter entregado o dinheiro ao irmão GG, não significa que o outro irmão não tenha recebido a metade dessa quantia.

   Justificando-se a declaração de que as contas ficaram acertadas com os dois irmãos.

 68- Também a questão da entrega do dinheiro à insolvente pelos seus filhos para depois esta o entregar ao irmão, não constitui nenhuma atuação anómala do ponto de vista da vida comum.

69- A insolvente esteve em França até à idade de obter a reforma em Portugal.

70- Seus filhos sabiam que aqueles valores não lhes pertenciam e não é de estranhar que aguardassem que sua mãe estivesse no País para lhe entregarem o dinheiro.

 71 - Parece óbvio afirmar, como na decisão, que os filhos podiam ter efetuado a transferência para a conta do tio; mas não se sabe se eles queriam fazê-lo, por saberem que tal quantia correspondia à parte de sua mãe.

72- Em todo o caso, não se pode entender como despropositado que os filhos tivessem aguardado pela presença da mãe para devolverem o dinheiro.

73- Deixando à mãe e aos tios qualquer acerto do negócio que havia entre eles.

74 - A motivação para a inclusão do teor das duas alíneas m) e n) nos Factos não Provados resulta, como já acima se referiu, de incorrecta apreciação da generalidade dos factos e do modo como se atribuiu aos intervenientes na partilha atitudes, raciocínio e conhecimentos como se aqueles estivessem colocados na mesma posição do julgador.

75 - Nada obstando a que a posição da insolvente sobre tal matéria seja julgada adequada à situação concreta em que a mesma e seus irmãos se encontravam, de acordo com as suas capacidades intelectuais.

76 – E, consequentemente, julgar provada aquela matéria.

   DO DIREITO

77 - A Srª A.I. fundamenta o parecer desfavorável na alínea d) do nº 1 do artigo 238 do CIRE.

78 - Igual invocação apresentou o credor Banco 1... para se opor à exoneração do passivo.

78 - A decisão recorrida fundamenta o indeferimento na alínea e) do mesmo artigo.

79 - Nos termos desta norma o pedido de exoneração deve ser liminarmente indeferido se constarem já do processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão pelos credores ou pelo A.I. elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art. 186.

80 - O artigo 186 enumera as situações em que a insolvência deve ser qualificada como culposa e aquelas situações em que deve ser sempre considerada culposa.

81- Concluindo-se na decisão que a insolvente agravou a sua situação desfazendo-se de bens que podiam, pelo menos em parte, saldar as suas dívidas.

82- E tendo por dolosa e gravemente culposa a atuação da insolvente.

83- Retomando o teor do nº 1- alínea e) do artigo 238 temos como assente que os elementos que indiciem a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, hão-de já constar do processo ou ser a ele levados até ao momento da decisão.

84- Ora, como já foi referido nestas alegações, não foi aberto incidente de qualificação e foi proposto o encerramento do processo por falta de bens da massa insolvente, nos termos do Relatório apresentado em 21 de Agosto de 2023.

85- O relatório foi notificado aos credores que nada opuseram ou requereram.

85 - A insolvência foi declarada fortuita, nos termos de despacho proferido em 02.10.2023 e notificado a todos os intervenientes processuais.

86 - Nenhum dos credores, nomeadamente o Banco 1..., suscitou qualquer questão ou oposição a esta decisão, pelo que a mesma transitou em julgado.

87 - Ora, na data de elaboração do relatório da A.I., bem como do despacho que declarou fortuita a insolvência, os autos dispunham já de todos os elementos que justificaram o parecer desfavorável e vieram a fundamentar a decisão recorrida.

88 - Elementos que eram os mesmos e que, de resto, foram obtidos pela mandatária da insolvente e entregues à Exma. A.I.

89- Entendemos que a decisão que qualifica a insolvência como fortuita, transitada em julgado, impõe-se no incidente de exoneração do passivo restante.

90 - E impede que “…. a conduta que podia ter sido valorada em sede de qualificação da insolvência possa ser autonomamente relevada em sede de exoneração do passivo restante e com total indiferença face ao decidido em sede de encerramento do processo de insolvência e na qual se qualificou a insolvência como fortuita.” Acórdão do T.R. Porto, de 21.03.2022, Proc. 1689/21.2T8STS-B.P1, sendo relator o Senhor Juiz Desembargador Carlos Gil.

91 - Na data do despacho de encerramento do processo de insolvência e declaração de insolvência fortuita o Tribunal dispunha dos mesmos documentos e informações que, mais tarde, fundamentaram a decisão no pedido de exoneração, convocando a alínea e), do nº1 do Cire, e decidindo, agora, ter havido conduta culposa da insolvente.

92 - Formado caso julgado sobre o citado despacho de encerramento a decisão recorrida deve ser revogada, o que, aliás, é de conhecimento oficioso – artigos 577, al. i) e 578 do C.P.C.

    Na procedência das conclusões,

    Deve o presente recurso ser julgado procedente e ser revogada a decisão recorrida, mantendo-se a decisão de insolvência fortuita com as legais consequências.

    Não foi apresentada resposta.

   O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.

   Cumpre então apreciar e decidir.


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   FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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   QUESTÕES A DECIDIR:

 Em primeiro lugar, pelo seu carácter prévio, há que apurar se a decisão de qualificação da insolvência como fortuita é impeditiva do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

Só em caso de resposta negativa a esta questão haverá que reapreciar a matéria de facto provada e não provada e apurar se a mesma é suscetível de integrar a previsão do art. 238º, nº 1, al. e) do CIRE.


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É a seguinte a factualidade dada como provada na decisão recorrida:

1- O presente processo de insolvência teve início em 12/7/2023 com a apresentação à insolvência por parte da devedora.

2- Foram reconhecidos créditos no valor de 1442 784,42€.

3- A insolvente responde por obrigações vencidas desde o ano de 2005 e encontra-se a ser demandada judicialmente para o cumprimento das mesmas, desde, pelo menos, o ano de 2006.

4- No decorrer dos anos de 2007 e 2009 foi o seu próprio património levado à venda no âmbito dos processos executivos contra si instaurados.

5- A insolvente foi citada em 31/01/2023, no âmbito do processo executivo instaurado pelo Credor Banco 1..., processo nº 140/23.8T8LOU.

6- Em ../../2018 faleceu BB, Pai da Insolvente.

7- Por óbito de BB foi lavrada «Escritura de Habilitação de Herdeiros» em 27/12/2018, no Cartório Notarial sito em Amarante, a cargo da Dra. HH, constante de fl. 75 do livro ...5... daquele Cartório.

8- Em 07/04/2021 veio a falecer CC, Mãe da Insolvente.

9- Por óbito de CC foi lavrada «Escritura de Habilitação de Herdeiros» em 24/05/2021, no Cartório Notarial sito em Amarante, a cargo da Dra. HH, constante de fl. 13 do Livro nº ...3..., daquele Cartório.

10- Por «Escritura de Repúdio» outorgada em 27/12/2018 naquele mesmo Cartório, constante de fl. 74 do livro ...5..., a insolvente REPUDIOU a herança de seu PAI.

11- Por «Escritura de Repúdio» outorgada a 24/05/2021 naquele mesmo Cartório, constante de fls. 12 a 12-verso do Livro ...3..., a insolvente REPUDIOU a herança de sua MÃE.

12- A Insolvente tem como únicos descendentes sucessíveis os seus três filhos: DD, EE e FF.

13- Por «Escritura de Partilha» outorgada a 10/09/2021 no Cartório Notarial sito em Amarante, a cargo da Dra. HH, constante de fls. 20 a fls. 24 do Livro ...8..., II (Irmão da Insolvente), GG (Irmão da Insolvente) e os Filhos da Insolvente, DD, EE e FF, na qualidade de seus únicos herdeiros, procederam “à partilha das heranças deixadas por óbito daqueles BB e CC, das quais fazem parte os seguintes imóveis, sitos na união das freguesias ... (...), ..., ... e ... – extinta freguesia ..., concelho de Amarante:”

 • PRÉDIO URBANO, composto de rés do chão, andar e logradouro, sito em ..., na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Amarante sob o nº...87/... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...04 com o VPT de EUR 32.500,30.

 • PRÉDIO RÚSTICO, composto por cultura com videiras em ramada, com a área de 500m2, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Amarante e inscrito na matriz rústica com o artigo ...11 (teve origem no artigo ...15 da extinta freguesia ...), com o VPT de EUR 94,31.

14- Da referida escritura consta o seguinte “é de trinta e dois mil e quinhentos e noventa e quatro euros e sessenta e um cêntimos, o valor dos bens a partilhar. Este valor divide-se em três partes iguais, tantas quantas as três estirpes de descendentes dos autores das heranças, no montante de dez mil oitocentos e sessenta e quatro euros e oitenta e sete cêntimos, o valor do quinhão hereditário a que cada uma das estirpes tem direito.”

15- Da referida «Escritura de Partilha» consta expressamente que o “quinhão hereditário que pertenceria à filha AA, no montante de dez mil oitocentos e sessenta e quatro euros e oitenta e sete cêntimos, divide-se por três, tantos quantos os seus filhos, no valor de três mil seiscentos e vinte e um euros e sessenta e dois cêntimos para cada.”

Ainda, “Ao segundo outorgante, GG, são adjudicados os imóveis supra descritos sob as verbas um e dois, no montante global de trinta e dois mil quinhentos e noventa e quatro euros e sessenta e um cêntimos, pelo que leva a mais que o seu direito o montante de vinte e um mil setecentos e vinte e nove euros e setenta e quatro cêntimos, que em tornas de igual valor repõe aos restantes herdeiros e interessados respetivamente, a quantia de dez mil oitocentos e sessenta e quatro euros e oitenta e sete cêntimos ao sei irmão II e a quantia de três mil seiscentos e vinte e um euros e sessenta e dois cêntimos a cada um dos seus sobrinhos DD, EE e FF.”

16- A insolvente não é titular de qualquer património passível de realização pecuniária e, por conseguinte, passível de vir a integrar a massa insolvente.

17- Os autos principais foram encerrados por insuficiência da massa insolvente.

18- A insolvente sabia que as dívidas das empresas, pelas quais se havia corresponsabilizado, não estavam liquidadas.

19- A devedora não tem antecedentes criminais.

20- A mãe da insolvente esteve internada num Lar Residencial.

21- Os pais da insolvente eram pensionistas.

22- A quantia mensal que a mãe da insolvente recebia era insuficiente para cobrir os custos de um Lar e ainda os custos mensais com medicamentos e consumíveis (fraldas, resguardos, higiene pessoal, roupa).

   Factos Não provados:

   Com interesse para a decisão da causa, não se provou que:

a) A da mãe da insolvente esteve internada no Lar Residencial que já lhe prestava cuidados domiciliários desde Novembro de 2018 até à sua morte, em Abril de 2021.

b) Os pais da insolvente eram beneficiários de pensão de velhice do regime agrícola, que rondava os 300,00€ para cada um.

c) A mãe da insolvente beneficiava da pensão de sobrevivência, pelo que auferia da Segurança Social valor mensal que variou entre os 450 e 470 euros, aproximadamente.

d) A insolvente não tinha condições financeiras para colaborar com tais despesas, facto que os seus irmãos conheciam.

e) A mensalidade do Lar era inicialmente de 1.100,00 euros, passando em 2020 a 1150,00 e em 2021 a 1155,00 euros.

f) Os gastos mensais em farmácia raramente eram inferiores a 80,00 euros, muitas vezes rondavam os 100,00 euros; e os demais cerca de 90,00 euros, sendo muitas vezes superiores.

g) Frequentemente era necessário recorrer à utilização de equipamentos e fornecimento de oxigénio, tendo em conta a imobilização da mãe, com os correspetivos encargos.

h) O valor mensal a suportar com o Lar e todas as outras necessidades variava entre os 850 a 900 euros, no mínimo, deduzido já o valor da pensão de reforma.

 i) E foram os irmãos da insolvente que suportaram esses encargos durante todo o tempo que durou o internamento da mãe, desde Novembro de 2018 até Abril de 2021.

 j) Face à sua impossibilidade financeira a insolvente havia declarado a seus irmãos que lhes cederia o seu direito nas respetivas heranças em compensação do que era a sua quota-parte na responsabilidade pelos cuidados a prestar aos pais.

k) Desconhecendo que o repúdio da herança colocava os seus filhos no seu lugar.

l) Só aquando da outorga da escritura de partilha ficou a saber que os filhos tinham de intervir, no seu lugar.

m) Os filhos da insolvente outorgaram a escritura e receberam os cheques que lhes foram entregues por seu tio GG, mas devolveram esse dinheiro a sua mãe que, por sua vez, o entregou àquele seu irmão.

n) Tendo, a insolvente e seus irmãos, dado por acertadas as contas. 


*

   Passemos à apreciação do mérito do recurso.

   1. A Mmª Juíza “a quo”, através do despacho agora em recurso, indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente, com fundamento na alínea e) do nº 2 do art. 238º do CIRE[3], tendo produzido nesse sentido uma larga argumentação fáctico-jurídica.

   Neste despacho, proferido em 23.11.2023, a Mmª Juíza “a quo” no relatório do mesmo referiu-se à sua anterior decisão em que qualificara a insolvência como fortuita, mas depois em sede de fundamentação jurídica não lhe fez qualquer alusão.

   É o seguinte o teor deste despacho, datado de 2.10.2023:

   “Nos termos do artigo 233.º, n.º6 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa «sempre que ocorra o encerramento do processo de insolvência sem que tenha sido aberto incidente de qualificação…deve o juiz declarar ….o carater fortuito da sentença”.

    In casu, e tal como referido supra, os autos foram encerrados por insuficiência da massa e não foi aberto incidente de qualificação.

  Assim sendo, nos termos dos dispositivos legais citados, qualifico a insolvência de AA, como fortuita.

    Notifique.”

Acontece que o sentido desta decisão e a sua posterior repercussão no incidente de exoneração do passivo restante é da maior importância para se poder apurar do acerto – ou não – do despacho recorrido.

 Por isso, entende a recorrente que, tendo transitado em julgado o despacho que declarou a insolvência como fortuita, não podia a Mmª Juíza “a quo”, face ao sentido desta decisão, indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, convocando a alínea e) do nº 1 do art. 238º do CIRE.

   Vejamos então.

2. Importa desde logo referir que no presente caso não houve lugar à abertura de incidente de qualificação de insolvência nos termos do disposto nos arts. 185º e segs. do CIRE.

Se acaso este incidente tivesse sido aberto e se no seu âmbito se tivesse decidido pela insolvência fortuita da devedora, não cremos que possa haver dúvidas que tal decisão se imporia no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, desde logo por respeito ao caso julgado, tal como o tem vindo a entender a generalidade da nossa jurisprudência, referindo-se a título exemplificativo os Acórdãos da Relação do Porto de 21.3.2022, proc. 3720/15.1 T8AVR.P1 (MENDES COELHO), de 14.7.2020 (proc. 1467/15.8 T8STS-J.P1 (CARLOS GIL) e de 28.1.2014, proc. 435/13.9 TBPFR-C.P1 (VIEIRA E CUNHA) e da Relação de Guimarães de 24.4.2014, proc. 159/13.7TBPTB-F.G1 (ISABEL ROCHA), todos disponíveis in www.dgsi.pt.

    Porém, não é essa a situação.

 Neste caso, o que ocorre é tão-somente a prolação de uma declaração meramente formal por parte do tribunal, por simples efeito da decisão de encerramento do processo e da constatação de falta de impulso para abertura do incidente de qualificação da insolvência, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 230.º e 233.º, n.º 6 do CIRE.
 Em tais circunstâncias, como se consignou no sumário do acórdão da Relação de Lisboa de 26.10.2021 (proc. 2213/20.0T8BRR.L1-1, relatora PAULA CARDOSO, disponível in www.dgsi.pt.), a qualificação da insolvência como fortuita “decorre diretamente da lei e não pressupõe qualquer avaliação dos factos comportamentais dos insolventes, nada impedindo que os mesmos, ainda assim, vejam liminarmente indeferido o seu pedido de exoneração do passivo”. Neste aresto, depois de se frisar que “a lei apenas permite hoje que o incidente seja declarado aberto em dois momentos processuais e por duas formas – oficiosamente pelo juiz, na sentença de insolvência (quando existam elementos para tal), ou posteriormente, agora a requerimento do Administrador da Insolvência ou de qualquer interessado – até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa de realização desta, após a junção aos autos do relatório a que refere o artigo 155.º”, chama à colação o entendimento de CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, vertido em anotação ao cit. art. 233.º, n.º 6, (no CIRE anotado, 3.ª edição, QJ, Sociedade Editora, pág. 843): “16. Em rigor o n.º 6 não seria necessário para o fim que imediatamente visa alcançar. Com efeito, se não chegar a ser aberto o incidente de qualificação no decurso do processo, no quadro que decorre das disposições combinadas dos artigos 36.º n.º 1 al. i) e 188.º, é claro que a insolvência não poderia nunca ser qualificada como culposa. Daí que determinar a declaração do seu carácter fortuito na própria decisão de encerramento nada traga, realmente, de relevante”.[4]

Deste modo, há a concluir que, na situação “sub judice” a declaração da insolvência como fortuita, ao abrigo do art. 233º, nº 6 do CIRE, por mero efeito do encerramento do processo de insolvência, não é impeditiva do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.[5] [6] 


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3. Posto isto, há agora que apurar se deve ser mantida a decisão que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente, com fundamento no art. 238º, nº 1, al. e) do CIRE, o que implica, em primeiro lugar, a reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Com efeito, a recorrente impugnou os factos dados como não provados nas alíneas a), d), e), f), h), i), j), m) e n), entendendo que os mesmos devem ser dados como provados.

   É a seguinte a sua redação:   

a) A mãe da insolvente esteve internada no Lar Residencial que já lhe prestava cuidados domiciliários desde Novembro de 2018 até à sua morte, em Abril de 2021;

d) A insolvente não tinha condições financeiras para colaborar com tais despesas, facto que os seus irmãos conheciam;

e) A mensalidade do Lar era inicialmente de 1.100,00 euros, passando em 2020 a 1150,00 e em 2021 a 1155,00 euros;

f) Os gastos mensais em farmácia raramente eram inferiores a 80,00 euros, muitas vezes rondavam os 100,00 euros; e os demais cerca de 90,00 euros, sendo muitas vezes superiores;

h) O valor mensal a suportar com o Lar e todas as outras necessidades variava entre os 850 a 900 euros, no mínimo, deduzido já o valor da pensão de reforma;

i) E foram os irmãos da insolvente que suportaram esses encargos durante todo o tempo que durou o internamento da mãe, desde Novembro de 2018 até Abril de 2021;

j) Face à sua impossibilidade financeira a insolvente havia declarado a seus irmãos que lhes cederia o seu direito nas respetivas heranças em compensação do que era a sua quota-parte na responsabilidade pelos cuidados a prestar aos pais;

m) Os filhos da insolvente outorgaram a escritura e receberam os cheques que lhes foram entregues por seu tio GG, mas devolveram esse dinheiro a sua mãe que, por sua vez, o entregou àquele seu irmão;

n) Tendo, a insolvente e seus irmãos, dado por acertadas as contas. 

No sentido das alterações probatórias pretendidas a recorrente indicou a documentação que juntou aos autos nos seus requerimentos de 11.9.2023, 16.10.2023 e 26.10.2023 e também excertos das declarações por si produzidas.

Alude também nesse sentido à factualidade que foi considerada provada sob os nºs 3, 4, 16 e 17.

 Uma vez que foram observados os ónus previstos no art. 640º do Cód. de Proc. Civil, há que proceder à reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto, tal como é pretendido pela recorrente.

 4. Antes de mais transcreveremos aqui o que na decisão recorrida foi escrito, de forma detalhada, pela Mmª Juíza “a quo” em sede de motivação de facto:

“Os factos provados acima elencados assentam na sentença de declaração de insolvência, CRC junto aos autos, documentação junta aos autos da insolvência, nomeadamente, aquela que foi junta com o relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE.

Teve-se ainda em conta o apenso de reclamação de créditos de onde resulta o valor das dívidas da insolvente.

Considerou-se a escritura de partilha outorgada no cartório notarial ... a cargo da notária HH em 10.9.2021 de onde decorre a existência de dois repúdios à herança por parte da devedora e o facto dos filhos terem sido habilitados. Daqui também se infere que estes receberam, a parte da herança da mãe, tendo-lhes sido entregue os competentes cheques.

O tribunal atendeu também aos recibos emitidos pelo lar onde se encontrava internada a sua mãe. Daqui resulta o valor mensal médio cobrado pela instituição por aquele internamento. De igual modo resulta o valor pago pelos familiares da internada.

 A propósito desta questão impõe-se dizer que, no confronto entre o valor médio mensal dos custos e o valor pago pelos familiares, concluímos que o valor que cabia aos familiares é muito inferior aos valores adiantados pela insolvente no requerimento que apresentou em juízo.

 De facto, é patente que o valor a pagar pelos familiares se situava numa média mensal que rondava os 600,00€ o que a fazer fé nas declarações da devedora, implicava um custo mensal para cada filho, devedora incluída, na ordem dos 200,00€. Tendo em conta que a devedora alegou (ainda que não tenha provado) que a sua mãe viveu no lar entre novembro de 2018 e abril e 2021, temos cerca de 30 meses que na média mensal de 200,00€ implicam uma despesa de 6000,00€ para cada filho.

    Posto isto:

A questão central em análise prende-se com o repúdio da herança efetuado pela devedora.

Aquando da sua audição, a devedora em súmula reiterou o requerimento por si apresentado, esclarecendo que ao fazer o repúdio pretendia pagar ao seu irmão os valores por este adiantados para pagamento do lar e que desconhecia que ao repudiar a herança iria fazer intervir os seus filhos.

 Mais disse que o seu irmão efetuou o pagamento aos seus filhos e que estes posteriormente levantaram o dinheiro entregando-o à sua mãe que, por seu turno, o entregou ao irmão.

Ora, esta versão trazida a juízo não se mostra credível porque não é consentânea com as regras da experiência comum e do normal acontecer.

Com efeito, se a devedora pretendia pagar uma dívida com a herança que tinha a receber poderia ter recorrido ao mecanismo da dação em pagamento. Por outro lado, mesmo que a devedora não soubesse que com o repúdio estaria a fazer intervir os filhos, teve conhecimento deste facto ainda antes da escritura, pelo que poderia ter agido doutra forma.

Aliás, importa salientar que a devedora outorgou duas escrituras de repúdio, precisamente nas mesmas datas em que foram efetuadas as duas habilitações de herdeiros dos seus falecidos pais. Ora, se a intenção era compensar os seus irmãos, bastava ter efetuado uma única escritura de repúdio aquando da morte da sua mãe, pelo que o ter agido nos termos em que o fez revela, no nosso entender, e tendo em conta as regras da experiência comum, que a devedora não queria ter património que pudesse ser alcançado pelos seus credores, credores estes que sabia existirem.

Por outro lado, se a intenção era devolver o dinheiro recebido na partilha, não se percebe porque razão os filhos da insolvente não transferiram tal valor diretamente para o tio, evitando, assim, duas transações. Aliás, referindo a devedora que um dos filhos até reside no Algarve, mais fácil seria para aquele fazer uma transferência bancária em vez de estar a levantar o dinheiro e entregar em mão à sua mãe para que esta posteriormente o entregasse ao seu irmão e adquirente do imóvel da herança.

Por fim, alegando a insolvente que foram os seus irmãos que suportaram os encargos durante todo o tempo que durou o internamento da mãe, desde Novembro de 2018 até Abril de 2021, e não apenas o adquirente do bem da herança, afirmando também que foi acordado que lhes cederia o seu direito nas respetivas heranças em compensação, não se compreende que a mesma tenha dado toda a sua parte apenas a um deles, precisamente ao adquirente do imóvel da herança e não metade para cada um.

    Posto isto:

Em face do exposto, as explicações dadas pela devedora não se mostram verosímeis no sentido do repúdio ter visado liquidar a sua dívida para com os seus irmãos.

Por outro lado, para além das declarações da devedora, nenhuma outra prova foi produzida no sentido da existência da dívida da insolvente.

Não obstante, ainda que assim fosse, nunca a dívida seria no valor adiantado pela mesma.

De facto, e como acima referido, retira-se da documentação junta pela própria devedora que o valor a pagar pelos familiares se situava numa média mensal que rondava os 600,00€ o que, implicava um custo mensal médio para cada filho, devedora incluída, na ordem dos 200,00€.

Sendo certo que a devedora alegou que a sua mãe viveu no lar entre novembro de 2018 e abril de 2021 (período que não provou), temos cerca de 30 meses, o que perfaz uma despesa de 6000,00€.

Ora, este é um valor inferior ao valor da herança, e ainda que a devedora alegue que também foi prestado apoio domiciliário, o certo é que não houve qualquer prova de despesas relacionadas com o mesmo.

   Posto isto:

ponderando o supra exposto com as regras da experiência comum impõe-se concluir que tal repúdio teve o intuito de subtrair tal bem aos credores e não qualquer outro propósito, importando retirar consequências desta atuação.”

5. Procedemos à audição, na íntegra, das declarações que foram prestadas pela insolvente AA. Disse que depois de perder tudo teve de emigrar e que a mãe tinha que ter alguém que cuidasse dela. Os três irmãos decidiram então arranjar um lar para a mãe, pois nenhum deles tinha condições. E a declarante disse-lhes que não podia participar das despesas e que a sua parte na herança dos pais ficaria para a ajuda do lar da mãe. Referiu que a herança foi dividida em três partes e a que lhe havia de tocar foi dividida pelos seus três filhos e a seguir estes deram-lhe o valor correspondente em dinheiro para que pudesse fazer contas com os seus irmãos. Eram cerca de 9.000,00€, mas não soube precisar quanto devia aos seus irmãos, tendo, porém, afirmado que era mais. Mais disse que quando a mãe entrou para o lar eram 1.050,00€ sem fraldas, cremes, medicamentos e consultas, mas depois aumentou. Havia meses em que passava dos 1.500,00€, outras vezes eram 1.200,00€. Confirmou que no lar o valor que ultrapassava a reforma da sua mãe era pago pelos filhos, embora não saiba esclarecer quanto era. A mãe esteve no lar desde 2018 até 2021.

Quanto à documentação junta pela insolvente com os seus requerimentos de 11.9.2023, 16.10.2023 e 26.10.2023 corresponde esta a recibos emitidos pelo Lar onde mãe esteve, reportando-se uns à comparticipação da utente e em seu nome (CC) e outros à comparticipação familiar, estes em nome de GG. Desse conjunto de documentos constam também faturas relativas à compra de medicamentos, cremes, fraldas e transportes efetuados por Bombeiros.

6. O art. 662º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil estatui que «[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos dados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»

Contudo, sempre se terá que ter em atenção que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – cfr. art. 607º, nº 5 do Cód. de Proc. Civil.

Ora, da apreciação que fazemos conjugadamente das declarações prestadas pela insolvente e da documentação que esta fez juntar aos autos, com destaque para os recibos emitidos pelo Lar Residencial, entendemos que deverá ser dado como provado que a mãe da insolvente esteve internada neste Lar Residencial desde Novembro de 2018 até à sua morte, em Abril de 2021 [alínea a)].

Em segundo lugar, face a esses mesmos recibos terá que se concluir que a mensalidade do Lar era inicialmente de 1.100,00€, passando em 2020 a 1.150,00€ e em 2021 a 1.155,00€ [alínea e)]

 Já no que toca à demais matéria fáctica que foi dada como não provada e que se mostra impugnada – alíneas d), f), h), i), j), m) e n) – consideramos não haver motivo para dissentir da bem fundamentada convicção formada pela 1ª Instância e toda ela se manterá como não provada, inexistindo elementos probatórios que com segurança permitam dar como assente que os encargos com o Lar e outras necessidades da mãe da insolvente, deduzido já o valor da sua reforma, tenham sido suportados exclusivamente pelos seus irmãos e que a insolvente, para os compensar, tenha declarado que lhes cederia o seu direito nas respetivas heranças.  

 Tal como não se provou que os filhos da insolvente tenham recebido os cheques que lhes foram entregues por seu tio GG, devolvendo esse dinheiro à sua mãe que, por sua vez, o entregou àquele seu irmão e que a insolvente e os seus irmãos tenham seguidamente dado por acertadas as contas.

Conforme a Mmª Juíza “a quo” deu nota na sua motivação da decisão fáctica, atrás transcrita, e com a qual nos mostramos em sintonia, as declarações produzidas pela insolvente não se mostraram verosímeis no tocante às razões que a levaram a repudiar as heranças dos seus pais.

 Acresce que nenhuma outra prova corroborou a sua versão sobre tais repúdios.

Também face à prova produzida, que corresponde às declarações prestadas pela própria devedora e à documentação constante do processo, não é possível considerar demonstrado que a insolvente não tinha condições para colaborar nas despesas e que tal era conhecido dos seus irmãos, anotando-se ainda que este facto não provado – alínea d) – não se mostra em contradição com os factos dados como assentes sob os nºs 3, 4, 16 e 17.    

Por último, quanto aos gastos mensais em farmácia importará referir que a documentação junta aos autos não permite com segurança dar como provados os valores referidos na alínea f), o mesmo sucedendo relativamente aos valores mensais a suportar com o Lar e todas as outras necessidades, deduzido o valor da pensão de reforma. 

Aliás, no que concerne a este ponto factual – alínea h) – sempre é de salientar que, de acordo com os documentos constantes do processo, os valores a pagar pelos familiares não rondariam os 850 a 900 euros, antes se situariam, conforme refere a Mmª Juíza “a quo”, numa média mensal de 600,00€, o que corresponderia a um custo também mensal por cada filho na ordem dos 200,00€.      

 7. Deste modo, a impugnação da matéria de facto feita pela insolvente obterá parcial êxito e, em consequência:

 - eliminam-se da factualidade não provada as suas alíneas a) e e);

- aditam-se à factualidade provada os nºs 23 e 24 com a seguinte redação:

23. A mãe da insolvente esteve internada no Lar Residencial desde Novembro de 2018 até à sua morte, em Abril de 2021;

24. A mensalidade do Lar era inicialmente de 1.100,00 euros, passando em 2020 a 1150,00 e em 2021 a 1155,00 euros.


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 8. Prosseguindo, há agora que apreciar se, perante a factualidade dada como assente, foi correta a decisão da 1ª Instância que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante ao abrigo do art. 238º, nº 1, al. e) do CIRE.

Dispõe-se neste artigo no seu nº 1 que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:

«a) For apresentado fora de prazo;

 b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;

 c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;

 d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica;

e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º;

f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos no artigo 227.º a artigo 229.º, do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;

g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.»

O indeferimento liminar do pedido de exoneração restante formulado pela insolvente fundou-se exclusivamente na alínea e) deste preceito, o que nos remete para o art. 186º do CIRE.

Neste preceito, estatui-se que «[a] insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.»

Constituem assim requisitos da insolvência culposa: a) facto, relativo à conduta, por ação ou omissão do devedor, no período de três anos que antecede o início do processo de insolvência; b) culpa, na versão de dolo ou culpa grave; c) nexo de causalidade entre a conduta, na vertente de ação ou omissão, e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

Constata-se, pois, que para a insolvência ser qualificada como culposa se mostra necessário que a atuação (ou omissão) tida como dolosa ou gravemente culposa do devedor seja causal da criação ou do agravamento da situação de insolvência.

A dificuldade no apuramento do caráter doloso ou de culpa grave da conduta fez com que o legislador elencasse factos tidos como graves, atribuindo-lhes uma diferente natureza conforme caiba a situação no nº 2 ou no nº 3 do art. 186.º do CIRE, configurando-se no primeiro caso uma presunção “juris et jure” e no segundo caso uma presunção “juris tantum”.

Acresce que as normas insertas nos referidos nºs 2 e 3, direcionadas em primeira linha para pessoas coletivas, poderão aplicar-se, com as necessárias adaptações, à atuação das pessoas singulares insolventes, “onde a isso não se opuser a diversidade das situações”, nos termos do nº 4 do mesmo artigo.

Sucede que no nº 2 deste artigo se acha previsto que se considera sempre culposa a insolvência quando o devedor tiver ocultado ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o seu património [al. a)] e também quando o devedor tenha disposto dos bens em proveito pessoal ou de terceiros [al. d)].

Ora, no caso dos autos, decorre da factualidade provada – e não obstante as alterações que nela foram efetuadas -, que a insolvente ao repudiar as heranças, únicos bens que possuía, agravou a sua situação, uma vez que se viu despojada de quaisquer bens que pudessem honrar, pelo menos, parte das suas dívidas.

Este repúdio visou, tão-só, furtar-se ao cumprimento das obrigações assumidas, sendo que tal comportamento da devedora não é merecedor do benefício de exoneração do passivo restante.

Assim, concordando-se com a sentença recorrida, entende-se que o pedido formulado neste sentido pela devedora deverá ser indeferido liminarmente, face à verificação da situação prevista na alínea e) do nº 1 do art. 238.º do CIRE, o que importará a improcedência do recurso interposto.

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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes deste Tribunal em julgar improcedente o recurso interposto pela insolvente AA e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da recorrente, sem prejuízo de apoio judiciário.

Porto, 20.2.2024
Rodrigues Pires
Maria da Luz Seabra
Alexandra Pelayo
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[1] A tempestividade do recurso, interposto em processo de natureza urgente, resulta do acréscimo de dez dias resultante da reapreciação da prova gravada – art. 638º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil – e do pagamento da multa a que se reporta o art. 139º, nº 5 do mesmo diploma.
[2] Não se pode deixar de considerar inadequada e até abusiva a formulação neste recurso de 94 conclusões [embora a numeração sequencial seja de 92 constatou-se a duplicação de dois números – 78 e 85]. De qualquer modo, por não se perspetivar esforço significativo de síntese por parte da recorrente, entendeu-se não ser processualmente oportuno determinar o convite à sua sintetização nos termos do art. 639º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil.
[3] É a seguinte a redação desta alínea:
«O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: (…) e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º; (…)»
[4] Seguiu-se também a posição tomada no Ac. Rel. Porto desta mesma secção (FERNANDO VILARES FERREIRA), de 26.9.2023, p. 440/14.8 TBOAZ.P1, não publicado, também subscrito pela aqui 1ª adjunta.
[5] A presente situação é diversa da tratada no Ac. desta Relação de 5.12.2023 (relatado pelo presente relator e também subscrito pela aqui 2ª adjunta), no processo nº 2382/22.4 T8STS.P1, não publicado, uma vez que nesse caso a 1ª Instância no despacho em que declarou a insolvência como fortuita consignou, de forma expressa, não decorrerem dos autos quaisquer elementos que permitam ao tribunal oficiosamente considerar preenchidas as presunções legais inilidíveis – artigo 186º do CIRE.
[6] Não se perfilha assim a posição sustentada no Ac. Rel. Porto de 21.3.2022 (p. 1689/21.2 T8STS-B.P1, relator Carlos Gil, disponível in www.dgsi.pt), no qual em situação próxima se afastou o preenchimento da previsão da alínea e) do nº 1 do art. 238º do CIRE, embora neste caso se tenha mantido a decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante com fundamento na alínea g) da mesma norma.